"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Instituto Humanitas Unisinos - 07/12/06

Um balanço da nacionalização na Bolívia.
Entrevista com Andrés Soliz Rada, ex-ministro da Energia

“Marco Aurélio Garcia, assessor de Lula, conseguiu o compromisso do Vice-Presidente Álvaro García Linera de “congelar” a Resolução Ministerial 207, pela qual a YPFB, em cumprimento do Decreto da Nacionalização, tomava o controle da comercialização do petróleo cru que entra nas refinarias da Petrobrás e a propriedade dos produtos refinados”, explica Andrés Soliz Rada, ex-ministro boliviano de Energia do governo Evo Morales.
Segundo ele, “o Vice-Presidente me consultou sobre o tema depois de ter assumido o compromisso. Em conseqüência, estava obrigado a ditar outra Resolução Ministerial, anulando a anterior, o que ia contra a minha consciência, razão pela qual apresentei a minha renúncia irrevogável”.
A entrevista foi concedida ao jornal La Prensa de La Paz e reproduzida na página La Haine, 5-12-2006. A tradução e a síntese da entrevista foi feita pelo Cepat.

Que avaliação faz dos avanços do setor de hidrocarbonetos neste ano?
Positiva, mas com sérias questões para o futuro. A conquista principal foi a nacionalização dos hidrocarbonetos, em 1º de maio, que resgatou a dignidade nacional. Seu objetivo central consistiu na recuperação da propriedade, na posse e controle absoluto dos hidrocarbonetos, para o que a YPFB [Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos] assume, em nome do Estado, a propriedade do gás e do petróleo, defendendo as condições, volumes e preços para os mercados interno e externo e para a sua industrialização. O desafio reside em executar estes postulados e em evitar que permaneçam simples enunciados.
Na minha gestão, que foi de 23 de janeiro a 14 de setembro, se priorizou a elaboração do balanço energético nacional, paralisado desde 1996, ano em que se liquidou a YPFB. Postulou-se a mudança de matriz energética a fim de substituir ao máximo o consumo interno de gasolina, diesel e GLP, por gás natural. Os produtos substituídos devem ser exportados, para gerar divisas.
A nova política de hidrocarbonetos considera estratégica a construção de gasodutos que interliguem os usuários de gás de todo o país.
Em aplicação do Decreto de Nacionalização, ditou-se a Resolução Ministerial 202, de 25-08-06, que dispôs que a Petrobrás, Andina e Total paguem mensalmente 32 milhões de dólares adicionais pela participação adicional de 50% a 82% nos mega-campos San Alberto e Sábalo. As petroleiras realizaram o pagamento, o que significa que acataram a nacionalização. Com o primeiro dos cinco desembolsos, o Presidente pagou um bônus aos alunos do País.
O Ministério impulsionou o Decreto que transfere à YPFB, a título gratuito, as ações do Fundo de Capitalização Coletiva (FCC) das empresas Chaco, Andina e Transredes, que detinham as AFP, sem nenhum contrato. O contrato anterior permitiu que a YPFB designe dois representantes por minoria e um síndico nas diretórias dessas empresas. Na discussão do Decreto de Nacionalização propusemos expropriar as ações que permitem à YPFB controlar 50% mais um das ações das citadas companhias, assim como das refinarias da Petrobrás e das plantas de armazenamento e dutos da CLHB [Compañía Logística de Hidrocarburos Boliviana]. Esta proposta não foi aceita pela equipe de hidrocarbonetos do governo.
Em cumprimento do Decreto de Nacionalização se desenvolveram as auditorias dos campos petroleiros, a fim de determinar os verdadeiros investimentos e amortizações das empresas, que deveriam servir de base para a assinatura de novos contratos. Assinou-se o convênio de ampliação da venda de gás à Argentina, ao preço base de cinco dólares o milhão de BTU. Na negociação, a Argentina se comprometeu a financiar um crédito para instalar em Yacuiba (fronteira boliviana), uma usina de separação dos componentes liquidificáveis de todo o gás exportável, que será de propriedade da Bolívia e que tem o direito de comercializar os produtos (etano, gasolinas naturais, GLP e outros) em nosso exclusivo benefício.
Elevamos à categoria de juízo de responsabilidades o processo iniciado por Juan Carlos Virreyra (ex-delegado para a Capitalização) contra os responsáveis da entrada criminosa da Enron no país. Foi nomeado a Diretoria da YPFB e foi elaborado o projeto de Lei de Refundação da YPFB, como empresa corporativa, capaz de emitir bônus nas bolsas de valores, o que lhe permitirá contar com valiosos recursos para a industrialização do gás. Estimamos que Yacimientos deve funcionar com os parâmetros que, em 1990, esboçamos no projeto de lei de investigação de fortunas, para garantir sua transparência.

A YPFB assinou contratos, recupera a propriedade dos hidrocarbonetos e há mais ingressos mas ainda não poderá operar em toda a cadeia. Quanto tempo requer para isso?
Existem graves contradições nos contratos. Enquanto o contrato marco (cláusula 4-3) determina a Bolívia como proprietária de seus hidrocarbonetos e estabelece a vigência de contratos de operação, o anexo “f” prescreve que as petroleiras têm direito a participações, próprias de contratos de produção compartilhada. O anexo “d”, por sua fez, ao definir os “custos recuperáveis”, permite que a YPFB assuma para si riscos de investimentos que deveriam ser assumidos exclusivamente pelas companhias.
Por estes anexos, a Petrobrás diz que assinou contratos de produção compartilhada que, segundo ela, lhe permitem incluir em seus balanços o valor das reservas que explora. Com esse argumento, as companhias inscreverão na Bolsa os valores das reservas de gás e petróleo, cujo valor ultrapassa os 200 bilhões de dólares, com o que a nacionalização terá ficado totalmente desvirtuada. Pedi ao Parlamento que ordene à YPFB esclarecer este ponto nos contratos, como acontece na Venezuela. Infelizmente, não fui ouvido.
As petroleiras conseguiram que se reconheçam seus delirantes investimentos que dizem ter realizado e as irrisórias amortizações que indicam ter obtido no país. Com essas cifras se elaboram as fórmulas de participações da YPFB e das petroleiras. As companhias dizem ter investido 3,5 bilhões de dólares, que na realidade não chegam nem sequer a 800 milhões de dólares, segundo resultados preliminares das auditorias. De acordo com o Decreto de Nacionalização devia ter-se tomado em conta, como base dos contratos, os dados das auditorias e não a declaração das empresas, respaldados no Decreto 24335, de 19-07-66, de Gonzalo Sánchez de Lozada.
Para cúmulo da situação, a YPFB, segundo o Anexo “F” dos contratos assinados com a Chaco, não receberá participações adicionais nos próximos quatro anos, a fim de que a empresa recupere a totalidade de seus supostos investimentos. Nos campos de Colpa e Caranda, a Petrobrás disse ter investido, aplicando o regulamento “gonista” de Unidades de Trabalho de Exploração (UTES), 394 milhões de dólares. As auditorias determinaram que tal investimento foi de apenas 21 milhões de dólares. A diferença de cálculo será definida por um perito, cuja decisão levará anos para ser conhecida.
A petroleira estatal ainda não tem maioria nas petroleiras capitalizadas. Você colocou um modelo de expropriação através de um mecanismo legal. O Governo observou a proposta? Por que ela não foi aplicada?
Neste ponto, o Presidente foi mal assessorado em sua campanha eleitoral. Foi lhe dito que era possível nacionalizar sem expropriar ações, o que o levou a não querer aplicar o artigo 22 da Constituição, que autoriza as expropriações mediante pagamento prévio das indenizações correspondentes. Em cumprimento deste artigo, sugerimos que no Decreto de Nacionalização se determine a expropriação das ações necessárias para que a YPFB controle 50% mais um das ações da Chaco, Andina, Transredes, das refinarias da Petrobrás e da CLHB.
Para cumprir a medida, propusemos a abertura de uma conta no Banco Central denominada “Para o pagamento de indenizações às empresas atingidas pela nacionalização”, acrescentando que tais pagamentos deviam ser realizados depois das conciliações de contas pertinentes. E como a Chaco, Transredes e Petrobrás cometeram delitos de contrabando, evasão impositiva, fraudes e outros mais, o país teria conseguido seu objetivo sem desembolso algum e a YPFB teria tomado o controle imediato de todas elas. Como a minha iniciativa não teve apoio, seguimos em minoria nas diretorias das companhias citadas.

O Governo brasileiro impediu que a Bolívia aplicasse a Resolução 207/2006, que você assinou, para que a YPFB assuma o controle total da comercialização dos hidrocarbonetos e das refinarias?
Marco Aurélio García, assessor de Lula, conseguiu o compromisso do Vice-Presidente Álvaro García Linera de “congelar” a Resolução Ministerial 207, pela qual a YPFB, em cumprimento do Decreto da Nacionalização, tomava o controle da comercialização do petróleo cru que entra nas refinarias da Petrobrás e a propriedade dos produtos refinados. Assim, as refinarias da Petrobrás deixavam de ser comercializadoras de produtos, dentro e fora do país, convertendo-se em prestadoras de serviços.
O Vice-Presidente me consultou sobre o tema depois de ter assumido o compromisso. Em conseqüência, estava obrigado a ditar outra Resolução Ministerial, anulando a anterior, o que ia contra a minha consciência, razão pela qual apresentei a minha renúncia irrevogável. O porta-voz do presidente disse que a R. M. 207 foi ditada sem consulta e o assessor presidencial, Walter Chávez, me qualificou de “arbitrário”.
Isso é falso, já que a Resolução Ministerial foi do conhecimento do Presidente, do Vice-Presidente da República, de vários Ministros e do Presidente da YPFB com mais de uma semana de antecedência. No Brasil, se afirmou que se haviam confiscado as suas refinarias, o que também não aconteceu. Se se aplicasse a Resolução, a transferência de 50% mais um das ações das refinarias da Petrobrás, a YPFB teria sido muito mais barata para o país. Finalmente, foi dito que a medida prejudicaria a reeleição de Lula. Por que a Resolução 207 segue sem ser aplicada, se a eleição já aconteceu faz semanas?

Num novo contrato, a Petrobrás aceitou ceder a comercialização à YPFB, e não houve avanços sobre a compra das refinarias nem sobre a definição do preço. O que você sugere para enfrentar essa questão?
O Presidente demonstrou valentia e decisão ao expulsar a empresa brasileira EBX, que pretendia instalar uma siderúrgica à base de carvão vegetal. Necessita-se da mesma valentia e decisão para negociar com a Petrobrás, em condições de equidade e de igualdade.

O Governo encerra sua gestão com êxitos, mas sem ter esclarecido irregularidades como o contrato Hedging da Petrobrás e da Andina e que provocou danos ao país, ou a falta de investimentos em que supostamente incorreu a Repsol YPF, a exploração do campo San Alberto e Itaú como se fossem um entre outros. No que vão dar esses casos?
A fraude de 171 milhões de dólares cometida pela Andina e a Petrobrás, ao comercializar gás entre si (e às costas da YPFB) a preços congelados, o contrabando e a evasão impositiva cometidos pela Repsol, Andina, Chaco e Petrobrás são delitos que estão sendo julgados nos tribunais do país. Propus, sem resultados, que os contratos com estas empresas fossem provisórios, até que se ditem as sentenças pertinentes.

Que outros assuntos pendentes de importância ficaram sem solução este ano?
A necessidade de fixar um novo preço para a venda de gás ao Brasil, que não pode ser inferior ao pago pela Argentina, e avançar nos projetos de industrialização, na construção de grandes gasodutos do país e na instalação do gás doméstico para todos os bolivianos.

A promessa “gás para os bolivianos” não foi cumprida. Qual é o desafio para o próximo ano?
Aplicar em toda a sua extensão o Decreto de Nacionalização, a fim de evitar a frustração do povo boliviano. A Bolívia vive um processo de transformações históricas. Me sinto parte desse processo. Minhas críticas, no setor estratégico dos hidrocarbonetos, pretendem aprofundá-lo, já que não estão nem contra ele nem à sua margem.

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