"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 26/02/07

Quando os jogos eram uma cerimônia religiosa e simbólica. O campo de futebol segundo Marc Augé

Na Antigüidade: no mundo clássico o estádio era um lugar sagrado, uma espécie de zona extraterritorial onde vigoravam as regras da competição leal. Hoje: o ritual de uma partida se transformou numa ocasião para passar da violência simbólica à violência real. Marc Augé, antropólogo, reflete sobre a violência nos estádios de futebol na contemporaneidade em artigo publicado no jornal La Repubblica, 6-02-2007.

Eis o artigo.

"No mundo clássico, o estádio sempre foi um lugar de competição, mas também de paz. Desde os tempos de Olímpia, de fato, os jogos implicavam uma trégua entre as diversas cidades gregas. O estádio era um lugar sagrado, uma espécie de zona extraterritorial onde vigoravam as regras da competição nobre e leal. Regras que permitiam aos inimigos, que se respeitavam reciprocamente, confrontarem-se no terreno do jogo. Com o tempo, porém, o estádio sofreu uma evolução, tornando-se uma arena, um lugar dominado sobretudo pelo espetáculo e pelo confronto. O público encontrava-se ali para assistir a uma luta, da qual saíam vencedores e vencidos. Trata-se de uma luta simbólica que, através de uma forma de catarse coletiva, libera os espectadores das tensões reais. Por muito tempo esta catarse, embora não isenta de momentos dramáticos, conservou uma conotação alegre, priva de toda violência real. Recordo-me, de fato que, quando, como criança, ia com meu pai assistir às partidas da nacional francesa, o estádio era sempre ocasião de uma festa coletiva, um momento de emoções compartilhadas. Precisamente por isto, a cerimônia que se celebra no estádio recorda as cerimônias religiosas. Trata-se de uma religião imanente que, embora sendo sem transcendência e sem deus, dá lugar a um rito coletivo que conserva a ambivalência da religião. De fato, como a religião, a cerimônia esportiva permite que as pessoas se encontrem juntas num mesmo culto, para neutralizar os conflitos e celebrar a paz, mas, como a religião, ela pode estar na origem de conflitos capazes de degenerarem em verdadeiras e próprias guerras. Infelizmente, hoje esta segunda possibilidade prevalece com freqüência.

Naturalmente, nos estádios – e, sobretudo por ocasião das partidas de futebol – nunca faltou uma forma de violência simbólica, violência no interior do jogo e violência verbal entre os torcedores dos diversos times. Todavia, no passado, ela sempre permanecia no plano simbólico, permitindo ao espetáculo esportivo exorcizar a violência social presente na sociedade. No estádio, de fato, nós espectadores projetamos o nosso desejo de violência sobre os corpos dos jogadores, os quais a põem em cena no interior de um confronto simbólico. Daqui resultou, entre outras coisas, certa crítica marxista que, no passado, acusou o futebol, novo ópio dos povos, de inibir os conflitos sociais. Hoje a situação mudou e este modelo parece não funcionar mais como no passado. A violência simbólica do esporte parece não estar mais em condições de dar lugar ao exorcismo coletivo. O ritual da partida se torna, então, a ocasião para passar da violência simbólica a uma violência real que, privada de significados políticos ou sociais precisos, se descarrega quase integralmente sobre os torcedores das outras equipes, sobre a polícia ou sobre os jogadores.

Os atores desta violência, os ultra, são filhos da espetacularização extrema do esporte. Eles já não são mais simples espectadores, tornaram-se parte integrante do espetáculo, com freqüência favorecidos pelos dirigentes dos times de futebol. Além do mais, agem num contexto no qual a profissionalização tirou do esporte a dimensão lúdica. No futebol dominado pelo dinheiro assistimos a formas de louco encarniçamento sobre si e sobre adversários que produzem encarniçamento e loucura também nos torcedores. E, se a violência se manifesta sobretudo nos estádios, é porque estes são o lugar de um rito magnificado pela televisão. Numa sociedade dominada pelas imagens, onde tudo é reduzido a espetáculo, só se existe quando se está no centro da imagem. Para muitos indivíduos, existir significa mostrar-se no centro da tela da TV. Para quem se sente excluído, a violência torna-se um modo de chegar ao mundo das imagens. Acontece que também a violência, para ter “sentido”, tem necessidade de mostrar-se, deve ser exibida e espetacularizada. Os estádios, com seu dispositivo de telecâmeras, são o lugar ideal para exibir esta violência sem controle, sem regras, sem referenciais, para a qual às vezes se fala impropriamente de violência tribal. Uma tribo, embora primitiva, implica sempre uma organização, uma hierarquia e procedimentos de arbitragem. Num confronto tribal se faz de tudo para canalizar e controlar a violência. A violência dos ultra, ao invés, parece escapar a tudo isto, parece ser puramente gratuita e preocupada unicamente em ser espetacular.

A ameaça dos ultra transformou profundamente a realidade dos estádios, os quais, aliás, são com freqüência conotados por uma dimensão grandiosa. Para projetá-los são, de fato, chamados arquitetos de fama, cujos projetos exaltam a dimensão espetacular que investiu o esporte. E, no entanto, em seu interior, estas grandiosas catedrais de cimento e aço estão cheias de barreiras, redes e divisões. Quando os espectadores se põem todos juntos a fazer o “ola”, oferecem a imagem de uma fluidez harmoniosa que envolve num único entusiasmo os torcedores dos dois times. É uma imagem enganosa. Na realidade, as divisões são profundas e a arquitetura dos estádios responde à exigência de manter separados os tifosos torcedores. Conseqüentemente, a segregação no interior dos estádios reproduz a segregação presente na sociedade. Os ultra são marginalizados, mesmo se depois tentam construir-se uma nova identidade, identificando-se com um time que, com freqüência, não tem mais nenhum elo direto com sua realidade. Em suma, nas arquibancadas – que um tempo eram o lugar de uma trégua que deixava de fora todos os conflitos – encontramos hoje a exclusão e a frustração presentes na sociedade, com toda a sua carga de rancores explosivos. Daqui resulta a crescente militarização dos estádios, de onde, por fim, nos chega uma mensagem diametralmente oposta àquela que o espetáculo esportivo quereria idealmente transmitir-nos."

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