"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, outubro 02, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 28/09/07

A invenção do casamento. Artigo de Franco La Cecla

A antropologia sempre “indagou da natureza dos laços primários. Criar parentesco é uma constante que se encontra em todos os grupos humanos, mas suas formas são as mais variadas”, escreve o antropólogo italiano Franco La Cecla. Constata que “o núcleo familiar, como ‘casa’, não é uma forma universal: há sociedades onde não existem casais fixos, há famílias poligâmicas no fundo da Amazônia ou no Senegal e há, obviamente, famílias ampliadas. Nós somos a exceção”. Franco La Cecla acredita que em torno da família se joga o sentido da nossa sociedade no sentido de que “aqui não se trata do direito individual, mas de transformar o direito para que seja capaz de proteger realmente os vínculos que as pessoas produzem durante a sua vida”, trazendo para o debate a questão dos homossexuais. O artigo foi publicado no Clarín, 22-09-2007. A tradução é do Cepat.

O que é o casamento? O que é a família? São formas sociais naturais, universais? A estas perguntas se pode responder apelando a certos princípios, apoiando-se em certas ideologias, ou recorrendo aos fatos empíricos.

A antropologia, desde as suas origens, que se afundam numa curiosidade comparativa, fundada numa paciente busca em lugares e culturas próximas e distantes, indagou da natureza dos laços primários. Criar parentesco é uma constante que se encontra em todos os grupos humanos, mas suas formas são as mais variadas. Em culturas diferentes da nossa, a filiação está freqüentemente separada do parentesco, isto é, não são os pais biológicos que criam os seus próprios filhos. Em muitas culturas são os tios – os irmãos da mãe – que cumprem com essa tarefa. Aqui também existia essa instituição e de tempos em tempos ressurge, como notava Claude Lévi-Strauss por ocasião da morte de Lady Diana. Naquele caso, no funeral, o irmão dela se apresentou como único possível tutor de seus filhos. Há culturas no sul da China onde o casal que convive está constituído por irmão e irmã, que fazem “fugazes” visitas noturnas a pessoas do sexo oposto com as quais podem gerar uma prole.

Em definitiva, o núcleo familiar, como “casa”, não é uma forma universal: há sociedades onde não existem casais fixos, há famílias poligâmicas no fundo da Amazônia ou no Senegal e há, obviamente, famílias ampliadas. Nós somos a exceção: a família mononuclear – a solidão de marido, mulher e filhos é uma invenção recente. Isso foi possível graças ao advento do capitalismo e do trabalho assalariado, que destruiu a família ampliada, que era também uma entidade econômica, e criou o casal assim como o conhecemos hoje. Isso está explicado num magnífico livro, Gênero e Sexo, de Ivan Illich. O novo é a idéia de um núcleo isolado que deveria se encarregar da formação da prole. Nas sociedades tradicionais européias e nas sociedades “indígenas” de outras culturas, o casal está inserido num complexo de redes de reciprocidade, num mundo no qual homens e mulheres constituem duas esferas com freqüência independentes, com língua, modos e obrigações diferentes. A prole é confiada ao grupo mais amplo. Isto permite uma elasticidade maior que a nossa na constituição ou no desenvolvimento do próprio casal. Uma sociedade aristocrática e complexa como a Tuareg ainda hoje consente uma freqüência extrema de divórcios – que são festejados como se fossem casamentos, isto é, novos começos – mesmo porque a prole nunca fica confiada unicamente ao casal. Illich dizia que o casal mononuclear é um monstro do qual nunca antes se havia ouvido falar.

Jaz, no fundo, uma pergunta importante: o que é que une as sociedades, que faz com que não se dividam? Nossa pobre resposta hoje é: o casal. A resposta de outras sociedades foi: a união que consente na passagem de substâncias, sejam estas líquidas – leite, água, lágrimas –, nutrientes, emoções, palavras, experiências, visões, heranças no sentido mais amplo e no mais específico. A substância que uma geração passa a outra é similar e diferente à que homens e mulheres trocam encontrando-se. Trata-se de afeto, de amor, de bens, mas, sobretudo, de kinship, ou seja, uma união de parentesco que é uma invenção cultural, que muda de lugar para lugar, mas que é importantíssima. Somos uma estranha sociedade que privilegia o amor-paixão em relação ao laço de parentesco. Em muitas sociedades modernas, como na Índia e no Japão, não corresponde ao amor-paixão, mesmo assim pode prevê-lo. Os casamentos são combinados para que a união seja estável e não flutue com as mudanças de emoções. Na Índia dizem que seu tipo de casamento é como colocar fogo debaixo de uma panela de água fria, ao passo que o nosso, o ocidental, seria como apagar o fogo que está debaixo de uma panela de água quente. É verdade que a nossa sociedade, não obstante a propaganda da Igreja e dos novos fundamentalismos, faz constantemente grandes esforços para não se dividir. Hoje, a palavra “casal” se esvaziou de grande parte do significado que ainda podia ter em nossa cultura até 20 anos atrás.

Na Europa, as formas de união civil e os pactos de convivência conhecidos como Pacs e Dico [Direitos e deveres das pessoas conviventes], assim como os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, enfrentam um problema jurídico, ligado à herança e à comunhão de bens, mas que não enfrentam a substância empobrecida do casal. Porque em qualquer sociedade, o vínculo entre duas pessoas cria uma circulação de substâncias para passar a outras gerações. De outra maneira, não nos “casamos” (e nas culturas primitivas e tradicionais o amor-paixão existe tanto e ainda mais que na nossa). Se nos “casamos” é para constituir um kinship, uma união que permita a passagem de substâncias.

Uma das substâncias principais em todas as culturas é o gênero. Não é casual que se diga “gerar”, quer dizer, instalar a descendência no gênero, num masculino ou feminino. Que tipo de substância de gênero passam os pais de um mesmo gênero à sua prole é uma pergunta embaraçosa para quem luta hoje pelos Pacs ou pelos Dico, mas é necessário respondê-la. Não basta justificar a criatividade de um transgender ou de um queer gender para evitá-la. Michel Foucault, que era um homossexual convencido e praticante, lutava ferozmente com aqueles que pensavam que inventar um novo gênero era como fazer um happening. Para ele, os homossexuais eram homens com gostos sexuais diferentes. Na França, esta questão está no interior mesmo do debate feminista. Foi Marcela Iacub, antropóloga argentina do direito, que observou que não se pode falar tanto de respeito pelas diferenças sexuais e em seguida ignorar sua importância numa coisa tão séria como a geração da descendência.

O fato é que aqui, em torno da família, se joga o destino de nossa sociedade, não no sentido de que esta seja hoje “degenerada”, como dizem alguns, mas no sentido mais específico de que aqui não se trata do direito individual, mas de transformar o direito para que seja capaz de proteger realmente os vínculos que as pessoas produzem durante a sua vida. Sabemos que somos monógamos no presente e polígamos no tempo (a altíssima taxa de separações demonstra isso). Por que não aceitar que somos uma sociedade de muitos amores, mas que assegura e protege as passagens de substância que estes produzem, filhos, parentes, compras, amigos, bens? É possível, basta dar um passo para além da política pura.

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