"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

terça-feira, fevereiro 12, 2008

instituto Humanitas Unisinos - 09/02/08

Os capitalistas do desastre. Um artigo de Naomi Klein

"Produz-se uma crise, espalha-se o pânico e os ideólogos enchem a brecha reorganizando rapidamente a sociedade no interesse dos grandes entes corporativos. É uma manobra que chamo de 'capitalismo do desastre'", escreve Naomi Klein em artigo publicado no sítio La Haine, 6-02-2008. A tradução é do Cepat.

A agência de qualificação Moody's garante que a chave para resolver os problemas econômicos dos Estados Unidos está na drástica redução dos desembolsos da seguridade social. A National Association of Manufacturers (Associação Nacional de Fabricantes, patronal) afirma que a receita consiste em que o Governo federal aceite a "lista da compra" desta organização em que se prescrevem novos recortes fiscais. Para a publicação Investor's Business Daily a autorização para realizar prospecções petrolíferas na Arctic National Wildlife Refuge (Reserva Natural Ártica do Alaska) constitui "provavelmente o estímulo mais importante de todos".

Mas de todas estas cínicas tentativas de camuflar como "estímulos econômicos" o que é apenas a apropriação massiva de recursos por parte dos capitalistas, quem leva a palma é Lawrence B. Lindsey, ex-assistente do presidente Bush para assuntos econômicos e seu assessor durante a recessão de 2001. O plano de Lindsey consiste em resolver a crise desatada pela prática de empréstimos fraudulentos mediante uma grande ampliação dos créditos de risco. "Uma das soluções mais fáceis seria permitir que os fabricantes e distribuidores - em particular, o Wal-Mart - abrissem suas próprias instituições financeiras, mediante as quais poderiam negociar empréstimos e conceder créditos", afirmou Lindsey recentemente num artigo no Wall Street Journal.

Não importa que um número crescente de norte-americanos não possa fazer frente aos pagamentos de cartões de crédito, e tenham que empenhar suas pensões e perder suas moradias. Se Lindsey se sai com a sua, antes que perder suas vendas, o Wal-Mart poderia simplesmente emprestar dinheiro aos seus clientes para que continuassem comprando, convertendo assim, na prática, este gigante minorista numa cadeia de lojas do antigo uso, ao qual os norte-americanos chegariam a dever até a sua alma.

Se este tipo de oportunismo em tempos de crise lhe é familiar é porque realmente o é. Nestes últimos quatro anos pesquisei um âmbito pouco estudado da história econômica: a maneira como as crises aplairaram o caminho para o avanço da revolução econômica direitista em todo o planeta. Produz-se uma crise, espalha-se o pânico e os ideólogos enchem a brecha reorganizando rapidamente a sociedade no interesse dos grandes entes corporativos. É uma manobra que chamo de "capitalismo do desastre".

Em ocasiões, os desastres nacionais que possibilitaram esta manobra foram fatos tangíveis, como guerras, ataques terroristas, desastres naturais. Mas com mais freqüência tratou-se de crises econômicas: endividamento crescente, hiperinflação, choques monetários, recessões.

Há mais de uma década, o economista Dani Rodrik, então na Universidade da Colúmbia, estudou as circunstâncias em que os governos haviam adotado políticas de câmbio livre. Suas conclusões foram chamativas: "Não houve um só caso significativo de reforma de câmbio livre num país em desenvolvimento na década de 1980 que se tenha produzido fora do contexto de uma crise econômica grave". Na década de 1990 se produziu um extraordinário exemplo desta tese: na Rússia, uma economia em estado de fusão preparou a cena para uma série de privatizações aceleradas. Na seqüência, a crise asiática de 1997-1998 abriu as portas dos "tigres asiáticos" a uma alavancha de compras estrangeiras, um processo que o jornal New York Times qualificou como "a maior operação mundial de liquidação por fechamento".

Não há dúvida de que os países em situação desesperada costumam fazer todo o necessário para conseguir sair da confusão. Uma atmosfera de pânico deixa os políticos com as mãos livres para introduzir mudanças radicais que de outro modo seriam muito impopulares, como por exemplo a privatização de serviços essenciais, a redução da proteção dos trabalhadores e a introdução de acordos comerciais de livre câmbio. Numa situação de crise, o debate e o processo democráticos podem ser descartados com facilidade.

E surge a pergunta: as políticas de livre câmbio são úteis, apresentadas como curas de emergência, para resolver realmente a crise que enfrentam? Para os ideólogos em questão, este assunto não teve a menor importância. O que importa é que, como tática política, o capitalismo do desastre funciona.

O falecido economista Milton Friedman, em seu texto de introdução à edição de 1982 de seu livro Capitalismo e liberdade, articulou sucintamente esta estratégia: "Só uma crise, real ou suposta, produz uma mudança real. Quando esta crise se produz, as ações que serão adotadas dependerão das idéias predominantes. Está aí, creio, nossa função básica: desenvolver alternativas para as políticas existentes, e mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se converta em politicamente inevitável".

Uma década mais tarde, John Williamson, importante assessor do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial (e criador da expressão "Consenso de Washington") foi ainda mais longe. Numa conferência de formuladores de políticas do mais alto nível perguntou se "seria concebível provocar deliberadamente uma crise como meio de eliminar as travas políticas às reformas".

Uma e outra vez, o governo de Bush lançou mão da crise para eliminar as travas que o impediam de aplicar as partes mais radicais de seu programa econômico. Em primeiro lugar, uma recessão proporcionou o pretexto necessário para realizar uma série de drásticas reduções de impostos. Na seqüência, a "guerra contra o terror" foi o início de uma era de privatizações militares e da segurança nacional sem precedentes. Mais tarde, o furacão Katrina permitiu ao governo dar "férias fiscais", recortar a legislação trabalhista, fechar projetos públicos de habitação e transformar Nova Orleans num laboratório de escolas comunitárias (charter schools), tudo isso em nome da "reconstrução" depois do desastre.

Com estes antecedentes, os grupos de pressão de Washington podem razoavelmente esperar que o atual temor da recessão pode provocar uma nova rodada de presentes às grandes corporações. Entretanto, parece que a opinião pública está cada vez mais avisada em relação a estas táticas do capitalismo do desastre. É evidente que o pacote de estímulo proposto, no valor de 150 bilhões de dólares, é pouco mais que uma redução de impostos apenas camuflada, que inclui uma nova série de "incentivos" empresariais. Mas os democratas propuseram uma tentativa mais ambiciosa do Partido Republicano de financiar a crise suprimindo a redução de impostos mas lançando mão dos fundos da seguridade social. No momento, parece que a crise desencadeada pela negativa de regular os mercados não será "reparada" dando dinheiro público a Wall Street para que jogue com ele.

Não obstante, apesar de sua resistência - a duras penas - os democratas da Câmara dos Representantes parecem ter abandonado a idéia de ampliar os subsídios de desemprego e aumentar o financiamento dos cupões de comida e seguro-saúde como parte do pacote de estímulos. Ademais, não conseguiram em absoluto aproveitar a crise para propor soluções alternativas ao status quo pontuado pelas crises cíclicas, sejam estas ambientais, sociais ou econômicas.

O problema não é a falta de idéias "vivas e disponíveis", para utilizar a expressão de Friedman. Há muitas idéias praticáveis, desde os serviços de saúde de pagador único à legislação de um salário mínimo vital. É possível criar centenas de milhares de empregos com a reconstrução das doentias infraestruturas públicas e com sua transformação em favor do transporte público e das energias renováveis. Há necessidade de fundos de lançamentos de empresas? Pode-se corrigir as fugas fiscais que permitem que os gestores de fundos de investimentos multimilionários paguem só 15% sobre seus lucros de capital, em vez dos 35% aplicáveis como imposto sobre a renda, e adotar um imposto sobre as transações internacionais de divisas proposto já há muito tempo. Lucro adicional? Um mercado menos volátil e exposto às crises.

A forma como se dá a resposta às crises é sempre altamente política: há aqui uma lição que os progressistas parecem ter esquecido. Há uma ironia em tudo isso, porquanto as crises deram lugar a algumas das grandes políticas progressistas dos Estados Unidos. Em particular, depois do dramático crash de 1929 a esquerda estava preparada e dispunha de idéias próprias: pleno emprego, grandes obras públicas, sindicalização massiva. O sistema de seguridade social que Moody's deseja ardentemente desmantelar foi uma resposta direta à Grande Depressão.

Cada crise é uma oportunidade, e um ou outro a explorará. A questão é a seguinte: esta confusão será um pretexto para transferir ainda mais riqueza pública para mãos privadas, e com isso apagar até o último vestígio de Estado de bem-estar social, sempre em nome do crescimento econômico? Ou, ao contrário, será este último fracasso dos mercados não regulamentados o catalisador necessário para reviver o espírito do interesse público, e levar a sério as crises de nosso tempo, desde a crescente desigualdade até o aquecimento global e as defeituosas infraestruturas?

Os capitalistas do desastre estiveram no timão durante três décadas. Chegou o momento, uma vez mais, do populismo do desastre.

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