"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

domingo, abril 29, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 29/04/07

Apologia da incredulidade. Uma entrevista com Fernando Savater

"Tentei ir dos aspectos mais teóricos, abstratos e, enfim, talvez das camadas mais profundas da crença religiosa até suas repercussões mais sociais, políticas e históricas, relacionadas com os acontecimentos que hoje padecemos. Por um lado, me parece importante tentar aprofundar, não simplesmente descartar a religião como um puro fenômeno sem importância, mas tomá-la como algo muito enraizado em nossa própria construção simbólica." A declaração é do filósofo basco Fernando Savater, que dedica seu último livro, La vida eterna (Ariel), à crítica das crenças religiosas do ponto de vista político e antropológico. Contra a fé dogmática propõe uma "incredulidade ilustrada", capaz, no entanto, de aproximar-se do sagrado (mas "um sagrado material, não sobrenatural, não divino").

Fernado Savater esteve na Argentina e foi entrevistado pelo Clarín, 21-04-2007. A tradução é do Cepat.

Fernando Savater é um apaixonado pelo turfe e pela história das idéias, reconhecidíssimo divulgador da filosofia na língua espanhola, se considera mais "professor que filósofo". Escreveu quase cinqüenta ensaios, também novela, teatro e literatura infantil. Suas idéias, reunidas num Dicionário filosófico pessoal, se emolduram numa rebelião reflexiva, não isenta de humor e ironia. Especialista em ética, disciplina que define como "a convicção de que nem tudo vale igualmente, de que há razões para preferir um tipo de atuação em detrimento de outro", dedicou a ela, entre outros textos, La tarea del héroe (1982), Invitación a la ética (1982), Ética como amor própio (1988) e o célebre Ética para Amador (1991), traduzido para 18 idiomas. Incursionou na televisão, com uma exitosa série de programas sobre "Os dez mandamentos" (que logo converteu num livro Los diez mandamientos em el siglo XXI, 2005). Sua rotunda oposição ao terrorismo em todas as suas formas o converteu em alvo militar da organização armada ETA, do país basco.

O problema - retomando o assunto do primeiro parágrafo - não é tão simples. Não é só como nos desfazemos das religiões, de seus dogmas e proibições, de seus deveres impossíveis, do fanatismo de alguns clérigos e de muitos fiéis. O problema é, antes, o que aconteceria se não houvesse uma fé como a fé religiosa, nem um sentimento de gratidão - pela vida, por aqueles que amamos - ou de recolhimento pessoal, que permitisse dar sentido e gravidade à nossa existência. Que nos faça responsáveis por ela, pelo modo como escolhemos viver. (Porque se não há nada nem ninguém a quem prestar contas, por que deveria haver responsabilidade?) Ao mesmo tempo, se não queremos submeter a nossa inteligência ao ditame do irracional nem deixar abandonada nossa vocação de transcendência, onde encontraremos refúgio? Em qual imaginária República? Na natureza? Na arte?

Fernando Savater colocou sobre seus ombros esta tremenda questão (que - por outro lado - está na moda). E em seu último livro, La vida eterna, procura abarcar todos os seus aspectos do ponto de vista de um leigo, democrata, livre pensador da União Européia, que admite também, no entanto, que "somos criaturas metafísicas".

Seu ensaio parte de uma aspiração mais ou menos modesta: aplacar "esses charlatões" que, com maior ou menor pedagogia e com uma firmeza avassaladora, pretendem explicar o curso do universo inteiro por meio de insólitos recursos ao sobrenatural. Logo adentrou na origem das crenças; ali, diz, há sempre uma fraqueza, um desejo - de imortalidade, de perpetuar-se, de ser reconhecido por alguém, além - que deve ser conjurado. Para o final parece desandar o tramo inicial para recorrer novamente o caminho de pedra rumo ao sagrado.

As páginas de La vida eterna - escritas para serem compreendidas por um público amplo - vão da recusa das crenças mais triviais até a análise do vínculo entre Deus e a filosofia, entre religiosidade e humanidade. Da crítica aos usos políticos da religião e os protestos contra o Papa, à evocação de poetas e pensadores que, em tempos inquisitoriais, pagaram com sua vida o atrevimento da dúvida ou deram testemunho de sua incredulidade sem jactância. Com eles se encontrará o leitor do começo ao fim do ensaio.

Na origem da fé, diz, sempre há um desejo. Propõe então, em vez de "ter a pretensão de compreender a realidade a partir do que desejamos, tentar compreender precisamente os mecanismos reais do nosso furor desejante". Isso nos faria desejar menos?

Não, claro, não se trata de erradicar o desejo mais ou menos oculto que temos, que não confessamos de todo a nós mesmos. Mas, ao clareá-lo contribuímos para racionalizá-lo e para tirar seus aspectos excessivos.

O desejo religioso deveria ser tratado terapeuticamente como quem propõe descobrir os mecanismos do desejo homossexual para "curá-lo"?

Os desejos estão aí, digamos, e não se pode desejar ou não desejar a vontade. O que acontece é que ao menos se deve compreender até que ponto certas crenças, certas ideologias, não são pura descrição do real, mas antes projeções de nosso desejo.

Sua colocação não se dirige tanto à fé, mas à new age.

Isso é provavelmente porque as grandes crenças contêm outros elementos socializadores. Em vez de responder a um mecanismo de desejo, a fé pode ser um elemento socializador, unificador do conjunto da comunidade; ao passo que esses discursos mais sectários, mais caprichosos, estão mais diretamente relacionados com o nosso desejo singular. Por isso, distingui no livro entre fé e credulidade.

Seu livro começa com uma crítica das crenças mais vulgares e avança até uma visão cada vez mais fina do sagrado. Não há uma recusa da fé.

Tentei ir dos aspectos mais teóricos, abstratos e, enfim, talvez das camadas mais profundas da crença religiosa até suas repercussões mais sociais, políticas e históricas, relacionadas com os acontecimentos que hoje padecemos. Por um lado, me parece importante tentar aprofundar, não simplesmente descartar a religião como um puro fenômeno sem importância, mas tomá-lo como algo muito enraizado em nossa própria construção simbólica. Nossa vida não é só experiência biológica, mas também, e sobretudo, aventura simbólica. Acontece que além das religiões há as igrejas, os clérigos, os dogmas, as significações de enfrentamento político e social, as inquietações... Isso não é simplesmente religião, mas uma derivação da religião.

Desde esse nível político assinala que "se deve respeitar os crentes seja quem forem enquanto se submetem e não violam as leis do país". Mas essa afirmação não esgota a análise filosófica do fato religioso.

Acredite no que alguém acredite, o importante é separar entre esse direito do crente de crer em suas crenças religiosas e o resto da sociedade. Uma coisa é que as crenças religiosas sejam um direito e outra, que se convertam num dever para todos. O mal do fanático é que constantemente está procurando converter a religião que tem direito a ter num dever para os demais. Isso pode levar a situações de enfrentamento violento: numa mesma sociedade pode haver religiões diferentes, mas se cada uma pretende converter-se num dever para todos é inevitável o choque e a transgressão de leis que se devem ditar de acordo com princípios racionais, empíricos, e não de acordo com revelações religiosas que não estão sujeitas ao controle por parte de ninguém.

A "incredulidade realmente ilustrada", que você resgata como uma forma válida de crença, não está naturalmente orientada a exercer a crítica de qualquer submissão ou de algumas "leis vigentes"? Mesmo as da democracia européia, que em seu livro aparece como paradigma de convivência racional.

Bom, é que - homem! - essa experiência é o aprofundamento na nossa convicção simbólica. Trata-se da busca da dimensão sagrada, não manejável, não meramente utilitária, não meramente biológica, do ser humano. Procura-se aprofundar na nossa condição simbólica, na "liberdade" dos condicionantes biológicos. Essa capacidade simbólica é também capacidade crítica de leis e instituições: é uma luta contra a fatalidade. O conceito de natural está ligado à idéia de fatalidade e de leis necessárias; enquanto que a dimensão simbólica, sagrada, está ligada antes ao possível, à busca da revogação do que parece fatal a favor de outras fórmulas mais abertas, mais livres.

O judaísmo ou o cristianismo primitivo foram também modos de se opor a uma vida institucionalizada - a escravidão no Egito, o império romano -, a um status quo com "leis vigentes" que se desejava reverter. Se identificamos a religião só com o fanatismo e não com modos de lutar contra poderes opressivos lhe tiramos um aspecto historicamente importante.

Claro. Essa é a complexidade do fenômeno religioso: nele há aspectos emancipatórios e outros dogmáticos, escravizantes, e às vezes é muito difícil discernir uns dos outros. Evidentemente, há uma luta emancipatória; de fato, teóricos da utopia marxista como Ernest Bloch insistiram muito nessa dimensão libertadora utopista que se encontra em muitas religiões. Mas, essas mesmas religiões caem com facilidade em dogmas, inquisições e imposições. A história do cristianismo mostra-o muito bem.

Na sua análise do sagrada analisa o fracasso da arte em oferecer o amparo que outrora os mitos davam: "a massificação das artes, sua perda de aura reverencial - diz - compromete esta eficácia mítica" pois a arte caminha "mais para o entretenimento do que ao discernimento". Mas o problema do sagrado é com o entretenimento ou com o discernimento? É possível conciliar o sagrado e a racionalidade?

Eu creio que é possível, dentro de um limite. A racionalidade chega até um limite para além do qual ainda há um prolongamento do simbolismo em forma de desejos, mitos: o que chamamos sagrado. Se somos capazes de estabelecer os limites com certa precisão e não transgredi-los, se não tentamos converter em racional o que não pode sê-lo (porque se refere antes à imaginação e à fantasia) e, por outro lado, se não deixamos de tentar substituir a razão por imaginações ou dogmas caprichosos, ambas podem conviver.

A razão é importante para o ser humano, mas também outros estímulos o são: impulsos simbólicos que não são meramente racionais. Em tempos de esteticismo, alguns pensaram que a arte poderia dar esse prolongamento simbólico à vida humana. Hoje isso é muito difícil: a arte mais ornamental, talvez lúdica, mas não tem essa profundidade que o simbolismo pode alcançar, de modo que não pode substituir a experiência de enfrentamento com a morte que o sagrado desenvolve.

A racionalidade não admite um critério fora da "manipulação" de seus próprios "discernimentos". E os especialistas em discernir sobre a arte também não chegam a constituir-se num grupo de pertença espiritual.

Se o que se busca é um movimento que abarque uma comunidade, um grupo amplo de pessoas, essa busca não estará no estabelecimento estético da arte moderna, que exige um comentário crítico para poder ser desfrutado como arte. O problema da arte moderna é que só sabemos que é arte depois de ter lido comentários que no-las revelam como tal. Não podemos desfrutá-la diretamente. Os destinatários de uma catedral gótica viviam esse espaço simultaneamente como uma experiência religiosa, mística, artística sem necessidade de explicação.

Não precisavam do suplemento ou da revista especializada.

Não necessitavam ler nenhum Cicerone que os explicasse. Ao contrário, hoje sabemos que para desfrutar de Joseph Wilson, ou esses artistas tão modernos, necessitamos que um experto nos venha dizer que realmente isso que estamos vendo é arte e não simplesmente uma "bronca".

Por outro lado, estamos buscando o último fio, o gesto vanguardista mais radical.

Mais que uma revelação de fundo de nosso destino como seres humanos, creio que tem uma dimensão de jogo, de experimento mais leviano. Hoje é difícil que alguém realmente creia que uma obra de arte está revelando um destino; revela antes uma forma de expressão, um caráter do artista, nada mais.

Seu ensaio também termina recorrendo à arte: um poema de William Butler Yeats, "A morte", e outro de Tadeusz Rózewicz, "Medo".

São poemas muito bonitos sobre medos muito profundos, muito arraigados. O medo não é algo mau a ser erradicado, mas, em muitas ocasiões, um princípio de prudência. Mas, que seja considerado o ponto de partida adequado para uma reflexão, isso já é outra coisa.

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