"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, novembro 26, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 24/11/07

A democracia contemplativa. Artigo de Michel Wieviorka

Nicolas Sarkozy exerce o poder deixando muito menos responsabilidades aos seus ministros que seus predecessores”, diz o sociólogo francês Michel Wieviorka, analisando o caráter concentrador do mandatário. Por outro lado, diz, o presidente ameaça sufocar o resto de sindicalismo que ainda há e que ainda é capaz de oferecer resistências numa sociedade francesa que sofre com a atomização das forças sociais.

Sarkozy está recorrendo ao expediente das comissões e grupos de estudo como forma de estimular maior participação, mas o que tem a desvantagem de não seres estes espaços, fóruns de tomada de decisões. Segundo Wieviorka, essas comissões “não dão nenhum poder de decisão àqueles que deles participam. Quando muito, alimentam a reflexão do poder e o debate público”, lamenta.

Na gestão Sarkozy, “a tendência é bloquear as instâncias, organizações, instituições intermediárias entre o poder presidencial e a sociedade, em sua diversidade, e conceder um papel decisivo à mídia”, diz Wieviorka.

“Nós estamos numa fase em que o poder não leva ao exercício das liberdades fundamentais, mas nos empurra – e talvez a sociedade o permitisse – para uma espécie de passividade, de aceitação do fato do espetáculo político que coloca em cena, sem cessar. Ao mesmo tempo despreza os intermediários que possibilitam com que ordinariamente a democracia funcione. Este espetáculo necessita da mídia para ser possível”, resume o sociólogo. Isso caracteriza o que Wieviorka chama de “democracia contemplativa”, termo que toma do sociólogo russo Yuri Levada.

Segue na íntegra o artigo de Michel Wieviorka, diretor de estudos na EHESS (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) e presidente da Associação Internacional de Sociologia, publicado no Libération, 22-11-2007. A tradução é do Cepat.

A constatação é unânime: o nosso chefe de Estado é onipresente – hiper-ativo e agitado, dizem os mais críticos; preocupado em se envolver pessoalmente com as reformas necessárias para o nosso país para fazê-las avançar mais rápida e eficazmente, dizem seus partidários. Mas não nos contentemos com a observação, ainda superficial, que insiste na maneira como aparece constantemente na mídia. Examinemos antes como ele concilia seus projetos de mudança e a exigência democrática.

Por um lado, o nosso presidente, Nicolas Sarkozy, exerce o poder deixando muito menos responsabilidades aos seus ministros que seus predecessores. Isso não é para insultá-lo, mas para perceber que Elísios, hoje, define, orienta, pilota e, no caso de vitória, retifica sua ação. Neste contexto, os ministros não têm nenhuma autonomia, não constituem, ou ainda menos que ontem, um nível decisivo do sistema político. Da mesma maneira, os parlamentares da ala majoritária formam um conjunto sem grande capacidade de iniciativa, e que realça mais do modelo dos “godillots” [militares]. Eles também caminhavam certinhos, e engoliam, na ocasião, as lebres que lhes eram impostas a partir dos Elísios.

A esquerda tem culpa em seus próprios erros. Ela é responsável por sua crise intelectual, moral e de liderança. Mas Nicolas Sarkozy contribui para as suas dificuldades, e sua estratégia –, por exemplo, com a abertura às antigas personalidades socialistas – é, claramente, fazer com que ela continue a se afundar. A extrema direita também está fragilizada. O chefe de Estado a privou de sua principal bandeira que é a temática da imigração. Portanto, é preciso admitir que isso, por sua ação, reforça o déficit democrático, enfraquecendo seus atores que jogam classicamente um papel no funcionamento de nosso sistema político, quer estejam do seu lado ou na oposição, à sua esquerda, à sua direita ou às suas costas.

Por outro lado, nosso presidente, sem apelar ao braço de ferro, ameaça asfixiar o pouco de sindicalismo que temos na França, principalmente em relação aos funcionários e empresas públicas. Apoiando-se numa opinião pública que não aceita o apoio aos regimes especiais de aposentadoria defendidos pelos sindicatos, e que é talvez amplamente excedido pelas greves (especialmente no transporte), ele ataca efetivamente um dos raros atores coletivos que lhe resiste e que representa uma mediação entre a sociedade e o poder público. É porque os sindicatos não são tão frágeis, na opinião pública, quanto Nicolas Sarkozy podia esperar: mesmo quando suas reivindicações parecem excessivas, eles encarnam precisamente uma das últimas instituições suscetíveis de se levantar entre ele um povo atomizado.

Enfim, Nicolas Sarkozy, apoiado por alguns de seus ministros, dá real importância à realização de missões e de comissões (Balladur, Juppé, Attali, Colombani...) ou de encontros (do tipo: Grenelle do ambiente) realizados para preparar um estado da situação em campos precisos, e preparar a reflexão para projetar o nosso país no futuro. O característico dessas iniciativas é que elas dependem exclusivamente da boa vontade do poder, que nunca são destinadas a perdurar, e que elas não dão nenhum poder de decisão àqueles que deles participam. Quando muito, alimentam a reflexão do poder e o debate público.

Mas não há nada comparável, por exemplo, ao que era o Plano, esta “ardente obrigação” que institui e pereniza o relacionamento de diversos atores sociais, empresários e sindicatos especialmente, e que traçava as modalidades de um futuro possível para o nosso país. Também aí a lógica caminha no sentido inverso da criação, do respeito ou da manutenção das mediações entre o poder e a opinião pública, não é posta em prática nenhuma estrutura real, duradoura, da preparação do futuro.

A tendência atual é bloquear as instâncias, organizações, instituições intermediárias entre o poder presidencial e a sociedade, em sua diversidade, e conceder um papel decisivo à mídia – o que implica também em exercer sobre eles senão um controle direto, ao menos uma mistura de pressões e de convites para que acompanhem permanentemente as atividades do Presidente.

Tudo isso dá a imagem de uma grande novidade. Antes mesmo de sua eleição, Nicolas Sarkozy era objeto de comparações mais ou menos bajuladoras: com Margareth Thatcher, que saiu vitoriosa da luta que empreendeu contra o sindicalismo para impor uma política liberal, com Tony Blair, por suas orientações modernizadoras e reformistas, com Silvio Berlusconi, por sua relação com o dinheiro e a mídia, com Vladimir Putin, por suas tendências em concentrar o poder pessoal, sem falar de projeções históricas à família Bonaparte, quer se trate de Napoleão I ou de Napoleão III.

Ao mesmo tempo, nós evocamos muito, ao longo da campanha presidencial, a democracia participativa e a democracia deliberativa, para dar conta da maneira como a democracia representativa, mesmo considerando seus limites, poderia ser ao menos reforçada. Mas é preciso admitir que nenhuma das comparações propostas para Nicolas Sarkozy é plenamente satisfatória, e que a evolução da democracia atual não é redutível às categorias que acabam de ser evocadas.

Nós estamos numa fase em que o poder não leva ao exercício das liberdades fundamentais, mas nos empurra – e talvez a sociedade o permitisse – para uma espécie de passividade, de aceitação do fato do espetáculo político que coloca em cena, sem cessar. Ao mesmo tempo despreza os intermediários que possibilitam com que ordinariamente a democracia funcione. Este espetáculo necessita da mídia para ser possível e são de agora em diante a principal forma organizada que garante a ligação entre o Presidente e uma sociedade, que, cada vez mais, em matéria política, parece ter necessidade de uma representação forte, de instituições ativas, mas que não está muito engajada em vastos debates participativos ou nos processos massivos de real deliberação.

Uma fórmula de um grande sociólogo russo recentemente morto, Youri Levada, a propósito da Rússia de Putin, resume bem esta situação: nós entramos na era da democracia contemplativa. Que logo saiamos dela!

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