"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, dezembro 20, 2008

O setor elétrico: por que a crise anunciada não ocorreu e quanto custou evitá-la

Blog do Luis Nassif - 14/12/08



No início deste ano, o setor elétrico brasileiro enfrentou um momento muito difícil. Durante o mês de Janeiro, muitos analistas consideravam que não seria possível o país escapar de um racionamento. No entanto, ao chegarmos ao final do ano é possível constatar que os elevados riscos de déficits não se tornaram realidade e o país encontra-se em uma situação de relativa tranqüilidade no front elétrico.

Afinal, o que aconteceu ao longo do ano para que o desastre anunciado em Janeiro não se consumasse? Como se comportaram as chuvas? Quais foram as estratégias empregadas pelas autoridades governamentais do setor? Quais foram os seus custos para a sociedade?

O gráfico abaixo apresenta a Energia Armazenada nos Reservatórios (EAR), em percentagem da capacidade máxima de armazenamento, nos reservatórios mais importantes do país, aqueles que estão localizados nas regiões Sudeste e Centro-oeste. Neste gráfico estão os dados verificados (REAL) e os dados estimados pela Curva de Aversão ao Risco (CAR) - que indicam os níveis abaixo dos quais os riscos de racionamento são muito elevados e, portanto, devem ser evitados a qualquer custo. Nesse sentido, quando esses níveis são alcançados todas as térmicas devem ser utilizadas para impedir que a água presente nos reservatórios seja utilizada e o nível continue caindo.


Essa situação aconteceu justamente no mês de Janeiro, quando o nível de armazenamento nos reservatórios da região SE/CO alcançou 50,8 %, enquanto o nível seguro, indicado pela CAR, apontava 53 %. Em Fevereiro a situação melhorou, e o nível de armazenamento desses reservatórios alcançou 65,7 %, ficando acima daquele previsto pela CAR, que era de 63 %. Nos meses seguintes, os níveis dos reservatórios permaneceram todo o tempo acima daqueles previstos pela CAR, chegando no mês de Novembro com 49,7 % da capacidade de armazenamento, portanto, 12,7 pontos percentuais acima do nível considerado seguro (37 %) pela Curva de Aversão ao Risco.

Essa situação segura de operação do nosso sistema elétrica resultou de dois fatores: as chuvas e o intenso uso das térmicas ao longo de todo o ano.

O gráfico a seguir apresenta a Energia Natural Afluente (ENA) na região Sudeste, que está diretamente relacionada às chuvas. Os dados são apresentados em termos de percentagem em relação à média histórica das chuvas, a chamada Média de Longo Termo (MLT).


Não é à toa que o bicho pegou em Janeiro deste ano. Nesse mês, a ENA ficou em 66,6 % da média histórica; enquanto no ano anterior ela havia ficado em 173,4 % da MLT. Desse modo, 2008 começou chovendo muito menos do que em 2007. E isso já vinha acontecendo desde o segundo semestre de 2007, com a ENA ficando bem abaixo da média histórica nos meses de Setembro (76,9 %), Outubro (63,2 %), Novembro (87,6 %) e Dezembro (72,5 %).

No entanto, a situação começou a mudar a partir de Fevereiro de 2008, de tal forma que até Agosto, as chuvas permaneceram acima da MLT em todos os meses; a exceção do mês de Julho no qual elas foram iguais a essa média. Já em Setembro, Outubro e Novembro, as chuvas voltaram a vir abaixo da média, porém, não tão abaixo como no ano anterior.

Assim, o ano de 2008, que começou anunciando um desastre, se recuperou e, a partir de Março, choveu mais do que no ano anterior. Entretanto, embora o regime pluviométrico não tenha sido uma catástrofe como se anunciou no início, também não foi nenhuma Brastemp. Logo, não foi somente a recuperação das chuvas que garantiu a segurança do sistema.

Mas, se não foram apenas as chuvas, quem mais entrou no jogo?

O gráfico seguinte apresenta a geração das térmicas no Sistema Integrado Nacional (SIN), em Gw médios nos anos de 2007 e 2008.


Vê-se de imediato que as térmicas em 2008 geraram muito mais do que em 2007. Em média, até Novembro, a geração térmica foi 77,4 % maior do que no ano anterior. Sendo que em Fevereiro esse valor atingiu 200 %. Entre as térmicas, destacam-se as centrais a gás natural.

No gráfico abaixo é apresentado o consumo de gás natural, em Milhões de metros cúbicos por dia (Mm3dia), de 2007 e 2008. Os dados disponíveis vão até Outubro.


Nesse caso específico, o consumo de gás natural para geração térmica em 2008, em média, até Outubro, foi 191,3 % maior do que o observado em 2007. Sendo que esse valor atingiu 271,46 % no mês de Fevereiro.

Trocando em miúdos, as térmicas bombaram em 2008, sendo que no mês de fevereiro estouraram a boca do balão, gerando 7,2 GW médios, com as centrais a gás, em particular, consumindo 15,2 Milhões de metros cúbicos de gás por dia.

Desse modo, meus amigos, é correto afirmar que as térmicas foram decisivas para se manter o nível de segurança do sistema elétrico nacional e evitar o racionamento em 2008 e 2009.

No gráfico abaixo é apresentado a Energia Armazenada nos Reservatórios (ENA), em percentagem da capacidade máxima de armazenamento, para as regiões Sudeste e Centro-Oeste nos anos de 2007 e 2008.


Notem, meus caros, que apesar de todo o esforço desprendido, os níveis de armazenamento em 2008 permaneceram abaixo daqueles observados em 2007. De tal maneira que, somente em Novembro, conseguiu-se ficar 1,5 ponto percentual acima do nível do mesmo mês do ano anterior. Nível esse que gerou um monte de aborrecimentos para o setor elétrico no início deste ano de 2008. Porém, cabe ressaltar que, no caso das regiões Nordeste e Sul, os resultados foram melhores. Na região Nordeste os reservatórios estão chegando em Novembro com 7,0 pontos percentuais acima daquele observado em 2007 (36,3 % em 2008 e 29,3 em 2007) e na região Sul esse valor atinge 18,0 pontos percentuais (93,5 % em 2008 e 75,5 % em 2007). Em contrapartida, na região Norte, os reservatórios em Novembro chegaram com um nível de armazenamento 5,6 pontos percentuais abaixo do de 2007 (24,9 % em 2008 e 30,5 % em 2007). No total, isto significa que o conjunto dos nossos reservatórios apresenta um nível de armazenamento cerca de 3,0 pontos percentuais acima daquele observado no ano passado. Parece pouco, mas não é. Esses três pontos percentuais correspondem, grosso modo, a 9 GW mês, a mais, disponíveis nos nossos reservatórios em 2008, em relação ao que estava disponível em 2007.

Quais foram os custos para os agentes econômicos presentes no setor elétrico brasileiro dessa situação.

O gráfico abaixo mostra o comportamento do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), em R$/MWh, nos anos de 2007 e 2008. Este preço é importante na medida em que ele serve de referência para os contratos realizados no mercado livre de energia elétrica. Nesse mercado participam geradores, comercializadores e os chamados consumidores livres (consumidores que consomem mais do que 3.000 kW).


Observem, caros leitores, que os preços explodiram no mês de Janeiro, alcançando 502,45 R$/MWh, valor muito mais elevado do que os modestos 22,62 R$/MWh alcançados no ano anterior, e mantiveram-se elevados nos meses de Fevereiro (200,42 R$/MWh) e Março (124,70 R$/MWh). Contudo, houve uma mudança na tendência a partir de Maio, com os preços de 2008 ficando abaixo dos de 2007. Dessa maneira, a explosão de preços que alguns analistas previram que se manteria ao longo de todo o ano não aconteceu, ficando restrita aos três primeiros meses. O resultado dessa abrupta elevação dos preços nesses meses foi o surgimento de inadimplência nos contratos do mercado livre que, no entanto, ficou abaixo das expectativas. Porém, sem dúvida, os eventos do início deste ano causaram certo abalo nesse mercado, restando até hoje algumas pendengas jurídicas em curso no judiciário, no entanto, geraram uma série de medidas para dar maior segurança aos contratos, com maior exigência de garantias àqueles que comercializam no mercado livre.

Outro custo importante está associado ao pagamento do Encargo de Serviços do Sistema (ESS).

No início do ano a ANEEL aprovou as regras para o repasse do custo adicional pela geração fora da ordem de mérito, que acontece em duas situações:

1) Quando o nível dos reservatórios atinge a Curva de Aversão ao Risco (CAR)

2) Por decisão do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico - CMSE.

Em ambos os casos prevê-se o despacho fora da ordem de mérito - despacho que segue a norma operativa de despachar em primeiro lugar as centrais que têm o mérito de terem os custos de geração mais baixos, de acordo com os modelos computacionais utilizados pelo Operador Nacional do Sistema - para atender requisitos de segurança do sistema.

Assim, quando se atinge um nível de reservatórios abaixo daquele considerado seguro pela Curva de Averssão ao Risco, todas as térmicas têm de ser despachadas, e não apenas aquelas que o modelo operativo indica.

O mesmo acontece quando o CMSE decide que um conjunto de térmicas tem de ser despachado, mesmo com os níveis dos reservatórios acima da CAR, porque ele considera que existe algum fato que coloca em risco o suprimento. Ou seja, qundo o Comitê identifica uma situação de crise que não está contemplada na CAR ou nos modelos operativos correntes.

A primeira situação ocorreu durante o mês de Janeiro e parte do mês de Fevereiro. A segunda situação permaneceu ao longo de todo o ano. Inicialmente, até Maio, quando as térmicas a óleo, as mais caras, ficaram ligadas direto, em função da incerteza acerca do comportamento das chuvas, e, e em um segundo momento, em função da introdução dos níveis-meta; que é um procedimento operativo de segurança, introduzido este ano, que define níveis de armazenamento que devem ser alcançados em Novembro, no início do chamado período úmido, para garantir a segurança do suprimento no ano seguinte: 53 % para a região SE/CO e 35 % para a região NE.

No caso do despacho das térmicas em função da CAR, o custo adicional de geração é dividido, proporcionalmente, entre todos os agentes do mercado livre – agentes que realizam as suas transações através da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) -, com base na energia comercializada nos últimos doze meses.

No caso do despacho por decisão do CMSE, o custo adicional de geração é rateado proporcionalmente ao consumo médio de energia nos últimos doze meses por todos os agentes de consumo - agentes com medição de consumo do Sistema Interligado Nacional (SIN) - e é cobrado mediante o Encargo de Serviços do Sistema por razão de segurança energética.

As duas situações previstas pela ANEEL, como vimos, ocorreram este ano, e, no caso particular do despacho fora do mérito por decisão do CMSE para aumentar a segurança do sistema, os valores do Encargo de Serviços do Sistema atingiram, até Agosto, cifras significativas.

O gráfico abaixo mostra esses valores, em milhões de Reais, nos último seis anos.


Assim, meus amigos, este foi o custo do despacho das térmicas que garantiram a segurança do sistema: 1,7 Bilhão de Reais, até Agosto, rateados pelos consumidores de energia elétrica, aí incluídos eu e você que está me lendo.

Afinal, foi caro? Era melhor deixar ocorrer o racionamento?

Meus amigos, essa resposta envolve uma série de questões que não são simples. O que eu sei é que se olharmos para o volume de chuvas que ocorreu em 2008, o despacho das térmicas fora do mérito permitiram que chegássemos a uma situação relativamente confortável em Novembro. Sem esse despacho é possível que a situação, neste momento, estivesse bastante delicada. Provavelmente, mais delicada do que no ano passado. Nesse sentido, a decisão de empregar fortemente as térmicas foi correta e o preço, por maior que tenha sido, Justificarvaleu a pena pagar.

No entanto, há analistas que consideram o despacho fora do mérito, decidido pelo CMSE, uma medida que rompe com o planejamento operativo do operador do sistema (ONS). Caso esse planejamento fosse seguido, essas térmicas não seriam despachadas e os custos, por conseguinte, seriam mais baixos. O problema é que se isso tivesse sido feito, provavelmente, estaríamos em uma situação mais vulnerável do que a do ano passado.

Diante dessa argumentação, a conclusão que eu chego é que esses analistas consideram que o melhor teria sido aplicar um racionamento no início do ano. O custo desse racionamento teria sido menor do que o 1,7 Bilhão.

O problema é que calcular custo de racionamento não é uma tarefa simples e ultrapassa a simples consideração do custo do déficit presente nos nossos modelos.

Um racionamento desorganiza a economia, afeta dramaticamente o dia-a-dia da população, desqualifica as instituições do setor elétrico e geralmente implica, por tudo isso, em um enorme ônus político.

Nesse sentido, reduzir a discussão do custo do racionamento a uma questão de planejamento operativo do operador do sistema, de obediência, ou não, a modelos matemáticos complexos, que procuram descrever realidades complexas e incertas, não gera resultados práticos e, acima de tudo, politicamente aplicáveis.

Olhar o que ocorreu este ano e afirmar que em Fevereiro o regime de chuva já tinha se estabilizado é fácil agora, em Dezembro. Contudo, o difícil era afirmar isso em Março. Mais do que difícil, isso era simplesmente impossível.

Em função disso, o que se pode dizer é que o setor elétrico brasileiro, face a uma situação extremamente delicada no início deste ano, foi capaz de mobilizar os recursos necessários para evitar um racionamento no biênio 2008/2009. Isso não é pouca coisa. Principalmente, para um setor que padeceu nas décadas anteriores de uma incapacidade crônica de coordenação, que chegou ao auge no racionamento de 2001.

No entanto, uma questão cabe ser levantada sobre a capacidade de coordenação das instituições do setor elétrico brasileiro.

Os níveis-meta determinados para o armazenamento dos reservatórios da região SE/CO (53 %) e NE (35 %) para o mês de Novembro foram alcançados apenas em parte; ou seja, somente para a região NE, na qual o armazenamento chegou a 36,3 %. Na região SE/CO esse valor chegou a 49,7 %; portanto, 3,3 pontos percentuais abaixo do nível-meta estipulado.

Esses 3,3 pontos percentuais se devem, segundo o ONS, a indisponibilidade de um transformador na subestação de Tijuco Preto que limitou em cerca de 2.000 MW médios a transferência de energia da região Sul (onde estava sobrando energia) para a região SE/CO. O que reduziu a água nos reservatórios dessa última região mais do que o previsto.

Além disso, houve atraso na implantação da planta de regaseificação de GNL de Pecém, no Ceará. Esse atraso fez com que a disponibilidade de geração térmica a gás natural durante o segundo semestre de 2008 ficasse limitada a 180 MW médios, ao invés dos 814 MWmédios previstos anteriormente. O resultado foi a redução do armazenamento dos reservatórios da região Nordeste em cerca de 6 pontos percentuais.

Logo, se alguns analistas perguntam por que as térmicas a óleo permaneceram sendo despachadas até Maio desse ano, eu perguntaria por que elas não foram despachadas mais tempo para que fosse alcançado o nível-meta na região SE/CO?

Assim, a pergunta que fica é qual é a real função dos níveis-meta? Quando eles não são alcançados, o que isso significa? As térmicas deveriam ter sido despachadas para atendê-los, ou não? Por quê?

Portanto, meus amigos, ainda falta muito para ser feito na implantação do chamado novo paradigma de segurança operacional do setor elétrico. Penso que nós ainda estamos no início dessa caminhada e que muita água ainda vai passar embaixo dessa ponte. Principalmente, quando a gente pensa que a capacidade dos novos reservatórios, por razões ambientais, será cada vez menor, fazendo com que o papel das térmicas para fazer face ao risco hidrológico seja cada vez mais decisivo.

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