"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, novembro 29, 2006

Ciência Hoje

A aviação não nasceu com um telegrama!
Há cem anos era realizado o primeiro vôo em aeroplano com motor

Em 1903, os irmãos Orville e Wilbur Wright, dois excelentes pilotos e inventores norte-americanos, anunciavam o primeiro vôo de um aparelho mais pesado que o ar com o uso de motor. Mas, apesar do reconhecimento mundial das grandes contribuições dos Wright para a aviação, foi apenas em 1906 que se faria o primeiro vôo completo e homologado da história, realizado pelo brasileiro Alberto Santos Dumont.
Em 17 de dezembro de 1903 os cabos da Western Union Telegraph Company transmitiram uma curta mensagem sem qualquer indício de emoção: “Sucesso em quatro vôos quinta-feira manhã # Todos contra vento de 21 milhas iniciados no nível do chão com potência de motor somente # velocidade média através do ar 31 milhas o maior 57 segundos informe imprensa local. Feliz Natal. Orevelle (sic) Wright.
" O telegrama, embora endereçado para a família, logo foi divulgado e se tornou mais uma das notícias que surgiam, cada vez com maior insistência, sobre o sucesso do vôo de um aparelho mais pesado que o ar. De fato, em 18 de agosto de 1903, poucos meses antes do telegrama de Orville, o alemão Karl Jatho anunciava ter realizado alguns vôos, o mais longo de cerca de 60 m, em Vahrenfelder, próximo a Hanover. Mesmo antes já se tinha notícia de vôos realizados por aparelhos mais pesados que o ar. Richard Pearce, um inventor neozelandês, dizia ter alcançado a marca de 1 km em julho de 1903. Antes, em 31 de março de 1902, teria conseguido realizar vários vôos mais curtos.
Em 14 de agosto de 1901, Gustav Weisskopf, imigrante bávaro que americanizou o nome para Whitehead, comunicava sucesso em um vôo em Connecticut realizado com o seu Aeroplane n o 21 , diante de mais de uma dezena de testemunhas. Em 1898, Augustus Herring, trabalhando com Octave Chanute, fez um planador biplano com um pequeno motor de ar comprimido movendo duas hélices. Com ele realizou alguns saltos. E, continuando essa cronologia para o passado, ainda em 1897, em uma demonstração no campo de provas de Sartory e diante de uma comissão do Exército francês, o inventor francês Clément Ader conseguiu voar cerca de 300 m com o seu aparelho morcego denominado Avion III . O relatório da comissão concluiu que o vôo não era significativo, pois um golpe de vento havia retirado o avião do solo. Em 1884, o aparelho projetado pelo inventor russo Alexander Fedorovich Mozhaiski e pilotado por um certo I. Golubev conseguiu voar após correr em uma rampa. Em 1890, com um projeto preliminar, Clément Ader havia anunciado ter voado cerca de 50 m nos terrenos do Castelo Pereire, em Armainvilliers, na França. O vôo foi presenciado por poucas pessoas e o desenho do avião apareceu na imprensa do mundo todo.
O vôo de um aparelho mais pesado que o ar já havia, dessa forma, sido anunciado vários anos antes do telegrama de 1903 de Orville para a família. Em todos os outros casos haviam sido divulgados desenhos, um razoável número de testemunhas presenciou o feito e, para alguns modelos, atas foram elaboradas.
O que poderia contribuir para um maior interesse em torno do vôo anunciado pelos irmãos Orville e Wilbur Wright era o fato de eles terem demonstrado ser excelentes inventores e pilotos, tendo construído alguns aparelhos e realizado mais de mil vôos planados. Além disso, desde que iniciaram seus trabalhos aeronáuticos em 1896, fizeram medidas de sustentação de asas, estudaram novas configurações e deram, sem dúvida, contribuições reconhecidas pelos demais inventores na compreensão do vôo. A passagem de um planador para um aeroplano motorizado era, na mente de todos que se dedicavam ao vôo, uma questão de tempo, e o anúncio dos irmãos Wright despertou alguma atenção. O que não se podia entender era o fato de os dois norte-americanos se recusarem a apresentar qualquer informação mais relevante.
As poucas testemunhas que teriam presenciado o vôo de 17 de dezembro de 1903, não poderiam ser consideradas pessoas idôneas e capazes de analisarem o que viram. Participaram da difícil tarefa de colocar o Flyer sobre os trilhos sob um forte vento. Eram membros da U.S. Lifesaving Service Station, em Kill Devil, Carolina do Norte, e nada conheciam sobre o que era um aeroplano. A fotografia realizada na ocasião, atribuída a John T. Daniels, não foi divulgada na época, bem como nenhum relato daquelas pessoas nem de dois outros observadores que teriam visto os ensaios de longe, por meio de um binóculo. Após o quarto vôo, o Flyer foi parcialmente destruído quando estava sendo carregado para ser novamente colocado no trilho: com um vento tão intenso, seria impossível evitar que um aparelho com superfície alar tão grande não fosse levado por ele.
A história desse vôo tem sido romanceada por diversos historiadores da técnica, cada um descrevendo detalhes que são não só desconhecidos como claramente fantasiados. Não raro, o historiador se inclui entre as testemunhas da época e é capaz de descrever a emoção e os sentimentos mais profundos de cada um dos protagonistas. A verdade, entretanto, é que não foi nenhum feito retumbante. O maior vôo, de 260 m e de duração de 59 segundos, provou, na melhor das hipóteses, que era possível sustentar uma máquina mais pesada que o ar por algum tempo – fato, aliás, já anunciado por diversos outros inventores.
Henrique Lins de Barros e Rodrigo Moura Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ).

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