"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, abril 27, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 27/04/07

A 'vida', mas toda a vida. Artigo de Enrique Dussel

"Quando se fala da 'vida humana' como critério ético e princípio que fundamenta a pretensão de bondade de todo ato, não se deve reduzi-la a um aspecto da vida, mas usá-la em toda a sua universalidade como justificação da justiça", defende o filósofo argentino radicado no México Enrique Dussel. Expoente da Filosofia da Libertação, Dussel é autor de vasta obra, da qual destacamos Método para una filosofía de la liberación (Sígueme) e Ética Comunitária (Vozes). Segue o artigo publicado no jornal mexicano La Jornada, 21-04-2007. A tradução é do Cepat.

Temos escrito centenas de páginas provando - na minha Ética da Libertação - que a "vida humana" é o fundamento absoluto material (enquanto conteúdo) da pretensão de bondade de todo ato humano. Todo ato humano, máxima, instituição, sistema, pode ser considerado eticamente bom se afirma ou desenvolve algum aspecto da "vida humana". Mais, nenhum ato pode deixar de levar em conta esse princípio universal: ou, no longo prazo, afirma a vida ou mata de alguma maneira. Por ele criticamos os formalismos, os racionalismos, o cinismo da razão instrumental, por não incluírem entre as condições da moralidade a afirmação da "vida" e, fundamentalmente (sem antropocentrismos), a vida "humana".

Atualmente, há grupos que tomam também a vida como critério de moralidade, mas a tomam parcialmente, para solucionar um único caso (e de maneira igualmente unilateral). Chamarei a isso tecnicamente de "falácia reducionista": reduzem o tema a uma de suas possibilidades. Tomemos alguns exemplos para entender a questão.

Se uma honesta e exemplar - segundo temos lido em sua biografia - tecelã, pastora, mãe e avó de grande família, indígena, de sexo feminino, em sua idade de extrema dignidade por estar em sua senilidade - como diria Sêneca - é violentamente atacada, violada e morta por um grupo assassino, atacou-se a vida humana! O ato não poderá pretender ser bom; é perverso, injusto, reprovável.

Se os fundos de aposentadoria de milhões de trabalhadores ou empregados do Estado são postos em risco, que com milhares de horas de trabalho (de sua "vida" que se objetivaram em bens, incluindo contribuições mensais ao longo de anos) acumularam, deixando à discrição de um capital privado que poderia oportunamente declarar-se falido, é "matar" de alguma maneira todos esses homens e mulheres em sua "vida", porque a pobreza (toda pobreza é menos-vida, pior-vida, encurtar-vida) escurecerá sua morte antecipada, é atacar a vida humana!

Tentar privatizar um bem do povo - como o Pemex -, bem comum que permite usufruir uma riqueza que ajuda a melhorar a saúde, a educação, a felicidade e a longevidade do povo, é pôr em risco novamente a "vida" de milhões de homens e mulheres, e restringir que esses bens sejam usados por poucos mexicanos e, ou pior, por estrangeiros, é negar a vida humana!

Entregar a educação de nossos filhos no ensino público e os meios de comunicação (que são como uma segunda escola do povo) em mãos daqueles que tomam esses setores tão essenciais da "vida" humana para fins particulares espúrios ou de simples lucro econômico é, novamente, atacar a vida humana!

Obrigar uma jovem violada a dar à luz o filho, fruto de uma violação, não se ajudando na educação do filho nem se encarregando de tantos efeitos negativos que a jovem mãe sofre, atenta de muitas maneiras contra a "vida" e a dignidade da mãe.

Em primeiro lugar, porque o machismo de nosso meio não responsabiliza também pelo ato o "pai solteiro". Quem pensou, como acontece em países menos machistas e mais desenvolvidos, em impor pela lei a possibilidade de assinalar quem é o pai da criatura (mesmo que seja um jovem irresponsável), a fim de que não seja só a pobre moça a vítima de don Juan? O chamado "pai solteiro" (a expressão soa estranha, mas nos mostra a injustiça com que se acomete a "mãe solteira") deverá responsabilizar-se por todos os gastos e obrigações educativas de seu filho se sua mãe (mesmo que não fosse sua esposa) quer ter tal filho. Isto, pelo menos, responsabilizaria igualmente a parte masculina.

Em segundo lugar, porque toda pretensão de bondade de um ato exige um pleno e autônomo consenso, uma livre determinação do agente moral. Ninguém, nem o juiz nem instituição alguma, por mais sagrada que se pretenda (e menos a fundada por Jeshuá de Nazaré, que instituiu a inviolabilidade e última instância da consciência moral da pessoa), pode pretender suplantar ou decidir pelo ato ético.

A mulher e o varão (este último como co-responsável pela decisão que a mulher tomar, em cujo corpo se engendra o novo ser humano) que concebem um filho/a são, como dizemos, a última instância ética da decisão, e podem ser julgados por tê-la adotado, mas ninguém pode ocupar seu lugar. Pode aconselhá-los, pode-se pretender proclamar regras ou leis públicas, mas a instância subjetiva é a definitiva.

A vida da mãe vem em primeiro lugar; depois a do filho/a. É uma questão de vida ou morte, e encarar diretamente a morte de um dos dois estaria contra o princípio material (por seu conteúdo) da ética. Claro que, concretamente, os princípios podem entrar em conflito (a vida da mãe e do filho/a), e é preciso saber discernir entre eles, dar prioridade a um em detrimento do outro, na complexidade quase infinita dos casos empíricos. Não é possível aqui descrever a questão, mas apenas indicar os princípios. É um caso onde a "vida" novamente é critério de discernimento e fundamento de justificação dos atos.

Por isso, os movimentos que se dizem ser "pró-vida", o que em si mesmo é muito positivo, deveriam advertir que este princípio (a afirmação da vida humana) joga uma função fundamental em toda a ética, política, economia e em todos os campos práticos. Vejamos um exemplo econômico.

Karl Marx mostra que o trabalhador emprega muitas horas de sua "vida" para produzir mercadorias. O "valor de troca", para Marx, se expressava metaforicamente pelo sangue, como coágulo de sangue. O valor econômico das mercadorias, que aparece no mercado como preço, é objetivação de "vida" humana - para o pensamento semita, daquele Marx de família judaica, o "sangue" era a "vida", e por isso Feuerbach disse que a essência do cristianismo era "beber e comer": beber o sangue do Cordeiro e comer sua carne na Eucaristia, para escândalo de marxistas ortodoxos e cristãos conservadores.

O livro do Eclesiástico (Ben Sirac) da Bíblia (judaica e cristã): "Quem não paga o justo salário derrama sangue" (34, 27). Por exemplo, diante do recente aumento das tortilhas (alimento que reproduz a "vida"), ou seja, diante da necessidade de ter mais dinheiro (que é por sua vez objetivação de "vida", como todo valor de troca) para poder viver, o povo dos pobres "morre" de alguma maneira (quando não se sacia a "fome", como disse Ernst Bloch, o sujeito é atacado em sua sobrevivência pela injustiça). Espero que os movimentos "pró-vida" tenham colaborado com os que se manifestaram contra este aumento.

Concluindo, quando se fala da "vida humana" como critério ético e princípio que fundamenta a pretensão de bondade de todo ato, não se deve reduzi-la a um aspecto da vida, mas usá-la em toda a sua universalidade como justificação da justiça em economia, em política, em questões de gênero, e até no esporte: em todo ato humano.

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