"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, novembro 23, 2006

Bresser Pereira

A Argentina aprendeu
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Folha de S.Paulo, 6.11.2006.
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Falar a favor das políticas econômicas adotadas pela Argentina implica contradizer o saber hegemônico segundo o qual Néstor Kirchner estaria fazendo uma gestão "populista" na economia, enquanto o governo Lula seria um exemplo de bom comportamento. Não é isso, entretanto, o que dizem os dados: enquanto a Argentina continua a crescer a taxas aceleradas e já compensou com sobras as perdas da grande crise de 2001, o Brasil se mantém quase estagnado, não obstante a conjuntura internacional muito favorável. Como mostra o quadro, a diferença de taxas é de 3 para 1: 8,9% de crescimento médio nos últimos quatro anos na Argentina, contra 2,8% no Brasil.

Brasil Argentina
Cresc médio PIB: 2003-06 2,8 8,9
Déficit público/PIB (2006) 3,5 -1,7
Inflação (2006) 3,0 11,0
Taxa de juros (2006) 10,0 0,8

Fonte: Ministério da Economia e Produção da Argentina, Ipeadata. Para a taxa de juros, The Economist. Observ.: 3006: estimativa com base dados até setembro.

E o populismo que a ortodoxia convencional usa para criticar quem não a obedece? Nesse ponto, é importante distinguir o político do econômico: populismo político define-se pela comunicação direta do líder com o povo sem a intermediação dos partidos e das respectivas ideologias; populismo econômico é gastar mais do que se arrecada: se for a organização do Estado que gasta além de suas possibilidades, o populismo será fiscal; se for o Estado-nação ou país que deixa sua taxa de câmbio se apreciar, o populismo será cambial.
Do ponto de vista político, tanto Lula como Kirchner são populistas, mas o populismo político é praticamente inevitável em sociedades democráticas pobres. Quanto ao populismo econômico, os dados da tabela mostram que definitivamente não existe populismo fiscal na Argentina, que apresenta superávit fiscal de 1,7% do PIB (Produto Interno Bruto), contra déficit público no Brasil em torno de 3,5% em 2006. O populismo cambial, por sua vez, está diretamente relacionado com a taxa de câmbio apreciada, que aumenta artificialmente os salários reais e o consumo tanto de bens importados como de produtos cujo preço é determinado no mercado internacional. Na Argentina, a taxa de câmbio continua depreciada, apesar da pressão da ortodoxia convencional no sentido de apreciá-la "para combater a inflação".
A resistência da Argentina em reapreciar sua moeda é central para sua estratégia de retomada do desenvolvimento, como é central a sua decisão de impor imposto de exportação sobre os produtos agropecuários que podem ser causa de "doença holandesa", ou seja, a apreciação artificial do câmbio -sem, porém, com isso prejudicar a lucratividade das exportações. Os argentinos aprenderam duramente com a crise de 2001 como é importante manter a taxa de câmbio competitiva, e, como os países asiáticos, não mais aceitam a política de crescimento com poupança externa que o Norte nos aconselha.
Com uma política econômica baseada, de um lado, em ajuste fiscal firme, e, de outro, em taxa de juro baixa combinada com taxa de câmbio competitiva, a Argentina cresce e está se tornando um exemplo de novo desenvolvimentismo na América Latina. Enquanto isso, a ortodoxia convencional à qual interessa câmbio baixo e juro alto cobre de elogios o Brasil que não cresce.
Apenas em um ponto o Brasil está melhor do que a Argentina: a taxa de inflação aqui é de 3%, contra 11% na Argentina. As duas taxas são artificiais, porque a brasileira foi alcançada graças à apreciação do câmbio, a argentina, graças a controles administrativos de preços que, sabemos bem, nada garantem no médio prazo. A inflação é o calcanhar-de-aquiles do modelo argentino, mas, no momento em que esse problema for resolvido -e não há razão por que não acreditar que o será, já que está havendo responsabilidade fiscal-, teremos afinal, na região, um país que rejeitou os conselhos e as pressões do Norte, reconstruiu sua nação e reaprendeu o caminho do desenvolvimento econômico.

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