"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, setembro 03, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 31/08/07

Como fazer os Estados Unidos gozarem

A partir do caso do massacre de Virgínia Tech, em sua relação com a “insegurança, o desamparo e o disciplinamento” que caracterizariam a sociedade norte-americana, o autor deste ensaio adverte que “os jovens assassinos, com seu ‘reality’ violento, fazem gozar o grande Outro dos Estados Unidos”. Este texto de Alejandro del Carril foi extraído do trabalho “El Otro que sí existe”, publicado em julho na revista Psyché Navegante. A presente versão foi publicada no Página/12, 28-07-2007. A tradução é do Cepat.

A matança feita por um estudante na Universidade Virgínia Tech, em 16 de abril deste ano, pode servir para analisar algumas características do grande Outro da época que nos toca viver. Essa matança se inscreve numa série que vem se sucedendo nos últimos anos com epicentro nos Estados Unidos. Mas não só ali. De fato, uma aconteceu em nosso país. De qualquer modo, proponho analisar o que acontece nos Estados Unidos porque esse país é onde mais se multiplicou este fenômeno, que não carece de relação com o fato de que esse país representa o paradigma de sociedade em que se considera a civilização mais desenvolvida da cultura ocidental judaico-cristã; rege ali, como modelo socioeconômico, o que poderíamos chamar de democracia tecnocapitalista.

O homicida em questão era um jovem oriundo da Coréia do Sul, cuja família havia chegado aos Estados Unidos quando ele tinha oito anos de idade. Um mês antes do massacre havia comprado duas pistolas; havia filmado películas em que tentava dar conta de seus motivos para a matança e enviou o filme por correio a uma importante cadeia de televisão. Depois de matar 32 pessoas e ferir outras 19, suicidou-se.

O presidente George W. Bush se declarou “horrorizado” e disse: “As escolas deveriam ser lugares de segurança, refúgio e aprendizagem. Quando esse refúgio é violado, o impacto se sente em cada sala norte-americana e cada comunidade norte-americana”. O horror do presidente é produto da constatação de algo que a série de matanças colocou sobre o tapete: o sistema educativo norte-americano produz insegurança, desamparo e sérias dificuldades para a aprendizagem. O que Bush disse, sem saber que o disse, é que o sistema educativo norte-americano é perigoso para seus próprios alunos.

Tomemos como exemplo algumas declarações do pediatra Fernando Polack, que mora nos Estados Unidos (entrevistado por José Ioskyn na revista eletrônica Psyché Navegante, n. 70): “A experiência mais difícil para os argentinos nos Estados Unidos é ser pai. A diferença de valores e costumes coloca em xeque as convicções mais sólidas e, se algo é para mim um orgulho, é ter sustentado os meus filhos através de anos duríssimos em Maryland. Digo isto porque o mais fácil é ceder, ser ‘convertido’, e ver os resultados imediatos dessa manobra na aceitação social ou escolar. Passar de rebelde a bobo bom. Há muitos argentinos cujos filhos passaram anos em escolas de educação especial só por não se comportarem ‘tão bem’ como deviam nas escolas norte-americanas. E os vi agradecerem essa decisão, porque finalmente deixavam de suspender o filho no jardim de infância, de telefonar constantemente para o trabalho para que fossem imediatamente buscá-lo porque estava chorando, de colocar a ‘falta de adaptação’ de seus filhos ao sistema. Há um sorriso impessoal, terrível, na cultura norte-americana”.

Continua Polack: “Nos Estados Unidos, o menino deve transformar-se num adulto desde que entra no jardim de infância. Se pertence aos setores mais cultos e ainda ‘progres’, entrará desde os três anos numa carreira para chegar a Harvard; no resto da sociedade, a carreira será para ser um good citizen. Conheço gente que contratou ‘assessores’ para que seu filho de três anos esteja, aos 18, nas melhores condições para competir por um lugar em Harvard, Hopkins ou Yale. Conheço gente que contratou uma instrutora chinesa para suas filhas de seis, quatro e dois anos, além de mandá-las pela tarde a um programa de imersão em linguagem chinesa para prepará-las para comerciarem com a China no futuro. Todas estas coisas não são nenhuma brincadeira quando se vive ali. O menino é um receptáculo vazio que deve ser enchido de informações. Esse é o dever dos pais. Uma hora perdida em jogo é uma hora a menos de informação. Os ingressos no primário se dão com aplicação prévia de entrevistas em que o menino se ostenta nomeando as luas de Júpiter ou os vulcões da Ásia, e cartas de recomendação fechadas escritas pelas professoras do jardim. Logo a escola publica um ranking de crianças de seis anos: aquela que ganhar é um winner e aquela que perder, um loser. E o loser sabe que as coisas são assim, porque “este é o sistema que nos fez o melhor país do mundo”.

“De qualquer modo – assinala Polack –, essa carreira para o êxito durante os primeiros anos não se baseia no rendimento escolar, mas na observação das regras mais estritas de comportamento: a disciplina é tudo na primeira educação americana. Um absolutismo moral rege a educação americana desde os anos iniciais, e isto é particularmente difícil para os argentinos, que viemos de uma concepção muito cínica da moral concebida nesses termos. De fato, os meninos argentinos costumam receber um diagnóstico condutista de ‘sensórios’, ou seja, meninos que necessitam muito estímulo tátil, dado que abraçam os seus companheiros, os seus pais e até às vezes as professoras. Isso tem tratamento: é preciso comprar uma escova grossa e escovar as pernas da criança em sentido longitudinal. Não é fácil resistir à pressão escolar de escovar os teus meninos: quem se negar a fazê-lo com a estúpida desculpa de que ‘nós, na Argentina, nos abraçamos muito’, deverá enfrentar o subtexto que diz: “Aqui teu filho é um sensório e, se não queres problemas conosco na escola, compre a escova, inadaptado’”.

Como disse Bush, sem dar-se conta do que dizia, ali o importante não é dar segurança, refúgio ou ensino. O primordial é disciplinar a criança, torná-la adulta logo, tirar-lhe qualquer indício desejante para adaptá-la violentamente aos ideais de uma cultura que se pensa vitoriosa, sem falhas. O Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM IV), publicado pela Sociedade de Psiquiatras dos Estados Unidos, na escala que pontua a atividade global, assinala entre 91 e 100 pontos os que cumprem com o seguinte critério: “Atividade satisfatória numa ampla gama de atividades, nunca parece superado pelos problemas de sua vida, é valorizado pelos demais por causa de suas abundantes qualidades positivas. Sem sintomas”.

O critério do manual supõe uma pessoa perfeita, sem falhas, ainda que a falha apareça na letra do texto quando diz que a pessoa nunca parece superada pelos problemas de sua vida: o imperativo do manual é a aparência da perfeição, não a perfeição. A cultura tem falhas, mas o sujeito deve simular que não as têm. É preciso sacrificar os gozos singulares e o desejo a fim de sustentar uma cultura que parece não estar habitada, como toda cultura, pelo mal-estar. E isto é coerente com o critério “objetivo” que esse manual propõe para localizar o que denomina de “transtornos”: a margem de separação que tenham respeito pelo que se pode esperar na cultura a que o sujeito pertence.

O exercício da democracia liberal-capitalista, que garante os direitos individuais, é diretamente proporcional ao disciplinamento da sociedade. E esta disciplina não é implantada a partir da cúpula do poder, mas circula em múltiplas direções, sustentada pela maioria da população e transmitida às crianças que ingressam na escola.

Retomando a matança na Universidade de Virgínia: o autor era sul-coreano, ou seja, provinha de um país que se dividiu por ocasião de uma intervenção militar norte-americana que durou três anos; uma cultura alheia agredida militarmente pelos Estados Unidos. Os autores da matança de Columbine, em 1999, que foram acusados de serem nazistas porque costumavam ver documentários sobre a Alemanha nazista: também aqui aparece a referência a uma cultura alheia, que esteve em guerra com os Estados Unidos. Em ambos os casos se apresentam significantes estranhos à cultura norte-americana; que, para o senso comum, devedor do registro imaginário, se apresentam como totalmente opostos: totalitarismo nazista versos liberdade democrática; Oriente versos Ocidente. Acrescento que a família do estudante Cho Seung-Hui é descrita nos meios de comunicação como muito tranqüila e muito trabalhadora: perfeitamente adaptada. Ele, por sua vez, costumava assinar com um ponto de interrogação, talvez numa tímida tentativa de interrogar essa densidade cultural na qual, estando imerso, se sentia tão alheio; um puro enigma, incapaz de dar algum sentido à sua existência.

Arrisco a hipótese de que estes jovens assassinos costumam ser psicóticos mais ou menos compensados até o começo de algo: isto os converte nos elos mais frágeis da cadeia social; costumam ter sérias dificuldades para sustentar o laço social com seus pares. Não conseguem deixar de se sentir absolutamente estranhos à cultura em que estão imersos, e manifestam isto se identificando com significantes de outras culturas – não se trata de uma questão ideológica. A repetição das matanças nas instituições paradigmáticas da cultura norte-americana dá a pensar que estes sujeitos psicóticos, por isso mesmo muito mais sensíveis que outros ao que acontece ao seu redor, reagem tentando tocar no real a cultura que lhes é apresentada como consistente em termos absolutos. Matar os filhos diletos da cultura pode ser uma tentativa de deixar o grande Outro em falta.

Convém ter em conta aquele detalhe que implica outro dos elementos de máxima importância na cultura atual, como o são os meios de comunicação de massas: o jovem coreano se preocupou minuciosamente em se filmar e fazer chegar os filmes à televisão. Estava se dirigindo a um dos principais representantes do grande Outro. Sabia que podia fazer a televisão gozar com um reality violento. Matando e suicidando-se, podia fazer gozar o grande Outro com seus restos. “Sou uma merda”, foi uma das coisas que disse em suas filmagens. Fazendo e fazendo-se merda conseguiu inscrever sua marca na inconsistência do Outro. Suas imagens e palavras foram refletidas pelos meios de comunicação mais importantes de todo o globo, até conseguir dizer ao presidente da maior potência do mundo que em seu país, como em todos, a cultura está fracassada, que as escolas não são o que deveriam ser. Um país que sustenta a paz interior exportando a violência a todos os rincões do planeta, que sustenta a compacidade cultural atacando as culturas estranhas, recebe destes pequenos marginais superadaptados o retorno, no real, do que foi expulso no simbólico.

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