"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, abril 28, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/08

Da fé no mercado à fé no Estado. Um artigo de Ulrich Beck

Até mesmo os neoliberais mais radicais suplicam agora o intervencionismo do Estado na economia e mendigam as doações dos contribuintes. Em outros tempos, quando havia lucros, consideravam isso diabólico. Ulrich Beck é sociólogo e professor da Universidade de Munique e da London School of Economics. El País, 15-04-2008. A tradução é do Cepat.

Primeiro ato do livro A sociedade do risco global: Chernobil. Segundo ato: a ameaça da catástrofe climática. Terceiro ato: o 11-S. E no quarto ato se abre o telão: os riscos financeiros globais. Entram na cena os neoliberais do núcleo duro, aqueles que, diante do perigo se converteram de repente na fé no mercado à fé no Estado. Agora rezam, mendigam e suplicam para ganharem a misericórdia daquelas intervenções do Estado e das bilionárias doações dos contribuintes que, enquanto os lucros brotavam, consideravam obra do diabo. Que fantástica não seria essa comédia dos neoconvertidos, hoje interpretada no cenário mundial, se não houvesse o amargo desgosto da realidade. Porque não são os trabalhadores, nem os social-democratas ou os comunistas, nem os pobres ou os beneficiados com as ajudas sociais que reclamam a intervenção do Estado para salvar a economia de si mesma: são os chefes de bancos e os diretores da economia mundial.

Para começar, John Lipsky, um dos dirigentes do Fundo Monetário Internacional e reconhecido fundamentalista do livre mercado, exorta em claro tom alarmista os governos dos Estados-membros a fazerem exatamente o contrário do que esta instituição havia pregado até aqui, isto é, evitar a derrubada da economia mundial com programas de gastos massivos. Como é sabido, o otimismo é inerente ao mundo dos negócios. Quando inclusive ele fala que os políticos teriam que “pensar o impensável” e preparar-se para isso, fica claro a gravidade da situação.

O fantasma do “impensável”, que agora é uma ameaça em todas as partes, deve evidentemente despertar a memória das crises mundiais dos séculos passados, e salvar os bancos do abismo. Entra em cena Josef Ackermann, chefe do Deutsche Bank, que também confessa não acreditar mais nas forças salvadoras do mercado. Ao mesmo tempo, se retrata de sua abjuração e afirma que não tem dúvidas sobre a estabilidade do sistema financeiro. Isso soa tranqüilizador. Ou não? Se o distinguido economista fosse sincero, teria que admitir duas coisas: que a história desta crise é uma história do fracasso do mercado, e que em todas as partes reina o desconcerto, ou melhor, a brilhante ignorância.

O mercado fracassou porque os riscos incalculáveis do crédito imobiliário e de outros empréstimos foram ocultados intencionalmente, com a esperança de que sua diversificação e ocultação acabaria se reduzindo. Contudo, agora se demonstra que esta estratégia de minimização se transformou no oposto: numa estratégia de maximização e extensão de riscos cujo alcance é incalculável. De repente, o vírus do risco se encontra em todos os lugares, ou pelo menos, sua expectativa. Como num banho ácido, o medo dissolve a confiança, o que potencializa os riscos e provoca, numa reação em cadeia, um autobloqueio do sistema financeiro. Ninguém tem melhores certezas. Mas, agora se sabe em todas as partes que já não funciona sem o Estado.

Na realidade, o que significa risco? Não se deve confundir risco com catástrofe. Risco significa a antecipação da catástrofe. Os riscos prefiguram uma situação global, o que (ainda) não se dá. Ao passo que catástrofe tem lugar num espaço, num tempo e numa sociedade determinados, a antecipação da catástrofe não conhece nenhuma delimitação desta índole. Mas, ao mesmo tempo, pode-se converter naquilo que desencadeia a catástrofe, sempre no caso dos riscos financeiros globais.

É certo que os riscos e as crises econômicas são tão antigos quanto os próprios mercados. E, pelo menos desde a crise econômica mundial de 1929, sabemos que os colapsos financeiros podem derrubar sistemas políticos, como a República de Weimar, na Alemanha. Mas o que é mais surpreendente é que as instituições de Bretton-Woods, fundadas depois da Segunda Guerra Mundial, que foram pensadas como resposta política aos riscos econômicos globais (e cujo funcionamento foi uma das claves para que o Estado de bem-estar social fosse implantado na Europa), tenham sido dissolvidas sistematicamente a partir dos anos 70 e substituídas por sucessivas soluções ad hoc. A partir de então estamos confrontados com a situação paradoxal de que os mercados estão mais liberalizados e globalizados que antes, mas as instituições globais, que controlam sua atuação, têm que aceitar drásticas perdas de poder.

Como foi demonstrado com a “crise asiática”, além da “crise russa” e da “crise argentina”, e agora também com os primeiros sintomas da “crise americana”, as maiores vítimas das catástrofes financeiras são as classes médias. Ondas de falências e de desemprego sacudiram estas regiões. Os investidores ocidentais e os comentaristas em geral observam as “crises financeiras” somente sob a perspectiva das possíveis ameaças para os mercados financeiros. Mas as crises globais não podem “se enquadrar” dentro do subsistema econômico, assim como as crises ecológicas globais, já que tendem antes a gerar convulsões sociais e a desencadear riscos ou colapsos políticos. Uma reação em cadeia destas características durante a “crise asiática” desestabilizou Estados inteiros, ao mesmo tempo em que provocou ações violentas contra minorais convertidas em cabeças de turco.

E o que até pouco tempo atrás ainda era impensável se perfila agora como uma possibilidade real: a lei de ferro da globalização do livre mercado ameaça desintegrar-se, e sua ideologia entrar em colapso. Em todo o mundo, não só na América do Sul, mas também no mundo árabe e cada vez mais na Europa e inclusive na América do Norte, os políticos dão passos contra a globalização. Redescobriu-se o protecionismo. Alguns reclamam novas instituições supranacionais para controlar os fluxos financeiros globais, ao passo que outros advogam por sistemas de seguro supranacionais ou por uma renovação das instituições e regimes internacionais. A conseqüência é que a era da ideologia do livre mercado é apenas uma lembrança longínqua e que o seu contrário se fez realidade: a politização da economia global de livre mercado.

Existem surpreendentes paralelismos entre a catástrofe nuclear de Chernobyl, a crise financeira asiática e a ameaça de colapso da economia financeira. Diante dos riscos globais, os métodos tradicionais de controle e contenção mostram-se ineficazes. E ao mesmo tempo, se põe de manifesto o potencial destrutivo nos âmbitos social e político dos riscos que o mercado global entranha. Milhões de desempregados e pobres não podem ser compensados financeiramente. Caem governos e há ameaças de guerra civil. Quando os riscos são percebidos, a questão da responsabilidade adquire relevância pública.

Muitos problemas, como, por exemplo, a regulação do mercado de divisas, assim como o enfrentamento dos riscos ecológicos, não podem ser resolvidos sem uma ação coletiva da qual participem muitos países e grupos. Nem a mais liberal de todas as economias funciona sem coordenadas macroeconômicas.

As elites econômicas nacionais e globais (os donos dos bancos, os ministros de finanças, os diretores das grandes empresas e as organizações econômicas mundiais) não deveriam se surpreender com o fato de que a opinião pública reaja com uma mistura de cólera, incompreensão e malícia. Mas o convencimento certeiro de que, numa crise, o Estado acabará por salvá-los, permite aos bancos e às empresas financeiras fazer negócios em tempos de bonança sem muita consciência dos riscos.

Não tem nada a ver com inveja social lembrar que os banqueiros bem-sucedidos ganham somas milionárias por ano, e os bem-sucedidos chefes de empresas de capital de risco e dos fundos especulativos ainda mais. Nos tempos atuais, os banqueiros atuam como os advogados defensores do livre comércio. Se o castelo de cartas da especulação ameaça cair, os bancos centrais e os contribuintes devem salvá-lo. Ao Estado só lhe resta fazer pelo interesse comum o que sempre lhe reprovaram aqueles que agora o reclamam: pôr fim ao fracasso do mercado mediante uma regulação supranacional.

Nenhum comentário: