"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, maio 30, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 04/05/07

Índia, a receita de Kerala: 'Assim salvamos a nossa água'

Na zona afastada do caos de Calcutá, há lagos e canais naturais ou artificiais. Muitos dos habitantes vivem da pesca. Das regras para os turistas afixadas nos grandes hotéis das cidades aos conselhos para as ações de todos os dias. A região modelo para um desenvolvimento menos danoso ao ambiente: as regras dos hotéis para os turistas. A reportagem é de Federico Rampini e publicada no jornal La Repubblica, 1-05-2007.

Eis a reportagem.

No fundo, há na Índia um exemplo útil para enfrentar a emergência de seca italiana. O Estado de Kerala, com uma renda per capita de 550 euros ao ano, que é apenas 2,5% da renda italiana, não parece o lugar mais óbvio para aprender como se salva a água do planeta.

No entanto, esta extremidade meridional da Índia é estudada no mundo inteiro como um modelo de desenvolvimento sustentável, menos prejudicial e desequilibrado para o ambiente. O Kerala possui um respeito que nos falta pela água, embora não seja realmente árido. Ao contrário, é uma Índia úmida e verde, bem diversa das regiões áridas e poeirentas como o Rajastão com a suas tintas amarelo-ocre mais familiares aos turistas.

Na costa do Kerala, um denso dédalo de deltas fluviais cruza as correntes do Mar da Arábia e as terras emersas estão recobertas de florestas. O resto é laguna marinha, lagos e canais naturais ou artificiais, aqueles que chamamos de “backwaters”, as águas internas. A água que abunda em todo momento do dia e em toda atividade: habita-se sobre a água, a gente se desloca em barca, muitos vivem ainda da pesca, para outros os canais ou os rios irrigam a agricultura, servem de escoamento, tanques para a higiene pessoal, piscinas para os jovens. Nestes dias os primeiros temporais prenunciam a próxima estação das monsões, quando em junho a água não estará mais apenas “sob” mas também “acima” de Kerala, inundado em cataratas do céu. Em meio a tanto líquido, o viajante ocidental fica maravilhado diante das placas de metal que encontra no banheiro do hotel, com detalhadas instruções para ensinar-lhes as virtudes da economia.

“Quando lavamos os dentes, para enxaguar a boca basta-nos usar a água de um copo. Se vocês a deixam escorrer da torneira, podeis desperdiçar até 44 litros ao dia”. “Há quem lava as mãos com a água e a deixa escorrer para fora da pia. Nós tapamos a pia e conservamos a água para limpar as mãos ensaboadas: um simples gesto vale 16 litros de economia”.

“Sob a ducha temos o hábito de abrir a torneira intermitentemente , fechando-a quando não precisamos. Quem a deixa aberta do início ao fim, consume 70 litros a mais”. Em seu zelo, os hoteleiros acrescentam conselhos sobre como lavar os automóveis ou irrigar os jardins, que não são de utilidade imediata para o turista. Mas, interessantes para aplicar na própria casa.

A Baía de Forte Cochin, a ex-colônia portuguesa hoje rebatizada Kochi, contém um arquipélago de ilhas com lindas casas construídas à flor da água. É uma Índia em forte contraste com os lugares do boom econômico mais recente. Está longe o caos dinâmico de Mombaim, Calcutá e Bangalore, as capitais do “milagre indiano”, sobre os quais se concentra a atenção dos investidores ocidentais. Se o futuro do planeta pertence às megalópoles asiáticas, monstros urbanos com 20 e mais milhões de habitantes, congestionamentos de arranha-céus e acampamentos de desabrigados à beira do colapso, evidentemente alguém se esqueceu de dizê-lo aos habitantes do Kerala.

Aqui a população permanece ligada a um estilo alternativo: também quando é “classe média” que trabalha na cidade, continua a habitar como faziam os progenitores e os avós, dispersa nos vilarejos entre as árvores, e a vida transcorre tranqüila como as plácidas águas verdes que banham a paisagem. As multicoloridas barcas dos pescadores de alto mar parecem templos votivos flutuantes, ostentando sobre a proa coloridas divindades hinduístas, mas também Madonas ou santos cristãos. Sulcam os rios cruzando os mini-vaporzinhos para passageiros, as balsas para automóveis e os rebocadores. Tudo é circundado pela floresta tropical. Rios e canais transportam bancos de aguapés e sulcam muralhas de palmas de coco, árvores de bananas e de ananases.

A brisa do oceano e as fortes marés atenuam o desconforto do calor úmido. As águas são tão ricas de peixes, que atraem longas migrações sazonais de Estados também distantes, a gente de quem reconhece logo os “Andhra-people” e os “Orissa-people”, colônias de pescadores qu fazem centenas de quilômetros vindo de outras regiões da Índia. Os moradores locais praticam também uma singular pesca de arrasto: a bordo de pirogas ou gôndolas sutis, contracorrente, remando freneticamente a mão, com uma energia sobre-humana para estes pescadores tão magros, disparam sobre o mar lançando atrás de si as redes brancas sutilíssimas que de longe têm o aspecto do açúcar refinado. Nos lagos artificiais para a piscicultura as mulheres se lançam na água e nadam completamente vestidas, com as espertas agarram os peixes maiores prontos para o mercado. As antigas redes chinesas importadas há mais de mil anos dominam as praias a perder de vista, e de longe as suas estruturas fixas de madeira parecem gigantescos flamingos, depois se abaixam na água como enormes aranhas de madeira, altas quanto as palmeiras.

Não há miséria, nenhum mendicante pelas ruas de Kochi, antes um certo decoro, um bem-estar modestíssimo, mas difuso. Nas casinhas dos pescadores os tijolos e o reboco em cores flamejantes substituíram os velhos materiais mais pobres: madeira, fibra de coco e folhas de palmeira. As muretas de aterro que assinalam o tênue limite entre água e terra firme são tratados como num parque inglês. O barco com o escrito Móbile Health Clinic (ambulatório móvel) e as numerosas escolas públicas ou religiosas recordam uma peculiaridade desta zona: o Kerala, com o primeiro governo comunista eleito democraticamente na história mundial (1957), sempre teve uma qualidade de serviços sociais superior ao resto da Índia. Por décadas foi o equivalente da Emilia Romagna para os comunistas italianos, uma vitrine de bom governo. Hoje a eficiência burocrática não é mais aquela de outrora. O primeiro ministro do Kerala V. S. Achuthanandan denuncia que “somente um terço dos servidores públicos se apresentam regularmente trabalho”. Não obstante isso, em seu território existe o melhor nível de alfabetização (91% contra os 65% de toda a Índia), uma longevidade superior em 10 anos á média nacional, e menores disparidades sócio-econômicas entre as castas ou entre homens e mulheres. Para quem chega do smog do tráfego de Delhi, do fervilhar dos canteiros de obras de Mombai, do fervor excitado da nova Calcutá, parece aportar numa pequena Suíça tropical, abafada mas ordenada. E nesta atmosfera que o Kerala aposta para permanecer “diverso” enquanto puder. Encoraja o negócio do turismo de luxo, desfruta habilmente do fascínio da medicina aiurvédica (nascida aqui), das massagens de óleo aromático e das lições de ioga, junto com a nostalgia de uma história colonial particular: pelas estradinhas de Fort Cochin se encontram visitantes portugueses, holandeses, ingleses, israelenses, atraídos pelas relíquias intactas do próprio passado.

O Kerala permanece um baluarte da esquerda e do poder sindical, não propriamente o ideal para atrair os investimentos estrangeiros. No entanto, até agora não fez má figura em confronto com outras regiões da Índia, onde a modernidade é sinônimo de urbanização, congestão, poluição, tensões sociais. No último biênio o Pib local cresceu em 92,% ao ano, acima da média nacional. As rigidezes impostas pelos sindicatos se podem contornar.

O grupo Tata, sempre disposto a experimentar novas soluções de engenharia social, após um longo conflito com os 13.000 trabalhadores braçais nas suas plantações de chá do Kerala, resolveu o impasse envolvendo-os na participação acionária da fazenda.

Transformada quase em cooperativa, a Tata Tea viu desmoronarem as greves. De resto, a conflitividade está baixando de maneira geral: em relação aos oito mil litígios com greves de quinze anos atrás, o número de abstenções do trabalho baixou á metade. E a força dos comunistas não impediu ao Kerala a obtenção da primeira privatização de um aeroporto indiano.

Somente o elevado nível de instrução pregou uma peça nada boa ao Kerala. Para uma juventude demasiado qualificada com respeito às postos disponíveis no mercado de trabalho local, a emigração tornou-se uma válvula de escape. Em Kochi repete-se um choque: “O milagre do Karnataka (isto é, o boom da informática no Estado vizinho onde se encontra Bangalore, ndr), é todo feito com os cérebros do Kerala”. Ainda mais numerosos são aqueles que encontraram oportunidades e riqueza cruzando o Mar Arábico, indo sobretudo a Dubai.

Dos 35 milhões de cidadãos do Kerala, quase um milhão e meio (bem 4%) vivem no exterior, a maioria no Golfo Pérsico. Suas remessas às famílias valem centenas de milhões de euros ao ano. Uma parte destes emigrantes de sucesso começam a retornar. Trazem consigo uma cultura mais capitalista com respeito às tradições do Kerala. É o início de uma industrialização que se insinua dentro do “coração verde” deste Estado.

Os golfinhos que vi brincarem livremente em cada manhã no braço de mar entre o Forte Cochin e a ilha dos pescadores Vypeen, faz poucos dias desapareceram de improviso. O horizonte se obscurecera. Por horas o mar esteve “ocupado” por King Kong naval, um titânico combóio especial composto por chatas puxadas por três rebocadores, sobre as quais sobressaíam as altas colunas carregando uma plataforma petrolífera a ser depositada no Golfo. A vizinha zona de Ernakulam já está invadida por este outro tipo de desenvolvimento: as chaminés fumegantes de um complexo petroquímico, os molhes e os guindastes onde abordam os navios porta-containers. Ali, ao invés dos hotéis-butique para os amantes da tradição aiurvédica, há os arranha-céus Hilton e Taj, interpolados no interporto, assediados por um vai-vem de automóveis.

O premier Achuthanandan, marxista e ambientalista, após anos de resistência teve que ceder ante a necessidade de energia e deu sua liberação a uma controversa barragem hidrelétrica, que ameaça alagar um antigo “corredor dos elefantes” na floresta do Silent Valley National Park. Na vizinhança do porto, os pecadores vêem águas mais poluídas. Vigiam a presença dos golfinhos. Temem que um dia não mais existirão: emigrados também eles, mas para fugir dos venenos. Por isso adverte-se aqui, em meio a tantas crenças que convivem pacificamente, uma nova religião da água. Sua abundância não mais engana. O Kerala aprendeu que a riqueza hídrica é aparente e precária. Sabe quanto custa “limpar a sujeira”, sabe a diferença de custos que separa a água abundante mas perigosa e a outra, límpida, pura e potável. Também entendeu que uma das prioridades é educar-nos melhor, viajores do Ocidente, os dissipadores vindos da civilização da torneira aberta. Assim nasceram nos hotéis de Kochi todas aquelas instruções esculpidas nas placas de metal, cheias de surpresas. Quem o teria dito: usando um balde para regar as flores do jardim – bem como o caninho de borracha amarrado à torneira – economizam-se 115 litros por semana. Uma semana de vida para uma família do Kerala.

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