"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 05/02/08

‘O mercado é compatível com a liberdade, mas é um produtor de desigualdades’. Entrevista com Delfim Netto.


“A economia é uma ciência moral e está longe de ser uma ciência exata”. A afirmação é do ex-ministro e ex-deputado federal Delfim Netto em entrevista à revista Desafios, 25-01-2008, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na entrevista o economista faz uma veemente defesa do papel do Estado: “Nunca houve nenhum processo de desenvolvimento no mundo em que o Estado não estivesse atrás, até hoje”. Delfim ainda fala de sua simpatia por Lula: “Lula é o único sujeito no Brasil que quando fala em pobre está falando seriamente”.

Eis trechos da entrevista.

O que o aproxima do atual governo?

Eu admiro a política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Lula teve uma intuição correta quando deu ênfase para melhorar a igualdade de oportunidade no Brasil. Para o mercado funcionar, ele tem que ter um mínimo de moralidade. E a moralidade no mercado vem da igualdade de oportunidade. É como uma corrida, e para que as coisas funcionem é preciso que todo mundo parta mais ou menos do mesmo ponto. Talvez seja o papel fundamental do Estado: igualizar as oportunidades. O governo Lula é a intuição do Lula. Só isso. Na verdade, é o único sujeito no Brasil que quando fala em pobre está falando seriamente. Todos nós somos cínicos...

O senhor faz críticas à política econômica?

A economia é uma ciência moral e está longe de ser uma ciência exata. Ser constituída de escolas já mostra que existem múltiplas visões no mundo. Uns crêem que o mercado seja capaz de produzir por si mesmo o equilíbrio, e outras, como é o meu caso - nem sei o que eu sou, certamente eu diria que talvez seja um keynesiano de pé quebrado. O certo é que o funcionamento da economia depende de um Estado. O mercado exige algumas coisas importantes, a primeira delas é a propriedade privada. Ora, quem garante a propriedade privada? É o Estado. Quando eu vejo um sujeito dizer que "nunca houve uma interferência do Estado nos programas de industrialização bem-sucedidos do mundo", acho isto uma tolice monumental, de uma ignorância histórica gigantesca. Nunca houve nenhum processo de desenvolvimento no mundo em que o Estado não estivesse atrás, até hoje. Só que de vez em quando está bem escondido.

Mas a economia planificada não tem feito sucesso...

Ninguém defende a economia planificada. A tolice daquela economia era querer planificação sem preço. A vantagem do mercado é que ele não foi inventado, ele foi descoberto. E o homem não descobriu nenhum mecanismo mais eficaz do que o mercado para realizar o sistema produtivo. Produção é certamente um problema técnico. Distribuição, não, é um problema político. Adam Smith e Stuart Mill sabiam disto muito antes do que Karl Marx. O mercado é muito compatível com a liberdade, mas obviamente é um produtor de desigualdades. E para que as desigualdades sejam aceitas é preciso que elas partam do mesmo lugar. O homem é naturalmente diferente. Ninguém quer a igualdade no final, nós queremos a igualdade no começo. O resultado final é diferenciado mesmo. Mas essa diferenciação é aceitável porque eu parti do mesmo lugar, tinha duas pernas, e cansei antes do outro.

O papel do Estado é regular o tiro de partida?

É garantir minha posição no mundo, independentemente de onde eu nasci. Se nasci num lar de religião católica ou protestante, se eu sou branco ou preto ou amarelo, se nasci no Morumbi ou no Cambuci. Na verdade, isso não se consegue, é uma meta, é uma assíntota, que vai se aproximando dela à medida que suas políticas sociais são corretas.

O exemplo aí inclui a si próprio?

Eu sou um exemplo do ensino gratuito. Gastei 6 mil réis para fazer o curso inteiro na Universidade de São Paulo (USP). Passei no vestibular, comprei um selo para colocar no requerimento de matrícula na USP e lá eu recebi tudo: aula, papel, lápis, borracha, livros, professores, máquinas para calcular, o que precisasse. É um processo de igualização de oportunidades. É claro, era para um número restrito.

Hoje ampliou um pouco mais do que naquela época.

É claro, muito mais do que era,nem se compara. Mas o que eu digo é o seguinte: esses mecanismos de igualização são fundamentais porque eles é que dão moralidade para o mercado. Não adianta imaginar, nem Hugo Chávez nem Evo Morales são produtos do acidente e da vontade. O caso do Morales é típico. O plano de estabilização do Jeffrey Sachs em 1985 pôs a Bolívia em ordem, o que parecia impossível. O que eles tinham esquecido? O índio. Quando abriu a urna, o índio veio e falou. Então, quando se têm essas duas instituições funcionando juntas, o mercado e urna, se o mercado exagera numa direção, a urna corrige. Se exageramos o consumo no presente, teremos menos crescimento e menos consumo no futuro. Se exageramos no investimento no presente, tem-se provavelmente um sacrifício que não é aceito na urna. Essa é, na minha opinião, a virtude do Lula. A minha admiração tem origem no fato de que ele intuiu esta circunstância.

A urna também contém distorções como o mercado?

Não. O que é a distorção da urna? Quem é que mede a distorção da urna? A do mercado, eu sei.A mão invisível do mercado só funciona com a mão visível do Estado. Agora, a urna reflete os sentimentos das pessoas. O que falta para os economistas é colocar como modelo a urna. Ela é que permite que uma política virtuosa tenha continuidade. Mesmo que haja sucessão, como tem que haver mesmo, há uma continuidade das virtudes. Mas quando se tenta ser virtuoso demais, a urna vem, acha que não é, e muda.

E como o senhor vê a Venezuela?

É um caso típico de um psicopata que se apropriou de um país que antes dele foi apropriado por cleptomaníacos.Um psicopata que sucede cleptomaníacos é uma comédia de erros. A urna está corrigindo nos dois sentidos. Eu não sei por que as pessoas estão preocupadas. Vamos ver daqui a 25 anos um homem novo nascido na Venezuela.

E o Brasil?

O Brasil estava falido em 2002, faliu duas vezes entre 1995 e 2002. As exportações brasileiras cresciam a 3,8% ao ano e a dívida externa, a 6,6%. A trombada estava decidida. Abandonamos o setor exportador desde 1986, quando se congelou pela primeira vez o câmbio, e foi-se repetindo o congelamento. A energia necessária para produzir a capacidade de importação que se precisa para crescer foi dissipada por essas políticas erradas. É isto que fez o Brasil crescer pouco. Não tem nada que ver com a maioria dos argumentos que estão aí. O Brasil só deixa de crescer quando tem restrição externa ou então quando tem uma restrição de energia.

O atual crescimento é sustentável?

Em 2002, as pessoas que estavam indo embora do governo diziam que "não tem importância porque o Lula vai ser Lula o Breve". Mas o mundo cresceu, o Brasil expandiu suas exportações, melhoraram os preços dos nossos produtos. Mas continuamos a ser 1,1% do comércio mundial, como já éramos em 1984. Corremos e ficamos no mesmo lugar. A China, em 1984, exportava como o Brasil e hoje é 9% do comércio mundial. Agora, tenho a convicção de que crescemos 5% em 2007 e vamos crescer 6% este ano. Eliminamos as duas restrições que abortam o crescimento: a vulnerabilidade externa e a falta de energia.

O que ainda está errado?

Acho que a política cambial, sem dúvida. Na política energética, lentamente estamos superando. O desenvolvimento é um estado de espírito. Foi isto que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) acendeu. O PAC já produziu o seu efeito, que foi acender o setor privado. Então, hoje eu não tenho nenhuma razão para acreditar que isso vai desaparecer.

Qual é o papel dos programas de transferência de renda?

Vão diminuir a desigualdade de oportunidades. Agora, não se vai resolver o problema de distribuição de renda simplesmente com isso. Quer dizer, não tem simplesmente que dar suporte, que é necessário, para o mais fraco. É preciso dar a ele também as condições de se libertar do suporte que se está dando a ele. Por exemplo, o Bolsa Família é um instrumento extremamente importante porque ele satisfaz estas duas condições.

O senhor na juventude foi socialista fabiano...

Eu fui socialista fabiano quando era ingênuo, antes de ter lido o livro do George Stigler sobre a teoria dos preços. Eu me libertei da gaiola lendo um livrinho simples, quando aprendi o papel da teoria dos preços. Eu ainda tinha algumas veleidades quando entrei na USP. Depois, felizmente, eu entendi que tudo aquilo tinha um defeito fundamental, porque era incompatível com a liberdade, ainda que tudo o que eles diziam era só para serem livres. Na verdade, o mercado é compatível com a liberdade, mas não é compatível com a igualdade, a não ser que se dê igualdade de oportunidade.

O senhor disse mesmo que o bolo precisava crescer antes de distribuir?

Eu, não! Só um sujeito que não tem noção das coisas poderia dizer. A única forma de primeiro crescer e depois distribuir o bolo era em um regime socialista. Em um regime como nós tínhamos, de economia de mercado, isso é impossível, por definição, porque senão o mercado não cresce. Aquilo foi uma frase de combate, de efeito. Esses idiotas deveriam aprender que o crescimento acelerado, mesmo com uma política que se preocupa com a distribuição de renda, tem uma tendência para aumentar a desigualdade, a distância entre as pessoas. Não é a desigualdade de oportunidades, mas a distância entre as pessoas. É o que está acontecendo e o que vai acontecer.

Como atenuar isso?

É por isso que os programas de correção devem ser focados cada vez melhor e continuados. Uma boa parte desses programas foi produzida porque o crescimento não aconteceu. Durante 25 anos o Brasil patinou, o desemprego ficou enorme. O crescimento que estamos vivendo é um novo momento. Desenvolvimento é um estado de espírito. Governo faz discurso, quem faz o desenvolvimento é o empresário, o espírito animal do empresário. Foi isso que o Lula acordou. Estava dormindo. O PAC teve esse mérito. O PAC na verdade pôs na mesa de volta o problema do crescimento.

O principal papel então já está cumprido?

Agora está cumprindo com maior eficiência. No momento em que o Estado transfere para o setor privado através de leilões adequados as tarefas de infra-estrutura, nós vamos ter uma aceleração do crescimento. São Paulo está fazendo isso, Minas também, Bahia está entrando e vai ter emulação nos outros estados. O aumento dos investimentos em infra- estrutura eleva a produtividade do setor privado. É por isso que nós vamos crescer. O aumento de 1% no investimento do setor público em infra-estrutura produz em 18 ou 24 meses um aumento de 0,24% do PIB. O governo entendeu isso. Saíram os sete trechos de rodovias, a Norte-Sul, a Transnordestina, a hidrelétrica do rio Madeira e já irão sair todos os outros, São Paulo está com treze concessões para serem feitas. O Brasil acordou e tem recursos.

Os leilões melhoraram?

O governo descobriu que existem leilões capazes de eliminar a assimetria de informação entre o poder concedente e o poder que recebe a concessão. Hoje, estão-se fazendo concessões muito melhores do que se fizeram no passado, em que se obriga o concessionário a explicitar realmente o que ele quer.Então, esta é que foi a grande mudança, na minha opinião, introduzida pela ministra Dilma Rousseff. Na verdade, a gente atribuía à ministra Dilma um certo viés ideológico - "ela não quer fazer a privatização, ela não quer fazer a concessão porque acha que é o Estado que deve fazer..." -, e hoje eu me rendo. Na verdade, ela estava realmente à procura de alguns mecanismos que eliminassem essas assimetrias de informação. Eles já existiam e ela chegou neles. E o governo chegou neles. Tanto é verdade que eles estão se estendendo para todos os outros governos.

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