"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, setembro 13, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 12/09/07

Os EUA, a bomba e a moeda. Artigo de José Luís Fiori

"Neste sistema mundial em que vivemos, toda decisão monetária da autoridade responsável por alguma "moeda internacional" sempre terá efeitos contraditórios e provocará danos que fortalecerão, no médio prazo, a vontade competidora dos seus concorrentes e de suas moedas", escreve José Luís Fiori em artigo publicado pelo jornal Valor, 12-09-2007.

Segundo o professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, "também se pode afirmar que, neste mesmo sistema, qualquer projeto de 'moeda mundial' será sempre uma fantasia ideológica ou uma estratégia defensiva, como no caso do 'Bancor', que foi proposto por John M. Keynes na Conferência de Bretton Woods, em 1944, e rejeitado pelos Estados Unidos. Harry D. White, o chefe da delegação americana, era 'keynesiano', mas não era idiota, nem estava num 'piquenique' acadêmico. Representava os interesses dos Estados Unidos e de sua moeda nacional vitoriosa, o dólar, que cumpriu o papel da 'bomba de Hiroshima', na construção hierárquica da nova ordem monetária internacional, depois de 1945".

Eis o artigo.

"O presidente do banco central norte-americano, Ben Bernanke, já definiu em Wyoming, no primeiro fim de semana de setembro, a sua posição frente à crise imobiliária que se alastra a partir dos Estados Unidos: não é responsabilidade do Fed proteger financiadoras e investidores das conseqüências de suas decisões, mas é obrigação de todo banco central impedir que as crises financeiras atinjam a economia real e impeçam o bom funcionamento dos mercados. A mesma posição defendida pelos presidentes dos BCs da Europa, Inglaterra, Japão, Austrália e Canadá, que se mantém, até o momento, cautelosos e receptivos, à espera da reunião mensal do Fed, no dia 18 de setembro, que decidirá a nova taxa de juros da economia norte-americana. Mas, apesar disto, o dilema do senhor Bernanke vem crescendo a cada hora que passa, sob pressão das forças políticas e econômicas internas dos Estados Unidos e dos demais governos que sustentam, neste momento, o crescimento da economia mundial. Uma coisa é certa: qualquer que seja a sua decisão final, ela terá conseqüências negativas, no médio e no longo prazo, dentro e fora dos Estados Unidos. E não é fácil de definir o que seja "menos pior", numa situação como esta: a reativação imediata dos mercados e da atividade econômica, dentro dos Estados Unidos, através da desvalorização do dólar, pode provocar, logo à frente, uma nova bolha e um aumento do protecionismo econômico que já vem sendo defendido pelos candidatos democratas à eleição presidencial de 2008; mas a proteção da moeda americana, através de uma recessão purgativa, pode escapar ao controle da autoridade monetária e ter um impacto mundial em cadeia, de duração e efeitos imprevisíveis. De qualquer forma, o presidente do Fed não é representante da humanidade, e tomará suas decisões a partir dos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Por isto mesmo, neste momento, o maior medo que ronda o mundo é que a decisão americana desencadeie uma "guerra de moedas", mesmo que ela não seja desejada por Bernanke e por nenhum dos BCs envolvidos com a crise. Mas apesar destas boas intenções, não é impossível que esta guerra venha a ser travada, porque no campo econômico, como no campo geopolítico, "a própria potência ganhadora é que costuma desestruturar sua situação hegemônica".

Por isso, do nosso ponto de vista, neste momento qualquer exercício especulativo sobre o futuro deve partir de uma conclusão ou premissa que está na contramão de todas as teorias ortodoxas e heterodoxas sobre o processo da globalização econômica. Do nosso ponto de vista, os grandes "surtos" de internacionalização econômica - como os que ocorreram, no fim do século XIX e XX - provocaram, ao mesmo tempo, grandes movimentos de fortalecimento da competição e do conflito entre as nações. Em momentos de aceleração da internacionalização capitalista, a tendência simultânea foi sempre de aprofundamento do conflito entre os interesses comerciais e financeiros das economias nacionais do sistema. Nestas situações, aumenta invariavelmente o protecionismo, e, em algum momento, a guerra comercial atinge e envolve as moedas nacionais e as políticas monetárias das principais potências econômicas do sistema, independente da posição teórica ou da ideologia econômica dos seus condutores e a despeito da cooperação que possa existir entre seus bancos centrais. No limite, esta competição e este conflito podem passar para o plano político-militar, como aconteceu no caso da hegemonia inglesa e do seu "padrão libra-ouro" que vigorou no século XIX e que terminou com a Primeira Guerra Mundial. Mas esta mesma contradição "implodiu" o "sistema dólar-ouro" e a hegemonia americana em 1973, sem que tivesse ocorrido uma guerra direta entre as grandes potências. E hoje há fortes indícios de que o novo "sistema dólar flexível" esteja sofrendo um stress provocado pelo mesmo tipo de contradição que poderá levar os EUA a uma nova ruptura com suas próprias regras e instituições.

Como explicar este paradoxo, de que a internacionalização econômica seja, ao mesmo tempo, a grande responsável pelo renascimento e fortalecimento periódico do nacionalismo econômico? Se olharmos para a história, veremos que o sistema econômico mundial, que se formou a partir da Europa, depois do século XVI, foi sempre constituído por Estados, economias e moedas que competiram e lutaram permanentemente entre si para aumentar a sua riqueza nacional, sem jamais abrir mão de sua identidade econômica nacional. Através da conquista de territórios econômicos supranacionais cada vez mais extensos, onde pudessem impor suas moedas e onde seus capitais financeiros pudessem usufruir de vantagens monopólicas. Por outro lado, sempre foram estes mesmos Estados e economias nacionais vencedores que lideraram a expansão capitalista, e que conseguiram ao mesmo tempo "internacionalizar" as suas moedas dentro de uma região ou à escala global, como no caso da libra e do dólar, nos séculos XIX e XX. O que chama a atenção é que, mesmo depois de sua internacionalização, a riqueza e os capitais destes países sempre tiveram que se expressar e realizar em alguma moeda nacional e só conseguiram se internacionalizar porque mantiveram seu vínculo com a sua própria moeda nacional, ou com a moeda nacional de algum Estado mais poderoso.

Deste ponto de vista, neste sistema mundial em que vivemos, toda decisão monetária da autoridade responsável por alguma "moeda internacional" sempre terá efeitos contraditórios e provocará danos que fortalecerão, no médio prazo, a vontade competidora dos seus concorrentes e de suas moedas. Por outro lado, também se pode afirmar que, neste mesmo sistema, qualquer projeto de "moeda mundial" será sempre uma fantasia ideológica ou uma estratégia defensiva, como no caso do "Bancor", que foi proposto por John M. Keynes na Conferência de Bretton Woods, em 1944, e rejeitado pelos Estados Unidos. Harry D. White, o chefe da delegação americana, era "keynesiano", mas não era idiota, nem estava num "piquenique" acadêmico. Representava os interesses dos Estados Unidos e de sua moeda nacional vitoriosa, o dólar, que cumpriu o papel da "bomba de Hiroshima", na construção hierárquica da nova ordem monetária internacional, depois de 1945."

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