"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, agosto 29, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 29/08/07

A necessidade de um projeto nacional. Entrevista especial com Ricardo Chagas Amorim

"Neoliberalismo à brasileira" é o tema de um artigo recente publicado pelo economista Ricardo Amorim. Analisando o impacto da implantação do projeto neoliberal no Brasil, nas últimas décadas, o economista, em entrevista, por telefone, à IHU On-Line, aponta para a necessidade de um projeto nacional.

Ricardo Chagas Amorim é economista pela USP, com mestrado e doutorado na mesma área pela Unicamp. “25 anos de estagnação? Brasil: desenvolvimento e dependência nos anos recentes”, foi tema da sua tese de doutrado sob a orientação de Marcio Pochmann. É professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É autor de “Classe média: desenvolvimento e crise” (São Paulo: Cortez Editora, 2006) e “Atlas da exclusão social no Brasil: dinâmica e manifestação territorial" (São Paulo: Editora Cortez, 2003), entre outros títulos.

Eis a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor vê a esquerda brasileira?

Ricardo Amorim – A esquerda no Brasil hoje é bastante problemática. Eu concordo com o professor Ruy Fausto quando ele comenta que nós caímos em duas situações um pouco extremadas. Por um lado, você acaba defendendo o PT um pouco acima de qualquer acusação, o que não é interessante para os próprios objetivos socialistas. Por outro lado, temos uma esquerda que desistiu, que acabou caminhando mais para a direita, em direção a partidos que não podem ser vistos como representantes de uma esquerda ativa e consistente. Desse modo, eu enxergo que a esquerda precisa repensar seus princípios, perceber o que pretende para o Brasil, apresentando um projeto mais sólido. É um país com a cara mais igualitária ou realmente é um país socialista? Qual é o desenvolvimento que nós queremos? Eu acho que a esquerda ainda não chegou nessa fase: a de se encontrar.

IHU On-Line - Para o senhor, o povo sabe o que é neoliberalismo?

Ricardo Amorim – Acho que não, pois ele não tem consciência do conceito. Eu acho que as pessoas entendem o que aconteceu nas últimas décadas no Brasil, basicamente, nos anos 1980, que são lembrados como os anos de crise, e nos anos anos 1990, que é quando o neoliberalismo foi construído no País. No entanto, as pessoas não saberiam dizer nem como esse neoliberalismo foi construído, sobretudo pelas elites, nem percebem as grandes forças políticas do País. Eu acho, aliás, que o povo não tem a menor consciência disso. Eu acho que isso, aos poucos, até está sendo esclarecido, debatido, mas é difícil de entender, pois a mídia não oferece muito espaço. A classe média, por exemplo, não enxerga que foi uma das maiores perdedoras dos últimos anos.

IHU On-Line – O que o senhor define como o neoliberalismo à brasileira?

Ricardo Amorim – Você faz reformas liberalizantes do ponto de vista econômico, ou seja, abre as fronteiras de mercadorias, de bens, a fronteira financeira, esvazia as funções do Estado como único órgão capaz de planejar, de fazer um projeto para o País. Você joga nas mãos do mercado as principais funções reguladoras da economia: mercado de trabalho, salários, preços, problemas de regulação – inclusive os problemas de questões éticas da propaganda – e não faz o contraponto. Qual é o contraponto? O liberalismo é conservador, exigindo que nós tenhamos um aumento da igualdade. Ele exige que o poder seja distribuído. O liberalismo conservador exige um patamar mínimo de igualdade para que você tenha um liberalismo formal funcionando, em que as partes prejudicadas consigam reagir ao que lhes faz mal. No Brasil, nós conseguimos apenas um liberalismo econômico e jogamos na mão do mercado todas as funções possíveis, fazendo com que aquele povo mais fraco (trabalhadores, pessoas de baixa renda) fique jogado no turbilhão do mercado, sem quaisquer possibilidades de reação, quase apodrecendo.

IHU On-Line - Como o senhor disse no artigo “Neoliberalismo à brasileira”, em 1980 a esperança que o Brasil tinha de ser o país do futuro virou fumaça. Para o senhor, Lula poderia começar a mudança, visando a um futuro melhor para o País, de que forma?

Ricardo Amorim – Realmente, o Brasil, naquele momento, perdeu aquela aura de país do futuro. De qualquer modo, como o próprio artigo comenta isso, foi algo que se espalhou pela própria mídia. Como é que o Lula pode renascer com um projeto novo? Nesse momento em que está à frente de um governo relativamente forte, Lula cria, junto ao ministro Mangabeira, um projeto de país, de nação, de futuro. Tenta trazer para dentro do governo possibilidades, sonhos, projetos, direções. Eu acho que criar projetos é uma das grandes coisas que faltam no País. Nós vivemos um niilismo completo, Sendo assim, o individualismo acaba reinando. Cada um tenta livrar os seus problemas, sobretudo nos centros urbanos extremamente populosos, como São Paulo. Você foge dessa situação, por exemplo, procurando um projeto que canalize industriais, exportadores, trabalhadores. Você pode criar coisas que no Brasil, em décadas passadas, foram fundamentais para dar ao governo uma base de apoio suficiente para realizar as reformas necessárias. Por exemplo, uma melhor distribuição de renda, uma reforma absoluta na educação, evitando que os direitos sejam saqueados, como a previdência que tanta gente critica hoje, mas na verdade é um foco de distribuição de renda. Além disso, existem coisas mais corriqueiras, como baixar as taxas de juros, melhorar a taxa de câmbio, fazer investimentos de infra-estrutura. É fundamental que nós tenhamos um projeto de país, como dizia Celso Furtado.

IHU On-Line – Qual é a comparação que o senhor faz da política exercida pelo presidente Lula e seus antecessores, FHC e Collor?

Ricardo Amorim – A política é bastante marcante em alguns pontos e em outros é impressionantemente igual. Se nós pegarmos do ponto de vista das grandes linhas de fluxo de recursos no País, os governos são muito parecidos. O governo atual continua fazendo o básico, que é manter as taxas de juros elevadas, atraindo capital estrangeiro e mantendo, portanto, a inflação controlada com o dólar barato. Com essa taxa de juros alta, também consegue refinanciar dívidas, mas, em compensação, precisa pagar juros que beiram os 40% da arrecadação do Estado e isso vai para as mãos de poucos, ou seja, dos mais ricos. Isso continua igual. O que revela mudanças? A primeira coisa é que o governo parou com aquelas privatizações absurdas, que pareciam mais uma saque ao patrimônio público do que uma estratégia em longo prazo de realização. Você também parece que está construindo aqui várias linhas de participação democrática da população dentro do governo. Todos os projetos mais importantes são discutidos, em primeiro lugar, por entidades da sociedade civil, o que é muito interessante. Outra coisa: o PAC, que o governo está tentando implementar, mas está difícil de ser aprovado pelo Congresso, é um projeto que começa a dar uma direção mais desenvolvimentista para o governo e menos preocupada com o equilíbrio de forças conservadoras no Brasil. Então, parece que o governo está amarrado de um lado, mas começa a dar alguns passos em outra direção. Isso é muito interessante. A nomeação do ministro Mangabeira pode ser um primeiro passo para nós conseguirmos um projeto de futuro, como falei anteriormente.

IHU On-Line – O senhor diz também que os ricos, antes de 1980, dependiam do planejamento e da indução econômica dos gastos do Estado para garantir seus lucros. Ainda hoje eles dependem do Estado? De que forma?

Ricardo Amorim – Dependem sim. O problema é que mudou a forma. Antes, eram necessários gastos do Estado para que as indústrias e as economias girassem num projeto acelerado e nós tivéssemos grandes taxas de acumulação de capital no Brasil. Então, o capital privado nacional e mesmo o capital privado estrangeiro necessitavam que o Estado arrecadasse de um lado, poupança forçada da população, e jogasse dentro da economia projetos de infra-estrutura etc. Isso foi na década de 1980 e depois aconteceu a virada. A partir dos anos 1990, essas elites voltaram a depender do Estado e construíram uma nova forma de acumular riquezas, só que agora não mais produtivas, pois dependem da dívida pública para acumular recursos. Cada vez mais, o Estado nos suga algo em torno de 35% e 37% em tributos para pagar essa dívida e repassa 40% em forma de juros para pagamento de serviço da dívida, o que é muito pouco em termos de Brasil. Esse pessoal alimenta fortemente uma indústria financeira bastante forte no Brasil. O que nós percebemos é que agora a forma de acumular riqueza no Brasil é cada vez mais financeira.

IHU On-Line – As elites se apropriam do Estado há muitos anos. Como o Governo Lula pode manter o que vinha fazendo FHC, como dizem alguns, se foi reeleito por dar ajuda aos desassistidos?

Ricardo Amorim – Nós temos a nossa fundação enquanto império quando Dom Pedro I declarou a independência do Brasil. É quando as elites se apropriam do brasileiro. Depois de virarmos um país independente, ainda assim os interesses das elites continuaram a ser prioritários para o governo. Com a industria do café, depois com a industrialização brasileira, por meio de Getúlio Vargas e Juscelino, vem se construindo uma indústria que depende do Estado para se capitalizar, ou seja, ela depende da transferência de recursos do Estado para realização das suas metas. Mas, quando nós chegamos à eleição do presidente Lula, depois de uma crise de quase 20 anos em que os trabalhadores só têm perdido para a inflação e para o neoliberalismo, a esperança era que a gente vencesse, que houvesse a renovação das estruturas de recursos e uma nova análise do fluxo de recursos no Brasil. No entanto, isso não aconteceu, e o primeiro mandato de Lula foi bastante conservador. Ainda assim, o governo Lula começou um movimento bastante interessante que levou a três coisas que chamaram muita atenção da população mais pobre: em primeiro lugar, foi o salário mínimo, que realmente aumentou de valor; em segundo lugar, ocorreram a reforma previdenciária, que não chega aos pés das promessas liberais propostas pelas elites (por isso, estão sendo se seguradas as reformas que poderiam prejudicar ainda mais as classes mais pobres); em terceiro lugar, os programas federais de transferência de renda são fundamentais, principalmente nas cidades mais pobres das regiões Norte e Nordeste, onde a população não tem emprego, renda, e dependem da aposentadoria do Governo Federal, enfim... E, ainda por cima, mesmo que devido a um movimento que não tem muito a ver com o governo, a economia do Nordeste cresceu. Então, essas quatro coisas, principalmente as três primeiras, levaram o governo a ter um forte apoio nas regiões mais pobres diferentemente do que poderíamos esperar no passado.

IHU On-Line - O Brasil precisa repetir políticas econômicas de outros países para dar certo?

Ricardo Amorim – Copiar idéias não tem nada de mais. Se forem boas, ótimo, por que não? O Brasil hoje, no entanto, é um país vanguardista, em comparação com outros países da América do Sul. O Brasil é o país que tem a melhor indústria, o melhor serviço, a economia mais forte, a agricultura mais moderna. Não passou pelo turbilhão pelo qual passou a Argentina e nem está vivenciando uma estagnação como o Uruguai. O Brasil tem perspectivas, possibilidades, um potencial mais forte. Isso nos dá características que nos tornam diferentes da maioria dos países que estão também na situação de Terceiro Mundo. Nós podemos pegar algumas idéias e adaptar à nossa realidade, sem dúvida. Isso não seria mal. Por outro lado, adaptar idéias não faz tanta falta. Precisamos de projetos que levem a uma distribuição de renda e a uma superação do que chamam de dependência, em que uma elite não reconhece o seu povo como um igual. A elite prefere se alinhar mais ao consumo e aos fluxos de capital estrangeiro do que à população do País, para a construção de um projeto nacional. É necessário que a gente construa essa solução política e isso não é copiável. Isso precisa ser construído na nossa luta política diária. Isso irá demorar ainda e, embora seja um caminho difícil, é absolutamente necessário.

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