"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, abril 07, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 05/04/07

“O ponto central na história é que o governo está sempre correndo atrás das crises militares”, afirma o sociólogo João Roberto Martins Filho
O sociólogo João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, em entrevista ao Valor, 05-04-2007, refuta as comparações entre as manifestações dos controladores de tráfego aéreo com rebeliões no passado, como a da Chibata, envolvendo marinheiros, em novembro de 1910, a dos sargentos e marinheiros que protestavam pelo direito de votar e serem votados, em 1963 e 1964. Especialista em questões militares comenta que desde a criação da pasta, nem o governo Fernando Henrique e nem o governo Lula apresentaram um plano de governo para a área da Defesa. Deixaram que os militares definissem suas próprias políticas, que são extremamente complexas, diz ele.
Eis a entrevista.
Muitas comparações estão sendo feitas dos episódios de agora com acontecimentos históricos passados em que houve quebra de hierarquia. O senhor também vê essa proximidade?
As aproximações históricas que estão sendo feitas são um pouco forçadas. Na revolta da Chibata, em 1910, a motivação para a rebelião foram castigos físicos. Os canhões de dois navios foram voltados para a cidade do Rio de Janeiro, é um nível de ameaça muito diferente. O governo de então cedeu, fez a anistia contra a vontade do oficialato. Tinha ocorrido a morte de um oficial e a reação à anistia se deu depois, em episódios de vingança. Aquilo anulou qualquer esforço de modernização da Marinha até 1922. Deixou claro que havia uma Marinha que buscava modernizar seus equipamentos, sem cuidar do preparo de oficiais e soldados. Quero crer que as transformações do país em quase cem anos foram tão profundas que tornam a comparação imprópria.
E em relação à revolta dos sargentos e dos marinheiros nos anos 60?
A conjuntura atual é completamente diferente em relação a de 1963 e 1964. Havia a guerra fria, um imenso conflito de forças entre direita e esquerda. O Brasil vivia uma democracia em crise e naquele contexto, estas revoltas serviram de estopim para o golpe, mas de modo algum foram o principal motivo para a queda do governo. Geisel menciona em suas memórias que a conspiração teve início em 1961, quando Jango tomou posse. Aliás há um grande exagero na importância dada a essas revoltas como fator desencadeador do golpe. Foram episódios que unificaram forças que ainda estavam vacilantes, aumentaram a coesão das Forças Armadas. Não há qualquer tipo de comparação possível entre estes episódios e a greve dos controladores da semana passada.
Como o senhor define o que ocorreu na semana passada?
Motim é um termo militar, mas o que vimos foi um setor com muita capacidade de pressão, diante de um governo que empurrava problemas com a barriga. Não há qualquer possibilidade desta questão tomar um vulto maior a ponto de se cogitar possibilidade de golpe no Brasil.
Mas não é possível a geração de uma quebra de hierarquia em cadeia nas Forças Armadas como um todo? Existe uma insatisfação geral nas Forças Armadas com relação a questões salariais. Muitas expectativas foram geradas com o governo Lula, mas as decisões vêm tarde, como se percebe em relação ao controle do tráfego aéreo. Mas não há setores das Forças Armadas com o mesmo poder de pressão que os controladores. O ponto central na história é que o governo está sempre correndo atrás das crises militares.
Em que outros episódios o governo federal não conseguiu se antecipar aos problemas?
Por exemplo no episódio da nota do comandante do Exército, Francisco Albuquerque, sobre a divulgação das supostas fotos do jornalista Vladimir Herzog no momento de sua prisão, houve um embate entre o comando e o ministro da Defesa, José Viegas, e a polêmica acabou derrubando o ministro. Agora houve uma imensa desmoralização do Ministério da Defesa, que está excluído das negociações.
Podemos dizer que o Ministério da Defesa é uma experiência fracassada?
O que podemos dizer é que o Ministério da Defesa ainda não conseguiu se firmar, precisa ser revisto. Houve um grande avanço na coordenação das três Armas, em experiências do uso combinado das forças. Mas o Ministério da Defesa jamais resolveria todos os problemas sozinho. O governo federal precisaria ter uma política militar. O governo Lula, que eu saiba, não mandou uma única diretriz de uma política global de defesa. E já estamos no terceiro ministro da área no governo.
O cientista político argentino Rosendo Fraga comentou que, ao contrário do que ocorre em seu país, no Brasil os militares preservaram muito prestígio e poder. Por isso há resistências em relação à desmilitarização de certos assuntos, como a aviação civil. O senhor concorda com a avaliação?
Os militares realmente deixaram o poder no Brasil muito mais preservados. Efetivamente, mantêm ainda algumas prerrogativas, mas os civis no Brasil também não exercem em plenitude os poderes constitucionais. Deixaram que os militares definissem suas próprias políticas, que são extremamente complexas. Atualmente as Forças Armadas foram deixadas ao seu próprio governo. Os militares não percebem o que o país realmente quer de suas Forças Armadas. No episódio envolvendo a questão do controle aéreo, as Forças Armadas foram prejudicadas. Alguns integrantes reconhecem que precisam de um comando político claro, de ordem civil. Mas não existe vontade, no poder civil, de enfrentar a questão militar.
Rosendo Fraga mencionou também a dificuldade de se tratar as questões dos direitos humanos referentes a episódios do regime militar, menor na Argentina do que no Brasil.
É preciso relativizar. O governo Fernando Henrique deixou uma legislação que fechou os arquivos por 50 anos e o governo Lula não mexeu nisso. A Marinha mandou os documentos que tinha sobre a guerrilha do Araguaia, mas é verdade que ela teve participação menor naquele evento. Isto só se resolverá no dia em que a sociedade se afirmar. Mas no governo Fernando Henrique foram pagas indenizações aos familiares de Carlos Lamarca e Carlos Marighella, e as Forças Armadas não fizeram nada. Ficou provado que quando os civis tomam decisões, os militares obedecem.
Mas a instabilidade tem marcado a história do Ministério da Defesa, em vários episódios. Porque persiste esta dificuldade de a Pasta se impor?
É muito difícil mudar a cultura militar para que se obedeça a um ministro civil. Na medida em que há episódios de instabilidade, a resistência fica cada vez maior. Não se cria uma cultura de obediência por decreto. Mas há uma incapacidade civil de se resolver o problema, como se nota agora, quando Lula percebeu a reação provocada pela negociação de sexta-feira com os controladores. O governo havia lidado com os militares como se fossem uma categoria de trabalhadores qualquer. Na sexta-feira, foram pegos de surpresa e reagiram com pânico.
Entre as três Armas, a Aeronáutica é um foco especial de tensão?
Não. Houve episódios de tensão também com o Exército, como o já referido episódio da saída de Viegas, a Marinha também está muito insatisfeita. Há resistências sim do poder militar, mas não existe vontade civil de enfrentar esta resistência, nunca existiu.
Nem no governo Collor, quando foi extinto o SNI, ou no governo Fernando Henrique, com a criação do Ministério da Defesa?
Collor tomou uma série de atitudes que desagradou profundamente os militares, mas não tinha um plano para lidar com o setor. Fernando Henrique avançou ao criar o Ministério da Defesa, mas não o tornou efetivo.
O senhor acha que a criação da Defesa foi um compromisso externo, para facilitar a conquista de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU?
Esta é uma tese em que muitos militares acreditam.
Qual das três Armas resiste mais a um comando civil no Ministério da Defesa?
O Exército é o mais refratário, porque sempre exerceu um papel político. A arma ainda exerce funções na segurança interna, mantém uma brigada especial em Campinas para poder intervir em assuntos internos. A Marinha é a arma mais aberta, porque definiu há muito tempo que não tem qualquer função interna, que deve se dedicar exclusivamente à defesa do país. A Aeronáutica fica no meio do caminho. Haverá resistências a uma desmilitarização da aviação, porque nesta política geral de contenções de despesas, qualquer retirada de funções significa corte no Orçamento, já exíguo. Por isso as coisas se misturam.

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