"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, setembro 15, 2008

Após furacões, Haiti atola no sofrimento

Instituto Humanitas Unisinos - 14/09/08

As despensas estavam completamente vazias antes que os ventos começassem a soprar, os céus se abrissem e essa cidade litorânea (Gonaïves) se visse recoberta por uma espécie de muco marrom, espesso e mal cheiroso. O sofrimento há muito tempo é normal por aqui, transferido geração após geração por crianças que aprendem que chorar de nada adianta. E o persistente espírito de luta do povo de Gonaïves está sendo testado uma vez mais por uma sucessão de tempestades tropicais e furacões cujos nomes os haitianos agora pronunciam em tom de maldição: Fay, Gustav, Hanna e Ike. Depois de quatro ferozes tempestades em menos de um mês, o pouco que a maioria dos moradores tinha se transformou em nada. As casas humildes em que eles vivem estão submersas, e eles hoje moram sobre os telhados. As vidas sempre difíceis se tornaram insustentáveis, e a temporada de furacões mal chegou à metade de sua duração tradicional. Edith Pierre toma conta de seis crianças no telhado de sua casa, no centro de Gonaïves. Ela estendeu um lençol para servir de abrigo, na medida do possível, contra o sol feroz. "Agora, não nos resta coisa alguma", disse, antes de parar por um minuto, contemplar a inundação e repetir, em tom ainda mais deprimido: "Nada". Na casa de Daniel Dupliton, que comanda a Cruz Vermelha local, parentes, amigos e completos desconhecidos desabrigados estão instalados, mais de cem pessoas ao todo, ocupando cada centímetro de espaço nos cômodos internos e no quintal. "Existem os abrigos oficiais, mas também os extra-oficiais, como a minha casa", disse ele.

A reportagem é de Marc Lacey e publicada pelo jornal New York Times e reproduzida pelo jornal Folha de S. Paulo, 14-09-2008.

Inflação dos alimentos

Moradores do país mais pobre do hemisfério ocidental, os haitianos agora vão conhecer miséria ainda maior. Já enfrentavam dificuldades para encontrar comida antes que os furacões varressem suas plantações, matassem seu gado e arrastassem suas modestas reservas de arroz em grandes enxurradas. Agora, o país dependerá ainda mais de importações, e os preços elevados dos alimentos só agravarão a situação. "A vida era muito, muito difícil, mesmo antes disso", disse Raphael Chuinard, que está organizando a distribuição de assistência de emergência em Gonaïves para o Programa de Alimentação das Nações Unidas. "O índice de subnutrição já era alto demais. As pessoas estavam resignadas a sofrer." E agora esse sofrimento deve piorar. Furacões atingiram as dez regiões do Haiti e, ao derrubar pontes e inundar estradas, isolaram bolsões de miséria nas zonas rurais. Assistentes sociais e autoridades haitianas relataram mais de 300 mortes, a maioria das quais causadas pela tempestade Hanna, e estavam só começando a chegar aos locais mais afetadas. Em Gonaïves, que ainda continua isolada do resto do Haiti, os céus ensolarados ajudaram a reduzir o nível de água nos últimos dias, mas os moradores ainda precisam caminhar pelas ruas mergulhados até os tornozelos, os joelhos ou os quadris nos efluentes. O hospital da cidade e milhares de residências continuam inundados.

Escolta armada

Levar alimentos aos famintos não é tarefa fácil e depende de aviões, navios e helicópteros, porque os caminhões estão atolados na lama. Para conter as brigas, eles vêm sendo protegidos por soldados argentinos da missão de paz das Nações Unidas fortemente armados. Os políticos haitianos estavam ocupados brigando, enquanto as tempestades se aproximavam. O Legislativo derrubou o último premiê do presidente René Préval, em abril, depois de distúrbios devido à falta de alimentos, e rejeitou duas indicações para o posto. Michelle Pierre-Louis está assumindo como primeira-ministra em meio aos esforços de recuperação. Ela tentou chegar de carro a Gonaïves alguns dias atrás, mas não conseguiu. Pierre-Louis sobrevoou a zona de desastre na terça-feira, o que gerou resmungos em Gonaïves por ela não ter aterrissado. Ao "Miami Herald", o presidente Préval disse que "se trata de um Katrina que atingiu todo o país, mas sem termos os meios que a Louisiana tinha".

Precedente

Gonaïves, a cidade que teve mais mortes e destruição, sempre foi especialmente vulnerável às ações de furacões. O porto fica na costa norte do país, em uma planície aluvial, e as águas não demoram a tomar a cidade quando os rios transbordam e a enxurrada desce das montanhas das quais as árvores foram há muito cortadas. Mas a mesma geografia oferece potencial agrícola à região, de onde provém boa parte do arroz cultivado no país. Foi exatamente assim há quatro anos, quando o furacão Jeanne devastou Gonaïves, matando 3.000 pessoas e derrubando boa parte da cidade. Desta vez, porém, discute-se se vale a pena recriá-la uma vez mais. Autoridades falam em transferir pessoas que vivem nas áreas mais baixas.

Há discussões sobre adotar normas mais severas de construção civil, de modo a que a próxima tempestade -e todos sabem que haverá uma próxima- não arraste com tanta facilidade as frágeis estruturas. O centro local de coordenação de emergências foi inundado, e Yolene Surena, que o dirigia, prometeu que o novo será construído em local mais alto. "Deveríamos tê-lo feito da última vez", reconheceu, com um aceno negativo de cabeça. Na capital, Porto Príncipe, Patrick Elie, assessor do presidente e autor de um relatório sobre se o país deve recriar seu Exército, disse que as tempestades tornam ainda mais claro para ele que os maiores inimigos do Haiti não são Exércitos externos - desde 2004 estão ali tropas de paz da ONU, sob o comando militar do Brasil. "Precisamos de um sistema de defesa civil", disse. "Essas tempestades ilustram a fraqueza do Estado haitiano. Por que sempre somos apanhados de surpresa por uma tempestade se sabemos que elas virão?"

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