"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Os guardiães do mercado na defesa da iniciativa privada

Instituto Humanitas Unisinos - 08/12/08

Enquanto a imprensa continua veiculando a idéia de que se trata de um incidente de percurso, a crise econômica está colocando à mostra o progressivo declínio da hegemonia ocidental no mundo.

A reportagem é de Ugo Mattei, publicada no jornal Il Manifesto, 02-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O Ocidente está em recessão, o que significa estagnação e a interrupção do crescimento. Por si só, poderia se tratar de uma simples interrupção cíclica, e boa parte dos meios de comunicação “oficiais” procuram veicular essa idéia. Um, dois anos de “vacas magras”, um novo “Bretton Woods”, como se costuma dizer agora, e o modelo capitalista, fundado na democracia-liberal, voltará a ser o melhor sistema possível. Segundo outros observadores, poderemos, pelo contrário, nos encontrar frente a um colapso sistêmico, semelhante ao que sacudiu o modelo soviético. Ambas as perspectivas são compatíveis com o fato de que a liderança do Ocidente se perdeu e que o G8 é apenas uma feia lembrança (não se sabe se se esperará por um G20 ou um G14).

Para a Europa, cuja hegemonia já havia sido perdida em favor dos Estados Unidos há muito tempo, trata-se de um novo trauma, que foi surpreendida completamente despreparada frente a divisões e medos. Sob a guia de líderes sem qualquer credibilidade cultural antes mesmo que política, continua-se a contemplar o “patrimônio valorial do Ocidente”, as “raízes judaico-cristãs” e outras amenidades insípidas semelhantes, que procuram em vão dar um verniz de respeitabilidade ao racismo que se difunde. Um coisa, porém, é certa: todos os líderes europeus não querem aceitar o fato de que os equilíbrios do mundo mudaram desfavoravelmente à Europa e aos Estados Unidos.

Declínio europeu

Para os Estados Unidos, trata-se do primeiro golpe macroscópico em uma história de constante crescimento de influência planetária, desde o seu próprio nascimento, nunca antes interrompido, nem mesmo no período da Guerra Fria. Um modelo de superioridade ocidental radicado na Europa e poderoso veículo de exportação da arrogância do homem branco, mesmo que sob os diversos espólios, não menos brutais, de privatização, venda e dolarização (estrutural a partir de Bretton Woods), mais do que da direta colonização.

Diferentemente da Europa, onde os hipócritas e irreais rostos de Gordon Brown, Nicolas Sarkozy, Manuel Barroso (melhor, talvez, a figura de Angela Merkel, mas não falemos de nossos provincialíssimos e influentes líderes) são a demonstração última de uma crise irreversível da política européia, os Estados Unidos conseguem apresentar Barack Obama. Trata-se de um líder que, se não existisse, deveria ser inventado, pelo tanto que encarna a lógica da pós-modernidade: a hibridização cultural ao serviço do livre mercado. Mas talvez é muito tarde para que um presidente dos EUA (admitindo a possibilidade) possa ser condição necessário mas certamente não suficiente para a salvação, visto que a confiança sobre um mercado financeiro do valor de 20 vezes o PIB mundial annual (ou seja, 20 anos de economia real) colapsou no primeiro sussurro de que o “rei está nu!”, apesar da retórica que acompanhava a possibilidade de um crescimento contínuo.

Na verdade, a catástrofe econômica atual não é administrável por meio de instrumentos compatíveis com o capitalismo financeiro que a produziu e, portanto, não pode certamente ser resolvida com o principal produto política do capitalismo financeiro mesmo, ou seja, o presidente dos Estados Unidos. O impacto da catástrofe fora dos Estados Unidos (cuja economia, depois de Bretton Woods, domina todo o mundo) pode ser atenuado, certamente não evitado, apenas com instrumentos políticos, culturais e instituições fortemente antagonísticas com relação ao modelo estadunidense. A esperança é que ao menos a esquerda se dê conta disso. Deve-se, por isso, combater sobretudo a insuportável retórica celebrativa da liberdade, entendida como desigualdade social fundada sobre a santificação da propriedade privada. Coisa que o Ocidente, hipnotizado há décadas pelo falatório midiático sobre competição, meritocracia, desenvolvimento, crescimento, legalidade abstrata, direitos humanos, não está pronto para fazer, a menos que seja obrigado pela força e pelos movimentos sociais e políticos capazes de produzir uma verdadeira revolução copernicana que torne possível o que hoje parece impossível.

Instituições de longo prazo

Faz-se necessário, assim, que a elaboração teórica esteja pronta e saiba repensar agora na socialização dos mais importantes meios de produção (com co-gestão das empresas, caso estas permaneçam privadas), à redistribuição radical dos recursos (por meio de tributação progressiva e empréstimo patrimonial), à construção de um modelo misto em que o interesse público saiba verdadeiramente impor-se, pelas boas ou pelas más, sobre o privado e sobre o conflito de interesses. Trata-se de agir agora nas instituições democráticas “de longo prazo”, capazes de bonificar o nosso modelo de desenvolvimento, criando um novo, baseado na qualidade de vida de todos como comunidade e não na quantidade dos recursos que cada um, individualmente, pode controlar e consumir.

Tal transformação não pode ser guiada pelos mesmos líderes e pelas mesmas forças que nos levaram a esse desastre social e político, produzido pelo individualismo consumista. Ela pode ser imaginada apenasno quadro de uma ascensão ao poder da “fantasia ao poder”, que tenha a coragem de rediscutir os próprios espaços e os próprios tempos do político, alinhando-se sistematicamente do lado dos perdedores dos processos sociais capitalistas. Não obviamente uma fantasia abstrata mas, ao contrário, a coragem de saber escolher, sem preconceitos, no rico menu cultural que a civilização humana propõe ainda hoje. Trata-se de dispor-se com humildade frente à imensa riqueza de culturas tornadas vítimas do desenvolvimento capitalista, para recuperá-las, em via dialógica, e acompanhá-las a recolocação no centro das instituições globais antes que seja muito tarde para todos. Mas se salvar o Ocidente por si mesmo dos seus mitos e dos seus medos parece uma ação titânica, não há dúvida de que se trata mais de uma urgência, que poderia se tornar muito rapidamente uma necessidade muito mais do que uma escolha.

A prudência dos gigantes

A África faminta e sedenta por causa da contínua pilhagem e um mundo islâmico com relação ao qual a atitude racista de injustificada superioridade não parece ter mudado a partir do século XI estão dando amplos sinais de como os ciclos demográficos acabarão por prevalecer também na Europa. Por outra parte, eles oferecem modelos de civilização menos atomizados e mais agregadores.

A América Latina, há já alguns anos a principal beneficiária do anunciado colapso do império americano, distraído em suas loucas aventuras bélicas no Oriente Médio, constitui neste momento o mais importante laboratório político de alternativas “humanas” ao capitalismo financeiro, do Equador à Bolívia, Argentina, também o Brasil de Lula e a Venezuela de Chávez. Ela não deixou, entretanto, de pressionar sobre o incivilizado muro ao longo do Rio Grande e de “hibridizar” a sociedade norte-americana com milhões de trabalhadores explorados, por sua vez impelidos pela fome e pela privação.

A China e a Índia não estão em recessão, apesar de que a segunda tenha sido bem mais americanizada do que a primeira e sofra as conseqüências disso. Além dos efeitos ainda imponderáveis dos trágicos fatos de Mumbai, o crescimento, sustentam muitos analistas, poderá diminuir, descendo abaixo do incrível 10% anual da última década. Mas irá ficar entre 6-7%. Entre milhares de contradições e com diferenças notáveis, os dois gigantes asiáticos conseguem, de qualquer forma, colher os frutos da prudência, da propensão a economizar e da manutenção do primado do Estado e da elaboração política.

O esforço que se realiza sobretudo na China de distribuir finalmente a zona rural e urbana e de desenvolver uma economia menos fundada sobre as exportações de produtos mais baratos poderia dar a pensar em uma vontade de Pequim de pedir a conta aos Estados Unidos, recusando-se em continuar o financiamento dos hábitos da cigarra. Seria uma novidade global de um porte imenso. Pequim detém 2 trilhões de dólares em reserva e 1,2 trilhões de bens do tesouro norte-americano.

Mas no mundo pós-ocidental existem muitos outros protagonistas capazes de fornecer modelos políticos e culturais que, por escolha ou por necessidade, deveriam ser considerados. O Japão, sofrendo há mais de uma década, que ainda oferece um modelo de setor público e de burocracia altamente profissionalizada, fortemente armada sobre o plano político e cultural, e capaz de dialogar em igualdade com o setor privado. Há uma grande necessidade disso também no Ocidente, onde, pela ausência de uma classe profissional de civil servants, até mesmo o resgate americano constitui um novo episódio de privatização de funções públicas às grandes law firmsWall Street. E não falemos da nossa Itália, onde, sem pudor, o “timoneiro da economia”, também autor de medíocres livros anti-mercado, continua a propor obscenas privatizações-roubos (também, por último, da água), infelizmente com o apoio da “oposição” e dos governos locais, que tentam fazer negócios com os serviços e as participações públicas. de

E a velha protagonista da Guerra Fria, aquela Rússia cujo colapso imperial arrastou consigo o Welfare State no ocidente? Recentemente, durante um encontro, Marcello Cini defendeu que, talvez, o modelo Putin está servindo de base ao “consenso” do crepúsculo da economia liberal de mercado: autoritarismo, nacionalismo, militarismo, roubo. Uma chave interpretativa compartilhada e que ajudaria a compreender melhor a situação européia atual.

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