"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, setembro 05, 2008

Na sombra da primazia nuclear americana

Site do Azenha - Atualizado em 03 de setembro de 2008 às 10:48 | Publicado em 02 de setembro de 2008 às 16:56

THE RISE OF US NUCLEAR PRIMACY

por Keir A. Lieber e Daryl G. Press

revista Foreign Affairs -- março/abril de 2006

Sumário: Durante quatro décadas, as relações entre as potências nucleares foram moldadas pela vulnerabilidade comum, uma situação conhecida como destruição mútua assegurada. Mas com o arsenal dos Estados Unidos crescendo rapidamente enquanto o da Rússia se deteriora e o da China continua pequeno, a era do MAD (Mutual Assured Destruction) está terminando -- e a era da primazia nuclear dos Estados Unidos começou.

Keir A. Lieber é autor de War and the Engineers: The Primacy of Politics Over Technology e professor-assistente de ciência política na Universidade de Notre Dame. Daryl G. Press, o autor de Calculating Credibility: How Leaders Assess Military Threats, é professor-associado de ciência política da Universidade da Pensilvânia.

PRESENTE NA DESTRUIÇÃO

Por quase meio século os estados nucleares mais poderosos do mundo estiveram presos a um impasse militar conhecido como destruição mútua assegurada (MAD). No início dos anos 60 os arsenais nucleares dos Estados Unidos e da União Soviética tinham crescido tanto e eram tão sofisticados que nenhum dos dois países poderia destruir inteiramente a força retaliatória atacando primeiro, mesmo num ataque de surpresa. Começar uma guerra nuclear equivalia a cometer suicídio.

Durante a Guerra Fria, muitos estudiosos e analistas políticos acreditavam que o MAD tornava o mundo relativamente estável e pacífico por induzir à precaução na política internacional, desencorajando o uso de ameaças nucleares para resolver disputas e em geral contendo o comportamento dos superpoderes. (É revelador que a mais recente crise nuclear, a crise dos mísseis de Cuba, em 1962, aconteceu no nascer da era do MAD). Por causa do impasse nuclear os otimistas argumentavam que a era das guerras intencionais entre os grandes poderes tinha acabado. Críticos do MAD, no entanto, argumentavam que ele não prevenia as guerras das potências, mas sim o combate ao poder de influência perigosamente expansionista e totalitário da União Soviética. Dessa perspectiva, o MAD prolongou a vida de um império do mal.

Esse debate, agora, pode parecer história antiga, mas na verdade é mais relevante do que nunca -- já que a era do MAD está chegando ao fim. Hoje, pela primeira vez em quase 50 anos, os Estados Unidos estão próximos de obter a primazia nuclear. Provavelmente em breve será possível aos Estados Unidos destruir o arsenal de mísseis de longo alcance da Rússia e da China atacando primeiro. Essa mudança dramática no equilíbrio nuclear das nações resulta de uma série de melhorias nos sistemas nucleares dos Estados Unidos, o declínio vertiginoso do arsenal da Rússia e o ritmo glacial da modernização das forças nucleares da China. A não ser que a política de Washington mude ou que Moscou e Beijing dêem passos para aumentar o tamanho e o preparo de suas forças, a Rússia e a China -- e o resto do mundo -- vão viver na sombra da primazia nuclear dos Estados Unidos durante muitos anos.

A visão das implicações dessa mudança vai depender da perspectiva teórica de cada um. Os falcões, que acreditam que os Estados Unidos são uma força benevolente no mundo, darão as boas vindas à nova era nuclear porque acreditam que o domínio dos Estados Unidos em forças convencionais e nucleares vai ajudar a deter agressões de outros países. Por exemplo, com o crescimento da primazia americana, os líderes da China podem agir com mais cautela em relação a Taiwan, se dando conta de que suas forças nucleares vulneráveis não impedirão uma intervenção dos Estados Unidos -- e que ameaças nucleares chinesas poderiam convidar um ataque dos Estados Unidos contra o arsenal de Beijing. Mas os pombas, que se opõem a ameaças nucleares para coagir outros estados e temem os Estados Unidos livres para agir, vão se preocupar. A primazia nuclear pode atrair Washington para um comportamento mais agressivo, eles argumentam, especialmente quando combinada com o domínio dos Estados Unidos em tantas outras dimensões do poder nacional. Finalmente, um terceiro grupo -- os corujas, que se preocupam com um conflito acidental -- vão argumentar que a primazia nuclear dos Estados Unidos poderia levar outras potências nucleares a adotar posturas estratégicas, tais como transferir o comando de armas nucleares para comandantes de médio escalão, o que aumentaria a probabilidade de um ataque não-autorizado -- com isso criando o que teóricos chamam de "instabilidade de crise".

ARSENAL DE UMA DEMOCRACIA

Por 50 anos os planejadores de guerra do Pentágono estruturaram o arsenal nuclear dos Estados Unidos com o objetivo de deter um ataque nuclear contra os Estados Unidos e, se necessário, ganhar uma guerra nuclear lançando um ataque preventivo que destruiria as forças nucleares do inimigo. Com esses objetivos, os Estados Unidos dependem de um tripé nuclear formado por bombardeiros estratégicos, mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) e submarinos lançadores de mísseis balísticos (conhecidos como SSBN). O tripé reduz as chances de um inimigo destruir todas as forças dos Estados Unidos num ataque único, mesmo de surpresa, assegurando que os Estados Unidos seriam capazes de lançar uma resposta devastadora. Tal retaliação só teria que ser capaz de destruir uma porção suficientemente grande das cidades e da indústria do inimigo para prevenir um ataque inicial. O mesmo tripé nuclear, no entanto, poderia ser usado num ataque ofensivo contra as forças nucleares de um adversário. Bombardeiros "invisíveis" poderiam escapar dos radares inimigos, submarinos poderiam disparar seus mísseis perto das costas do inimigo de forma a não dar aos líderes adversários tempo para reagir, enquanto mísseis baseados em terra poderiam destruir mesmo os silos reforçados e outros alvos que requerem ataque direto. A capacidade de destruir todas as forças nucleares do adversário, eliminando a possibilidade de retaliação, é conhecida como first-strike capability, ou primazia nuclear.

Os Estados Unidos derivaram benefícios estratégicos imensos de sua primazia nuclear durante os primeiros anos da Guerra Fria, tanto em termos de poder de barganha diante da União Soviética (por exemplo, no caso de Berlim no final dos anos 50 ou início dos anos 60) quanto no planejamento de guerra contra o Exército Vermelho na Europa. Se os soviéticos invadissem a Europa Ocidental nos anos 50 os Estados Unidos pretendiam vencer uma Terceira Guerra Mundial lançando um ataque nuclear maciço contra a União Soviética, seus clientes na Europa Oriental e os aliados chineses. Esses planos não eram de algum burocrata de escalão médio do Pentágono; eles foram aprovados pelas autoridades da mais alta hierarquia no governo dos Estados Unidos.

A primazia nuclear dos Estados Unidos sumiu no início dos anos 60, quando os soviéticos instalaram capacidade para um ataque de retaliação. Com isso surgiu o MAD. Washington abandonou sua estratégia de um ataque nuclear preventivo mas durante a Guerra Fria lutou para escapar do MAD e restabelecer seu domínio nuclear. Expandiu o seu arsenal, melhorou continuamente a letalidade e a pontaria sobre armas nucleares soviéticas, mirou em sistemas de comando e controle, investiu em escudos de defesa contra mísseis, mandou submarinos de ataque perseguir submarinos nucleares soviéticos e construiu mísseis balísticos de ogivas múltiplas para lançar da terra e de submarinos, assim como bombadeiros "invisíveis" a radares e mísseis de cruzeiro armados com ogivas nucleares "invisíveis". Também descontente com a MAD, a União Soviética construiu um arsenal maciço com o objetivo de obter superioridade nuclear. Nenhum dos dois lados se aproximou de obter a capacidade de atacar primeiro (first-strike), mas seria um erro considerar a corrida armamentista como inteiramente irracional: os dois superpoderes sabiam dos benefícios da primazia nuclear e nenhum deles estava disposto a ficar para trás.

Desde o fim da Guerra Fria o arsenal nuclear dos Estados Unidos melhorou significativamente. Os Estados Unidos substituíram os mísseis balísticos em seus submarinos por mísseis significativamente mais certeiros, os Trident II D-5, muitos dos quais carregam ogivas mais potentes. A Marinha dos Estados Unidos mudou a maior parte de seus submarinos (SSBN) para o Oceano Pacífico para que eles possam patrulhar a costa chinesa ou o ponto-cego da rede de radares de alerta da Rússia. A Força Aérea dos Estados Unidos acabou de equipar os seus bombardeiros B-52 com mísseis nucleares de cruzeiro, que provavelmente são invisíveis às defesas aéreas da Rússia e da China. E a Força Aérea também melhorou os sistemas do bombardeiro "invisível" B-2 para que eles possam voar em baixíssimas altitudes, evitando assim mesmo os mais sofisticados radares. Finalmente, embora a Força Aérea tenha terminado o desmantelamento de seus mísseis MX em 2005 para cumprir acordos de desarmamento, melhorou significativamente os outros mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) instalando neles ogivas como as do MX, além de veículos sofisticados de reentrada [na atmosfera] nos Minuteman, que também receberam novos sistemas-guia para terem a pontaria do MX.

DESEQUILÍBRIO DO TERROR

Enquanto as forças nucleares dos Estados Unidos se tornaram mais fortes depois da Guerra Fria o arsenal nuclear estratégico da Rússia se deteriorou profundamente. A Rússia tem 39% menos bombardeiros de longo alcance, 58% menos mísseis balísticos intercontinentais e 80% menos submarinos lançadores de mísseis nucleares do que a União Soviética em seus últimos dias. A real depreciação do arsenal russo é muito maior do que estes cortes sugerem. As forças nucleares que a Rússia mantém quase não estão prontas para uso. Os bombardeiros estratégicos da Rússia, agora localizados em apenas duas bases, são vulneráveis a um ataque de surpresa, quase não conduzem exercícios de treinamento e suas ogivas estão guardadas fora das bases. Mais de 80% dos mísseis balísticos intercontinentais da Rússia armazenados em silos já atingiram sua vida útil e planos para substituí-los com novos mísseis foram marcados por testes fracassados e baixa produção. Os mísseis balísticos intercontinentais móveis raramente se movimentam e mesmo que pudessem ser disparados de dentro de suas bases, dado o alerta de um ataque, parece altamente improvável que haveria tempo para isso.

A terceira perna do tripé nuclear da Rússia foi a que mais se enfraqueceu. Desde 2000 os submarinos da Rússia conduziram cerca de duas patrulhas por ano, quando faziam 60 em 1990. (Em contraste, a taxa de patrulha dos submarinos americanos é de cerca de 40 por ano). A maior parte do tempo todos os nove submarinos russos lançadores de mísseis balísticos ficam ancorados, se tornando alvos fáceis. Além disso, submarinos requerem tripulações bem treinadas para serem eficazes. Operar um submarino com mísseis balísticos -- e coordenar silenciosamente suas operações com navios e submarinos de ataque para evitar as forças do inimigo -- não é simples. Sem patrulhas freqüentes, a eficácia dos submarinos russos, assim como o próprio equipamento, está em decadência. É revelador que um teste de 2004 (assistido pelo presidente Vladimir Putin) de vários mísseis lançados de submarinos foi um fiasco total: ou os mísseis não foram lançados ou saíram da rota. O fato de que houve fracassos similares no verão e no outono de 2005 completa essa imagem nada atraente das forças nucleares da Rússia.

Aumentando esses problemas, o sistema de alerta da Rússia está uma bagunça. Os satélites soviéticos ou russos nunca foram capazes de detectar com segurança o lançamento de mísseis a partir de submarinos dos Estados Unidos. (Numa recente declaração pública, um general de alto escalão descreveu a constelação russa de satélites de alerta como "ultrapassada"). Em vez disso os comandantes russos se baseiam em um sistema de radares em terra para detectar mísseis lançados de submarinos. Mas a rede de radares tem um ponto cego no Oeste do país, na direção do Oceano Pacífico. Se submarinos dos Estados Unidos lançassem mísseis daquela região do Pacífico, líderes russos provavelmente só saberiam do ataque quando as ogivas detonassem. A cobertura de radar da Rússia no Atlântico Norte é falha, permitindo um alerta de apenas alguns minutos antes do impacto de ogivas lançadas de submarinos.

Moscou poderia tentar reduzir sua vulnerabilidade encontrando dinheiro para manter os seus submarinos e mísseis móveis dispersos. Mas isso seria uma solução de curto prazo. A Rússia já teve que estender a idade útil de seus velhos ICBM móveis, o que não pode fazer para sempre, e as tentativas de colocar em uso armas estratégicas novas fracassaram. O plano da Marinha da Rússia de lançar uma nova classe de submarinos armados com mísseis balísticos está atrasado. Tudo indica que nenhum submarino novo vai se tornar operacional até 2008 e é provável que nenhum será colocado em serviço a não ser depois disso.

Enquanto as forças da Rússia se deterioram, os Estados Unidos melhoraram a sua capacidade de seguir submarinos e mísseis móveis, erodindo ainda mais a confiança dos militares russos em sua capacidade de defesa nuclear. (Já em 1998 esses líderes duvidavam publicamente de que os submarinos russos armados com mísseis balísticos eram capazes de evitar o monitoramento dos Estados Unidos). Além disso, Moscou anunciou planos de redução de sua força de ICBMs em mais 35% até 2010; analistas externos prevêem que o corte vai ser de 50 a 75% da força atual, possivelmente deixando a Rússia com 150 ICBMs até o fim desta década, muito abaixo do nível de quase 1.300 mísseis em 1990. Quanto mais o arsenal nuclear da Rússia encolhe, mais fácil fica para os Estados Unidos conduzirem um ataque.

Para determinar quanto o equilíbrio de poder mudou desde o fim da Guerra Fria, fizemos uma projeção por computador de um ataque hipotético dos Estados Unidos contra o arsenal nuclear da Rússia usando fórmulas-padrão que analistas de defesa usam há décadas. Atribuímos ogivas nucleares dos Estados Unidos a alvos russos com base em dois critérios: as melhores armas foram dirigidas aos alvos mais duros e os mísseis mais rápidos dirigidos às forças da Rússia que podem reagir mais rápido. Já que a Rússia é praticamente cega a um ataque do Pacífico e teria grande dificuldade para detectar a aproximação de mísseis de cruzeiro com ogivas nucleares, atribuímos um disparo de submarino ou de míssil de cruzeiro para cada sistema russo. Um ataque organizado assim não daria aos líderes russos quase nenhum tempo de alerta.

Esse plano simples é presumivelmente menos eficaz que a verdadeira estratégia de Washington, que os Estados Unidos passaram décadas aperfeiçoando. O verdadeiro plano de guerra dos Estados Unidos prevê alvejar os centros de comando e controle da Rússia, sabotagem contra as estações de radar ou medidas preventivas -- tudo isso faria das forças americanas mais letais do que nosso modelo as considera.

De acordo com nosso modelo, um ataque de surpresa simplificado teria uma boa chance de destruir todas as bases de bombardeiros da Rússia, os submarinos e os ICBMs. Essa descoberta não é baseada no melhor cenário ou num cenário não realista nos quais os mísseis dos Estados Unidos funcionam perfeitamente e as ogivas atingem seus alvos sem erro. Ao contrário, usamos estimativas baseadas em possíveis erros ou mau funcionamento dos sistemas de armas americanos. Nosso modelo indica que todo o arsenal russo seria destruído mesmo que as armas americanas tivessem uma taxa de erro de alvo 20% superior à que estimamos ou que as armas dos Estados Unidos tivessem uma taxa de funcionamento de 70% ou que os silos russos onde ficam os mísseis balísticos intercontinentais fossem 50% mais fortes (mais reforçados e, portanto, mais resistentes a um ataque) que o esperado. (Naturalmente que as estimativas não secretas que usamos podem subestimar as forças dos Estados Unidos, o que aumentaria a probabilidade de sucesso).

Para deixar claro, isso não significa que um ataque preventivo dos Estados Unidos daria certo; um ataque destes envolve muitas incertezas. Nem, naturalmente, significa que um ataque destes vai acontecer. Mas o que nossa análise sugere é profundo: os líderes da Rússia não podem mais contar com a sobrevivência de forças nucleares intimidatórias. E, a não ser que eles mudem de caminho rapidamente, a vulnerabilidade da Rússia só vai aumentar com o tempo.

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