"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 27/02/07

O capitalismo global inimigo de si mesmo

"A maioria dos ‘no-global’, dos alteromundistas, e, na verdade, dos ativistas verdes é muito mais corajosa em deixar clara a falência do capitalismo global, do que em sugerir alternativas estruturais. “O capitalismo deveria ser substituído por algo mais belo”, lia-se numa faixa agitada numa demonstração londrina por ocasião do Primeiro de Maio de alguns anos atrás", constata Timothy Garton Ash, conceituado comentarista inglês em artigo publicado no jornal La Repubblica, 23-02-2007 e no jornal El País, 25-02-2007.

Eis o artigo.

"Qual é o paquiderme presente em qualquer ambiente? É o triunfo global do capitalismo. A democracia é asperamente posta em discussão. A liberdade corre risco, mesmo nas democracias de antiga criação como a Grã Bretanha. A supremacia do Ocidente está em declínio. Mas todos praticam o capitalismo. Praticam-no os americanos e os europeus. Praticam-no os indianos. Praticam-no os oligarcas russos e os próprios sauditas. Mesmo os comunistas chineses o praticam. E agora os membros do mais antigo kibutz de Israel, a última utopia de socialismo igualitário, votaram para introduzir as remunerações mensais variáveis, com base na performance individual. Karl Marx se enrijeceria na tumba. Ou talvez não, porque alguns dos seus escritos inexplicavelmente prognosticavam já a nossa época do capitalismo global. Sua fórmula faliu, embora sua descrição fosse presciente. Este é o fato sensacional do início do século 21, um fato de tão grande alcance e considerado tão evidente que raramente paramos para refletir sobre quanto seja extraordinário. Mais acontecera antes. “O capitalismo poderá sobreviver?” perguntava-se o pensador socialista britânico G. D. H. Cole num livro publicado em 1938 com o título “Socialismo in Evolution” (na versão italiana “L’evoluzione del socialismo”). Sua resposta à interrogação tinha sido negativa. Ao capitalismo teria seguido o socialismo. A maior parte dos leitores deste jornal provavelmente teria estado de acordo em 1938.

Quais são as grandes alternativas ideológicas que se prospectam destes tempos: O “socialismo do século XXI” de Hugo Chávez ainda parece ser um fenômeno local, no máximo regional, praticado na sua melhor forma nos Estados ricos em petróleo. O islamismo, em certas circunstâncias etiquetado como o proeminente antagnoista do capitalismo democrático numa nova guerra ideológica, não oferece um sistema econômico alternativo (caso se excluam as peculiaridades das finanças islâmicas), e, tudo somado, não é muito animador além da umma muçulmana.

A maioria dos ‘no-global’, dos alteromundistas, e, na verdade, dos ativistas verdes é muito mais corajosa em deixar clara a falência do capitalismo global, do que em sugerir alternativas estruturais. “O capitalismo deveria ser substituído por algo mais belo”, lia-se numa faixa agitada numa demonstração londrina por ocasião do Primeiro de Maio de alguns anos atrás.

Estamos claramente em presença de um problema de definição. Aquilo que fazem as empresas estatais russas ou chinesas é autêntico capitalismo? O próprio fundamento do capitalismo não é, talvez, a propriedade privada? Um dos maiores experts americanos em capitalismo Edmund Phelps, docente da Columbioa University, tem uma definição ainda mais restritiva do capitalismo. Segundo ele, aquilo que praticamos em boa parte da Europa ocidental, este modelo de ‘stakeholder economy’ [econ. por apostas] não é capitalismo propriamente dito, mas antes corporativismo. O capitalismo, diz Phelps, é “um sistema econômico no qual o capital privado é relativamente livre para inovar e investir sem o placet do Estado, nem a permissão das comunidades e das regiões, dos trabalhares e dos outros assim ditos parceiros sociais”. Em cujo caso se pode, pois, afirmar que a maior parte do mundo não é capitalista. Considero demasiado restritiva esta definição. Seguramente, na Europa estão presentes várias formas de capitalismo, das economias de mercado mais livres, como na Grã Bretanha e Irlanda, às formas mais coordenadas de stakeholder economy, como na Alemanha e na Áustria.

Na Rússia e na China há toda uma gama de propriedades, tanto estatais quanto privadas. Nos processos decisórios das sociedades de controle estatal têm maior peso considerações diversas daquelas da maximizarão das úteis, mas também estas operam como protagonistas nos mercados nacionais e internacionais e sempre com mais freqüência falam a língua do capitalismo global. No Fórum Econômico Mundial deste ano, em Davos, escutei Alexander Medvedev, nos cumes da Gazprom, defender a operação daquela sociedade dizendo que Gazprom é uma das cinco companhias mais importantes no mundo para as capitalizações da Bolsa e que se esforça constantemente para assegurar bons rendimentos aos seus acionistas, que, conforme o caso, incluem o Estado russo. No mínimo isso sugere uma hegemonia das teses do capitalismo global. O “capitalismo leninista” chinês é um caso marginal de grande relevância, mas o modo de proceder, em ritmo de caranguejo, das empresas chinesas em direção daquilo que nós seríamos levados a definir como um comportamento capitalista, é de longe mais evidente do que qualquer outra evolução que o Estado chinês esteja cumprindo em direção à democracia.

A falta de qualquer clara alternativa ideológica significa que o capitalismo está seguro para os próximos anos? De nenhum modo. O triunfo sem precedentes do capitalismo globalizado, nos últimos vinte anos foi acompanhado por novas ameaças que se projetam sobre seu próprio futuro. Não são exatamente as famosas “contradições” individuadas por Marx, mas poderiam ser mesmo mais graves. Somente para começar, a história do capitalismo nos últimos cem anos dificilmente apóia a opinião segundo a qual seria um sistema em condições de autocorrigir-se automaticamente. Como o faz notar George Soros (que deveria saber alguma coisa), hoje os mercados globais são mais do que nunca constantemente instáveis, sempre com mais freqüência à beira de uma instabilidade maior. Repetidamente têm sido necessárias visíveis intervenções e corretivos políticos, fiscais e legais para integrar a mão invisível do mercado. Quanto maior isso se torna, tanto mais pesadamente pode desmoronar.

Um petroleiro é mais estável do que um barco a vela, mas, se as anteparas internas do petroleiro rebentam e o óleo cru começa a mover-se de uma parte à outra durante uma tempestade, se formam os pressupostos para um desastre de proporções imensas. Sempre com mais freqüência, o capital mundial é como o petróleo encerrado no interior de um único gigantesco petroleiro, que tem sempre menos anteparas internas em condições de evitar que se evitem transbordamentos.

Há, depois, o aspecto da desigualdade. Uma característica do capitalismo globalizado pode ser o fato de que ele premia de maneira desproporcional os seus protagonistas, não só na City londrina, mas também em Xangai, em Moscou e em Mombaim. Quais serão as repercussões em nível político do fato de que, nos países nos quais a maioria da população é ainda infinitamente pobre, haveria um número restrito de pessoas infinitamente ricas? Nas economias mais avançadas, como Grã Bretanha e América, uma classe média razoavelmente bem situada, com um nível de vida individual que melhora lentamente, pode ser menos incomodada por um grupinho de super-ricaços, cujas palhaçadas lhes fornecem em geral uma razão costumeira para divertir-se em formato tablóide. No entanto, se um bom número de pessoas da classe média começa a perceber que realmente nos está remetendo algo naquele mesmo processo de globalização que torna repugnantemente rica aquele punhado de gestores de capital, que pratica, ao mesmo tempo, o ‘outsourcing’ [extinção] na Índia dos postos de trabalho da classe média, então poderia desencadear-se uma reação violenta. Para fazer-se uma idéia do que poderia acontecer, siga-se Lou Dobbs, na CNN.

Mais do que qualquer outra coisa, no entanto, é inevitável e insolúvel o problema que este planeta não pode sustentar seis bilhões e meio de pessoas e fazer que vivam como vivem hoje os consumidores da classe média do seu rico Norte. Na virada de apenas poucas décadas poderemos ter exaurido os combustíveis fósseis que levaram 400 milhões de anos para acumular-se e, conseqüentemente, teremos, além disso, alterado o clima terrestre. Sustentabilidade será também uma palavra cinzenta e tediosa, mas, é sempre o único verdadeiro e grande desafio hodierno ao capitalismo global. Por mais engenhosos que possam ser os modernos capitalistas na individuação de tecnologias alternativas – e serão muito engenhosos – de alguma parte, por toda a linha, isto significará que os mais ricos consumidores deverão se adaptar a sempre menos, em vez de o fazer a sempre mais. Marx pensava que o capitalismo se teria defrontado com o problema de encontrar os consumidores para os bens e os artigos que as técnicas de produção em constante melhoria teriam permitido produzir em grandes quantidades. Em vez disso, tornou-se especialista num inédito ramo da produção industrial: a criação de desejos. A genialidade do capitalismo moderno é que não só põe à disposição dos consumidores aquilo que querem, mas chega, ademais, a fazer que estes queiram aquilo que ela lhes dará. E é precisamente esta lógica de fundo de desejos que se expandem desmedidamente que se torna insustentável em escala global. E, no entanto, estamos realmente prontos a privar-nos de algo? Estamos dispostos a isolar os nossos loft, a reciclar os jornais e a ir ao trabalho de bicicleta? Mas, estamos efetivamente dispostos a contentarmo-nos com menos, para que outros tenham mais? Posso dizer que eu estou? E vocês, estão? "

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