"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, junho 25, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 25/06/08


A União Européia sacrifica seu modelo social numa tentativa de ser competitiva. A prometida sociedade do ócio e a conciliação, ainda mais distantes. Segue o artigo de Ariadna Trillas, publicado no El País, 13-06-2008. A tradução é do Cepat.

O trabalhador europeu está desconcertado. À noite, vai dormir com o novo discurso dominante: as empresas devem levam a sério a necessidade de conciliar a vida profissional e a vida privada, os países mais produtivos não são aqueles em que se trabalha mais horas, as empresas modernas mimam ao máximo a saúde de seus trabalhadores, sociólogos e filósofos prometeram, para o século XXI, uma nova sociedade do ócio, com tempos de trabalho curtos graças à implantação das novas tecnologias... Pela manhã, o mesmo trabalhador toma seu café com a confirmação de que a conciliação era apenas uma casca verbal: o que realmente se dá é uma brecha, um enorme boquete aberto no teto de sua semana de trabalho e no da Europa, o berço do modelo social.

Devem os europeus trabalhar mais horas para serem mais competitivos no mundo, possibilidade que se abre com a decisão adotada esta semana pela maioria de países membros da União Européia, diante do desmaio de um Governo espanhol que promete não aplicá-la? Até que ponto a Velha Europa, onde sopram fortes ventos liberais, vai prejudicar suas próprias bases sociais nesse empenho?

Os defensores da polêmica decisão, que requer aprovação do Parlamento Europeu, que não está clara pela mobilização da esquerda que se aproxima, negam a maior: de que não há golpe social. Não em vão, o Reino Unido, depois de 15 anos de luta, conseguiu emplacar a expressão em moda, a free-choice ou livre escolha. Dizem: se um trabalhador quer trabalhar mais de 48 horas semanais, que é o marco legal europeu – na Espanha, quer se cumpram ou não, são 40 horas semanais contempladas no Estatuto dos Trabalhadores, salvo no caso de coletivos que têm seu próprio estatuto, como os médicos, os bombeiros ou a polícia, e salvo que se façam horas extras, até um máximo de 80 ao ano –, por que se deve impedi-lo sob certas condições?

A menos que um trabalhador renuncie a isso, supõe-se que de forma voluntária, a semana de trabalho européia se manteria nas atuais 48 horas, destaca a Comissão Européia. Esta lembra inclusive que se cuida daqueles que ultrapassarem esse limite, impondo-lhes um. Será de 60 horas, ou de 65 no caso das profissões com plantões, como os médicos. Na realidade, não é um limite, mas uma média de três meses. Assim, se os europarlamentares não o proibirem, alguém poderia trabalhar numa semana, por exemplo, 78 horas!

John Messenger, principal pesquisador do Programa sobre as Condições de Trabalho e do Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OI), destaca, de Genebra, “o provável impacto negativo para a saúde e a segurança dos trabalhadores, e também para o equilíbrio de sua vida profissional e privada”, que resultaria de uma semana generalizada de até 65 horas. Segundo a OIT, 600 milhões de pessoas trabalham “excessivamente”, isto é, “mais de 48 horas por semana”, o limite que esta organização estabeleceu há 90 anos. Diversos relatórios da OIT afirmam que trabalhar mais de 50 horas por semana eleva o estresse e a fadiga, causa desordens no sono, maus hábitos de vida e, no longo prazo, transtornos músculo-esqueléticos, doenças cardiovasculares e mentais, infecções crônicas.

Até que ponto ultrapassar as 48 horas será uma exceção? “A negociação individual entre a empresa e o trabalhador proposta pela diretriz não é de igual para igual. A situação do trabalhador é de debilidade total”, adverte Raúl Riesco, diretor-geral do Trabalho. O ex-secretário de Estado de Economias e professor do IESE Alfredo Pastor prefere colocá-los nestes termos: “O trabalhador com talento, o crack procuradíssimo pelas empresas, tem poder de mercado para negociar. Por isso, alguns sugerem que se está dando uma margem de liberdade. Mas para a maioria dos trabalhadores sem esse poder, falar de 60 horas é colocar um corte para a proteção social”.

O Governo espanhol adiantou que seguirá proibindo que se ultrapasse o limite das 40 horas. Mas Riesco admite “preocupação com a possibilidade de estar rodeado de países onde as longas jornadas se elevem à categoria de normal e que procurem captar empresas, é um golpe ao modelo europeu”.

“Ou abrir a porta à competição desleal, ou voltar às histórias de Charles Dickens”, reflete Toni Ferrer, secretário da Ação Sindical da UGT, que, junto com a CC OO [Comissões Operárias], prometeu fazer uma “dura campanha” para que o Europarlamento suste a norma. “Caso contrário, o desapego do cidadão europeu com a União Européia aumentará”, acrescenta. Os sindicatos parecem recobrar brios com esta luta na atual Europa liberal. Enfrentam um ataque ao seu próprio papel e ao da negociação coletiva. “Vai ser impossível ao trabalhador individual resistir à pressão de uma companhia que exige alongar o horário de trabalho”, prognostica Ignacio Fernández Toxo, secretário de Ação Sindical da CC OO. Prevê um outono quente.

Colocaram os médicos como alvo principal da manifestação. Não só porque são afetados particularmente pela possibilidade de alongar a semana de trabalho para 65 horas, mas porque a diretriz distingue, no caso de um plantão, entre período ativo e período inativo. Contempla a possibilidade de que o tempo que um médico passa de plantão num hospital, mas durante o qual não atende diretamente um paciente, não só não seja considerado tempo de trabalho, mas que seja interpretado como tempo de descanso.

“Vamos rumo ao desastre. A diretriz, se for aplicada, questionará o compromisso com a qualidade da assistência dos médicos e com sua saúde”, destaca Patricio Martínez, chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital da Esperança de Barcelona e secretário-geral da Confederação Estatal de Sindicatos de Médicos.

Diversas sentenças do Tribunal de Justiça de Luxemburgo – uma delas, em 2000, por conta de um litígio sobre o regime de trabalho dos médicos dependentes da assessoria de Saúde da Comunidade Valenciana – deixam bem claro que a jornada de trabalho máxima dos médicos deve ser de 48 horas semanais, incluídos os plantões. A diretriz as ignora.

“Por acaso, vão colocar um cronógrafo em nós? E se o médico não estiver com um paciente, mas estiver revisando um expediente ou estiver aguardando o resultado de uma análise? Está descansando?”, se pergunta Martínez, que adverte que na diretriz também não fica claro que se possa respeitar a atual obrigação de descansar um dia depois de ter feito um plantão.

“O motivo de toda esta cruzada é a falta de médicos”, explica o doutor Carlos Amaya, neurocirurgião de La Paz e vice-presidente da Federação Européia de Médicos Assalariados. O Reino Unido ampliou em 20% a oferta de lugares de estudantes em suas faculdades de Medicina e não as preencheu. “Assim que procuram esticar a jornada dos médicos que têm”, acrescenta Amaya.

“É impossível dar um atendimento de saúde de qualidade com uma jornada de trabalho de 65 horas semanais”, corrobora Loren Mármol, enfermeira de 42 anos que trabalha no serviço de Urgências e na área cirúrgica do Hospital Espírito Santo de Santa Coloma de Gramenet (Barcelona). Mármol entra no centro às 21 horas e permanece 10 horas depois. Há semanas em que aplica este horário na segunda-feira, quarta-feira, sexta-feira, sábado e domingo. Alterna-os com outros horários curtos, de dois dias, quinta-feira e terça-feira. “Na prática, se alguém fica doente e te pedem para não trabalhar, não te dão uma espingarda, mas, enfim...”, conta.

Os empresários espanhóis navegam com prudência por esse caloroso debate, e insistem, como o PP, em que as 60 horas semanais serão algo voluntário e a exceção, a regra. O responsável pelas Relações Trabalhistas da patronal CEOE, Fernando Moreno, aponta que “na Espanha não há demanda para mudar a jornada de trabalho de 40 horas semanais, e que já permite exceções pactuadas em acordos coletivos”. Moreno reclama “maior flexibilidade para distribuir as horas trabalhadas em períodos de cômputo mais longos, e que haja melhores adaptações aos picos de atividade das empresas”.

Alguns empresários se manifestam abertamente a favor da diretriz, sobretudo em setores com fama de ter longas jornadas de trabalho, e em especial em determinadas épocas do ano. Emilio Gallego, secretário-geral da Federação Espanhola de Hotelaria, opina a este respeito que “a economia européia necessita de uma flexibilização do mercado de trabalho quanto à distribuição do tempo de trabalho. Esta decisão, como qualquer mudança, gera incertezas, mas pode ser boa para a competitividade”.

“Num restaurante familiar, trabalhar menos de 10 horas por dia é impossível”, sentencia Jordi Vila, chef do Alkimia, de Barcelona. Com seus 34 anos, assegura que passou por 17 restaurantes e “nunca” trabalhou menos de 12 horas por dia. Agora, no seu próprio, disse: “Quando ouço falar das 35 horas penso que eu as faço em dois dias e pouco!”.

Os setores de manutenção, hotéis, comércio, medicina, assistência às pessoas, jornalismo, serviços profissionais são propícios a longas jornadas. Clara G., que se debate entre semanas de 45 horas e outras de 30 num hospital geriátrico, confessa que “tanto psicológica como fisicamente, trabalhar muitas horas seguidas é esgotante, já que o trabalho implica em mobilizar pessoas idosas sem muita força”.

As consultoras de Recursos Humanos não escondem sua surpresa. “Falar de 60 horas está na contra-mão”, disse Begoña Benito, diretora-geral na Espanha da Watson Wyatt. “Se falássemos de casos pontuais voluntários, me pareceria fabuloso, sou liberal. Mas segundo se aplique, corre-se um risco: que as empresas se aproveitem”, antecipa. Na Europa virou moda o conceito de flexisegurança. Conciliar a segurança no posto de trabalho com a flexibilidade requerida pela empresa. A especialista em Direito do Trabalho Esther Sánchez, do Esade, opina: “Talvez estejamos pondo muito acento na flexi, mais que na segurança. Isto é um retrocesso”.

Pior ainda na China

China. A lei do trabalho chinesa data de 1995 e fixa a jornada em oito horas diárias, cinco dias por semana, ainda que o modelo possa ser flexível com a autorização das autoridades. Em todo o caso, o tempo extra não deve superar uma hora diária em geral e nunca mais de três. Num mês, não se pode realizar mais de 36 horas extras (nove por semana), o que fixa o tempo de trabalho semanal máximo em 49 horas. Mas, muitos trabalhadores se vêem obrigados a fazer jornadas de mais de 11 horas, seis dias por semana, para elevar seus magros salários.

Estados Unidos. A semana de trabalho norte-americana é, normalmente, de 40 horas. A Lei de Boas Práticas de Trabalho de 1938 estabelece que o resto das horas seja compensado como “trabalho extraordinário”, com uma remuneração de 150% sobre o salário base. No entanto, em trabalhos que exigem uma elevada qualificação, como a advocacia ou o investimento bancário, raras vezes se cumpre este limite. Costuma-se conceder aos trabalhadores uma jornada diária que começa às 9h e termina às 17h, com pouco mais de 15 minutos para o almoço. Quanto às férias, não se concede mais de uma semana ao ano para os novos empregados.

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