"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 27/02/07

Os equívocos da crise do gás no Cone Sul


Só a cultura do espetáculo poderia imaginar que Evo Morales, Cristina Kirchner e Lula resolvessem, em poucas horas, os gargalos do abastecimento de gás no Cone Sul. Eles decorrem de duas crenças: na suposta generosidade infinita da natureza e no caráter "positivo" de qualquer aumento de consumo. A análise é André Ghirardi, professor licenciado da UFBa e assessor da Presidência da Petrobrás no artigo intitulado ‘Houdini não foi a Buenos Aires’ no sítio do Le Monde Diplomatique Brasil, 25-02-2008.

Eis o artigo.

Sob o único foco de luz, no centro do palco escuro, o mágico aproxima-se da mesa. Da platéia vêem-se apenas a cabeça e os pés da linda jovem, salientes nas extremidades da caixa sobre a mesa. A platéia aterrorizada testemunha o mágico serrar ao meio a caixa e, presumivelmente, o jovem corpo. Após um momento de angústia geral, o mago profere enfim as palavras milagrosas: abre-se a caixa e a jovem salta inteira, saudável, até mais linda do que antes. Todos aplaudem delirantes, aliviados, gratos ao misterioso poder que permitiu resgatar a harmonia que parecia destruída.

Somente a lógica de criação de um espetáculo poderia explicar a expectativa de que o desequilíbrio da indústria regional de gás pudesse, de fato, ser resolvido na recente reunião dos presidentes de Argentina, Bolívia, e Brasil, em Buenos Aires. Da mesma forma que, na cena mágica, a jovem dentro da caixa teve separado o tronco das pernas, existe hoje uma dissociação entre oferta e demanda por gás natural na região. Especificamente há um descasamento entre o volume de gás diariamente disponível para exportação na Bolívia (cerca de 34 milhões de metros cúbicos), e o volume de gás boliviano demandado por Brasil e Argentina (cerca de 36 milhões de metros cúbicos por dia).

O problema não é novo, e tem sido exaustivamente analisado ao longo dos últimos dois anos. Os fatos são plenamente conhecidos: não há como aumentar de imediato a produção boliviana; o Brasil precisa de todo o volume a que tem direito por contrato firmado há dez anos; a Argentina consome cada vez mais do que consegue produzir, e precisa aumentar importações para garantir o suprimento básico à população. É uma questão aritmética, e a conta simplesmente não fecha. Apesar disso criou-se, na imprensa de véspera, a expectativa de que a reunião tripartite de 23 de fevereiro pudesse produzir uma solução mágica e que, tal como a jovem de circo, o mercado regional de gás ressurgisse intacto e sorridente sob o aplauso geral. Mas a realidade se impôs. Não houve mágica: Houdini não foi a Buenos Aires.

Podemos tirar proveito desta espécie de ressaca pela mágica que não houve. Mas para isso temos que fazer o dever de casa, e rever os comportamentos que nos levaram a esse impasse. Como disse o poeta florentino, perdonar non si può chi non si pente (não se pode perdoar quem não se emenda), e o problema do desequilíbrio na indústria de gás vai persistir se continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Refiro-me especificamente a dois equívocos, presentes em grau variado nos países da região, e que geram expectativas descabidas: um sobre produção, e outro sobre consumo. O primeiro é que os recursos naturais são um bem em si, algo como uma dádiva divina que temos no subsolo, e que de toda parte afluirão capitais para desenvolver esses recursos, cobiçosos dos grandes lucros que será possível obter. Não é assim. A indústria de gás natural é uma atividade que exige expor ao risco imensos volumes de recursos que, alternativamente, podem ser direcionados a outras atividades com remuneração mais segura. Portanto, a extração e uso do gás dependem de que se dêem condições para remuneração justa do capital empregado nessa atividade. Do contrário, o gás permanecerá debaixo da terra, onde poderá ter função simbólica, mas não contribuirá para a qualidade da vida material.

É claro que existe, sim, uma disputa pela repartição do valor criado na produção e uso do gás. É também certo que, na história da indústria, essa repartição favoreceu mais vezes às empresas do que aos Estados nacionais detentores das reservas. É legítimo, portanto, que exista negociação pelo valor gerado. Mas pode haver paralisia, se os governos fizerem disso unicamente uma causa de revanchismo nacionalista. Essa questão é particularmente delicada na Bolívia de hoje, onde as disputas internas em torno da reestruturação do Estado criam incertezas desfavoráveis aos investimentos de grande porte necessários para aumentar a produção de gás.

O segundo equívoco, é julgar que o aumento do consumo é um bem em si, como na visão neoclássica da utilidade. Na realidade, a expansão do consumo só é benéfica na medida em que inclua os segmentos mais pobres da sociedade, e que exista suficiente produção para atender a esse consumo crescente. Todos os países da região enfrentam, em maior ou menor grau, o desafio de dar, a grandes contingentes marginalizados da população, acesso ao consumo. No Brasil, por exemplo, programas de inclusão social como Fome Zero, Luz para Todos, e Bolsa-Família constituem-se em pilares de atuação do governo, e têm contribuído diretamente para a pujança da economia em anos recentes.

Programas desse tipo são direcionados ao aumento de consumo, principalmente de produtos básicos — entre eles, serviços de energia. Para que esse aumento de consumo não se dissipe simplesmente numa onda inflacionária, é preciso que a capacidade de produção dos bens mais solicitados tenha condições de expandir-se de forma compatível com a demanda crescente. É tarefa dos governantes administrar esse delicado equilíbrio entre produção e consumo.

Neste início de século 21, foi na Argentina que se deu o mais espetacular crescimento do consumo no Cone Sul. Após a brutal recessão de 2001, que levou a maior parte da população argentina a níveis graves de empobrecimento e privação, as políticas de governo a partir de 2003 concentraram-se na recomposição dos salários. Para conseguir o desejado aumento de consumo, essas políticas valeram-se também do controle de preços que, se não foi formal, nem por isso foi menos rígido, e atingiu principalmente a indústria de energia em seus diversos segmentos. Num primeiro momento, o maior consumo foi atendido pela capacidade ociosa então existente. Mas essa se esgotou rapidamente e, diante da contenção dos preços, o investimento que se fez foi insuficiente para atender ao galopante avanço do consumo.

Para a indústria de energia, e especificamente do gás natural, isso resultou na relativa estagnação da capacidade de produção, sem que os preços sinalizassem à população a escassez crescente. O resultado é que hoje os sistemas de gás e energia elétrica da Argentina operam no limite máximo de suas capacidades. Há seis meses, durante o inverno de 2007 foi necessário parar unidades industriais por falta de gás. Nos dias de hoje, são rotineiras as interrupções de fornecimento de eletricidade em Buenos Aires. É, de fato, uma situação-limite.

O Brasil retomou os investimentos na Bolívia, queima óleo combustível em termelétricas e estabelece, pelo gás encanado, preços elevados. Mas não pode ir além disso. O que se pede do Brasil nesta situação? É simples. Que invista para aumentar rapidamente a produção na Bolívia, a despeito da fragilidade do marco regulatório, e que reduza seu próprio consumo, para que mais gás seja canalizado para a Argentina. Na medida do possível, ambas reivindicações têm sido atendidas.

Em dezembro de 2007 o presidente Lula desafiou um clima político tenso, e foi pessoalmente a La Paz anunciar a retomada dos investimentos da Petrobras, a despeito das perdas (reais e simbólicas) que o Brasil sofreu durante a nacionalização da indústria de gás boliviana, em 2006. Do lado do consumo, há meses o Brasil arca com o custo de queimar óleo combustível numa grande usina termelétrica no Mato Grosso, que deixou de receber da Bolívia o gás contratado. Também nas refinarias brasileiras queima-se óleo combustível, para reduzir o consumo de gás.

Além disso, a população brasileira tem feito sua quota de sacrifício, através do preço que paga pelo gás. Quando utilizado nas residências em São Paulo, o gás natural tem preço trinta vezes (isso mesmo, trinta) maior do que pagam as residências de Buenos Aires. As indústrias brasileiras pagam três vezes mais do que as argentinas, pelo mesmo gás. O pedido adicional feito na reunião tripartite era o impossível: que o Brasil pusesse em risco os serviços de energia à própria população para subsidiar o consumo descontrolado do vizinho.

Mas nem tudo está perdido. Estão em construção, no Brasil e na Argentina, terminais marítimos que possibilitam importar da África e do Oriente Médio o gás natural liquefeito. O produto é muito caro. Mas é essa a solução disponível a curto prazo. E temos que trabalhar bem para que funcionem a tempo esses terminais. Do contrário o conflito entre os três países tenderá a se acirrar nos próximos meses, em detrimento do combalido objetivo de integração regional. Há muito gás na região. Só falta tomar imediatamente as medidas necessárias para reequilibrar oferta e demanda: acordos viáveis para investimento, e preços transparentes aos usuários. Não podemos simplesmente esperar por milagres.

Instituto Humanitas Unisinos - 27/02/07

Cuba. Artigo de José Luís Fiori

"Cuba já se transformou num símbolo e numa resistência que é intolerável por si mesma, para os seus vizinhos americanos. Por isto, o objetivo principal dos Estados Unidos, em qualquer negociação futura, será sempre o de fragilizar e destruir o núcleo duro do poder cubano', escreve José Luís Fiori, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, em artigo publicado no jornal Valor, 27-02-2008.

Eis o artigo.

Foi logo depois da conquista da Flórida, em 1819. Os Estados Unidos só tinham 40 anos de idade e seu território não ia além do Rio Mississipi.

James Monroe era o presidente dos EUA, mas foi seu secretário de Estado, John Quincy Adams, quem falou, pela primeira vez, da atração americana por Cuba. Quando disse, numa reunião ministerial do governo Monroe, que "existem leis na vida política que são iguais às da física gravitacional: e, por isto, se uma maçã for cortada de sua árvore nativa - pela tempestade - não terá outra escolha senão cair no chão; da mesma forma que Cuba, quando se separar da Espanha, não terá outra alternativa senão gravitar na direção da União Norte-Americana. E por esta mesma lei da natureza, os americanos não poderão afastá-la do seu peito" [W.C. Ford (ed), The Writings of John Quincy Adams, Mac Millan, NY, VII, p: 372-373]. Naquele momento, o desejo de Adams não era conquistar a ilha, era preservá-la, e por isso deu ordem ao seu embaixador em Madrid que comunicasse ao governo espanhol a "repugnância americana à qualquer tipo de transferência de Cuba para as mãos de outra potência".

Em 1819, a capacidade americana de projetar seu poder para fora de suas fronteiras nacionais ainda era muito pequena, mas a declaração de Adams explicitou um desejo e antecipou um projeto que se realizaria plenamente a partir de 1890. Logo no início da década, o almirante Alfred Thayer Mahan publicou um livro clássico [Mahan, A.T. (1890/1987) The Influence of Sea Power upon History 1660-1873, Dover Publication, NY] que exerceu imensa influência sobre a elite dirigente americana, sobre a importância do poder naval e das ilhas do Caribe e do Pacífico para o controle dos oceanos e a expansão das grandes potências. Logo em seguida, os EUA anexaram o Havaí, em 1897, e venceram a Guerra Hispano-Americana, em 1898, conquistando Cuba, Filipinas e algumas outras ilhas caribenhas, onde estabeleceram um sistema de "protetorados" como forma de governo compartido destes territórios.

Logo depois da sua vitória contra a Espanha, o presidente William McKinley repetiu, frente ao Congresso Americano, em dezembro de 1889, a velha tese de Quincy Adams: "A nova Cuba precisa estar ligada a nós, americanos, por laços de particular intimidade e força, para assegurar de forma duradoura o seu bem-estar" (Pratt, J. A (1955) History of United States Foreign Policy, The University of Buffalo, p: 414) . E foi isto que aconteceu: os cubanos aprovaram sua primeira Constituição independente em 1902, mas tiveram que anexar ao seu texto uma lei aprovada pelo Congresso Americano e imposta aos cubanos, em 1901 - a Platt Amendment - que definia os limites e as condições de exercício da independência dos islenhos. Os EUA mantinham sob seu controle a política externa e a política econômica de Cuba, e ficava assegurado o direito de intervenção dos americanos na ilha, em "caso de ameaça à vida, a propriedade e à liberdade individual dos cubanos" [idem, p: 415). Em 1934, a Emenda Platt foi abolida e substituída por um novo tratado entre os dois países, que assegurou o controle americano da Base Naval de Guantânamo e garantiu a tutela dos EUA sobre o longo período de poder de Fulgêncio Batista, que assumiu o governo de Cuba em 1933, a bordo de um cruzador americano, e depois governou Cuba, de forma direta ou indireta, até 1959.

Depois da Revolução Cubana de 1959, entretanto, a ilha deixou de ser a "maçã" de Adams sem deixar de ser o "objeto do desejo" dos americanos. O novo governo revolucionário assumiu o comando da sua economia e da sua política externa, e provocou a reação imediata e violenta dos EUA. Primeiro foi o "embargo econômico" imposto pela administração Eisenhower, em 1960, e logo depois a ruptura das relações diplomáticas, em 1961. Em seguida, foi a administração Kennedy, que promoveu e apoiou a frustrada invasão da Bahia dos Porcos, a expulsão cubana da Organização dos Estados Americanos e vários atentados contra dirigentes cubanos. No início, os EUA justificaram sua reação, como defesa das propriedades americanas expropriadas pelo governo cubano, em 1960, e como contenção da ameaça comunista, situada a 145 quilômetros do seu território. Mas, depois de 1991 e do fim da URSS e da Guerra Fria, os EUA mantiveram e ampliaram sua ofensiva contra Cuba, só que agora em nome da democracia, apesar de que mantenham relações amistosas com o Vietnã e a China. No auge da crise econômica provocada pelo fim de suas relações preferenciais com a economia soviética, entre 1989 e 1993, os governos de George Bush e Bill Clinton, tentaram um xeque-mate contra Cuba, proibindo as empresas transacionais norte-americanas instaladas no exterior de negociarem com os cubanos, e depois impondo penalidades às empresas estrangeiras que tivessem negócios com a ilha, através da Lei Helms-Burton, de 1966.

Esta atração precoce e obsessão permanente dos EUA não autorizam grandes ilusões, neste momento de mudanças nos dois países. Do ponto de vista americano, Cuba lhe pertence e está incluída na sua "zona de segurança". Além disto, aos olhos dos americanos, a posição soberana dos cubanos transforma a ilha num aliado potencial dos países que se propõem a exercer influência no continente americano de forma competitiva com os Estados Unidos. Por fim, Cuba já se transformou num símbolo e numa resistência que é intolerável por si mesma, para os seus vizinhos americanos. Por isto, o objetivo principal dos Estados Unidos, em qualquer negociação futura, será sempre o de fragilizar e destruir o núcleo duro do poder cubano. Por sua vez, Cuba não tem como abrir mão do poder que acumulou a partir de sua posição defensiva e de sua resistência vitoriosa. A hipótese de uma "saída chinesa" para Cuba é improvável porque se trata de um país pequeno, com baixa densidade demográfica e com uma economia que não dispõe da massa crítica indispensável para uma relação complementar e competitiva com os norte-americanos. Por isto, apesar da mobilização internacional a favor de mudanças nas relações entre os dois países, o mais provável é que os Estados Unidos mantenham sua obsessão de punir e enquadrar Cuba; e que Cuba se mantenha na defensiva e lutando contra a lei da gravidade formulada por John Quincy Adams, em 1819.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/02/07

A polêmica do 'fim' da dívida externa


Em 2007, o governo federal gastou R$ 237 bilhões com juros e amortizações da dívida interna e externa (sem contar o refinanciamento, ou seja, a chamada “rolagem” da dívida), enquanto apenas gastou R$ 40 bilhões com a saúde, R$ 20 bilhões com a educação e R$ 3,5 bilhões com a Reforma Agrária. E o governo ainda tem coragem de afirmar que a dívida não é problema! A análise é de Rodrigo Vieira de Ávila, economista da Campanha Auditoria Cidadã da Dívida da Rede Jubileu Sul Brasil, em artigo que o IHU recebeu do Grupo Projeto Brasil, 25-02-2008 e publicamos na íntegra.

Eis o artigo.

Depois de divulgar amplamente o pagamento antecipado ao FMI, em 2005, dia 21 de fevereiro de 2008 o governo anunciou mais um suposto marco histórico: o de que os ativos do país no exterior, constituídos fundamentalmente pelas reservas internacionais, superaram a dívida externa pública e privada. Alega o governo que esta é uma evidência da superação do problema da dívida.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que este suposto recorde não passa de manipulação estatística, originada em 2001, durante o Governo FHC, e perpetuada no governo Lula: a exclusão dos empréstimos intercompanhia (dívidas de filiais de transnacionais no Brasil com suas matrizes no exterior) do cálculo da dívida externa. Estes empréstimos dobraram em 2007, passando de US$ 20 bilhões para US$ 42 bilhões, mas são ignorados pelo governo, para que possa propalar um suposto marco histórico.

Em segundo lugar, o que está por trás deste acúmulo desenfreado de reservas cambiais? Uma verdadeira farra dos especuladores nacionais e estrangeiros, que trazem seus dólares em massa ao Brasil para comprar títulos da dívida “interna”, em busca dos juros mais altos do mundo. O resultado disto é a explosão da dívida interna, que atingiu R$ 1,4 TRILHÃO em dezembro de 2007, tendo crescido 40% em apenas 2 anos!

Em 2007, o governo federal gastou R$ 237 bilhões com juros e amortizações da dívida interna e externa (sem contar o refinanciamento, ou seja, a chamada “rolagem” da dívida), enquanto apenas gastou R$ 40 bilhões com a saúde, R$ 20 bilhões com a educação e R$ 3,5 bilhões com a Reforma Agrária. E o governo ainda tem coragem de afirmar que a dívida não é problema!

Conforme denunciado na 3ª Edição da Cartilha “ABC da Dívida” (que estará sendo lançada em breve pela Campanha Auditoria Cidadã da Dívida / Rede Jubileu Sul Brasil), a recente isenção fiscal de Imposto de Renda sobre os ganhos dos estrangeiros, o estabelecimento e a manutenção de taxas de juros altíssimas, e a total liberdade de movimentação de capitais têm gerado as condições para um verdadeiro ataque especulativo contra o Brasil. Os investidores estrangeiros trazem seus dólares para investir na Bolsa e em títulos da dívida interna, e assim forçam a desvalorização do dólar frente à moeda brasileira (o Real).

Os bancos e empresas nacionais também se aproveitam disso, tomando empréstimos no exterior (mais baratos devido às baixas taxas de juros) para emprestar ao governo brasileiro, por meio da compra de títulos da dívida interna, recebendo uma fortuna em troca disso, devido às altíssimas taxas de juros do Brasil. Não há limite algum para estas operações, e o Banco Central (BC) compra estes dólares e fornece títulos da dívida interna de acordo com o fluxo de moeda estrangeira ao país. Quando recebem seus lucros e juros em reais, os investidores podem trocá-los por maior quantidade de dólares – uma vez que a moeda brasileira se valorizou – e assim cumprir seus compromissos com o exterior, tendo um lucro extra.

Em 2007, o Real se valorizou 20% frente ao dólar. Portanto, o investidor estrangeiro que no início de 2007 trouxe dólares para aplicar na dívida interna brasileira ganhou, durante o ano, 13% em média de juros, e mais 20% quando converteu seus ganhos em dólar. Portanto, em 2007, os estrangeiros ganharam uma taxa real de juros (em dólar) de mais de 30% ao ano!

Por outro lado, o Banco Central, comprando a moeda estrangeira trazida pelos especuladores, termina ficando com o mico, ou seja, o dólar, que está se desvalorizando. O BC também aplica os dólares (recebidos dos investidores e exportadores), só que em títulos do Tesouro Americano (que ajudam Bush a financiar seu déficit e suas políticas, como a invasão do Iraque), que rendem perto de um terço dos juros pagos pelo governo brasileiro pelos títulos da dívida interna. Além do mais, como o dólar está em forte desvalorização, os juros pagos pelo Tesouro Americano são, na realidade, negativos para nós.

O resultado disto tudo é um imenso prejuízo para o Banco Central: chegou a R$ 58,5 bilhões apenas de janeiro a outubro de 2007. Este prejuízo é bancado pelo Tesouro Nacional, e correspondeu ao dobro de todos os gastos federais com saúde no mesmo período. Por outro lado, os banqueiros, que se beneficiam desta manobra, não páram de bater recordes de lucro.

Portanto, este suposto marco histórico divulgado pelo governo esconde, na realidade, uma verdadeira reciclagem do velho mecanismo de espoliação da dívida externa, com uma nova máscara: o endividamento “interno”. Este mecanismo é altamente rentável aos investidores estrangeiros, uma vez que, desta forma, eles ficam imunes à desvalorização da moeda americana, recebendo seus lucros e juros em uma moeda que não pára de se fortalecer frente ao dólar.

Além do mais, quando o governo alega que possui recursos para pagar toda a dívida externa, faz uma apologia ao pagamento de uma dívida ilegítima e já paga várias vezes com o sangue e suor do povo, desde os anos 80, quando os EUA, de modo unilateral e ilegítimo, multiplicou as taxas de juros incidentes sobre a dívida externa, levando o Terceiro Mundo à recessão e ao desemprego.

Não há saída para o endividamento sem uma ampla e profunda auditoria, que quantifique quantas vezes já pagamos esta dívida e a que custo social e ambiental. Somente assim poderemos nos libertar dessa amarra que continua nos aprisionando, apesar do governo prosseguir em sua manobra diversionista, tentando sistematicamente, através da divulgação de dados manipulados e parciais, desqualificar os movimentos sociais em favor da auditoria da dívida, na tentativa de esconder que o endividamento continua sendo, cada vez mais, o centro dos problemas nacionais.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/02/07

Remessas de lucro aumentam 70% em janeiro

As remessas de lucros e dividendos, que já vinham se mantendo altas desde 2007, deram um salto ainda maior em janeiro, refletindo em parte a crise internacional. No mês, saíram US$ 3,025 bilhões do país , 69,8% mais que a média de 2006, de US$ 1,781 bilhão. A notícia é do jornal Valor, 26-02-2008.

A avaliação do Banco Central é que, por trás desses números, estão três fatores estruturais: 1) o aumento dos investimentos diretos nos últimos anos; 2) a valorização da taxa de câmbio, que amplia o lucro das empresas, quando convertidos em moeda estrangeira; 3) o bom desempenho da economia, que também favorece os lucros das empresas. "As remessas de lucros e dividendos deram um salto definitivo para um novo patamar", afirmou o economista Leonardo Miceli, da consultoria Tendências.

Alguns investidores remeteram resultados ao exterior para cobrir perdas ocorridos em outros mercados, informa o chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes. Esse movimento afetou, sobretudo, as remessas de lucros e dividendos ligados a investimentos em carteira, que passaram de US$ 250 milhões para US$ 934 milhões entre janeiro de 2007 e de 2008.

Com as fortes saídas de janeiro, as remessas de lucros e dividendos chegam a US$ 23,786 bilhões, nas estatísticas acumuladas em 12 meses. O número supera a saída de US$ 20 bilhões que o BC prevê para o ano em suas projeções oficiais para o balanço de pagamentos. O número deve aumentar levemente em fevereiro. Até o dia 25, as remessas líquidas de lucros e dividendos somaram US$ 1,065 bilhão, ante US$ 1,032 bilhão observado no mesmo mês de 2007.

O aumento das remessas está ligado, em parte, ao dos estoques de investimentos diretos e de investimentos em ações no país. De 2004 até junho de 2007, o dado mais recente, o estoque de investimentos estrangeiros diretos subiu de US$ 161,259 bilhões para US$ 287,164 bilhões. Os investimentos em ações - participações até 10% do capital - subiram de US$ 77,261 bilhões para US$ 260,892 bilhões no mesmo período.

No caso dos investimentos diretos, dois fatores contribuíram para o seu forte avanço. Um deles foi o fluxo de investimentos diretos no país, que somaram US$ 73,287 bilhões desde 2005. Outro fator foi a apreciação do câmbio, que eleva o valor dos ativos mantidos em reais, quando convertidos para dólares. No caso dos investimentos em ações, o aumento se deve aos fortes fluxos de capital, à apreciação do câmbio e à valorização da Bolsa.

As remessas de lucros e dividendos também são puxadas pelo bom desempenho da economia. Alguns dos setores econômicos que mais remetem recursos são também os que mais estão se beneficiando do aquecimento da economia. No caso das remessas de rendas ligadas a investimentos diretos, o setor mais importante em janeiro foi o de serviços financeiros, com saídas de US$ 452 milhões, ou 22% do total, num levantamento que inclui apenas as operações a partir de US$ 1 milhão. Os balanços de bancos divulgados até agora mostram alta rentabilidade.

Em seguida, o setor que mais remeteu recursos ao exterior foi o automobilístico, com US$ 448 milhões, ou 21,09% do total. É um segmento que, puxado pelo crédito, vem liderando o crescimento industrial. Outros setores lucrativos tiveram alto volume de remessas. É o caso de metalurgia, que inclui siderurgia, com remessas de US$ 374 milhões, e produtos químicos, com US$ 191 milhões.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/02/07

'O crime ambiental compensa', afirma fiscal do Ibama

Em mesmo a iminência de uma megaoperação de fiscais do governo, anunciada com alarde no estado, intimidou os devastadores da floresta em Mato Grosso, que continuam a desrespeitar a lei e derrubar e vender árvores ilegalmente, na véspera da chegada de um pelotão de agentes da Polícia Federal. Para fugir da fiscalização, os infratores agem e cometem crime ambiental na calada da noite. A reportagem é de Evandro Éboli e publicada pelo jornal O Globo, 25-02-2008.

Na madrugada de domingo, O Globo acompanhou uma ação dos fiscais do Ibama. Eles flagraram um caminhão carregando 12 toras de madeira cambará, ilegalmente. Sem documento de origem da madeira e sem licença para transportar as árvores, o caminhoneiro Waldir Nelio Michel foi autuado, teve seu caminhão e as toras apreendidos e pagará uma multa de R$ 800 a R$ 5 mil. O valor é calculado pelo volume de madeira, em metros cúbicos.

"O crime ambiental compensa", diz um dos fiscais do Ibama que atuou na operação e prefere não ser identificado.

Por sua vez, a governadora do Pará, Ana Julia Carepa (PT), diz que seu Estado não pode pagar sozinho o preço do combate ao desmatamento da floresta amazônica no Pará — que chega, segundo ela, a R$ 2 bilhões ao ano. A governadora quer criar alternativas econômicas nas cidades madeireiras e evitar que se repitam fatos como os ocorridos em Tailândia, terça-feira passada, quando mil manifestantes impediram o confisco de 13 mil metros cúbicos de madeira ilegal.

A extração ilegal de madeira é o principal crime ambiental combatido pela gerência do Ibama em Sinop (MT), responsável pela fiscalização de 31 municípios. Esse tipo de ilegalidade responde por 40% do total de autuações. Em 2007, fiscais do Ibama de Sinop aplicaram 869 multas, num total de R$ 281,4 milhões. Cerca de R$ 113 milhões se referem à derrubada de árvores sem autorização. Até agora, o governo recebeu 10% das multas. O infrator recorre à Justiça e consegue protelar o pagamento. O dinheiro das multas vai para o Fundo Nacional do Meio Ambiente e para a União

Instituto Humanitas Unisinos - 24/02/07

Brasil suscita corrida militar

O anúncio de "aliança estratégica" entre Brasil e França, que pode significar bilhões de euros em compras e em construção de fábricas na área da defesa, acendeu o sinal de alerta e abriu uma corrida dos EUA e da Alemanha para disputar espaço com os franceses e não perder o mercado mais promissor da América Latina. A reportagem é de Eliane Cantanhêde e publicda pelo jornal Folha de S. Paulo, 24-02-2008.

Os alemães reagem e até enviaram carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, exigindo o fechamento de um pacote de 1,018 bilhão (cerca de US$ 1,5 bilhão) para reforma dos atuais submarinos e venda de dois novos para a Marinha brasileira.

Os americanos também não perderam tempo. Washington deve enviar a secretária de Estado, Condoleezza Rice, para um almoço com o presidente Lula em Brasília no início de março e convidou o ministro da Defesa, Nelson Jobim, para ir a Washington entre os dias 18 e 22 do mesmo mês.

O ministro acaba de voltar da França, onde conversou sobre indústria de armamento e de equipamentos militares com a cúpula do governo, inclusive o presidente Nicolas Sarkozy, e visitou estaleiros e fábricas de submarinos e de caças supersônicos, todos eles com participação de capital estatal. Na seqüência, ele foi à Rússia.

Nos EUA, Jobim vai antes de mais nada tentar melhorar o diálogo na área da defesa, questionando a rigidez do país em não transferir tecnologia. Na Alemanha, quando e se for, vai cuidar especificamente do pacote de submarinos.

Veto dos EUA

Em recente visita ao embaixador dos EUA em Brasília, Clifford Sobel, Jobim reclamou do veto norte-americano à venda de aviões Super Tucano da Embraer para a Venezuela, sob alegação de segurança -o modelo contém peças e componentes americanos.

A decisão causou pesados prejuízos à Embraer e feriu os interesses brasileiros, deixando marcas no Planalto, na Defesa e no Itamaraty, que agora os EUA pretendem minimizar.

Segundo dados de 2006 do governo norte-americano, só 1% das licenças para vendas comerciais de produtos, serviços e dados técnicos de produtos militares foram rejeitados. Do restante, 15% não foram aprovados, a grande maioria sob alegações burocráticas, como falta de documentação adequada.

Por esses dados, o Departamento de Estado dos EUA aprovou mais de 41 mil itens nessa área, num valor aproximado de US$ 19,8 bilhões. O comércio com o Brasil nessa área, na expectativa americana, tem muito a crescer.

O problema, como Jobim tem dito insistentemente, é que o Brasil não quer se limitar ao papel de "comprador", mas sim fazer parcerias para ter condições de produzir dentro do próprio país. O Brasil alega que a França oferece essa chance, e os EUA, não.

Tanto americanos quanto alemães rebatem esse argumento dizendo que a liberalidade da França não passa de "balela", como ouviu a Folha de representantes dos interesses desses dois países.

Em Washington, o ministro visitará o secretário de Defesa, Robert Gates, que fez o convite para a viagem, e o Centro de Comando Estratégico, na base aeronaval de Norfolk, a maior da Costa Leste. E poderá conhecer o sistema de controle de tráfego aéreo e a sede da FAA, a agência reguladora norte-americana para aviação.

Projetos

O Brasil planeja implantar um satélite de monitoramento do espaço aéreo e territorial e analisa ofertas da Thales, francesa, e da Raytheon, americana. O projeto tem a sigla SGB (Satélite Geoestacionário Brasileiro) e foi idealizado para atuar em três frentes, inclusive na banda X, de comunicação militar e de defesa estratégica.

Outros projetos são o submarino de propulsão nuclear, a renovação da frota de caças, a compra de helicópteros de ataque e a construção de uma fábrica de helicópteros de carga para as três Forças Armadas.

Jobim deixa claro que a preferência brasileira conflui para a França, mas ainda há muita negociação pela frente.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 23/02/07

Além da moeda. Artigo de Cesar Benjamin

"Os EUA acostumaram-se a viver acima dos seus próprios recursos, o que gera passivo crescente e exigirá moratória", escreve Cesar Benjamin, editor da Editora Contraponto e que passa a escrever quinzenalmente, a partir de hoje, no jornal Folha de S. Paulo, 23-02-2008. Benjamin foi um ativo participante do Movimento da Consulta Popular. Ele foi também da direção nacional do PT. Nas últimas eleições presidenciais, foi o vice da candidata à presidência da República, Heloísa Helena, do PSOL.

Eis o artigo.

Durante milênios, as sociedades humanas não conheceram o que hoje chamamos economia, pois as formas de produzir, trocar e adquirir não tinham autonomia. Existiam embutidas em uma ampla rede de instituições e compromissos, sociais e políticos, que lhes conferiam sentido e lhes impunham limites. Mesmo onde havia comércio e dinheiro, eles não estavam articulados de um modo completo e coerente. O estabelecimento da economia como um sistema separado, situado acima dos demais, em posição de comando, foi parte de um processo histórico específico, violentíssimo, que na origem ocorreu em certas partes da Europa e exigiu pesada intervenção estatal.

Numa sociedade que "liberta" a economia e se organiza em torno da troca de mercadorias, a moeda ocupa o lugar central. Pois, sendo o equivalente geral, sua posse é mais desejável do que a posse de uma mercadoria específica. Ao assumir essa posição, a própria moeda se transforma. Durante milênios, ela possuía valor por ser fabricada com metais preciosos ou porque os representava, podendo, em tese, ser trocada por eles. Uma "relíquia bárbara", nas palavras de Keynes.

A moeda fiduciária, emitida por um banco central, é um fenômeno extremamente recente. Ela não se refere a nada que não seja o poder do Estado, o qual, ao emiti-la, compromete-se apenas a aceitá-la na quitação de tributos, nada mais, definindo assim o espaço econômico em que exerce a sua própria soberania. Essa evolução só se completou a partir da década de 1970, quando os Estados Unidos anunciaram a inconversibilidade do dólar, rompendo os acordos de Bretton Woods e declarando, contra o mundo, a moratória de suas reservas de ouro. Foi uma ousada solução para os problemas americanos de então. Lançou as bases para a retomada, ou a reafirmação, da hegemonia desse país, na época ameaçada economicamente pelo Japão e pela Alemanha, militarmente pela União Soviética e politicamente pela vaga contestadora que vinha do Terceiro Mundo. O padrão dólar flexível quebrou o ímpeto de todos os concorrentes, reais ou potenciais, inclusive o Brasil.

Permanece em aberto, porém, a questão de saber se pode ser estável uma ordem econômica internacional que gira em torno de uma moeda fiduciária emitida por um Estado nacional. Creio que não. Ela contém uma contradição insanável, pois o espaço de soberania de um único Estado passa a ser todo o planeta. O preço disso são enormes tensões e instabilidades que se acumulam.

Na relação com o mundo, os EUA acostumaram-se a viver muito acima dos seus próprios recursos, o que gera um passivo crescente e exigirá nova moratória futura. Internamente, o novo arranjo tornou amplamente hegemônicos os administradores de ativos líquidos, que nem sequer manejam moeda. Manejam títulos, participações, cotas, ações, derivativos, papéis de todo tipo, inclusive papéis que representam outros grupos de papéis e que só existem na fantasia dos mercados futuros... Não estão sob controle de bancos centrais, chamados só na hora de pagar as contas.

Nos Estados Unidos, essa incrível pirâmide de operações financeiras baseava-se, principalmente, em hipotecas residenciais. Agora, está solta no ar. É por isso que os analistas mais argutos e mais bem pagos, manejando equações cada vez mais complicadas, só conseguem dizer platitudes. Se quisermos encontrar a saída, o desafio é buscar novas maneiras de trazer de volta a economia para dentro das instituições sociais, para religá-la ao mundo-da-vida. Ainda não sabemos como fazê-lo.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/02/07

O massacre de Katyn. Uma das mais terríveis mentiras da história

O massacre de Katyn foi, durante muito tempo, manipulado e sua verdade mantida refém não apenas por soviéticos, mas também pelas potências amigas. Segue a íntegra do artigo de Jacques Saint Victor publicado no Le Monde, 15-02-2007. A tradução é do Cepat.

As execuções de milhares de oficiais poloneses, conhecida como o massacre de Katyn, constituem uma manipulação cheia de sentido.

Durante muito tempo atribuída à Alemanha nazista, esta tragédia foi, na verdade, cometida pelas forças soviéticas em 1940. Em setembro de 1939, a Polônia é não apenas invadida pelo exército alemão, mas, alguns dias depois, o Exército Vermelho aproveita-se da situação para também penetrar no país. Cerca de 10 mil oficiais poloneses foram presos pelos soviéticos e, em março de 1940, o Politburo decide executar os “nacionalistas e contra-revolucionários”. Mais de quatro mil oficiais foram executados na floresta de Katyn (que dará seu nome ao massacre). Outros são assassinados nos locais do NKVD [Comissariado Popular de Assuntos Internos, a polícia secreta soviética] em Kharkov, outros em Kalinine, e outros ainda na Ucrânia ou na Bielo-Rússia. No processo de Nuremberg, em 1945, os soviéticos afirmaram, contra qualquer verossimilhança, que os massacres de Katyn tinham sido praticados pelas tropas nazistas. E pressionaram para que essa mentira fosse avalizada pela ata de acusação.

Lamentável peripécia

O fato é que os dirigentes soviéticos tinham muitas atrocidades para esconder. Múltiplas vozes se elevaram desde aquela época (e mesmo desde 1941, quando os alemães descobriram os corpos ao invadirem a parte polonesa ocupada pela URSS) contra essa mentira histórica. A começar pelos pesquisadores ingleses e americanos. Mas a publicação de seus relatórios eram recusada. Uma capa de chumbo pesava sobre o segredo de Katyn. O presidente Roosevelt não queria escancarar as hostilidades com seus aliados russos, especialmente sobre um ponto sobre o qual os responsáveis do Kremlin pareciam particularmente incomodados.

É assim que se sacrifica alegremente a verdade histórica. Portanto, pressionado pelas numerosas vozes contrárias, o veredicto final de Nuremberg se absteve de evocar os fatos. E dessa maneira a dúvida sobre a paternidade do massacre permanecerá durante muito mais tempo. Durante a guerra fria, os soviéticos conseguiram manter durante muito tempo o mito de um massacre perpetrado pelas forças do Eixo. Foi preciso esperar pela queda do Muro e pela Glasnost para que as línguas se soltassem. Depois de Gorbatchev, Boris Yeltsin envia ao governo polonês documentos que provam que a ordem sanguinária foi dada pelos dirigentes do Kremlin. Mas o reconhecimento oficial do massacre de Katyn demora. Esta lamentável peripécia prova, em caso de necessidade, o perigo de coagular a história como uma verdade oficial. Não era preciso esquecer Katyn? É o problema posto pelas leis memoriais. O verdadeiro trabalho do espírito, do historiador mas também do filósofo e do escritor, é proceder a um perpétuo questionamento das verdades oficiais.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/02/07

O mistério do desaparecimento das abelhas continua

O pesticida fipronil, comercializado sob o nome Régent pela empresa química alemã BASF e proibido na França desde 2004 para o milho e para o girassol, pode causar "riscos inaceitáveis" às abelhas, segundo um relatório oficial do Ministério da Agricultura francês. Mas também foram encontradas amostras de imidaclopride, a molécula ativa do Gaúcho, pesticida produzido pela Bayer, igualmente proibido na França desde 1999. Segue a íntegra de matéria de Gaëlle Dupont publicada no Le Monde, 18-02-2008. A tradução é do Cepat.

Não é a solução definitiva para o mistério do desaparecimento das abelhas, mas um “tijolo extra” no conhecimento do fenômeno, segundo Philippe Vannier, diretor da Saúde Animal da Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Alimentos (AFSSA). A AFSSA publicou no dia 15 de fevereiro os resultados de um estudo realizado durante três anos em 120 colônias de abelhas, distribuídas em cinco Departamentos (Eure, Gard, Gers, Indre e Yonne). O objetivo foi tentar quantificar e explicar a alta mortalidade de abelhas sentida por muitos apicultores desde a metade dos anos 1990.

Pode-se considerar muitas causas para este fenômeno: doenças, parasitas, más práticas apícolas ou exposição aos pesticidas – as abelhas sofrem da falta das enzimas de desintoxicação. O uso do inseticida Gaúcho, responsabilizado pelos apicultores, foi proibido desde 1999 sobre o girassol e desde 2004 sobre o milho. O Régent (fipronil) também está proibido desde 2004.

As colméias foram visitadas quatro vezes por ano entre 2002 e 2005. Ora, nenhum desaparecimento de população foi constatado. A mortalidade permanece inferior a 10%, uma taxa considerada normal. Ela seria decorrente de doenças ou de parasitas. Uma doença como a loque causou o desaparecimento rápido das colônias atingidas. A morte foi lenta quando o ácaro Varroa destructor foi encontrado na colméia.

Segundo a AFSSA, as práticas apícolas são determinantes. Mesmo sabendo que um viés seria introduzido em seu estudo, os cientistas escolheram aconselhar os apicultores sobre os tratamentos a serem seguidos, em particular para erradicar o ácaro Varroa, fato que poderia explicar a baixa mortalidade constatada.

Ao mesmo tempo, o estudo evidencia a presença de numerosos pesticidas nas colméias, em doses extremamente baixas. No total, 41 moléculas químicas foram encontradas entre os quais estão o fipronil e o imidaclopride, a molécula ativa do Gaúcho. Nenhuma relação estatística significativa entre a presença de resíduos e as mortalidades foi observada.

Amostras de abelhas, de cera, de pólen e de mel foram analisadas. Foram considerados como positivos quando o valor ultrapassava o limite de detecção. Entre as amostras de pólen analisadas, 57,3% ultrapassaram o limite de detecção para o imidaclopride. As amostras positivas continham em média 0,92 microgramas por kg (micrograma é a milionésima parte de um grama). 29,7% das amostras de mel continham imidaclopride, em média de 0,73 micrograma por quilo. 26,2% das abelhas analisadas também continham.

Outros pesticidas foram detectados. Entre eles o fipronil (12,4% das amostras de pólen) ou o lindane, portanto, proibido. O coumaphos também foi encontrado (em 8,5% das amostras de mel, e 4,6% das abelhas). Este acaricida é utilizado pelos apicultores em grandes quantidades para lutar contra o ácaro Varroa, estima a AFSSA, que vê nisso uma possível explicação para o enfraquecimento das rainhas referidas pelos apicultores.

Para Philippe Vannier, esses resultados não podem ser extrapolados e não permitem decidir sobre o impacto dos pesticidas presentes no ambiente sobre a saúde das abelhas, ou sobre as eventuais sinergias entre pesticidas e doenças. “Eles só têm valor para a amostra considerada, que é pequena”, afirma o cientista. “Mas (o estudo) traz elementos objetivos e precisos a um assunto em que eles fazem falta”.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/02/07

Redução da Faixa de Fronteira avança no Senado. Stora Enso beneficiada

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou nesta quinta-feira (21) a proposta de emenda à Constituição (PEC) que reduz a faixa de fronteira de 150 km para 50km. A PEC foi criada em 2006 pelo senador gaúcho Sérgio Zambiasi (PTB) e prevê a diminuição da largura da faixa do Mato Grosso do Sul até o Rio Grande do Sul. Na proposta, o senador também defendia a alteração da faixa na região Amazônica, o que foi descartado pelos demais parlamentares. A reportagem é de Raquel Casiraghi e publicada pela Agência de Notícias Chasque, 21-02-2008.

Agora, a PEC segue para votação no plenário e, depois, para a Câmara dos Deputados. O senador Sérgio Zambiasi espera que a proposta seja aprovada, para que os estados fronteiriços consigam trabalhar uma política de integração mais efetiva com os países do Mercosul. Ele avalia que o conceito de faixa de fronteira no Brasil é bastante conservador e que precisa ser mudado.

"Restringe enormemente os investimentos, dificultando o desenvolvimento especialmente dos estados da Região Sul. Começamos a corrigir esse problema histórico. Que, se em um determinado momento teve suas razões, hoje já não existe mais. Os países não têm mais faixas de fronteira. Nós temos que preservar a Amazônia, por isso foi mantida a faixa de fronteira na floresta, mas do Mato Grosso do Sul para baixo, onde as fronteiras estão mais desenvolvidas, nós estamos reduzindo para 50 km", diz.

O senador justifica que até mesmo para abrir uma rádio ou construir uma estrada na faixa de fronteira, o empreendedor precisa da autorização do Conselho Nacional de Segurança, dificultando ainda mais o processo. No entanto, atualmente, no Rio Grande do Sul, uma das maiores beneficiadas será a transnacional de celulose Stora Enso.

A empresa sueco-finlandesa tem instalado seus plantios de eucalipto na Fronteira-Oeste, em que boa parte dos municípios é atingida pela faixa. No entanto, a legislação de Segurança Nacional não permite que empresas estrangeiras tenham propriedades na fronteira. Ações encaminhadas ao Ministério Público, inclusive pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), denunciam que empresas "laranjas" brasileiras estariam sendo utilizadas para burlar a legislação.

O presidente da Fundação Rio Ibirapuitã (Funrio), em Alegrete (RS), Jânio Lima, teme que a redução da faixa de fronteira signifique mostrar que a lei brasileira muda de acordo com o interesse das empresas, prejudicando o bioma Pampa. "Se nós matássemos um milhão de hectares de floresta na Amazônia para plantar eucalipto o mundo não se revoltaria? Será que é importante nós matarmos milhares de hectares do nosso bioma Pampa para plantar eucalipto? É uma mudança que irá provocar até mesmo alterações climáticas", afirma.

Atualmente, na América do Sul, apenas o Brasil, Bolívia e Peru ainda possuem faixas de fronteira. No Brasil, a área possui 150 km; nos outros dois países, 50 km.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/02/07

Dívida interna se mantém acima de R$ 1,2 trilhão

A dívida interna do governo federal em títulos recuou R$ 21 bilhões em janeiro e ficou em R$ 1,204 trilhão. A queda foi determinada pelo resgate líquido de títulos (resgates menos emissões) de R$ 34,3 bilhões no mês passado, valor que superou o impacto de R$ 13,4 bilhões dos juros no estoque da dívida. A reportagem é de Adriana Fernandes e Fabio Graner e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 22-02-2008.

Apesar da queda, os dados - divulgados no mesmo dia em que o governo comemorou a superação do problema do endividamento externo - mostram que o Brasil ainda tem muito o que avançar na dívida interna, considerada o maior entrave para a chegada do grau de investimento, mesmo com a melhora dos últimos anos.

Em janeiro, apesar da queda no estoque, o pagamento de R$ 13,4 bilhões em juros foi o maior desde agosto de 2007, e ficou acima da média do ano passado.

O impacto do juros reflete uma dívida ainda elevada e um custo médio que tem trajetória lenta de queda. Nos últimos 12 meses encerrados em janeiro, esse custo atingiu 12,8% ao ano, ficando acima da média da taxa básica de juros, que no mesmo período foi de cerca de 11,7%.

Atualmente, a taxa Selic está em 11,25% ao ano, ante 13% em janeiro de 2007, ou seja, o custo médio está próximo da taxa de um ano atrás.

O custo mais alto da dívida é o resultado da combinação de uma das taxas básicas mais altas do planeta e do processo de mudança no perfil da dívida, que, em troca de maior segurança na administração do endividamento, trouxe, em contrapartida, custos mais elevados aos cofres públicos.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/02/07

Brasil anuncia que ‘zerou’ dívida externa

A manchete dos principais jornais brasileiros hoje anuncia, euforicamente, a notícia de que o Brasil deixa de ser devedor e passa a ser credor internacional. A euforia chega a tal ponto que o Jornal do Comércio, de Porto Alegre, anuncia na primeira página: “Pela 1ª vez desde Cabral o Brasil é credor externo”.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, 22-02-2008, na tentativa de mostrar que o Brasil está bem preparado para enfrentar as turbulências do cenário internacional -e que, por isso, mereceria mais confiança do mercado financeiro e de agências de classificação de risco-, o Banco Central anunciou ontem que o país "zerou" sua dívida externa pela primeira vez na história. A reportagem é de Ney Hayashi da Cruz.

Segundo o BC, os ativos que governo e setor privado possuíam no exterior ao final de janeiro já superavam o valor de todo o endividamento contraído em outros países. Isso significa que o Brasil seria capaz de pagar toda a dívida externa usando só as aplicações que tem no exterior, o que sinaliza menor dependência dos fluxos internacionais de capital.

Em tese, mesmo que o país deixasse repentinamente de receber dólares do exterior, um calote na dívida externa poderia ser evitado utilizando-se recursos que governo e empresas já possuem atualmente.

Segundo relatório publicado pelo BC na internet, em janeiro os ativos brasileiros no exterior superavam a dívida externa em cerca de US$ 4 bilhões, revertendo o quadro observado até dezembro do ano passado, quando, ao contrário, o endividamento era maior do que as aplicações em US$ 4,4 bilhões.

Ainda de acordo com o texto, "diante de um cenário internacional caracterizado por aumento considerável na incerteza, pela volatilidade dos mercados financeiros e a desaceleração da atividade econômica, a melhoria desses indicadores tende a mitigar, embora sem anular por completo, o impacto de eventos externos adversos".

Originalmente, os dados da dívida externa de janeiro seriam divulgados pelo BC apenas na semana que vem, mas a publicação de alguns dados foi antecipada.

Coincidentemente ou não, um dia antes desse anúncio circulavam no mercado financeiro rumores sobre a possível melhora na nota atribuída ao Brasil por agências de classificação de risco - para alguns analistas, o fim da dívida externa líquida pode ajudar o país a receber essa nota mais alta, o "grau de investimento", um atestado de bom pagador que pode trazer mais investimentos.

Por meio de nota, o presidente do BC, Henrique Meirelles, comemorou: "É um marco expressivo de nossa história. Essa melhora significa que estamos superando gradativamente um longo período caracterizado por vulnerabilidades e crises".

Um dos itens que mais pesaram na redução da dívida externa líquida foi o aumento das reservas internacionais, principal ativo brasileiro no exterior. No final de 2002, essas reservas estavam em US$ 16,3 bilhões, e a dívida externa líquida era de US$ 165 bilhões.

De 2003 para cá, porém, o crescimento da economia mundial ajudou a impulsionar as exportações brasileiras, que ser tornaram grande fonte de divisas do país. Aproveitando essa elevada entrada de capital, o BC passou a comprar dólares no mercado de câmbio para reforçar as reservas em moeda estrangeira, que, no final do mês passado, já haviam chegado a US$ 187,5 bilhões.

Além disso, parte dos dólares adquiridos também foi usada para antecipar o pagamento de várias parcelas da dívida externa. Em 2005, foram pagos com dois anos de antecedência US$ 15,5 bilhões que o Brasil devia ao FMI (Fundo Monetário Internacional). Quase US$ 10 bilhões em títulos emitidos após a renegociação do calote da dívida externa decretado nos anos 1980 também foram pagos 19 anos antes de seu vencimento naquele ano.

Um ano depois, em 2006, o governo também quitou sua dívida de US$ 2,6 bilhões com o chamado Clube de Paris, nome dado a um grupo informal de países desenvolvidos que, ao longo da segunda metade do século 20, concedeu empréstimos a países em dificuldades financeiras. Com isso, acabaram de ser pagos todos os compromissos assumidos após a renegociação da moratória.

Instituto Humanitas Unisinos - 21/02/07

OMS considera 'altamente tóxico' herbicida de soja transgênica

A Organização Mundial de Saúde (OMS) anuncia que decidiu reclassificar o herbicida patenteado pela transnacional Monsanto de “produto que não oferece perigo” para produto “altamente tóxico”. A reportagem é do jornal Brasil de Fato, 15-02-2008.

Já a Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, em Brasília, tenta diminuir a alíquota sobre o glifosato chinês, numa tentativa de “baixar os custos do herbicida e melhorar a concorrência do produto no mercado”.

A reclassificação está baseada em demonstrações científicas que alertaram sobre os efeitos cancerígenos, a ação mutagênica, a contaminação de alimentos e persistência do veneno no solo e em cultivos.

Segundo a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA), a soja transgênica RR (Roundup Ready), também da Monsanto, foi desenvolvida para resistir à aplicação do herbicida à base de glifosato (cujo nome comercial é Roundup).

Com o uso da soja transgênica, os agricultores pulverizam o agrotóxico sobre a lavoura, eliminando todas as plantas invasoras, deixando intacta a soja transgênica – três quartos dos transgênicos produzidos no mundo foram desenvolvidos para resistir à aplicação de herbicidas.

“Se por um lado as empresas alegam que a tecnologia simplifica o trabalho de controle do mato, por outro, é evidente que o consumo do produto tende a aumentar em muito pouco tempo. Isto porque as plantas invasoras rapidamente também adquirem resistência ao produto, o que força os agricultores a usar quantidades cada vez maiores do veneno para garantir sua eficácia. Outro resultado deste fenômeno é que as alegadas vantagens econômicas da tecnologia em pouco tempo são anuladas, pois a aquisição de veneno é um dos fatores que mais pesam nos custos de produção da agricultura convencional. Mais veneno, mais custos”, explica a entidade ambientalista.

A Comissão de Agricultura enviou em 8 de fevereiro um ofício à Camex (Câmara de Comércio Exterior) solicitando a não renovação da tarifa para a matéria-prima do herbicida Roundup. Do lado dos ruralistas, as movimentações em torno da diminuição de custos escondem o aumento do uso do veneno já considerado tóxico.

“Caiu a máscara dos ruralistas que falavam que o glifosato não era tóxico. Além disso, o preço elevado tanto do Roundup quanto dos royalties pagos para a Monsanto começam a inviabilizar a plantação de transgênicos. A única coisa que pode salvar os ruralistas é justamente a liberação da taxa de importação do glifosato”, disse Adão Pretto (PT/RS) que faz oposição à bancada ruralista, maioria da Comissão de Agricultura da Câmara.

Contradição

A bancada ruralista da Câmara é favorável ao uso de transgênicos na agricultura brasileira. No caso da liberação da soja, a articulação desses deputados para reduzir o custo do glifosato importado jogou por terra o argumento de que a soja transgência diminui o uso de herbicidas.

Hoje, quem domina a produção das sementes de soja geneticamente motificadas e controla 80% do mercado de glifosato no País é a Monsanto. A empresa de biotecnologia, por sua vez, subiu o preço do veneno em 50%. “Os agricultores que embarcaram na onda transgênica estão agora pagando o preço duplamente: não só se vêem forçados a usar maiores quantidades de agrotóxicos, como têm que pagar mais caro por eles”, registrou a ASPTA, em nota.

Estudos recente de pesquisadores da Embrapa Meio Ambiente voltado a analisar os potenciais impactos da soja transgênica no Brasil já listou nove espécies de plantas capazes de driblar o glifosato. Quatro delas já desenvolveram resistência ao veneno nas lavouras brasileiras de soja transgênica e apresentam “grande potencial de se tornarem um problema". Essa pesquisa complementa dados do Ibama que indicam que para cada quilo de princípio ativo do herbicida reduzido no Rio Grande do Sul, houve um aumento de 7,5 kg de glifosato no período de 2000 a 2004, época de expansão da área da soja RR resistente ao glifosato no estado.

Em artigo publicado, semana passada, pela revista Ethical Corporation, uma porta voz do EuropaBio, um grupo de lobby da indústria biotecnológica, admitiu que “os cultivos Roundup Ready levaram as plantas invasoras a se tornarem resistentes ao Roundup, o que resultou em maiores aplicações do produto, comumente em combinação com outros químicos”.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/02/07

Timemania. Parabéns aos endividados!

Juca Kfouri comenta em seu blog, 19-02-2008, a nova loterial federal que já se encontra nas casas lotéricas, a timemania, feita sob encomenda para saldar dívidas dos clubes com o governo federal.

Eis o artigo.

Essa gente toda que está aí fez a dívida que fez com o país e ganhou uma Timemania de prêmio.
Em breve, como a mamata não será suficiente, virá a Timemania 2 e assim por diante.

Veja aí porque Márcio Braga andava de quatro, implorando por uma anistia e entenda porque Juvenal Juvêncio discursou bajulatoriamente em agradecimento à benesse recebida.

Todos agora podem requerer suas certidões negativas de dívidas para criar outras, pagando salários milionários para técnicos etc e tal.

Tenhamos claro: clube que não paga suas dívidas leva vantagem esportiva sobre os que pagam.
No mundo civilizado, isso dá punição, esportiva, inclusive.

E, enfim, eu, se fosse você, parava de pagar suas obrigações com a Previdência e com a Receita, juntava um bando de inadimplentes e batia na porta do Palácio do Governo, pedindo uma loteria pra você.
Vai que cola?

Instituto Humanitas Unisinos - 20/02/07

‘Os direitos individuais paralisam a democracia’, assegura Marcel Gauchet

“A crise atual tem isso de extraordinário, que resulta de uma tomada de poder pelos fundamentos: ao serem invocados incessantemente, os direitos humanos acabam por paralisar a democracia. Se a democracia pode ser definida como o poder de uma coletividade de se autogovernar, a sacralização das liberdades dos membros desta coletividade tem por efeito esvaziar esse poder de sua substância”, afirma o filósofo francês Marcel Gauchet. Para ele, os anos 90 significaram “a entrada das massas na política, a questão social, a reivindicação de tirar todas as conseqüências do sufrágio universal. Nos anos 2000, ao contrário, o problema é o triunfo dos direitos individuais e o eclipse dos coletivos”.

Segue a entrevista que Marcel Gauchet concedeu a Éric Aeschimann. Libération, 16-2-08. A tradução é do Cepat.

Você parece compartilhar da constatação de Zizek de uma crise da democracia em geral e de seus fundamentos jurídicos em particular: os direitos humanos.

Sim, há uma crise da democracia, uma crise profunda. Mas, contrariamente a Slavoj Zizek, eu não falaria de uma crise dos fundamentos da democracia que são os direitos humanos. Pelo contrário, estes se comportam como se estivessem em vias de colocar em perigo aquilo de que se supõem que sejam o alicerce. É o acesso interrompido e generalizado dos direitos individuais que desestabiliza o edifício. A crise atual tem isso de extraordinário, que resulta de uma tomada de poder pelos fundamentos: ao serem invocados incessantemente, os direitos humanos acabam por paralisar a democracia. Se a democracia pode ser definida como o poder de uma coletividade de se autogovernar, a sacralização das liberdades dos membros desta coletividade tem por efeito esvaziar esse poder de sua substância.

É uma crise sem precedentes?

Podemos compará-la à crise que as democracias parlamentares européias conheceram no começo do século XX e que verdadeiramente só foram reabsorvidas com o fim da Segunda Guerra Mundial. Essas duas crises têm em comum uma forte afirmação dos princípios democráticos. É por isso que falo de “crise de crescimento”. Mas, nos anos 1900, a ordem do dia é a entrada das massas na política, a questão social, a reivindicação de tirar todas as conseqüências do sufrágio universal. Nos anos 2000, ao contrário, o problema é o triunfo dos direitos individuais e o eclipse dos coletivos, quer se trate das massas, das classes ou das nações.

Tem-se a impressão de que, para você, a democracia é o horizonte intransponível da humanidade.

A democracia não é talvez o horizonte intransponível da humanidade – o que seria bem pretensioso de dizer –, mas é certamente a seqüência histórica à qual pertencemos. O trabalho democrático em obra em nossas sociedades vem de muito longe, inscreve-se num processo extremamente poderoso, realizado ao longo pelo menos dos últimos cinco séculos. Prossegue a saída da religião, que constitui o centro desta revolução moderna. Eu não vejo o que estaria em condições de introduzir uma nova direção. Eu diria inclusive que as coisas se clarearam. Há quarenta anos – no Maio de 68 – podíamos razoavelmente se perguntar se o horizonte do mundo era o socialismo (democrático ou não) ou a democracia (social ou não). A marcha dos acontecimentos nos trouxe a resposta: é a democracia. Hoje, o desafio é inscrever o socialismo (eu emprego o termo “socialismo” no seu sentido filosófico) na democracia, não o contrário.

Alguns vêem na reabilitação da violência revolucionária por parte de Zizek ou no sucesso de Alain Badiou que defende “a hipótese comunista” uma ameaça para a democracia. Você concorda com essa análise?

Eu não vivo com medo, porque, não só a era dos totalitarismos me parece que ficou atrás de nós, mas essas proposições me parecem, sobretudo, como tragicamente irreais. Elas testemunham a decomposição da inteligência política da extrema esquerda. Me parece que só tem a esconder posturas simplistas e narcisistas de radicalidade que não são caras, uma vez que estão no vazio. Eu suponho que, psicologicamente, elas fazem bem àqueles que se reúnem em torno dessas propostas, mas, politicamente, não pesam nada, não incomodam ninguém e, sobretudo, o poder que elas são chamadas a desafiar. Poderíamos inclusive dizer que uma parte desse sucesso tende a se inscrever perfeitamente na estratégia de comunicação de Sarkozy: promoção da extrema esquerda, com Besancenot todas as noites na televisão. O objetivo é que se possa dizer: “entre a extrema esquerda e nós, não há nada”.

Entretanto, o debate sobre a democracia está completamente aberto.

Tanto melhor! Podemos facilmente nos entender sobre a constatação inicial: a crise da democracia é uma crise de impotência. Com relação a isso, a análise de Zizek é clássica: é culpa do capitalismo. Minha explicação é diferente. O reino do neoliberalismo não é a causa, mas o efeito de uma transformação mais profunda em que a exploração dos direitos individuais é a manifestação central. O modelo de mercado deve seu peso crescente à fragmentação generalizada dos atores. Assim, invadiu também a política. O problema, nessas condições não é o de abolir o capitalismo (como?), mas de encontrar tomadas sobre a sociedade assim como é em seu conjunto, para além da economia. Tomemos a Educação nacional: não é a mundialização que é responsável por suas dificuldades. Sua solução está ao nosso alcance, no âmbito nacional. Ainda é preciso dar-se o trabalho de analisá-lo.

As democracias nasceram de revoluções. Por que não podemos falar de revolução hoje?

Quem seria o agente político? Entre a burguesia e a nobreza, o enfrentamento era claro. Entre os proletários e os capitalistas também. Hoje, a idéia de revolução é uma petição de princípio que não encontra enraizamento social. Eu li muito Marx e ainda o leio – e o ensino. O que ele me ensinou é que uma “hipótese”, para retomar a palavra de Alain Badiou, só tem interesse se ela tem os meios de sua realização. Brandir a palavra comunismo como uma espécie de superego sem base é fazer barulho com a boca para impressionar tolos.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/02/07

Trabalhador escravo é torturado com ferro quente no Pará


Mais de sessenta cicatrizes recentes de ferro quente marcam o trabalhador de cerca de 30 anos que denunciou trabalho escravo em uma fazenda de Paragominas, no Leste do Pará. De acordo com seu relato, foi torturado pelo patrão e mais dois capangas quando reclamou das más condições de alimentação e do salário atrasado. Fugiu da fazenda no início de janeiro e, depois de dezenas de quilômetros a pé e de muitas caronas, conseguiu contar sua história à Superintendência do Trabalho e Emprego (SRTE) do Pará. O relato é de Iberê Thenório no sítio da Agência Repórter Brasil, 18-02-2008.

Na última terça-feira (dia 12-02), a fiscalização rural da SRTE esteve na fazenda denunciada, e comprovou parte das informações passadas pelo trabalhador. Foram encontradas 35 pessoas em situação análoga à escravidão, que dormiam em um curral abandonado, junto com esterco de boi, e eram alimentadas com restos de carne: pulmões e tetas de vaca.

A propriedade, que fica a 75km de Paragominas, chama-se Bonsucesso e pertence a Gilberto Andrade. O fazendeiro já está na Lista Suja do trabalho escravo por manter 18 pessoas em condições semelhantes no município de Centro Novo do Maranhão (MA). Essa lista, publicada desde 2003 pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), traz uma relação de pessoas e empresas flagradas cometendo esse tipo de crime.

Fezes e roupas

"Fezes de animais estavam misturadas com roupas. Nesse período de chuvas ainda é muito pior, pois se mistura a água com esterco. Além do cheiro horrível, há problemas infecto-contagiosos. O curral não servia mais ao gado, mas servia aos empregados.", relata o auditor fiscal Raimundo Barbosa da Silva, que liderou a operação na Bonsucesso.

De acordo com o auditor, as provas recolhidas na fazenda são coerentes com o relato de tortura feito pelo trabalhador fugitivo, cujo nome permanece em sigilo. Ostrabalhadores resgatados confirmam que ele deixou o alojamento para ir reclamar dos salários e nunca mais apareceu. Além disso, informam que nessa época não havia cicatrizes em seu corpo.

Nenhum dos 35 libertados em Paragominas tinha carteira assinada. A maior parte deles havia chegado em dezembro para fazer a limpeza do pasto para o gado, mas ainda não havia recebido salário. Em uma cantina mantida pela fazenda, eram vendidos fumo, sabonetes e equipamentos de proteção individual que, pela lei, devem ser fornecidos gratuitamente pelo empregador. Todo o gasto dos trabalhadores estava anotado em um caderno.

"Como não havia pagamento de salário, ainda não havia desconto [no salário]. Mas, pela nossa experiência, sabemos que essas anotações seriam usadas para cobrar do trabalhador", explica Raimundo Barbosa.

A rescisão do contrato com os peões custou R$ 45 mil a Gilberto Andrade. De acordo com o procurador Ministério Público do Trabalho (MPT) Francisco Cruz, que acompanhou a fiscalização, o órgão ajuizará uma ação civil pública pedindo uma indenização por danos morais coletivos. Além disso, o fazendeiro também poderá responder na Justiça comum por outros crimes, caso seja comprovado que participou da tortura ao trabalhador denunciante.

Instituto Humanitas Unisinos - 19/02/07

Sensor abre semáforo para ônibus em Curitiba

Um sistema informatizado vai garantir sinal verde permanente para ônibus do transporte coletivo em semáforos de 45 cruzamentos de Curitiba. A estimativa é encurtar o tempo de viagem em até 50% e estimular a troca do carro pelo ônibus. A reportagem é de Dimitri Valle e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 19-02-2008.

O projeto funcionará a partir de julho deste ano nas linhas Verde (que ainda será implantada) e Boqueirão, que transportarão juntas cerca de 150 mil pessoas por dia - 8% do total de usuários da cidade.

"Precisamos recuperar a competitividade do transporte coletivo como meio de deslocamento das pessoas", afirmou Paulo Afonso Schmidt, presidente da Urbs (empresa municipal que gerencia o transporte coletivo em Curitiba).

O sistema funciona da seguinte maneira: um sensor instalado no pára-brisa do ônibus, alimentado por bateria própria, com duração de dez anos, emite sinais eletromagnéticos para antenas instaladas ao longo da via. A antena retransmite o comando de troca ou manutenção do sinal verde para uma CPU acoplada ao semáforo.

A idéia é inspirada em sistemas como o Sem Parar, que dão passagem automática em praças de pedágio e estacionamentos a clientes que compram bilhetes eletrônicos.

O sensor do ônibus será acionado a pelo menos cem metros de cada cruzamento, distância considerada segura para a transição entre os sinais vermelho, amarelo e verde.

De acordo com a Urbs, o sistema também poderá funcionar de forma inversa. "Se o ônibus estiver com o horário adiantado, o sistema, com base na tabela de horários que terá na memória, dará prioridade para o trânsito da via transversal", disse a gestora de Operação do Trânsito da Urbs, Guacira Civolani. O investimento no sistema é de R$ 5,5 milhões em equipamentos.

A liberação de sinais já existe em Curitiba, mas em um sistema mais simples, para veículos que passam pela via exclusiva de circulação de ônibus da avenida Sete de Setembro.

O sistema funciona por meio de sensores instalados no chão. Assim que ônibus ou outros veículos autorizados a transitar pelas vias exclusivas (como carros de polícia e ambulâncias) passam sobre os sensores, o sinal adiante fica verde.

Mais controle

"Com o novo sistema, podemos ter um controle melhor para identificar quais os veículos, no caso os ônibus, que terão sempre sinal verde nos cruzamentos", disse Civolani

Instituto Humanitas Unisinos - 18/02/07

Homicídios em Porto Alegre crescem 57,5%

Porto Alegre é a capital brasileira entre as 13 maiores do país onde o homicídio mais cresceu em 2007, apontam estatísticas das secretarias estaduais da Segurança Pública. A reportagem é de Gilmar Penteado e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 18-02-2008.

O número de mortes por agressão aumentou quase 60% em relação a 2006 e se tornou recorde da década na capital gaúcha. No ano passado, houve 430 homicídios na cidade, contra 273 em 2006 -aumento de 57,5%, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul. As estatísticas da Delegacia de Homicídios de Porto Alegre, que atualiza os números a partir de suas investigações, revelam, no entanto, dados absolutos mais preocupantes: 525 homicídios contra 337 no ano anterior -crescimento de 55,7%.

A Folha comparou estatísticas criminais das 13 maiores capitais a partir de dados fornecidos pelos Estados. O resultado mostrou que Porto Alegre lidera, com grande vantagem, o aumento percentual de homicídios de um ano para outro. Salvador ocupa o segundo lugar, com crescimento de 38,26% -foram 1.337 em 2007, contra 967 no ano anterior.

Os Estados não seguem uma metodologia padrão para calcular as estatísticas. Porto Alegre, por exemplo, inclui os homicídios culposos (sem intenção), com exceção das mortes no trânsito, no número de homicídios. Já a maioria das capitais relaciona apenas os homicídios dolosos (quando há intenção de matar).

Crise nas contas

O número recorde em Porto Alegre ocorre no momento em que o Estado vive uma crise financeira, com fortes cortes em investimentos. Cerca de metade dos homicídios no Estado ocorrem na capital.

O sucateamento do sistema de segurança, o acirramento da rivalidade entre as polícias Civil e Militar, o aumento do tráfico de drogas e de bolsões de pobreza são apontados como as principais causas para a estatística desfavorável.

"Existe uma guerra entre os traficantes", resumiu Juliano Ferreira, titular da Delegacia de Homicídios da capital gaúcha. Ele afirmou, contudo, que essa não é a única causa. "Existe um abandono dos serviços públicos na periferia."

O orçamento da segurança no Estado para 2008 é de R$ 410 milhões - o de São Paulo, por exemplo, cuja capital teve a maior queda, de 22%, supera R$ 8 bilhões. O efetivo de 33 mil PMs, por exemplo, precisaria de reforço de pelo menos mais 11 mil, avalia o secretário estadual da Segurança Pública, José Francisco Mallmann.

Ele cita que boa parte das vítimas dos assassinos em Porto Alegre no ano passado já tinha antecedentes criminais.

Para o professor Rodrigo Azevedo, do curso de pós-graduação em ciências criminais da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do RS, esse argumento é "inaceitável". "Isso não justifica a falta de ação dos órgãos de segurança", afirmou.

Azevedo diz que "a velha rivalidade entre policiais civis e militares, o aumento da miséria e o avanço do tráfico talvez possam explicar essa crise". O governo nega rivalidade entre as duas polícias.

Instituto Humanitas Unisinos - 17/02/07

Medo e mal são irmãos siameses na modernidade. Entrevista com Zygmunt Bauman

O octogenário sociólogo polonês Zygmunt Bauman vive perguntando aos jornalistas se leram o Livro de Jó. Compreensível. Fica bem melhor ler seu mais recente livro, Medo Líquido, se o candidato conhecer o sofrimento do personagem bíblico: Jó era bom e, no entanto, foi punido severamente por Deus. Por quê? Foi também a pergunta daqueles que sobreviveram ao terremoto de Lisboa, em 1755. De repente, a razão iluminista recusou-se a admitir o “ato de Deus” e tudo mudou. Veio a modernidade e com ela o processo de secularização. Depois, o 11 de setembro e, de novo, o medo e a pergunta que não quer calar. O mal, diz Bauman em entrevista ao jornalista Antonio Gonçalves Filho e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-02-2008,, é que só conseguimos dirigir um olhar retrospectivo para as catástrofes. Para enfrentar o “medo líquido” que assola o mundo globalizado, o sociólogo sugere uma mudança radical em nosso comportamento.

O medo e o mal são irmãos siameses, segundo seu livro. Parece que o senhor concorda com Primo Levi quando ele diz que todos nós podemos ser a encarnação do mal. Não se pode esquecer que Bush justificou a invasão do Iraque como uma “guerra contra o mal” e que o ódio do Islã contra o Ocidente é também uma “guerra santa” contra o que os fundamentalistas consideram o mal absoluto. Em que medida essas visões são diferentes?

Fundamentalistas, sejam nascidos no Ocidente ou no Oriente, são divisionistas por definição. Todo fundamentalista concorda com seu inimigo em um ponto: “É o que acredito - e apenas o que eu acredito - o absolutamente certo; todas as outras crenças estão absolutamente erradas.” Os fundamentalistas pertencem à categoria dos que pensam em soluções locais para problemas globais. Ora, problemas globais só podem ser resolvidos de forma global. As soluções exigem tempo, muito tempo, embora nem tanto como em séculos passados. Não conseguimos nem mesmo assumir a tarefa de construir uma rede de instituições globais. Temos um longo caminho montanha acima. Vamos torcer para chegarmos ao topo, porque a outra opção é aterrorizadora.

Eis a entrevista.

O escritor espanhol Juan Goytisolo e o Livro de Jó são mencionados em seu livro. Eles expressam melhor que outros autores e livros o dilema da sociedade pós-moderna, ou “líquida”, como o senhor prefere?

A conclusão a que cheguei, ao tentar entender a ansiedade dos contemporâneos, é a seguinte: o que faz nossos medos particularmente dolorosos, insuportáveis, é a falta de clareza sobre as suas causas. Em outras palavras, o que nos faz sofrer mais do que qualquer outra coisa, envenenando nossos prazeres cotidianos e provocando pesadelos, é a própria incerteza, tanto sobre a condição humana como sobre nossa ignorância. É uma verdade antiga, contida no Livro de Jó e esquecida: ainda que houvesse razões sensíveis para as catástrofes que se abatem sobre nós, seríamos incapazes de compreendê-las, a despeito de nossa sabedoria e lógica. Goytisolo nota que o nosso conhecimento do mal se dá apenas quando olhamos para trás, retrospectivamente. É uma observação aguda a sua, referendada pela quase imperceptível erosão de nossos direitos e liberdades individuais nos tempos que correm. O processo todo só pode ser entendido em retrospecto, quando é tarde demais para restaurar aquilo que está perdido. Nos países que se consideram democráticos as pessoas já se renderam sem resistência: admite-se que “suspeitos” sejam seguidos pela polícia ou mantidos presos sem julgamento, ou ainda que sejam deportados sem provas legais - apenas como “medida de segurança”. A maioria das pessoas aceita essas arbitrariedades, seguras de que atingem apenas uma minoria. Mas o fato é que, desrespeitados os direitos humanos, não há como impedir a avalanche que vem por aí.

O senhor diz que os orientadores de futuros homens-bomba são intelectuais que se aproveitam da ignorância do próximo, mas encerra o livro com esperança numa possível aliança entre intelectuais e pessoas do povo. Esse otimismo é justificável?

Intelectuais são, por definição, seres engajados em criar e difundir cultura. No século 18, o termo cultura era entendido como um esforço para promover, facilitar e acelerar o progresso, social e espiritual. A cultura, assim, entrou para o vocabulário moderno como uma declaração de intenções - de educar, iluminar, melhorar e enobrecer as pessoas do povo, recém-elevadas à categoria de cidadãos do Estado-nação: era, enfim, o casamento da nação emergente, auto-elevada à condição de Estado soberano, com o Estado emergente, que clamava pelo papel de guardião da nação. O projeto do Iluminismo alocou à cultura (entendida como trabalho de cultivo) o status de principal ferramenta na criação do Estado-nação; simultaneamente, elegeu a classe instruída como agente dessa operação. Nesse trânsito entre ambição política e ruminações filosóficas, os dois objetivos do projeto iluminista (explicitamente proclamados ou tacitamente presumidos) cristalizaram-se como disciplina dos súditos do Estado e a solidariedade dos cidadãos. O Estado-nação emergente sentiu-se, então, encorajado pelo crescimento rápido de potenciais trabalhadores-soldados, vistos como propulsores do crescimento de seu poder diferencial. Contudo, os esforços para a construção do Estado-nação, conjugados com o progresso econômico, resultaram no crescimento de “redundantes” (parte da população que precisava ser urgentemente descartada até segunda ordem). O novo Estado-nação foi logo pressionado a buscar espaços fora de suas fronteiras para acomodar esse excesso de pessoas e produtos, incapazes de serem “absorvidos”. A sociedade de hoje é o resultado disso, uma sociedade de consumidores e, como todo o resto, a cultura virou um produto como outro qualquer. A transformação gradual da idéia de cultura, do conceito original iluminista à sua reencarnação líquida, é operada pelas mesmas forças que promovem a emancipação dos mercados das limitações remanescentes de natureza não-econômica - restrições sociais, políticas e éticas, entre outras. Enfim, a cultura ‘líquida’ moderna não tem pessoas para cultivar, mas clientes para seduzir.

Instituto Humanitas Unisinos - 17/02/07

'Tribunais' do PCC julgam até 'pequenas causas'

Eles começaram resolvendo disputas entre presos. Agora, são comerciantes e moradores de bairros dominados pelo tráfico que recorrem aos “tribunais” do Primeiro Comando da Capital. “São pessoas que não acreditam ou não tiveram problemas solucionados pela polícia ou Justiça”, diz o delegado responsável por uma central de escuta telefônica que acompanha ligações feitas para presos no interior paulista. “Esse tipo de ‘julgamento’ está entupindo nosso trabalho de escutas. Agora o PCC ‘julga’ pequenas dívidas, furtos de bairros e até briga de marido e mulher.” A reportagem é de Chico Siqueira e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-02-2008.

As escutas revelaram episódios como o da doméstica Simone, que vivia se queixando do marido às amigas e admitiu que teve um caso. O marido, do PCC, recorreu a um “tribunal”. Foi autorizado a dar uma surra em Simone, que passou dois dias no hospital, em Penápolis, a 491 quilômetros de São Paulo.

Essa “pena” foi bem mais leve que a do agricultor Everardo Roque de Lima, primeiro julgamento acompanhado por escutas. No Natal de 2006, ele saiu de um forró com uma mulher. Os dois beberam, ela passou mal e ele a levou para casa. Acusado de estupro, foi condenado e morto em Limeira, a 151 quilômetros de São Paulo. Antes, Lima teve o antebraço decepado e os olhos arrancados.

Casos como o de Lima ainda são decididos pelos tribunais de presídios. Mas, para ganhar a simpatia dos vizinhos, traficantes da facção organizam tribunais paralelos para julgar e punir culpados. O credor ou a vítima é que estabelece a punição ao infrator, que também é ouvido.

O pior é que a inteligência da Polícia Civil constatou que os tribunais são procurados agora por pessoas sem ligação com o PCC. Como ocorreu em Presidente Prudente, a 530 km de São Paulo, quando ladrões atacaram o bar de J. A. P. “Nem precisei ir à polícia. Um menino que vem aqui disse que poderia recuperar o prejuízo e aceitei”, conta J. “Três dias depois, devolveram tudo. Até dez pacotes de cigarro, intactos.”

Novas regras do PCC deixam governo em alerta

No mês passado, a Secretaria de Segurança Pública distribuiu comunicado às delegacias do Estado avisando sobre a suposta decisão do PCC de liberar bandidos para praticar crimes sem autorização de chefes. Nele, o Departamento de Inteligência da Polícia Civil (Dipol) avisa que a facção determinou que assassinatos de policiais, “talaricos” (homens que assediam mulheres de membros da facção), estupradores e alcagüetes não precisam de “autorização”.

O objetivo, segundo o serviço de inteligência da Polícia Civil, é evitar que líderes sejam condenados como mandantes do crime. “Líderes que votavam no tribunal acabavam denunciados como mandantes dos crimes”, explicou o agente da inteligência da Polícia Civil.

Líder do PCC numa cidade de 30 mil habitantes do Oeste do Estado, C. M. O., de 26 anos, atua como “disciplina da quebrada”, espécie de coordenador regional. Conta que, pelas regras do “partido”, “crime de vida se paga com vida”, mas estupro e “traição” ao comando (delação) também podem ser motivos para morte. “Todos eles precisam de autorização dos superiores, mas damos chance de o acusado se defender.”

E que casos não dependem de autorização? “Pequenas dívidas, furtos e outras distorções pequenas podem ser resolvidas pelo disciplina da quebrada. Mas tem outros que precisam ser fechados com disciplinas regionais e sintonias e, se for o caso, levado a sintonias de outras áreas e gerais e até ao comando fora e dentro do sistema (das penitenciárias).”

Como “disciplina da quebrada”, ele decidiu há pouco tempo o caso de uma mulher que teve a casa assaltada. “Primeiro ela chamou a polícia, que não achou nada. Então avisou a gente e fomos lá e recuperamos os pertences dela.” E o que aconteceu com o ladrão? “A gente avisou o moleque para não dar bobeira. Da próxima vez, leva corretivo. Podemos dar um pau nele. Esse tipo de vacilo não precisa de autorização de cima.”

Diretor regional do Departamento de Polícia Judiciária do Interior, Antonio Mestre Filho admite que traficantes podem assumir o papel de “justiceiros” para manter a polícia longe e atrair a simpatia de moradores. Mas diz que isso ocorre até mesmo com bandidos não ligados ao PCC. Experiente no combate ao crime, ele afirma que o PCC se enfraqueceu após os ataques e agora tenta se reorganizar. “Não podemos ver esses quadrilheiros como entidade. É isso que eles querem.”