"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 03/01/08

Solidão, a praga o século XXI

As grandes cidades estão cheias de solitários. Cresce o número de habitações ocupadas por uma só pessoa e o trato físico é substituído pelas relações a distância, pela internet. É uma epidemia que está crescendo.

Segue a íntegra do artigo de Vicente Verdú publicado no El País, 16-12-2007. A tradução é do Cepat.

A solidão das grandes cidades, o hiper-individualismo, a multidão solitária, as mônadas sociais, foram temas relevantes na segunda metade do século XX, mas hoje mal se fala disso. Os indivíduos não se implicaram nem se abraçaram mais, mas eletronicamente se comunicaram de tal modo que o fenômeno da interconexão parece ter calado as inquietudes ou as vozes do isolamento.

Trata-se, entretanto, de duas realidades paralelas. Enquanto a relação corpo a corpo segue se debilitando, a relação a distância, máscara a máscara, aumenta e prolifera. A aventura de ser um indivíduo diferente ou, melhor, sempre dependente da imagem projetada nos demais, se muniu agora de um artefato mediante o qual a aparência da nossa identidade se entrelaça com nossas artes de engano. Nosso desenho, enfim, se encontra mais em nossas mãos através do acessório, do nickname, do avatar, dos jogos de sexo e da idade ou outros recursos para fazer personagens da pessoa e versões do real.

O próximo é sempre insubstituível para poder ser algo, mas a proporção de sua efetiva substância de que se necessita para esboçar nosso perfil social pode ser substituída, em parte, por nossa habilidade para fingir na tela, travestir-se na Rede e recriar-se em novo espaço virtual, inconcebível até agora.

Indubitavelmente, a satisfação não será comparável à proporcionada por um amor encarnado ou uma consideração tangível, mas, pouco a pouco, este mundo eletrônico será quase tudo o que existe, e a vida em seu seio decidirá uma porção variável de nossa composição geral. O transparente procura abrigo, o remoto segrega afetividade, o virtual se materializa e o sucedâneo, como nas gulas, será progressivamente o único gosto atribuído à cria.

Inclusive, com o uso e o consumo de companhias e sentimentos na Rede, o que hoje parece sucedâneo apagará seu estigma subsidiário e ascenderá de pleno direito ao mundo que alivia as provisões da solidão.

As ‘webs’ sociais. Depois do boom das companhias pontocom de seis anos estourou o êxito das empresas que administram os pontos de encontro entre milhões de usuários. Ao sucesso da tecnologia aplicada aos negócios sucede a multiplicação dos negócios que têm sua base primordial nas pessoas.

O conhecimento científico, as informações de consumo, as opiniões políticas se cruzam numa trama que facilitou e estimulou a Rede. E este universo de inumeráveis contatos possui uma importante condição inédita: nos conectamos com mais pessoas sem ter que sofrer a penalidade do seu hálito. O contato “pessoal” se define assim por uma relação entre pessoas distantes e distintas, mas sem sua estranha ou intoxicante emanação.

Cresce a conexão e até a implicação, mas não os compromissos fortes nem as implicações profundas. Da mesma maneira que o saber atual é mais superficial que profundo, a relação com as pessoas pela Rede conforma um modelo à sua imagem e semelhança. Tratamos com uma multiplicidade de indivíduos para degustá-los fragmentariamente naqueles aspectos que nos comprazem, nos divertem ou nos interessam.

O mundo avança desta maneira como numa frente de infinitas relações rápidas. Vivemos ou navegamos, e em vez de chegar até o fundo do outro substituímos a cavidade pelo surf e o coração pelo botox. A inter-relação torna-se assim menos personalista ao modo católico de Mounier e, ao contrário, cada vez mais “personista”.

Na Coréia do Sul, as relações sociais e afetivas através dos meios eletrônicos já superam em freqüência e número as que se mantêm cara a cara. O rosto da Coréia do Sul nunca foi revelado com nitidez no Ocidente, mas não estará acontecendo o mesmo com a vasta e difusa trama que domina a internet e a derivação de seu influxo? Em que ponto, por exemplo, se encontra hoje aquela amizade que amortecia o desassossego de estar só? Por um lado, crescem os tele-contatos, aumentam as seitas, multiplicam-se os clubes, as galeras e as tribos urbanas, e por outro, aumentam as habitações ocupadas por uma só pessoa até chegar a mais da terça parte das residências nas grandes capitais do Ocidente. Neste contexto contraditório, onde se encontra o gonzo da companhia e o apoio contra a solidão?

O olhar do outro. Muitos nexos e poucos vínculos, muitas conversações horizontais e poucas verticais. Não é tanto a desconfiança do outro que reduz o peso da amizade, mas a dificuldade do trabalho e da moradia para cultivá-la e enriquecê-la. Pouco a pouco, sem pensá-lo ou ponderá-lo, vamos reduzindo a companhia eficaz ao recinto do casal e sobre ela vão se concentrando tantas demandas e exigências, tanto socorro, que acaba cedendo em seus fundamentos ou ardendo por excesso de exigência.

O outro pode ser um verdugo ou um luxo, mesmo que sempre possua partículas de ambos e sempre parece melhor estar acompanhado do que a sós porque da mesma maneira que não há especialista melhor na tortura do que o autotorturador, nem tampouco pior inimigo do que a lucidez da nossa própria ofuscação, o outro realiza o elemento necessário para nos esclarecer. Aquele que nos observa de fora, liberado de nossa fixação, pode agir como a chave da nossa cura. Todo problema tem sua solução, abre o encerro. Os termos se tornam rapidamente mais claros e pulamos do precipício à calma graças à cirurgia do afastamento.

Isso não significa, no entanto, que o outro represente o mágico bálsamo de Ferrabrás. A espécie humana prefere, em geral, não conviver muito. Precisamente, o pior da cotidianidade das abelhas procede de sua obrigatória, eterna e amontoada colaboração. Nada parecido com a ordem dos seres humanos, que encontram na solidão uma ocasião de lavagem e saúde precisas.

Não é a mesma coisa a solidão e a independência, mas a solidão escolhida e a independência conquistada se aproximam muito entre si. Complementarmente, a qualidade do laço aumenta se ambos assumem sua independência e estão juntos podendo estar distantes depois. A relação floresce quando ninguém causa a sua solidão e a solidão posterior a um desacordo não se traduz em desvalorização ou suicídio.

Somos com os outros e os outros são conosco, mas sem tormentos. O amor e a amizade nos constroem mutuamente se os pilares não descansam desequilibradamente. A interdependência não é, portanto, a soma de dependências, mas jogo de independências de maneira que a metáfora do favo nos adoça tanto como nos encarcera.

Somos, em suma, seres comunitários e solitários, cidadãos e indivíduos. O inconveniente da solidão em relação à visão do mundo reside em que uma idéia ou uma opinião mantida a sós é praticamente igual a uma crença, enquanto que a idéia compartilhada se torna convicção e ajuda a traçar itinerários comuns e a formar um mapa iniciático do qual irá se alinhavar uma concepção de mundo mais alegre.

Mas não agitados. Contra a exaltação da companhia, no entanto, é preciso dizer que a demasiada presença do outro é oposta ao progresso. Se os meios de comunicação moderna triunfaram e se popularizaram tanto é devido à sua fórmula de permitir que as pessoas se sintam presentes sem se apresentar. A perda da presencialidade ampliou a lucidez do intervalo em não poucas relações esfumaçadas.

O espetáculo do outro substitui assim, muitas vezes em nossos dias, a realidade efetiva. As telas onipresentes operam como uma câmara de transmutação do real para criar o mundo de uma irrealidade leviana compatível com a idéia da ausência. Por outro lado, o específico de nossa espécie não é o contato com os demais, mas a distância. São espécies de contato aquelas que se apinham por prazer e permanecem pele com pele durante horas, como o hipopótamo, o cervo e o porco-espinho.

Mas há espécies de “não contato”, entre as que se encontra o cavalo, o cachorro, o gato, o rato e também os seres humanos. Não nos agüentamos muito próximos. Pode ser que este rechaço não predomina sendo cachorros ou sendo bebês, mas enquanto se alcança o estado adulto, todo conforto requer repouso. E já não uma folga para pensar ou atuar melhor, mas como habitat primordial da sobrevivência.

O amontoamento nos mata, e bastaria a excessiva proximidade para ficarmos doentes. O indivíduo (indivisível) requer, para sua definição, uma esfera em que reine o cheiro e o amor próprio. O abraço amistoso, a associação religiosa, a equipe, a vizinhança, são escolhas desde a solidão primordial em que nos fundamos ou nos reconhecemos. Nada a ver com o pantanoso cosmos do cervo, a aglomeração dos porcos-espinhos ou a apegação dos hipopótamos.

No fundo, além disso, sempre estamos sós. Mais sós que a una e a quase qualquer hora, pobres ou ricos, saudáveis ou com hérnias. Proust escrevia: “Alguém nos comunica sua doença ou seu revés econômico, o escutamos, nos compadecemos dele, tratamos de reconfortá-lo e voltamos aos nossos assuntos. Quão sós estão as pessoas!”.

E que belo desfrute encontramos nesse vazio quando por alguns momentos o escolhemos.

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