"O ensino, como a justiça, como a administração, prospera e vive muito mais realmente da verdade e moralidade, com que se pratica, do que das grandes inovações e belas reformas que se lhe consagrem." Rui Barbosa
Friedrich Nietzsche
quinta-feira, junho 16, 2011
Planeta Humano
Prisão Acampamento
Joe Arpaio é o xerife do Condado de Maricopa no Arizona já há bastante tempo e continua sendo re-eleito a cada nova eleição.Ele criou a 'cadeia-acampamento', que são várias tendas de lona, cercadas por arame farpado e vigiado por guardas como numa prisão normal. Baixou os custos da refeição para 40 centavos de dólar que os detentos, inclusive, têm de pagar.Proibiu fumar, não permite a circulação de revistas pornográficas dentro da prisão e nem permite que os detentos pratiquem halterofilismo.Começou a montar equipes de detentos que, acorrentados uns aos outros, (chain gangs), são levados à cidade para prestarem serviços para a comunidade e trabalhar nos projetos do condado.Para não ser processado por discriminação racial, começou a montar equipes de detentas também, nos mesmos moldes das equipes de detentos.Cortou a TV a cabo dos detentos, mas quando soube que TV a cabo nas prisões era uma determinação judicial, religou, mas só entra o canal do Tempo e da Disney.Quando perguntado por que o canal do tempo, respondeu que era para os detentos saberem que temperatura vão enfrentar durante o dia quando estiverem prestando serviço na comunidade, trabalhando nas estradas, construções, etc. Em 1994, cortou o café, alegando que além do baixo valor nutritivo, estava protegendo os próprios detentos e os guardas que já haviam sido atacados com café quente por outros detentos, sem falar na economia aos cofres públicos de quase US$ 100,000.00/ano.Quando os detentos reclamaram, ele respondeu:- Isto aqui não é hotel 5 estrelas e se vocês não gostam, comportem-se como homens e não voltem mais.Distribuiu uma série de vídeos religiosos aos prisioneiros e não permite quaisquer outros tipos de vídeo na prisão.Perguntado se não teria alguns vídeos com o programa do partido democrata para distribuir aos detentos, respondeu que nem se tivesse, pois provavelmente essa era a causa da maioria dos presos ali estarem.Com a temperatura batendo recordes a cada semana, uma agência de notícias publicou:Com a temperatura atingindo 116º F (47º C), em Phoenix no Arizona, mais de 2000 detentos na prisão acampamento de Maricopa tiveram permissão de tirar o uniforme da prisão e ficar só de shorts, (cor-de-rosa), que os detentos recebem do governo.Na última quarta feira, centenas de detentos estavam recolhidos às barracas, aonde a temperatura chegou a atingir a marca de 138º F (60º C). Muitos com toalhas cor de rosa enroladas no pescoço estavam completamente encharcados de suor. Parece que a gente está dentro de um forno, disse James Zanzot que cumpriu pena nessas tendas por um ano.Joe Arpaio, o xerife durão que inventou a prisão-acampamento, faz com que os detentos usem uniformes cor-de-rosa e não faz questão alguma de parecer simpático.Diz ele aos detentos:- Nossos soldados estão no Iraque onde a temperatura atinge 120° F (50° C), vivem em tendas iguais a vocês, e ainda tem de usar fardamento, botinas, carregar todo o equipamento de soldado e, além de tudo, não cometeram crime algum como vocês, portanto calem a boca e parem de reclamar. Se houvessem mais prisões como essa, talvez o número de criminosos e reincidentes diminuísse consideravelmente.Criminosos têm de ser punidos pelos crimes que cometeram e não serem tratados a pão-de-ló, tendo do bom e melhor, até serem soltos pra voltar a cometer os mesmos crimes e voltar para a vida na prisão, cheia de regalias e reivindicações.Muitos cidadãos honestos, cumpridores da lei, e pagadores de impostos não tem, por vezes, as mesmas regalias que esses bandidos têm na prisão.(*) Artigo extraído e traduzido de um documentário da televisão Americana...Os fatos acima são verídicos e a prisão-acampamento está em Maricopa - Arizona.
Desapego na raça
Você acha que descartar objetos, situações e hábitos é fácil? Veja o que acontece com quem decide jogar 50 coisas fora em duas semanas
texto Liane Alves
Olho com ternura para o meu chapéu de veludo verde. Ele já teve belas flores de camurça cor de ferrugem num dos lados das abas e, com certeza, dias de maior esplendor e glória quando o comprei numa sofisticada loja em Washington D.C. Naquele tempo eu tinha 22 anos e fazia minha primeira reportagem como enviada especial fora do Brasil. Foi quando o chapéu se converteu numa espécie de amuleto para mim. A primeira vez que o usei foi em Paris, e a estadia na capital francesa, onde fiz minha pós-graduação, se prolongou por mais dois anos. Depois, sempre com ele na mala, viajei para lugares tão exóticos quanto Hong Kong, sul da China, Indonésia ou o norte da Tailândia. Mais tarde, passei outra longa temporada em sua companhia aos pés dos Alpes italianos. O chapéu verde parecia atrair tantas viagens quanto o mel atrai abelhas. Se ele tivesse um passaporte, teria todas suas páginas carimbadinhas.
Por despertar tão boas memórias, nunca me permiti jogá-lo fora. Com isso, ele se transformou numa espécie de coisa imortal. Roto, meio deformado, e com várias passagens pela máquina de lavar, rodava pela casa como um bichinho de estimação. Já tinha servido como decoração no meu quarto, ou adereço nos teatrinhos encenados pelas minhas filhas. Foi emprestado algumas vezes, e chegou a viajar para a Alemanha em outra cabeça. Quando deixou de ser visível na casa, continuou sua vida de chapéu itinerante dentro dos armários. Sempre o encontrava em algum canto ou, então, abraçadinho a uma grinalda no alto de uma prateleira. Se fosse um habitante do planeta dos chapéus, hoje ele poderia ser considerado um nobre ancião.
Por isso, agora o seguro em minhas mãos com o mesmo fervor com que Hamlet agarrava o crânio de seu pai e lançava questões como “ser ou não ser”. Em vez disso, minha pergunta diante do meu chapéu de veludo verde é: jogo ou não jogo fora? Faria essa mesma pergunta diante de dezenas de outros objetos que pretendia me desfazer ao me mudar de casa. Essa tarefa insólita fazia parte da proposta da VIDA SIMPLES: seguir à risca o livro Jogue Fora 50 Coisas, da americana Gail Blanke, e treinar na prática o desapego.
“Nada mais fácil”, pensei. Faço isso em três horas, só de livros que não interessam mais devo ter mais de 50. Fiquei até com medo de não ter o que escrever. Afinal, com a simpatia que tenho pelo budismo, sabia que a vida é impermanente e que, por isso mesmo, não valia a pena se agarrar a objetos. Já tinha jogado milhares de coisas fora e acreditava que só o essencial tinha permanecido. Poucas coisas e boas era o meu lema. Quanto às questões internas, em relação a crenças e hábitos, pensava estar relativamente bem resolvida.
Você conhece a expressão “ledo engano”, não é? Pois esse foi o mais ledo de todos os enganos em que já caí na vida. Jogar objetos fora era apenas a ponta do iceberg. O que isso envolvia e mobilizava internamente é que era o grande problema. Para começar, a moça do livro, que não é nem boba, não facilitava a contagem dos itens que deviam ir embora. Para ela, por exemplo, dezenas de livros contam como uma única coisa. Batons velhos, corretivos nunca usados e rímeis duros também são computados numa única categoria: maquiagem. E assim por diante: vários CDs só valem um, talheres, um, pratos, um, assim como lençóis, vasos, almofadas e, principalmente, sapatos. Tudo um. Quando constatei o artifício maroto, comecei a suspeitar que essa história ia ser um pouquinho mais complicada do que eu pensava.
A linguagem das coisas
O que não tinha percebido ainda é que descartar parte de sua vida revela tantas coisas com relação a si mesmo quanto várias sessões de terapia. Aquilo que você guarda e o que joga fora, assim como o que compra ou deixa de comprar, é um espelho que refl ete fora o que você pensa e sente por dentro.
Deyan Sudjic, diretor do Museu de Design de Londres, teve esse mesmo insight ao escrever A Linguagem das Coisas, uma análise irônica sobre as verdadeiras razões pelas quais consumimos. Ele revela quais os impulsos inconscientes que determinam o ato de comprar e como a indústria nos captura por meio do design e da publicidade. Escreve: ”Entender como um laptop consegue que eu o deseje tanto a ponto de pagar para levá-lo para casa é também entender algo sobre mim mesmo”. A mesma conclusão vale para quem quer jogar algo fora: entender por que desejo manter uma coisa é também conhecer algo sobre mim de que talvez não estivesse consciente antes. É um exercício de autoconhecimento magnífico, que deveria ser praticado pelo menos a cada seis meses.
Nossos sinais
Sudjic diz que nunca tivemos tantas coisas dentro de casa como hoje. Embora os critérios de muitos de nós estejam cada vez mais orientados em direção a uma vida mais simples, ainda somos presas fáceis capturadas pelo consumo. E por que será que isso ainda acontece? “Os objetos são o que usamos para nos definir e para sinalizar aos outros quem somos”, afirma Sudjic com sua aguda percepção.
“Sapatos, roupas, automóveis ou a decoração da casa são elementos que empregamos para exteriorizar nossa personalidade, tanto quanto os usamos para ajudar a construíla. É uma via de duas mãos”, afirma a psicóloga Maria Cândida do Amaral. Os objetos são como uma espécie de linguagem que utilizamos para nos revelar e ao mesmo tempo para nos autodefinir.
Mais: pode-se dizer que uma das principais metas do design contemporâneo é nos auxiliar a contar essa história pessoal, quer para si mesmo, quer para os outros. Os designers se especializaram em contar nossas histórias particulares por meio de... coisas. Por exemplo: ter na cozinha um liquidificador que reproduz um antigo modelo da década de 50 pode sinalizar que gostamos da irreverência, que temos senso de humor ou uma queda por aquilo que é surpreendente. “Quando compramos esses objetos, nós os utilizamos como palavras dessa nova linguagem. É por meio dela que vamos expressar nossos valores e visão de mundo para os outros”, diz a psicóloga.
Sei. Será que é por isso que estou custando tanto a me desapegar da minha fruteira de cristal de Murano? Será que ela funcionaria como um anzol ligado à construção da minha identidade e ao carimbo cultura/ modernidade/sofisticação que apreciei tanto durante uma parte da minha existência? Um enigma. Apesar de minha vida ter mudado radicalmente de lá para cá, e de que hoje ela seja bem despojada e simples, minha fruteira de cristal vermelho continua me magnetizando como uma naja. Por que será que ela ainda me mobiliza tanto?
De frente para o inimigo
Estou no meio de três montanhas de objetos. Gail, que na foto da orelha do livro tem o blazer e o corte de cabelo da Hillary Clinton, me aconselha a manter três sacos pretos com as etiquetas: vender, guardar e doar. Como detesto colocar etiquetas em qualquer coisa, inclusive metaforicamente falando, prefiro ficar com as três pequenas montanhas, cujas bases insistem em se misturar de vez em quando.
Já separei alguns quadros para guardar, vender e doar. As pinturas em seda com os cumes nevados de Guanxi, na China, vão para um grande amigo, porque a palavra guanxi significa “relacionamento” e “confiança” em chinês, as bases de nossa amizade. Os gandarvas, seres celestiais da mitologia indiana, foram destinados a uma amiga que me deu a maior força e que foi um anjo como eles quando precisei. Assim, sem querer, vou construindo uma história emocional das pessoas queridas que passaram pela minha vida. É gostoso escolher presentes com sentido para quem se ama: é um lado positivo do descarte. Um a zero para ele.
Creio que agora consegui ajuntar forças para encarar de forma mais neutra os objetos de maior valor. E aí descubro por que tenho medo de vendê-los ou doá-los. Sabia que esse momento chegaria: Gail já tinha avisado que, ao jogar coisas fora, em algum momento entraríamos em contato com um inimigo oculto: nossas crenças.
E ali estava uma delas: não podia me desfazer objetos de valor porque jamais teria condições financeiras de comprá-los de novo. Precisaria viajar muito, e nem sei se haveria coisas semelhantes hoje nos lugares onde as comprei. Não estou nem questionando se essas coisas têm a ver com meu estilo de vida atual ou se continuo achando-as bonitas e por isso quero mantê-las.
O problema aqui é a crença subjacente a elas: não posso descartá-las porque nunca mais poderei comprar algo parecido. Uma crença que também pode segurar inúmeros outros objetos caros ou raros que não servem mais. O problema com as crenças é que elas se ancoram em meias verdades. Sim, eu realmente não poderia comprá-las de novo agora. Mas será que isso era definitivo? Será que se tivesse dinheiro em mãos compraria exatamente as mesmas coisas? É óbvio que não. Por que estaria então com tanto medo? Ainda posso ganhar um bom dinheirinho na vida, viajar por outros lugares com menos fome de consumo, e deles trazer outras lembranças que não as materiais. Também não preciso mais das coisas para construir minha identidade, o que talvez fosse verdade quando era mais jovem. Então posso perfeitamente abdicar delas.
Mesmo assim, ainda queria saber exatamente o que me prendia à minha emblemática fruteira. No fundo ainda não sabia. O que poderia ser?
Nosso homem neolítico
Como você já deve saber, existe um homem das cavernas dentro de nós. Se no Neolítico ele colecionava clavas, seu leque de opções hoje em dia se ampliou consideravelmente: é só a gente dar um pulo num shopping para se certificar disso. Mas segundo o inglês John Naish, autor de Chega de Desperdício!, nossos ancestrais tinham muitas mais clavas, flechas, facas ou enfeites do que necessitavam. Ficavam horas a esculpi-los, entalhá-los ou limálos, e os fabricavam com características diferentes. E por quê? Ora, pelas mesmas razões de hoje: por prazer. E também para impressionar os outros e ganhar prestígio social dentro da tribo.
No Neolítico, ser rejeitado pelo grupo significava morrer. A rejeição se traduzia em exclusão e naquele tempo uma pessoa não tinha muitas chances de sobreviver se fosse deixada sozinha numa floresta onde circulavam tigres-dentes-de-sabre. Por isso, haja clavas, flechas e tacapes, que evoluíram para jipões, roupas, casas decoradas, piscinas ou qualquer outra coisa com a qual podemos nos pavonear. E não pense que você está imune a isso. Mesmo para aqueles que optaram por uma vida mais simples, o desejo de impressionar pode continuar latente por debaixo do pano. Será mesmo que era o medo da rejeição social que andava me segurando?
Laços de energia
Enquanto avalio roupas de cama e mesa, lembro os ensinamentos de Carlos Castañeda, um antropólogo que viveu com um feiticeiro mexicano, dom Juan Mattos, e que baseou sua tese de doutorado no intenso aprendizado que teve com ele. Segundo dom Juan, somos rodeados por um corpo oval de energia luminosa, invisível ao olhar ordinário. Durante nossa vida, essa energia pode formar filamentos que se prendem a objetos, situações e pessoas a que nos sentimos muito apegados. De acordo com o líder indígena, eles nos aprisionam ao passado, impedem nossa liberdade e enfraquecem nossa energia vital. “Para recolher esses filamentos, um aprendiz devia se retirar do mundo por alguns meses e procurar reviver detalhadamente todas as situações passadas a que estava apegado. Hoje a recapitulação, como é chamado esse processo, é feita em menos tempo, mas é igualmente eficaz”, diz a psicóloga Patrícia Aguirre, discípula brasileira de Castañeda. “Esse processo é feito com auxílio de uma respiração determinada. Visualizamos a situação e nos desligamos dela”, afirma.
Olho de novo para os lençóis que usava com meu último namorado. Eram lindos, macios, e ainda estavam por ali disponíveis. Tento imaginar a enorme quantidade de filamentos que me ligavam a eles, se essa história de grudes luminosos for realmente verdade. E resolvo mais tarde fazer um exercício à dom Juan: em meditação e de olhos fechados, me imagino retirando os fios luminosos que me prendem aos lençóis. Inspiro e retiro os fios, expiro e encho meu brilhante ovo luminoso de mais luz. Quando doá-los, presumo que eles não tenham mais minha energia. Talvez fosse melhor fazer a respiração que é ensinada com detalhes nos grupos de Castañeda, mas acredito que mesmo assim deu certo.
Outro mestre me vem à cabeça: Gurdjieff. Ele fala que somos movidos pelas associações que damos às pessoas, situações e coisas. Colocamos etiquetas emocionais nelas e na verdade é a elas que somos ligados. Isto é, uma xícara não é só uma xícara, mas uma herança da tia Elza. Quanto mais identificação com essas associações, pior é. Segundo Gurdjieff, elas nos impedem de ver a realidade como ela é, onde as coisas são apenas coisas, sem valor intrínseco.
Achei! Finalmente descobri por que fiquei enganchada na fruteira. Não queria jogá-la fora por causa de uma associação. Sua forma triangular me fazia lembrar (por favor, não ria) da Santíssima Trindade. Achava muito forte ter esse símbolo sagrado presente em casa e de uma forma tão bonita.
De acordo com Gurdjieff, desde que vista conscientemente, a associação não atrapalha mais. Quanto mais conseguirmos enxergar nossos condicionamentos e o nosso limitado modo de pensar e ver o mundo, mais essa visão mostra nossa dolorosa situação de inconsciência de nós mesmos ou, como ele dizia, o horror da situação. E, para ele, a auto- observação é o que vale, pois ela é o ponto de partida da busca pela consciência. Não é preciso necessariamente mudar alguma coisa, só ver nossas limitações.
Então a fruteira fica.
Fim da experiência
Bom, cheguei ao número 49 agora de manhã, depois de duas batalhadas semanas jogando coisas fora. Gail garante que o número 50 é uma espécie de centésimo macaco: depois de o ter atingido, tudo pode mudar definitivamente em nossas vidas. É verdade. Pelo menos ficamos livres de um enorme peso que atravancava o caminho.
É óbvio que deixei o meu querido chapéu verde por último. Agora posso jogá-lo fora. Não me sinto mais atrelada a ele ou à crença de que só ele pode me trazer novas viagens. Estou prontinha. O problema é que não consigo mais encontrá-lo no meio da bagunça de caixas, sacos para doação e lotes de venda. Talvez ele tenha se escondido num cantinho, como segreda minha parcela de pensamento mágico. Ou até, no meio da confusão, já o tenha descartado e nem me lembre mais disso. Portanto, ficamos assim: se encontrá-lo, jogo fora. Ou dou de presente, embora depois de tantas lavagens ele caiba apenas na cabeça de uma criancinha. Mas uma coisa é certa: depois de todo esse processo de libertação e descarte, está claro para mim que ele não tem mais serventia.
LIVROS
Jogue Fora 50 Coisas, Gail Blanke, Ediouro
Chega de Desperdício!, John Naish, Best Seller
VERGONHA QUE NÃO TENHO DE SER NORDESTINA
Sheila Raposo, jornalista
Cultivado entre os cascalhos do chão seco e as cercas de aveloz que se perdem no horizonte, cresceu, forte e robusto, o meu orgulho de pertencer a esse pedaço de terra chamado Nordeste.
Sou nordestina. Nasci e me criei no coração do Cariri Paraibano, correndo de boi brabo, brincando com boneca de pano, comendo goiaba do pé e despertando com o primeiro canto do galo para, ainda com os olhos tapados de remela, desabar para o curral e esperar, pacientemente, o vaqueiro encher o meu copo de leite, morninho e espumante, direto das tetas da vaca para o meu bucho.
Sou nordestina. Falo oxente, vote, danou-se, Vige, credo, Jesus-Maria-José. Proseio. A língua ligeira engole sílabas e atropela a ortoépia das palavras. O meu falar é o mais fiel retrato. Os amigos acham até engraçado e dizem sempre que eu “saí do mato, mas o mato não saiu de mim”. Não saiu mesmo! E olhe: acho que não vai sair é nunca”!
Sou nordestina. Lambo os beiços quando me deparo com uma mesa farta, atarracada de comida. Pirão, arroz-de-festa, galinha de capoeira, feijão de arranca com toucinho, buchada, carne de sol... E mais uma ruma de comida boa, daquela que quando a gente termina de engolir o suor já está pingando nos quatro cantos. E depois ainda me sirvo de um bom pedaço de rapadura ou uma cumbuca de doce de mamão, que é para adoçar a língua. E no outro dia, de manhãzinha, me esbaldo na coalhada, no cuscuz, na tapioca, no queijo de coalho, no bolo de mandioca, na tigela de umbuzada, na orêa de pau com café torrado em casa!
Sou nordestina. Choro quando escuto a voz de Luiz Gonzaga ecoar no teatro de minhas memórias. De suas músicas guardo as mais belas recordações. As paisagens, os bichos, os personagens, a fé e a indignação com que ele costurava as suas cantigas e que também são minhas - também estavam (e estão) presentes em todos os meus momentos, pois foi em sua obra que se firmou a minha identidade cultural.
Sou nordestina. Me emociono quando assisto a uma procissão e observo aqueles rostos sofridos, curtidos de sol do meu povo. Tudo é belo neste ritual. A ladainha, o cheiro de incenso. Os pés descalços, o véu sobre a cabeça, o terço entre os dedos. O som dos sinos repicando na torre da igreja. A grandeza de uma fé que não se abala.
Sou nordestina. Gosto de me lascar numa farra boa, ao som de xote ou do baião. Sacolejo e me pergunto: pra quê mais instrumento nesse grupo além da sanfona, do triangulo e da zabumba? No máximo, um pandeiro ou uma rabeca. Mas dançar ao som desse trio é bom demais. E fico nesse relabucho até o dia amanhecer, sem ver o tempo passar e tampouco sentir os quartos se arriando, as canelas se tremelicando, o espinhaço se quebrando e os pés se queimando em brasa. Ô negocio bom!
Sou nordestina. Admiro e me emociono com a minha arte, com o improviso do poeta popular, com a beleza da banda de pífanos, com o colorido do pastoril, com a pegada forte do côco-de-roda, com a alegria da quadrilha junina. O artista nordestino é um herói, e nos cordéis do tempo se registra a sua história.
Sou nordestina. E não existe música mais bonita para meus ouvidos do que a tocada por São Pedro, quando ele se invoca e mete a mãozona nas zabumbas lá do céu, fazendo uma trovoada bonita que se alastra pelo Sertão, clareando o mundo e inundando de esperança o coração do matuto. A chuva é bendita.
Sou nordestina. Sou apaixonada pela minha terra, pela minha cultura, pelos meus costumes, pela minha arte, pela minha gente. Sou não sou apaixonada por uma pequena parcela dessa mesma gente que se enche de poderes e promete resolver os problemas de seu povo, mentindo, enganando, ludribiando, apostando no analfabetismo de quem lhe pôs no poder, tirando proveito da seca e da miséria para continuar enchendo os próprios bolsos de dinheiro.
Mas, apesar de tudo, eu ainda sou nordestina, e tenho orgulho disso. Não me envergonho da minha história, não disfarço o meu sotaque, não escondo as minhas origens. Eu sou tudo o que escrevi, sou a dor e a alegria dessa terra. E tenho pena, muita pena, dos tantos nordestinos que vejo por aí, imitando chiados e fechando vogais, envergonhados de sua nordestinidade. Para eles, ofereço estas linhas.
Li certa vez que essa identidade cultural que o nordestino apresenta, só é comparável no Brasil, à indentidade gaúcha. Muito bonita essa realidade.