"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, março 01, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 01/03/07

Brasil se mantém como 10ª economia global

Com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2,9% em 2006, o Brasil se consolidou na posição de 10ª maior economia mundial e pode voltar a ser a oitava em até dois anos, avalia o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo, 1-03-2007.

Ele considerou que, levando em conta a projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o PIB brasileiro em 2006, de US$ 1,023 trilhão, o País manteria a 10ª colocação, atingida em 2005, depois de ter caído para o 15º posto há alguns anos.

Mas, com a divulgação da expansão do PIB em 2006, o montante teria ficado em US$ 944 bilhões, pouco abaixo da projeção do FMI. Isso porque o Fundo estimava um crescimento de 3,6% e o resultado acabou ficando em 2,9%. Além disso, para a estimativa da quantia, Agostini considerou o impacto do câmbio e da inflação do período, já publicados.

Mesmo com esse montante menor, o Brasil mantém-se na 10ª posição, perdendo para oito países desenvolvidos, como Estados Unidos, Japão e Alemanha, entre outros, e para apenas um emergente, a China, que ocupa a quarta colocação.

Como se tratam de estimativas feitas pelo Fundo em setembro de 2006, essa tabela pode apresentar alterações, de acordo com a divulgação dos resultados efetivos. Em abril, o FMI divulgará uma nova publicação a respeito do assunto.

Ainda assim, Agostini se diz otimista em relação à expansão da economia brasileira nos próximos dois anos. 'É possível que o Brasil ultrapasse a Espanha e o Canadá nesse período', previu ele, referindo-se ao oitavo e nono colocados. 'Se isto ocorrer, o Brasil voltará ser a 8ª economia do mundo', afirmou. As expectativas da Austin para os próximos três e cinco anos são boas. Ele acredita que há possibilidade de o Brasil apresentar taxas de crescimento superiores a 4%.

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 28/02/07

Mercados têm o pior dia desde atentados do 11-S. Pânico nas Bolsas


As tensões vindas da China foram o gatilho para um violento movimento de aversão ao risco e de reversão de posições muito alavancadas que tomou dimensões surpreendentes mesmo para os mais experientes gestores de fundos. Um ajuste nessas proporções dificilmente passa ileso. Entre analistas ouvidos pelo Valor nem o mais otimista se arriscou a cravar que a correção já acabou. O mais provável, dizem, é que o mercado leve semanas para se recuperar. A reportagem é de Cristiane Perini Lucchesi e publicada no jornal Valor, 28-02-2007.

Para se ter uma idéia da dimensão do tombo, o índice Dow Jones, da Bolsa de Valores de Nova York, chegou a cair 546 pontos, a maior desvalorização desde o dia seguinte aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, segundo a "Bloomberg". As quedas passaram de 4% durante o dia e cerca de US$ 600 bilhões deixaram o mercado acionário dos EUA. No fechamento, o Dow Jones caiu 3,29%.

A Bolsa de Valores de São Paulo acompanhou e recuou 6,63%, a maior desde 13 de setembro de 2001. Experientes dirigentes de bancos de investimento acreditam em impacto no mercado de emissões primárias de ações no país. O dólar subiu 1,72% contra o real, para R$ 2,12, e o risco Brasil medido pelo índice EMBI do JPMorgan subiu 9,34%, para 199 pontos básicos.

O forte estresse começou na China, em meio aos rumores de que o governo passaria a ser mais rigoroso com relação às práticas ilegais e regras de alavancagem para a compra de ações. O aumento nos depósitos compulsórios chineses provocou um outro susto nos mercados, pois pode significar crescimento menor no país. O tombo na bolsa de Xangai foi o maior em uma década, de 9,2%. As bolsas asiáticas abriram o pregão desta quarta-feira em forte baixa. Às 22h de Brasília, o índice Nikkei, de Tóquio encontrava-se em queda de 3,6%. Em Seul, a retração era de 3,3%.

O discurso do ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, ajudou a aumentar as preocupações dos investidores. Ele afirmou que os EUA podem entrar em recessão no final do ano. Além disso, o mercado imobiliário americano já vem mostrando um aumento de prêmios de risco de mais de 40 pontos básicos desde a sexta-feira. Os créditos de maior risco parecem ter sido especialmente afetados e estão contagiando as demais taxas do mercado imobiliário, contribuindo para a tensão.

A redução de 7,8% nas encomendas de bens duráveis americanos em janeiro assustaram o mercado e fizeram bancos revisarem para baixo sua projeção de crescimento do Produto Interno Bruto americano no primeiro trimestre deste ano. O Morgan Stanley, por exemplo, reduziu sua previsão para o PIB americano de 3% para 2%. Crescimento menor na China e EUA significa menor demanda para commodities, com impacto nas ações de empresas que vendem esses produtos.

Mas, o tombo só assumiu as proporções que assumiu por causa da forte alavancagem para comprar posições de maior risco dos investidores. Basicamente, os fundos de hedge, menos avessos ao risco, tomavam dinheiro emprestado em ienes, a juros de 0,5% ao ano, e comprava ativos de maior rendimento, de preferência ações - há quem falasse em bola especulativa na China, Índia, Rússia e Brasil -, moedas e títulos de dívida de emergentes.

Quando os investidores foram tentar vender esse ativos de risco, não encontraram comprador. "É como um pêndulo - quando você puxa demais para um só lado, ele volta para o outro lado com mais força também", compara Ricardo Amorim, analista para América Latina do WestLB. "As condições técnicas do mercado eram muito vulneráveis, pois o real estava muito apreciado e todos vendidos em dólar", disse John Welch, da Lehman Brothers.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 27/02/07

O capitalismo global inimigo de si mesmo

"A maioria dos ‘no-global’, dos alteromundistas, e, na verdade, dos ativistas verdes é muito mais corajosa em deixar clara a falência do capitalismo global, do que em sugerir alternativas estruturais. “O capitalismo deveria ser substituído por algo mais belo”, lia-se numa faixa agitada numa demonstração londrina por ocasião do Primeiro de Maio de alguns anos atrás", constata Timothy Garton Ash, conceituado comentarista inglês em artigo publicado no jornal La Repubblica, 23-02-2007 e no jornal El País, 25-02-2007.

Eis o artigo.

"Qual é o paquiderme presente em qualquer ambiente? É o triunfo global do capitalismo. A democracia é asperamente posta em discussão. A liberdade corre risco, mesmo nas democracias de antiga criação como a Grã Bretanha. A supremacia do Ocidente está em declínio. Mas todos praticam o capitalismo. Praticam-no os americanos e os europeus. Praticam-no os indianos. Praticam-no os oligarcas russos e os próprios sauditas. Mesmo os comunistas chineses o praticam. E agora os membros do mais antigo kibutz de Israel, a última utopia de socialismo igualitário, votaram para introduzir as remunerações mensais variáveis, com base na performance individual. Karl Marx se enrijeceria na tumba. Ou talvez não, porque alguns dos seus escritos inexplicavelmente prognosticavam já a nossa época do capitalismo global. Sua fórmula faliu, embora sua descrição fosse presciente. Este é o fato sensacional do início do século 21, um fato de tão grande alcance e considerado tão evidente que raramente paramos para refletir sobre quanto seja extraordinário. Mais acontecera antes. “O capitalismo poderá sobreviver?” perguntava-se o pensador socialista britânico G. D. H. Cole num livro publicado em 1938 com o título “Socialismo in Evolution” (na versão italiana “L’evoluzione del socialismo”). Sua resposta à interrogação tinha sido negativa. Ao capitalismo teria seguido o socialismo. A maior parte dos leitores deste jornal provavelmente teria estado de acordo em 1938.

Quais são as grandes alternativas ideológicas que se prospectam destes tempos: O “socialismo do século XXI” de Hugo Chávez ainda parece ser um fenômeno local, no máximo regional, praticado na sua melhor forma nos Estados ricos em petróleo. O islamismo, em certas circunstâncias etiquetado como o proeminente antagnoista do capitalismo democrático numa nova guerra ideológica, não oferece um sistema econômico alternativo (caso se excluam as peculiaridades das finanças islâmicas), e, tudo somado, não é muito animador além da umma muçulmana.

A maioria dos ‘no-global’, dos alteromundistas, e, na verdade, dos ativistas verdes é muito mais corajosa em deixar clara a falência do capitalismo global, do que em sugerir alternativas estruturais. “O capitalismo deveria ser substituído por algo mais belo”, lia-se numa faixa agitada numa demonstração londrina por ocasião do Primeiro de Maio de alguns anos atrás.

Estamos claramente em presença de um problema de definição. Aquilo que fazem as empresas estatais russas ou chinesas é autêntico capitalismo? O próprio fundamento do capitalismo não é, talvez, a propriedade privada? Um dos maiores experts americanos em capitalismo Edmund Phelps, docente da Columbioa University, tem uma definição ainda mais restritiva do capitalismo. Segundo ele, aquilo que praticamos em boa parte da Europa ocidental, este modelo de ‘stakeholder economy’ [econ. por apostas] não é capitalismo propriamente dito, mas antes corporativismo. O capitalismo, diz Phelps, é “um sistema econômico no qual o capital privado é relativamente livre para inovar e investir sem o placet do Estado, nem a permissão das comunidades e das regiões, dos trabalhares e dos outros assim ditos parceiros sociais”. Em cujo caso se pode, pois, afirmar que a maior parte do mundo não é capitalista. Considero demasiado restritiva esta definição. Seguramente, na Europa estão presentes várias formas de capitalismo, das economias de mercado mais livres, como na Grã Bretanha e Irlanda, às formas mais coordenadas de stakeholder economy, como na Alemanha e na Áustria.

Na Rússia e na China há toda uma gama de propriedades, tanto estatais quanto privadas. Nos processos decisórios das sociedades de controle estatal têm maior peso considerações diversas daquelas da maximizarão das úteis, mas também estas operam como protagonistas nos mercados nacionais e internacionais e sempre com mais freqüência falam a língua do capitalismo global. No Fórum Econômico Mundial deste ano, em Davos, escutei Alexander Medvedev, nos cumes da Gazprom, defender a operação daquela sociedade dizendo que Gazprom é uma das cinco companhias mais importantes no mundo para as capitalizações da Bolsa e que se esforça constantemente para assegurar bons rendimentos aos seus acionistas, que, conforme o caso, incluem o Estado russo. No mínimo isso sugere uma hegemonia das teses do capitalismo global. O “capitalismo leninista” chinês é um caso marginal de grande relevância, mas o modo de proceder, em ritmo de caranguejo, das empresas chinesas em direção daquilo que nós seríamos levados a definir como um comportamento capitalista, é de longe mais evidente do que qualquer outra evolução que o Estado chinês esteja cumprindo em direção à democracia.

A falta de qualquer clara alternativa ideológica significa que o capitalismo está seguro para os próximos anos? De nenhum modo. O triunfo sem precedentes do capitalismo globalizado, nos últimos vinte anos foi acompanhado por novas ameaças que se projetam sobre seu próprio futuro. Não são exatamente as famosas “contradições” individuadas por Marx, mas poderiam ser mesmo mais graves. Somente para começar, a história do capitalismo nos últimos cem anos dificilmente apóia a opinião segundo a qual seria um sistema em condições de autocorrigir-se automaticamente. Como o faz notar George Soros (que deveria saber alguma coisa), hoje os mercados globais são mais do que nunca constantemente instáveis, sempre com mais freqüência à beira de uma instabilidade maior. Repetidamente têm sido necessárias visíveis intervenções e corretivos políticos, fiscais e legais para integrar a mão invisível do mercado. Quanto maior isso se torna, tanto mais pesadamente pode desmoronar.

Um petroleiro é mais estável do que um barco a vela, mas, se as anteparas internas do petroleiro rebentam e o óleo cru começa a mover-se de uma parte à outra durante uma tempestade, se formam os pressupostos para um desastre de proporções imensas. Sempre com mais freqüência, o capital mundial é como o petróleo encerrado no interior de um único gigantesco petroleiro, que tem sempre menos anteparas internas em condições de evitar que se evitem transbordamentos.

Há, depois, o aspecto da desigualdade. Uma característica do capitalismo globalizado pode ser o fato de que ele premia de maneira desproporcional os seus protagonistas, não só na City londrina, mas também em Xangai, em Moscou e em Mombaim. Quais serão as repercussões em nível político do fato de que, nos países nos quais a maioria da população é ainda infinitamente pobre, haveria um número restrito de pessoas infinitamente ricas? Nas economias mais avançadas, como Grã Bretanha e América, uma classe média razoavelmente bem situada, com um nível de vida individual que melhora lentamente, pode ser menos incomodada por um grupinho de super-ricaços, cujas palhaçadas lhes fornecem em geral uma razão costumeira para divertir-se em formato tablóide. No entanto, se um bom número de pessoas da classe média começa a perceber que realmente nos está remetendo algo naquele mesmo processo de globalização que torna repugnantemente rica aquele punhado de gestores de capital, que pratica, ao mesmo tempo, o ‘outsourcing’ [extinção] na Índia dos postos de trabalho da classe média, então poderia desencadear-se uma reação violenta. Para fazer-se uma idéia do que poderia acontecer, siga-se Lou Dobbs, na CNN.

Mais do que qualquer outra coisa, no entanto, é inevitável e insolúvel o problema que este planeta não pode sustentar seis bilhões e meio de pessoas e fazer que vivam como vivem hoje os consumidores da classe média do seu rico Norte. Na virada de apenas poucas décadas poderemos ter exaurido os combustíveis fósseis que levaram 400 milhões de anos para acumular-se e, conseqüentemente, teremos, além disso, alterado o clima terrestre. Sustentabilidade será também uma palavra cinzenta e tediosa, mas, é sempre o único verdadeiro e grande desafio hodierno ao capitalismo global. Por mais engenhosos que possam ser os modernos capitalistas na individuação de tecnologias alternativas – e serão muito engenhosos – de alguma parte, por toda a linha, isto significará que os mais ricos consumidores deverão se adaptar a sempre menos, em vez de o fazer a sempre mais. Marx pensava que o capitalismo se teria defrontado com o problema de encontrar os consumidores para os bens e os artigos que as técnicas de produção em constante melhoria teriam permitido produzir em grandes quantidades. Em vez disso, tornou-se especialista num inédito ramo da produção industrial: a criação de desejos. A genialidade do capitalismo moderno é que não só põe à disposição dos consumidores aquilo que querem, mas chega, ademais, a fazer que estes queiram aquilo que ela lhes dará. E é precisamente esta lógica de fundo de desejos que se expandem desmedidamente que se torna insustentável em escala global. E, no entanto, estamos realmente prontos a privar-nos de algo? Estamos dispostos a isolar os nossos loft, a reciclar os jornais e a ir ao trabalho de bicicleta? Mas, estamos efetivamente dispostos a contentarmo-nos com menos, para que outros tenham mais? Posso dizer que eu estou? E vocês, estão? "

Instituto Humanitas Unisinos - 27/02/07

Telemarketing e call center: O “proletariado não-operário”

Uma das mais profissões que mais cresce no país - telemarketing e call center - esconde sérios descompassos sociais e condições de trabalho marcadas por fortes pressões psicológicas. A conclusão é da socióloga Selma Venco, em pesquisa de doutorado defendida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Na opinião da pesquisadora, está se formando uma espécie de "proletariado não-operário".

A reportagem é do jornal da Unicamp - Edição 349 - 26 de fevereiro a 4 de março de 2007.

Os chamados teleoperadores realizam a média de 140 ligações em uma jornada de seis horas, com pausa de 15 minutos, e precisam cumprir metas excessivas de produtividade em tempo preestabelecido. Segundo a socióloga Selma Venco, o setor de telemarketing e call center apresenta características do taylorismo – modelo criado por Frederick Winslow Taylor e disseminado na indústria, que consiste na racionalização do trabalho e minimização do excesso de rotinas. A socióloga acredita que, apesar de apoiada em novas tecnologias, a profissão está sujeita a formas de trabalho das antigas fábricas do século XIX.

O serviço de telemarketing é um mercado em franca expansão e estimativas recentes apontam para a existência de 665 mil teleoperadores no país. "O aumento é notório. São empresas dos mais variados segmentos - principalmente bancos - que optam por terceirizar o serviço e, com isso, minimizar os custos com encargos trabalhistas. Infelizmente, os problemas da profissão se acumulam na mesma velocidade em que cresce o campo profissional", denuncia Selma Venco, que entrevistou tanto empregados como empresários do ramo, em duas empresas terceirizadas na cidade de São Paulo.

Na avaliação da pesquisadora, a concentração de funcionários ocorre na faixa etária entre 18 e 25 anos - a idade do primeiro emprego, e esta preferência decorre justamente da inexperiência profissional. "Por não terem a vivência de mercado e desconhecerem as leis trabalhistas, os jovens se tornam presas fáceis para pressões psicológicas", explica. Em caso de baixa produtividade, por exemplo, utiliza-se uma interpretação duvidosa da lei para forçar o profissional a pedir demissão e, assim, perder seus benefícios. Por outro lado, o início de carreira é um bom momento para formar o trabalhador conforme a dinâmica da empresa. "Os mais experientes possuem vícios e malícias que podem atrapalhar".

A grande maioria (cerca de 80%) é de mulheres, o que também não é casual. Da parte patronal, as justificativas colhidas por Selma Venco resumem-se a certos atributos femininos, como paciência e delicadeza no trato com os clientes. Mas, para a socióloga, é mais plausível o fato de que a família e a sociedade não educam os homens para a subserviência, e que este aspecto não atende aos princípios de uma organização taylorista no setor de serviços. Apesar da predominância feminina visando ampliar os níveis de produtividade, verifica-se entre os homens o maior índice de ascensão profissional.

A pesquisa de doutorado traz outra constatação importante: a presença significativa de teleoperadores negros, homossexuais, transexuais e obesos. Por seus depoimentos, Selma Venco observou que eles são rejeitados em outros segmentos do mercado de trabalho e acabam migrando para nichos que não exigem uma estética preestabelecida, como o de telemarketing, em que o contato com o público acontece a distância. "A atividade abriga pessoas que, rotuladas, não teriam acesso ao trabalho em lojas, bancos e outros setores que impõem determinado padrão estético. Elas não são reconhecidas por suas qualificações, o que reforça os preconceitos presentes na sociedade de consumo", argumenta.

Os teleoperadores advêm sobretudo das classes sociais menos favorecidas, pois precisam do trabalho para sobreviver e sujeitam-se a fortes pressões. Em entrevista, um empresário confessa que não admite pessoas de classe média porque não agüentariam "o primeiro apertão". A jornada intensa de seis horas também faz parte de uma estratégia patronal. À alegação de que a jornada facilita ao jovem prosseguir nos estudos, sobrepõe-se à comprovação de que neste período é maior a produtividade, que cai consideravelmente após o limite de seis horas.

Para o empregador, é vantajoso revezar duas pessoas, ao invés de manter apenas uma, com carga de oito horas. A alta rotatividade de pessoal é outra característica do setor de telemarketing e call center. A renovação anual é de aproximadamente 85% em uma das empresas estudadas na pesquisa. Outra questão refere-se ao quadro de carreira. Nas duas empresas avaliadas, os funcionários não têm perspectiva de progressão funcional. O único cargo pleiteado é o de supervisão, posição que na maioria das vezes se mostra menos confortável, diante de pressões por metas e prazos ainda maiores.

Do outro lado da linha

Se, no ambiente de trabalho, os profissionais de telemarketing e call center são pressionados por metas de produtividade, do outro lado da linha telefônica, a realidade também se mostra cruel. "A perspectiva do trabalho a distância facilita as agressões verbais. Eles são constantemente xingados e ofendidos pelos clientes.

Nos relatos, confidenciam que o banheiro é o lugar do choro", diz a socióloga Selma Venco. Existe dificuldade em compreender que a ofensa do cliente não é pessoal, mas devida a telefonemas em horários impróprios. A socióloga, no entanto, pondera que as pressões sofridas por esses empregados já são suficientemente fortes para terem de enfrentar também a resistência externa.

Geralmente, os clientes alegam que não dispõem de tempo ou dispensam o teleoperador sem antes saber do que se trata. As centenas de ligações diárias são gravadas e supervisionadas constantemente. A fala do teleoperador deve ser objetiva e o script já está pronto para ser apresentado no limite de tempo, muitas vezes sem dar chances de interrupção por parte do cliente. O resultado de tanta pressão já pode ser observado nos índices de doenças ocupacionais. "É um exército de jovens com problemas de saúde, físicos e mentais. Os casos de assédio moral levam a depressão, síndrome do pânico e outros males correlatos", relata Selma Venco.

A quantificação dos casos está longe de ser detalhada. Segundo a pesquisadora, normalmente os ambulatórios estão instalados dentro das empresas, o que dificulta a notificação da doença como ocupacional. "Os casos ficam mascarados", revela. Num futuro próximo, os teleoperadores precisarão travar outra luta intensa pelo reconhecimento de que seus problemas ocupacionais decorrem da natureza de seu trabalho.

No seu mestrado, Selma Venco analisou o panorama das empresas de telemarketing, focalizando a expansão dos call centers em detrimento das demissões no setor bancário. Na década de 1990, uma forte tendência em terceirizar a atividade foi constatada. De acordo com a pesquisadora, outro lado da moeda é que o potencial de racionalização cria a falsa impressão de crescimento de postos de trabalho, quando na verdade é suprimida uma quantidade de postos ainda maior. A qualidade deste emprego é outra questão abordada. "A qualidade sofistica a intensificação e o controle do trabalho", alerta. Este tema serviu de parâmetro para a publicação do livro Telemarketing nos bancos – O emprego que desemprega, pela Editora da Unicamp.

Agora, no pós-doutorado, o plano de Selma Venco é investigar a terceirização deste serviço na perspectiva internacional. "Existe uma dinâmica nascente, que é o deslocamento de certos tipos de trabalho dos países centrais em direção aos periféricos ou semiperiféricos. Tal dinâmica é caracterizada pela modernização do trabalho, com a transferência das centrais de atendimento para cidades do interior desses últimos países", explica. O motivo é o baixo custo da mão-de-obra e a isenção de impostos e taxas. "Estima-se que esta central no interior custa, em média, dez vezes menos em relação à de países desenvolvidos, sendo que a mão-de-obra é qualificada", destaca a socióloga.

Um perfil do teleoperador

Maioria de mulheres
Idade entre 18 e 25 anos
Ensino médio completo
Boa parte de universitários de escolas privadas
Não pertence à classe média
Pais possuem profissões de baixa especialização

Tipos de serviços

Ativo - Venda de produtos e serviços ou angariação de recursos para entidades sociais
Receptivo - Como tira-dúvidas e fale-conosco, geralmente ligado ao serviço de atendimento ao cliente das empresas (consultas sobre conta bancária, tv a cabo, telefonia)
Híbrido - Tanto efetua como recebe ligações dos mais variados serviços

Instituto Humanitas Unisinos - 27/02/07

A nova geoeconomia do emprego


Estudo do economista e professor da Unicamp, Marcio Pochmann revela que o Sudeste deixou de ser o centro privilegiado do movimento migratório, transformando-se atualmente no principal pólo de expulsão de mão-de-obra do país. A reportagem é do jornal da Unicamp - Edição 349 - 26 de fevereiro a 4 de março de 2007.

A região Sudeste deixou de ser o centro privilegiado do movimento migratório, transformando-se atualmente no principal pólo de expulsão de mão-de-obra do Brasil, além de registrar um dos piores indicadores da produção e do emprego no país. Essas constatações estão na pesquisa "Nova geoeconomia do emprego no Brasil: um balanço de 15 anos nos Estados da federação", coordenada pelo economista Marcio Pochmann (foto a esquerda) professor do Instituto de Economia (IE) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp.

Em quatro anos, 215 mil deixaram o Sudeste

De acordo com a pesquisa, o protagonismo de São Paulo e de Estados vizinhos – sobretudo Rio de Janeiro e Minas Gerais – é hoje desempenhado pelas regiões Centro-Oeste e Norte, onde estão as áreas de fronteira agropecuária e de extrativismo mineral. Os novos Estados líderes – Amazonas, Mato Grosso e Goiás à frente – detêm os melhores resultados na evolução do PIB, e conseqüentemente, a maior absorção de migrantes de todo o país.

Pochmann revela que o estudo, de âmbito nacional, buscava interpretar algumas hipóteses formuladas no Brasil ao longo da década de 1990. Uma das mais recorrentes dava conta de que os empregos não estavam mais nas metrópoles, mas sim nas pequenas e nas médias cidades. Para fundamentar a pesquisa, foram utilizadas fontes primárias de informações, todas oficiais, que constam de levantamentos feitos pelo IBGE entre os anos de 1990 e 2005, tanto no que diz respeito à população como ao comportamento do desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados. "A investigação tratou de analisar, de forma simultânea, o mercado de trabalho e a economia dos Estados nas cinco grandes regiões", revela o economista.

A pesquisa mostra que, com a crise da dívida externa [início da década de 1980], "o Brasil passou a dar sinais de abandono do longo ciclo de rápida expansão econômica, que era acompanhado pelo movimento de estruturação do mercado de trabalho". De acordo com o documento formulado por Pochmann e sua equipe, "o que se verifica nos últimos 25 anos corresponde à fase de semi-estagnação econômica, simultaneamente perseguida do movimento de desestruturação do mercado de trabalho". Para exemplificar, Pochmann revela números emblemáticos: entre os anos de 1990 e 2005, o PIB brasileiro cresceu somente 2,41% (média anual), enquanto a expansão média anual da População Economicamente Ativa (PEA) foi de 2,76%.

De descompasso em descompasso, a estagnação respingou no chamado padrão migratório nacional. O estudo mostra que, durante os primeiros quatro anos da década de 2000, o saldo líquido entre saídas e entradas de migrantes foi negativo em mais de 215 mil pessoas no Sudeste, enquanto no período imediatamente anterior havia sido positivo – na casa de quase meio milhão de migrantes.

O coordenador da pesquisa observa que a débâcle dos Estados do Sudeste é a principal constatação do estudo. Razões históricas e econômicas corroboram a importância dos números recentes. Conforme lembra Pochmann, São Paulo foi, ao longo do século XX, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1980, "o estado-locomotiva" do Brasil. Esse crescimento, analisa Pochmann, era diretamente responsável pela integração nacional e, em última instância, pelo desenvolvimento das demais regiões do país. "Ainda que fosse um crescimento fundamentado numa industrialização concentrada, aquilo que se organizou em São Paulo de uma certa maneira supria o mercado nacional", avalia Pochmann.

Em razão desse crescimento rápido, São Paulo protagonizou a expansão e a estruturação do mercado de trabalho, com base no assalariamento, no baixo desemprego e na forte capacidade de absorção do movimento migratório. "Tivemos gente de todos os Estados vindo para cá em busca de oportunidades, o que possibilitou a expansão da classe média, uma das características de São Paulo".

Supõe-se que esse estado de coisas tenha começado a mudar a partir da década de 1980. O que o estudo faz é provar que, já a partir de meados da década de 1990, as mudanças consolidaram-se. "Os Estados que protagonizaram a expansão econômica, no período anterior, encontram-se atualmente nos últimos vagões", constata Pochmann.

O Rio de Janeiro, por exemplo, é o Estado com menor ritmo de expansão econômica no período compreendido entre 1990 e 2005. São Paulo vem em seguida, com o segundo pior desempenho econômico. "Enquanto Estados como Amazonas e Mato Grosso vêm crescendo a um ritmo de expansão chinesa, de 7% a 8% ao ano, São Paulo e Rio crescem a um ritmo haitiano, menos de 2% ao ano, média inclusive inferior à brasileira", revela Pochmann.

A baixa expansão da atividade econômica gerou a desestruturação do mercado de trabalho. A região Sudeste, particularmente São Paulo, registrou um forte movimento de expulsão de mão-de-obra, especialmente aquela desempregada. "Em sua maioria, são nordestinos que voltaram às suas cidades de origem ou se dirigiram àqueles Estados que hoje lideram o crescimento econômico, sobretudo Amazonas e Mato Grosso", constata Pochmann.

Paradoxo

Mas essa descentralização não é boa para o país? Poderia, mas os resultados estão aquém do desejado. A começar de outra constatação – contraditória, à primeira vista - da pesquisa: os Estados que tiveram maior crescimento econômico são, também, aqueles em que o desemprego mais cresceu. As razões não são poucas, mas algumas, segundo Pochmann, saltam aos olhos.

Segundo o professor do IE, a expansão econômica das regiões Centro-Oeste e Norte está vinculada à produção de baixo valor agregado e de pouco conteúdo tecnológico. São produtos primários ou derivados do extrativismo mineral, normalmente vinculados à produção de alimentos ou à pecuária. "São, de fato, fronteiras. Mas, apesar do importante impacto no mercado de trabalho, são incapazes de dar emprego para os habitantes locais e, sobretudo, para os migrantes que vão em busca de melhores oportunidades", constata.

Duas são as razões principais para a origem dessa distorção, explica Pochmann. A primeira, em particular, está relacionada ao fato de a mão-de-obra ser pouco intensiva, ao contrário da industrialização. "Essa mão-de-obra não está vinculada à industrialização, ao setor de serviços e à fronteira tecnológica de última geração". Em segundo lugar, porque se trata de um tipo de expansão econômica que não "puxa" o crescimento do país. "São atividades fortemente vinculadas às exportações, como é o caso da soja. Essas regiões são, de uma certa forma, reflexo do que ocorre na economia internacional. O crescimento da atividade econômica dá-se apenas localmente. Do ponto de vista da renda, o efeito de contaminação é mínimo". Dessa maneira, observa Pochmann, o que faz do Mato Grosso um Estado rico não é o fato de produzir soja, mas sim o de ter um comprador estrangeiro disposto a adquirir o produto.

Na realidade, avalia Pochmann, o que há é um quadro de uma "certa fragmentação" do espaço nacional, na medida em que não é totalmente verdadeira a tese de que exista descentralização e homogeneidade do mercado de trabalho. Além de não conseguir absorver a totalidade da mão-de-obra, esses novos centros de expansão econômica não dispõem, de forma significativa, de postos de trabalho para a geração de empregos para a classe média, em razão dos motivos explicitados pelo pesquisador. "São, em geral, empregos de um salário mínimo".

Ademais, lembra Pochmann, esse novo padrão migratório é diferente daquele registrado com mais intensidade na década de 1970, quando predominava, nos estados do Sudeste, a chegada de trabalhadores de baixa escolaridade oriundos da zona rural, que disputavam vagas em postos de trabalho mais simples. "Nos dias de hoje, verificamos que esse movimento migratório se dá sob um perfil de outra natureza, ou seja, trata-se de uma migração urbana, de cidade para a cidade, e não mais do campo para a cidade".

Essa nova legião, explica Pochmann, é formada também por profissionais de maior escolaridade e com alguma experiência profissional, que disputam um lugar ao sol num nível de trabalho intermediário e/ou superior. Ocorre, então, uma pressão por vagas de trabalho de classe média. A realidade, porém, fala mais alto. "As vagas são insuficientes para dar conta de uma sociedade relativamente estratificada em que a mobilidade social é a principal referência. Mais de 90% das vagas abertas são de até dois salários mínimo mensais. Na verdade, estamos construindo uma sociedade polarizada entre ricos e pobres", diagnostica Pochmann.

Embora acredite que sejam factíveis as ações que visem o desenvolvimento de políticas de enriquecimento e de valorização da cadeia produtiva local, o pesquisador prega que a saída para o impasse está na formulação de uma política nacional de desenvolvimento regional. Nesse sentido, avalia Pochmann, o Plano de Aceleração Econômica (PAC), recém-anunciado pelo governo federal, pode oferecer algumas soluções, embora ainda esteja longe de ser um "projeto encorpado".

"Pelo menos é a primeira vez, desde o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento [PND, criado no governo Geisel], que a questão do desenvolvimento regional é recolocada na mesa, ainda que seja a partir de uma lista de obras a serem feitas", observa o economista.

Na opinião de Pochmann, torna-se urgente a implantação de medidas que estanquem essas distorções. O professor do IE lembra que o Brasil deixou de ser um país que recebia imigrantes para ser um "exportador" de mão-de-obra, especialmente a qualificada. Estima-se que entre 140 mil e 160 mil pessoas deixem o país a cada ano. "É a tal fuga de cérebros. Trata-se de um paradoxo num país de baixa escolaridade. Justamente aquele segmento mais qualificado, que mais se esforçou para conseguir seus objetivos, não encontra uma colocação".

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 26/02/07

Quando os jogos eram uma cerimônia religiosa e simbólica. O campo de futebol segundo Marc Augé

Na Antigüidade: no mundo clássico o estádio era um lugar sagrado, uma espécie de zona extraterritorial onde vigoravam as regras da competição leal. Hoje: o ritual de uma partida se transformou numa ocasião para passar da violência simbólica à violência real. Marc Augé, antropólogo, reflete sobre a violência nos estádios de futebol na contemporaneidade em artigo publicado no jornal La Repubblica, 6-02-2007.

Eis o artigo.

"No mundo clássico, o estádio sempre foi um lugar de competição, mas também de paz. Desde os tempos de Olímpia, de fato, os jogos implicavam uma trégua entre as diversas cidades gregas. O estádio era um lugar sagrado, uma espécie de zona extraterritorial onde vigoravam as regras da competição nobre e leal. Regras que permitiam aos inimigos, que se respeitavam reciprocamente, confrontarem-se no terreno do jogo. Com o tempo, porém, o estádio sofreu uma evolução, tornando-se uma arena, um lugar dominado sobretudo pelo espetáculo e pelo confronto. O público encontrava-se ali para assistir a uma luta, da qual saíam vencedores e vencidos. Trata-se de uma luta simbólica que, através de uma forma de catarse coletiva, libera os espectadores das tensões reais. Por muito tempo esta catarse, embora não isenta de momentos dramáticos, conservou uma conotação alegre, priva de toda violência real. Recordo-me, de fato que, quando, como criança, ia com meu pai assistir às partidas da nacional francesa, o estádio era sempre ocasião de uma festa coletiva, um momento de emoções compartilhadas. Precisamente por isto, a cerimônia que se celebra no estádio recorda as cerimônias religiosas. Trata-se de uma religião imanente que, embora sendo sem transcendência e sem deus, dá lugar a um rito coletivo que conserva a ambivalência da religião. De fato, como a religião, a cerimônia esportiva permite que as pessoas se encontrem juntas num mesmo culto, para neutralizar os conflitos e celebrar a paz, mas, como a religião, ela pode estar na origem de conflitos capazes de degenerarem em verdadeiras e próprias guerras. Infelizmente, hoje esta segunda possibilidade prevalece com freqüência.

Naturalmente, nos estádios – e, sobretudo por ocasião das partidas de futebol – nunca faltou uma forma de violência simbólica, violência no interior do jogo e violência verbal entre os torcedores dos diversos times. Todavia, no passado, ela sempre permanecia no plano simbólico, permitindo ao espetáculo esportivo exorcizar a violência social presente na sociedade. No estádio, de fato, nós espectadores projetamos o nosso desejo de violência sobre os corpos dos jogadores, os quais a põem em cena no interior de um confronto simbólico. Daqui resultou, entre outras coisas, certa crítica marxista que, no passado, acusou o futebol, novo ópio dos povos, de inibir os conflitos sociais. Hoje a situação mudou e este modelo parece não funcionar mais como no passado. A violência simbólica do esporte parece não estar mais em condições de dar lugar ao exorcismo coletivo. O ritual da partida se torna, então, a ocasião para passar da violência simbólica a uma violência real que, privada de significados políticos ou sociais precisos, se descarrega quase integralmente sobre os torcedores das outras equipes, sobre a polícia ou sobre os jogadores.

Os atores desta violência, os ultra, são filhos da espetacularização extrema do esporte. Eles já não são mais simples espectadores, tornaram-se parte integrante do espetáculo, com freqüência favorecidos pelos dirigentes dos times de futebol. Além do mais, agem num contexto no qual a profissionalização tirou do esporte a dimensão lúdica. No futebol dominado pelo dinheiro assistimos a formas de louco encarniçamento sobre si e sobre adversários que produzem encarniçamento e loucura também nos torcedores. E, se a violência se manifesta sobretudo nos estádios, é porque estes são o lugar de um rito magnificado pela televisão. Numa sociedade dominada pelas imagens, onde tudo é reduzido a espetáculo, só se existe quando se está no centro da imagem. Para muitos indivíduos, existir significa mostrar-se no centro da tela da TV. Para quem se sente excluído, a violência torna-se um modo de chegar ao mundo das imagens. Acontece que também a violência, para ter “sentido”, tem necessidade de mostrar-se, deve ser exibida e espetacularizada. Os estádios, com seu dispositivo de telecâmeras, são o lugar ideal para exibir esta violência sem controle, sem regras, sem referenciais, para a qual às vezes se fala impropriamente de violência tribal. Uma tribo, embora primitiva, implica sempre uma organização, uma hierarquia e procedimentos de arbitragem. Num confronto tribal se faz de tudo para canalizar e controlar a violência. A violência dos ultra, ao invés, parece escapar a tudo isto, parece ser puramente gratuita e preocupada unicamente em ser espetacular.

A ameaça dos ultra transformou profundamente a realidade dos estádios, os quais, aliás, são com freqüência conotados por uma dimensão grandiosa. Para projetá-los são, de fato, chamados arquitetos de fama, cujos projetos exaltam a dimensão espetacular que investiu o esporte. E, no entanto, em seu interior, estas grandiosas catedrais de cimento e aço estão cheias de barreiras, redes e divisões. Quando os espectadores se põem todos juntos a fazer o “ola”, oferecem a imagem de uma fluidez harmoniosa que envolve num único entusiasmo os torcedores dos dois times. É uma imagem enganosa. Na realidade, as divisões são profundas e a arquitetura dos estádios responde à exigência de manter separados os tifosos torcedores. Conseqüentemente, a segregação no interior dos estádios reproduz a segregação presente na sociedade. Os ultra são marginalizados, mesmo se depois tentam construir-se uma nova identidade, identificando-se com um time que, com freqüência, não tem mais nenhum elo direto com sua realidade. Em suma, nas arquibancadas – que um tempo eram o lugar de uma trégua que deixava de fora todos os conflitos – encontramos hoje a exclusão e a frustração presentes na sociedade, com toda a sua carga de rancores explosivos. Daqui resulta a crescente militarização dos estádios, de onde, por fim, nos chega uma mensagem diametralmente oposta àquela que o espetáculo esportivo quereria idealmente transmitir-nos."

Instituto Humanitas Unisinos - 26/02/07

Êxodo para os EUA reflete frustração com o Nafta

Quase 15 anos depois da criação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), vários segmentos da sociedade americana reconhecem que o aumento do comércio não foi suficiente para criar melhores condições de vida entre os mexicanos e, portanto, não conseguiu frear a imigração ilegal. A reportagem é do jornal O Estado de S. Paulo, 26-02-2007.

O resultado é um clima de tensão social e uma proliferação de iniciativas para simplesmente fechar a fronteira aos imigrantes ilegais, dois terços deles mexicanos. Na cidade de Escondido, na Califórnia, vereadores tentam aprovar uma lei que proibirá imobiliárias ou qualquer proprietário de alugar casa para um imigrante ilegal.

Para o diretor da Câmara de Comércio de San Diego, James Clarke, o que boa parte da população americana não percebe é que a economia dos EUA depende desses imigrantes. 'A maioria vai para a colheita e ajuda a transformar a agricultura da Califórnia em uma das mais competitivas do mundo. Se tivessem de pagar salários mais altos, muitos fazendeiros quebrariam', disse Clarke.

Segundo ele, os dados mostram que os mexicanos não roubam empregos dos americanos. 'San Diego tem um dos índices de desemprego mais baixos do país.' Os hispânicos movimentam US$ 890 bilhões por ano e representam 13,8% da mão-de-obra nos EUA.

Para James Gerber, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de San Diego, a política adotada nos EUA e no México 'fracassaram' em lidar com o fluxo de pessoas: 'Nos anos 90, quando o Nafta foi criado, a promessa era de um aumento de empresas americanas instaladas no México. Isso de fato ocorreu, mas os salários não aumentaram e essas mesmas empresas já deixaram o México nos últimos anos e se deslocaram para a China.'

Dados oficiais mexicanos confirmam essa tendência. O número de empregos aumentou de 3 milhões em 1995 para 4 milhões entre 1995 e 2000. Mas, desde então, já caiu para 3,5 milhões. Os salários por hora no México caíram 14% entre 1994 e 2005, e aumentaram na mesma proporção nos EUA. Para completar, os agricultores mexicanos passaram a sofrer com a concorrência da produção americana, altamente subsidiada.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/02/07

Migração de latino-americanos para os EUA dobra em dez anos

A proliferação de cemitérios para indigentes no sul da Califórnia reflete, de forma mórbida, a tragédia política e social que toma conta da região. Esses cemitérios vêm recebendo um número cada vez maior de corpos. Ninguém sabe quem são, o governo americano não consegue identificar as famílias e as autoridades de seus países de origem raramente pedem a devolução dos corpos. A maioria é de imigrantes latino-americanos, vítimas do sonho de tentar entrar nos Estados Unidos, ainda que ilegalmente, em busca de uma vida melhor. A reportagem é do jornal O Estado de S. Paulo, 26-02-2007.

De acordo com o Instituto de Política de Imigração dos EUA, o número de latino-americanos cruzando a fronteira hoje é duas vezes maior que há dez anos, atingindo quase 300 mil por ano. Dois terços desse contingente são de mexicanos.

O governo dos EUA endureceu as medidas contra a imigração ilegal nos últimos meses, o que estaria por trás da queda da quantidade de detenções de imigrantes tentando entrar ilegalmente no país: entre julho de 2006 e janeiro deste ano, o número caiu 27% em comparação ao mesmo período de 2005. Foram presas 36,3 mil pessoas em San Diego e outras 92 mil em postos de fronteira do Arizona. Hoje, pela lei, a polícia pode extraditar um imigrante sem que o caso passe por um juiz. Em dezembro, mil trabalhadores mexicanos foram descobertos em açougues no sul e enviados de volta para seu país.

Mas os críticos dizem que o que se vê é mais violência, militarização e mal-estar na área de fronteira mais movimentada do mundo - entre Tijuana, no México, e San Diego, nos EUA -, por onde passam 75 mil pessoas por dia. Quem ganha, segundo os próprios imigrantes entrevistados pelo Estado, são os traficantes (conhecidos como'coiotes'), que em apenas um ano dobraram o valor do serviço para levar uma pessoa de um lado ao outro da fronteira.

No cemitério de Holtville, a 200 quilômetros de San Diego, 400 pessoas foram enterradas em cerca de um ano. São vítimas do frio, dos escorpiões do deserto, das ações da polícia ou baleadas pelos próprios traficantes de gente para evitar que a polícia descubra suas rotas.

Segundo organizações de direitos humanos, o aumento do número de mortes é conseqüência da política adotada pelo governo de George W. Bush em relação à entrada ilegal de imigrantes . Nos últimos meses verdadeiras bases militares foram montadas em vários pontos da fronteira. Em Tecate, cidade dividida entre os EUA e o México, soldados vestidos percorrem as montanhas em busca de ilegais. Barreiras ainda são colocadas a cada 30 quilômetros nas estradas e os carros são vistoriados. O governo está pedindo mais 3 mil militares para reforçar o contingente atual de 6 mil homens e US$ 1 bilhão para construir um muro na fronteira, que tem quase 1.100 quilômetros de extensão.

Especialistas advertem que a militarização agravará a violência e os riscos que os imigrantes terão de passar. Um dos novos fenômenos na região é a luta entre as gangues que organizam a passagem dos ilegais. Há quem pague até US$ 4 mil para ser levado de um lado ao outro e acaba sendo seqüestrado pelo cartel inimigo e só é liberado depois que a família, no México, paga fiança.

Segundo a polícia americana, em 2006 foram registrados 65 seqüestros de 'cargas'. Em muitos casos, essa disputa entre gangues acaba em mortes. Os traficantes estão usando túneis cada vez mais sofisticados, mas acabam entrando em guerra com os cartéis de droga, que não aceitam a invasão de suas rotas e atiram para matar.

Diante dos perigos, os coiotes não hesitam em cobrar mais por seus serviços. Maria Alvarez, de 57 anos, diz que saiu do México há dez anos pagando 'apenas' US$ 500. 'Hoje, meus sobrinhos têm de vender tudo o que têm e pegar dinheiro emprestado para pagar a passagem da fronteira. E não têm a garantia de que vão conseguir.'

NÚMEROS

300 mil
latino-americanos cruzam anualmente a fronteira dos EUA com o México - duas vezes mais do que há 10 anos

75 mil
pessoas passam diariamente pela fronteira de San Diego e Tijuana - a mais movimentada do mundo

500
pessoas morreram em 2006 ao tentar cruzar a fronteira

Instituto Humanitas Unisinos - 25/02/07

Nada está mais distante do ideal grego de felicidade que a idéia moderna sobre ela. Uma entrevista com o filósofo Darrin McMahon

Darrin McMahon, filósofo americano, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, 25-02-2007, mostra como o frenético consumismo moderno levou ao inevitável descrédito o conceito de felicidade e a uma deturpação da filosofia epicurista, que nunca significou o consumo de vinhos raros nem bons sapatos, mas o controle de nossos desejos e apetites.

Darrin McMahon é professor de história na Universidade da Flórida e doutor pela Universidade de Yale (1997). Autor de Enemies of the Enlightenment: The French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity (Oxford University Press, 2001), McMahon teve seu livro Felicidade: uma História, traduzido em nove línguas (no Brasil publicada pela editora Globo). Colaborador de jornais, o historiador organizou com Florence Lotterie o ambicioso estudo sobre iluminismo Les Lumières Européennes das leurs relations avec les grandes cultures et religions du XVIII siècle (Honoré Champion, 2002).

Eis a sua entrevista:

Por que a filosofia contemporânea deixou para trás a discussão sobre felicidade e o que o fez persistir no estudo do tema?

De fato, o século 20 parece ter abandonado a discussão sobre um tema que tem perturbado a humanidade desde os gregos. Creio que os filósofos contemporâneos se voltaram para assuntos que os inquietam particularmente, deixando de lado grandes questões como o que é a verdade ou o bem. O certo é que a filosofia analítica se tornou o pensamento dominante nas universidades e o fim do positivismo lógico provocou drásticas transformações nos movimentos filosóficos. Há, hoje, uma espécie de pessimismo generalizado, uma ausência mesmo de crédito na felicidade. E o existencialismo, derivado do pensamento filosófico de Heidegger, abriu um fosso que a filosofia da era romântica já havia anunciado. É como se o período romântico tivesse expurgado a felicidade de seu convívio, fazendo-a ficar fora de moda ao romantizar a morte. Persisto no estudo do tema porque acho que os filósofos têm de se engajar em assuntos que interessem ao público. Os filósofos profissionais abandonaram a questão grega de como viver bem e transferiram a tarefa aos mascates da auto-ajuda, enquanto eles se ocupam de jogos lingüísticos.

Uma pesquisa divulgada recentemente no Brasil revela que habitantes de países em desenvolvimento tendem a ser mais felizes. Como o senhor explica que os habitantes de países desenvolvidos e prósperos, sem problemas de saúde e vivendo confortavelmente, sejam mais infelizes? O senhor concorda com Rousseau quando ele defende que a ciência e a arte não acrescentam nada à felicidade?

É curiosa essa pesquisa, porque aquelas que eu tenho acompanhado nos Estados Unidos sugerem exatamente o contrário. Há menos satisfação nos países ricos, é verdade, mas muito mais assistência. Não acredito efetivamente que os africanos vivam melhor que os americanos ou os europeus. Rousseau certamente ficaria surpreso com pesquisas que demonstram uma ligação entre felicidade, o ativismo político e a luta pela democracia e Freud mais ainda se soubesse que o número de depressivos é bem maior em culturas que perseguem obsessivamente a felicidade. É romantismo achar que subdesenvolvimento e felicidade caminham juntos ou que o bem-estar não leve necessariamente à felicidade. Depois da 2ª Guerra, no período de reconstrução, as pessoas pareciam mais felizes, mas a economia contemporânea não permite tal otimismo. Há, ao contrário, boas razões para o ceticismo, o que não significa que devamos abdicar da idéia da felicidade.

O senhor costuma dizer que os gregos não pensavam a felicidade do mesmo modo que o homem contemporâneo pensa. O que separa a felicidade dos gregos dos modernos?

Primeiro, os gregos não associavam a felicidade a um rosto sorridente. Felicidade, para eles, significava viver uma vida virtuosa. Mesmo Epicuro jamais pregou o prazer irrestrito. Tanto o epicurismo como o estoicismo são doutrinas ascéticas, que exigem que o desejo seja regulamentado. No mundo moderno, felicidade é um conceito ligado ao hedonismo, fundamentalmente. Ora, não dá para ser feliz num país onde, por exemplo, se pratica a tortura. Aristóteles definia a felicidade como a associação entre prosperidade e virtude. Os países subdesenvolvidos sofrem porque sabem que esse tipo de felicidade é quase impossível. Então, é inevitável a desilusão de alguém que se entrega a uma forma hedonista de ver o mundo. É provável que os sociólogos e cientistas sociais nunca cheguem a um consenso sobre o que torna os homens mais felizes, mas uma coisa é certa: a mídia e o marketing criaram uma idéia falsa de felicidade e vai ser difícil controlar essa onda hedonista no mundo desenvolvido.

Consultar um terapeuta e tomar Zoloft ou Prozac parece ser o caminho mais fácil para se atingir o Nirvana nos dias que correm. O senhor acredita que a ciência terá, no futuro, uma fórmula para se atingir a felicidade ou será a religião a garantir esse estado?

Para quem sofre de depressão, o uso de medicação psicotrópica é por vezes inevitável, mas acontece que esses medicamentos estão sendo usados para propósitos não terapêuticos. Essa indistinção é preocupante, porque há uma linha tênue entre terapia e busca da felicidade a qualquer preço - e isso já se faz sentir na corrida pela fabricação de antidepressivos e ansiolíticos. Criar uma felicidade artificial e ordinária é até possível, mas não garante uma resposta para a questão inquietante de como se atingir a felicidade plena. Quanto à religião, o mundo contemporâneo está cheio de gurus que prometem felicidade a preços módicos. A filosofia perde terreno porque, apesar de Sócrates ter garantido que a felicidade está ao alcance do ser humano, é preciso lutar muito por ela. Filosofar sobre a própria conduta, adotar uma postura ética e refletir são atividades que exigem dedicação, devoção. A felicidade como meta é um legado grego e esse estado de saúde, como disse Cícero, só a filosofia pode garantir.

O senhor não parece muito convencido sobre o ideal da felicidade ser uma estrada para a vida eterna, como Locke pregava. O senhor diria que está mais próximo da filosofia de Hobbes do que do pensamento de Locke?

Não tenho resposta para essa pergunta, mas Hobbes me parece mais explícito ao não associar a felicidade a uma mente conformada. Locke também falou da inquietação que leva o homem a buscar a felicidade, ou persegui-la, no sentido mais hostil que a palavra possa ter. A felicidade passa, então, a ser o momento da recompensa na filosofia de Locke, que se preocupava tremendamente com os descaminhos do desejo.

Já que estamos falando de Locke, a busca da felicidade é garantida pela Declaração da Independência redigida por Thomas Jefferson em 1776, texto adotado não sem muita controvérsia nos EUA. Como o senhor interpreta a apropriação das idéias de Locke por Jefferson? O senhor acredita que os EUA tenham uma idéia diferente de felicidade em relação a outros países?

Não se sabe se Jefferson, ao referir-se aos direitos inalienáveis do homem, entre eles a busca da felicidade, o fez de forma genérica, levando gerações de americanos a perseguir o conforto e a satisfação pessoal com tanta obstinação. Não quero generalizar, mas essa busca cruzou a fronteira americana e lamento que as pessoas, hoje, façam barganha, preferindo a segurança no lugar da liberdade. A felicidade individual parece, hoje, mais importante que a coletiva.

Ao contrário das profecias de Saint-Simon sobre o futuro da humanidade, não estamos vivendo ou trabalhando alegremente no mundo contemporâneo, embora ainda existam otimistas que acreditem em conjugar a busca da felicidade com tecnocracia. É lícito aceitar a ditadura de tecnocratas para alcançar a felicidade?

Preferiria viver insatisfeito, mas livre. Mais uma vez, lamento que as pessoas troquem a liberdade pela segurança. Não é lícito aceitar ditaduras de nenhuma espécie.

Freud dizia que a felicidade tem dois lados, um positivo e outro negativo, lembrando que o princípio do prazer impõe um projeto, o de nos tornarmos felizes, que não pode ser realizado plenamente. O senhor diria que ele anteviu o hedonismo pós-moderno?

Freud não tinha um parâmetro anterior para saber em que direção o mundo iria caminhar, ou seja, não podia imaginar que o mundo iria buscar prazer em sexo desenfreado e no consumo excessivo de drogas. Na visão freudiana, estamos condenados à frustração de não ver esse projeto de felicidade realizado - e isso é trágico, porque as pessoas se esforçam para alcançar o inatingível, um desafio que merece ser considerado.

Os poetas, que estariam mais próximos de imaginar o mundo ideal da felicidade, estão praticamente ausentes do seu livro com exceção de Keats e Byron, que não são exatamente bons exemplos de felicidade. A boa literatura é capaz de ajudar alguém a tentar viver feliz?

Na época de Sócrates, os poetas e dramaturgos aceitavam que a felicidade dependia de deuses ou do destino, ou seja, estava além da intervenção humana. Sócrates chegou para dizer que, ao contrário, ela estava a nosso alcance, que éramos nós que teríamos de decidir entre ser felizes e infelizes. Ou seja, os deuses não eram tão legais quanto pensavam os gregos e nós teríamos de arranjar um jeito de buscar a felicidade. A virtude surgiu, enfim, como um atalho para a felicidade e a literatura não cansou de exaltá-la. Um livro sobre personagens infelizes pode ser, então, um bom exemplo a seguir para quem quer buscar a felicidade. Veja, por exemplo, o começo de Anna Kariênina, em que Tolstoi, já na frase inicial, diz que todas as famílias felizes se parecem e apenas as infelizes são infelizes à sua maneira. É uma proposição falsa, mas creio que Tolstoi estivesse falando dele mesmo e de sua família. Ora, Anna Kariênina é de uma época que não comportava finais felizes, mas, mesmo com a tragédia da protagonista, é uma das grandes obras literárias sobre a busca da felicidade, de uma mulher que lutou por ela.

Por que o senhor conclui seu livro citando Esperando Godot, de Beckett, quando Estragon propõe uma pergunta a Vladimir sobre o que fazer agora que ambos são felizes, evidente ironia do dramaturgo?

É engraçado. Senti que nessa peça ele retoma algo da tragédia grega, onde começa essa história de felicidade. Esperando Godot é, sem dúvida, uma tragédia, porque é de uma época imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra e à explosão da bomba atômica. Então, como era possível falar em felicidade? Os dias felizes seriam, novamente possíveis? Godot é uma ausência, mas a esperança de ser resgatado por um deus, de ser associado a ele, não se perdeu. Fingimos estar felizes, mas continuamos a esperar.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/02/07

Fumicultores vão plantar eucalipto

A Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) assinará um convênio terça-feira com os oito municípios da região Centro-Serra - do vale do Rio Pardo, Rio Grande do Sul. Com o objetivo de diversificar a atividade fumageira e garantir mais renda aos produtores, o convênio terá um investimento de R$ 160 mil, dos quais R$ 43 mil serão investidos pela Afubra e o restante pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A notícia é do jornal Gazeta Mercantil, 23-02-2007.

A parceria será inserida no projeto de fomento florestal para agricultores familiares, vinculados ao Programa de Apoio à Diversificação Produtiva nas Áreas Cultivadas com Tabaco. Portanto, os recursos financeiros serão investidos para incentivar o florestamento de pequenas propriedades, produtoras de tabaco. Na área a ser trabalhada, os produtores vão plantar principalmente eucalipto destinado à fabricação de energia para o próprio consumo, à benfeitorias e comercialização, para fins industriais e construção civil.

O projeto vem na linha de diversificar a atividade (de fumo) e complementar a renda dos fumicultores", explicou o vice-presidente da Afubra, Heitor Petry, informando que o convênio será assinado durante a Expoagro Afubra 2007, que acontece às 9h da próxima terça-feira, 27, em Rincão del Rey, Rio Pardo.

Em cada município, serão escolhidas quatro propriedades onde serão realizadas atividades demonstrativas, para ensinar técnicas mais especializadas de plantio. "É um programa de orientação e assistências técnicas e de extensão rural", sublinha Petry. O retorno dos investimentos, diz, será obtido pela capacitação e estímulo dados aos produtores para desenvolver novas alternativas de renda e não dependerem única e exclusivamente da atividade fumageira. Segundo ele, o objetivo não é reduzir a área plantada de café na região. "Se isso ocorrer, será conseqüência", pondera.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/02/07

“Já que não saiu a Alca, vamos de álcool”. Bush deseja uma Opep do etanol na América Latina

A grande iniciativa que o presidente George W. Bush quer lançar no Brasil está sendo chamada de mercado hemisférico de etanol. A idéia, gestada dentro do Departamento de Estado, é expandir a produção de etanol em vários países da América Latina, principalmente no Caribe e na América Central, para garantir um fornecimento estável do biocombustível. Trata-se de uma Opep do etanol. Para isso, Brasil e Estados Unidos devem fechar parcerias, com participação da iniciativa privada, para instalar usinas de etanol em países da América Central. A notícia é do jornal O Estado de S.Paulo, 25-02-2007.

O homem-chave por trás dessa estratégia é Greg Manuel, conselheiro de Condoleezza Rice para assuntos internacionais de energia. Desde que entrou no Departamento de Estado, em outubro, ele esteve seis vezes no Brasil. Jovem, Manuel aposta em incubadoras e parcerias público-privadas para criar o mercado hemisférico de etanol.

“Já que não saiu a Alca, vamos de álcool”, diz Brian Dean, diretor-executivo da Comissão Interamericana de Etanol (CIE). Brian foi diretor da Florida FTAA, grupo que fazia o lobby para que os EUA fossem a sede da Alca. Agora, com a Alca natimorta, Dean cuida da CIE, cujos titulares são o ex-governador da Flórida Jeb Bush, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luis Alberto Moreno, e o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues.

A comissão, que se reúne regularmente com o Departamento de Estado, está fazendo um levantamento sobre produção de etanol e cana-de-açúcar nos diversos países da América Latina. Segundo Dean, países como Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana são bastante promissores para abrigar usinas e expandir a produção de etanol.

Manuel não detalha muito o plano de parceria de etanol que será apresentado na viagem de Bush. Mas, a interlocutores, afirmou que o foco é a expansão regional da produção, com muita participação do setor privado. Ele mencionou também a possibilidade de parcerias público-privadas para investimento em infra-estrutura de etanol no Brasil, como alcooldutos e investimentos cruzados nos dois países.

“É uma enorme oportunidade. O hemisfério ocidental gasta 7,2% de seu PIB importando petróleo e alguns países são muito vulneráveis, como a República Dominicana, que gasta quase 20% de tudo o que produz importando petróleo”, diz Manuel. “Isso não é sustentável, todos esses países precisam investir em sua produção doméstica.” Segundo ele, do ponto de vista geopolítico, “é importantíssimo” diversificar as fontes de fornecimento de energia. “É importante ter como fonte de fornecimento todos os nossos amigos no exterior, e esses nossos amigos também sofrem, eles nem sempre têm a petrodiplomacia a seu favor.”

Juntos, Brasil e EUA produzem 72% do etanol mundial. A grande reivindicação brasileira sempre foi a abertura do mercado americano ao biocombustível brasileiro. Hoje, o etanol do Brasil paga imposto de importação de US$ 0,54 por galão. Mas uma redução na tarifa não será oferecida por Bush em março. “As tarifas não estão sobre a mesa de negociações”, disse Manuel. “Muitos países com os quais estamos falando sobre esse mercado global vêem o acesso ao mercado americano como uma vantagem adicional, não uma condição essencial; mesmo sem acesso ao mercado americano, há muitas oportunidades.”

A discussão de retirada de tarifas não é factível politicamente neste momento, por causa do forte lobby dos produtores de milho e o enfraquecimento dos republicanos no Congresso. Mas, a longo prazo, os americanos querem expandir as fontes de fornecimento de etanol, porque sabem que a produção doméstica de milho não vai dar conta da demanda e o etanol celulósico vai levar pelo menos uma década para ser viável economicamente. Bush estabeleceu a meta de reduzir o consumo de gasolina em 20% até 2017, o que significa um aumento de 132,4 bilhões de litros de combustíveis alternativos. Hoje em dia, a produção americana de etanol (de milho) é de 20,4 bilhões de litros.

Dentro da parceria energética, Bush e Condoleezza também vão discutir com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a cooperação em pesquisa e desenvolvimento, para aumentar a produtividade das lavouras e criar grãos geneticamente modificados mais adequados para produção de etanol. E ainda devem debater a uniformização de normas para a criação do mercado de commodities energéticas.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/02/07

Nos aproximamos do fim do 'copyright'

Manuela Villa faz uma resenha do livro do sociólogo holandês Joost Smiers, Artes sob pressão. Promovendo a diversidade cultural na era da globalização, lançado no Brasil em 2006 pela Editora Escrituras. A resenha coincide com o lançamento do livro na Espanha e foi publicado no El País, 23-02-2007. A tradução é do Cepat.

A imensa maioria das expressões culturais produzidas no mundo, quer sejam gravações musicais, filmes ou livros, é administrada por um grupo cada vez mais restrito de empresas multinacionais. Essa é a visão de Joost Smiers, professor de Ciências Políticas das Artes no Grupo de Pesquisa e Economia da Escola de Arte de Utrecht (Holanda), em seu livro Un mundo sin copyright (Um mundo sem copyright), editado pela Gedisa. "Não é aceitável que algumas poucas empresas controlem tudo o que podemos ler, ver e ouvir", opina Smiers.

"Para garantir a diversidade cultural, necessitamos normalizar o mercado e permitir que as pequenas e médias empresas possam oferecer seus produtos". Para isso, Smiers defende que "primeiro é preciso eliminar o sistema de copyright". "Este, prossegue o autor, unicamente beneficia as grandes empresas culturais e não os artistas. Apenas uma porcentagem muito pequena dos criadores obtém uma quantidade substancial de dinheiro através do copyright".

A declaração foi dada em Madri depois de sua participação na Conferência Internacional de Software Livre 3.0, que aconteceu há algumas semanas em Badajoz. Seu livro, traduzido para cinco idiomas, faz um diagnóstico da problemática situação que, na sua opinião, a indústria cultural no mundo globalizado sofre. Intitulado originalmente Arts under pressure (Artes sob pressão), o livro não define como seria "um mundo sem copyright", como sugere a livre tradução do título para o espanhol. "O editor pensou neste título e eu estive em desacordo, mas é verdade que chama mais a atenção", reconheceu o autor.

Smiers questiona o atual modelo de copyright, no qual os direitos de reprodução, distribuição, exploração ou modificação de uma obra artística estão reservados a seus proprietários durante muitos anos. Até setenta anos depois da morte do autor, na legislação espanhola. "Um artista utiliza o trabalho de outros, se sustenta sobre os ombros de outros", explica. "Assim é a história da criatividade, mas com o copyright esta história pára. Não me parece bem que, só por fazer um acréscimo, alguém obtenha uma propriedade exclusiva para o século seguinte".

Existem diferentes correntes de pensamento que, como Smiers, questionam a idoneidade da atual forma majoritária de administrar os direitos autorais. Smiers crê numa futura abolição de qualquer tipo de direito autoral, mas uma corrente mais ampla advoga por um modelo alternativo que já está sendo utilizado: as licenças Creative Commons. Qualquer autor espanhol pode entrar numa delas, como a que permite que o material criado por um artista possa ser distribuído, copiado e exibido por terceiros sempre que se mostrar nos créditos a autoria e não se obtenha nenhum benefício comercial.

Mais de 1.8 milhão de obras feitas na Espanha têm um direito autoral desse tipo. São licenças à la carte, que reservam alguns direitos ao autor dependendo do que se deseja. Diferentemente do sistema de copyright, considerado obsoleto por seus detratores, que significa a reserva de todos os direitos. "Creio que o modelo do Creative Commons é uma solução transitória", defende Smiers. "Seus partidários não enfrentam o problema principal: a acumulação da oferta cultural em poucas empresas".

Há, portanto, um leque de opções alternativas ao copyright, chamadas genericamente copyleft, e que se inspiram nos modelos de criação utilizados no software. "Deveríamos aprender dos criadores digitais", propõe Smiers. "Eles estão acostumados com que sua obra seja utilizada e modificada uma ou mais vezes por outros para obter resultados melhores".

Os defensores do copyright como única opção argumentam que sem ele os artistas, ao verem sua propriedade intelectual menos protegida, deixariam de criar. Mas Smiers não está de acordo: "Sem copyright o mercado será mais diverso. Agora vivemos uma época de obscuridade porque há milhares de artistas que fazem coisas muito interessantes que mal vemos. Sem copyright virá uma época de luz".

Smiers opina que num mercado normalizado, o consumidor, mesmo que possa aceder ao seu trabalho gratuitamente, tenderá a pagar o artista porque verá isso como algo justo. "Os que trocam música ilegalmente não são ladrões", explica, "simplesmente não acreditam no sistema".

Também se aventura a dizer que o fim do copyright está perto e prognostica o desaparecimento das grandes empresas culturais. Tudo isso apesar das regulações parecerem ir na direção contrária. "A indústria tem problemas na hora de criminalizar seu público", disse. "Creio que há uma alta probabilidade de que o sistema de copyright caia por seu próprio peso".

Smiers deverá viver com a contradição de que a edição espanhola de seu livro tem todos os direitos reservados. "Não estou sonhando", conclui, "entendo que neste momento o mundo é copyright, e o editor deve fazer o que lhe permita proteger seus direitos".

Uma obra, duas alternativas

Copyright - Conjunto de normas e princípios que regulam os direitos morais e patrimoniais que a lei concede aos autores por criar uma obra literária, artística ou científica.

Copyleft - Grupo de licenças cujo objetivo é garantir que cada pessoa que recebe uma cópia de uma obra possa por sua vez usar, modificar e redistribuir o próprio trabalho e as versões derivadas do mesmo.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/02/07

Renault sofre onda de suicídios

Vários trabalhadores da Renault, na França, se suicidaram num arco de tempo que remonta a fins de 2004. Entre as causas apontadas estariam a intensificação do trabalho e a pressão para atingir metas cada vez mais intangíveis.

Leia na seqüência reportagem de Anne-Charlotte de Langhe para o Le Figaro, 22-02-2007. A tradução é do Cepat.

Não "gerar ansiedade extra" e "preservar o ambiente de trabalho" de cada trabalhador: esta era a dupla ambição fixada pela Renault, ontem, depois do suicídio de um de seus empregados na fábrica. O terceiro num espaço de quatro meses; "o quarto desde o fim de 2004", afirma a CGT. "Cinco empregados do Centro Técnico de Guyancourt tentaram se matar em dois anos, quatro dos quais em seu local de trabalho", conta Michel Fontaine, secretário geral do sindicato na Renault. "Um deles está atualmente bem deficiente".

Em outubro de 2006 e janeiro último, dois homens que trabalham na elaboração dos futuros modelos da construtora subitamente se mataram no escritório, o primeiro saltando do 5º andar, o segundo se afogando num tanque. Segundo outro sindicalista, esses dois membros dos centros de estudos sofriam de um certo mal-estar profissional, ainda que tenham procurado fazer seus companheiros o entenderem. Antes de cometer o irreparável, um engenheiro sindicalizado tinha deixado em destaque na tela do computador o resumo de sua última entrevista com a direção.

Mesmo "apreciado por sua chefia", Raymond D., 38 anos, parecia ter atingido o fundo. Contratado como técnico, esse aplicado trabalhador teria explicado, numa carta deixada à sua esposa, "não suportar mais" o ritmo imposto pela empresa. Pai de um menino de 5 anos, morando em Saint-Cyr-l'Ecole, Raymond D. trabalhava há algum tempo no famoso "projeto 91": o da nova Laguna. "O top do top", insiste Michel Fontaine, da CGT. "Um veículo que não deve ter absolutamente nenhum defeito".

Segundo informações das organizações sindicais, os ocupantes da "Ruche", esse enorme prédio de vidro onde trabalham cinco mil dos 12.500 empregados da fábrica de Yvelines, estão há anos submetidos a "fortes pressões de rendimento". "Inicialmente, o Centro Técnico havia sido criado para que as pessoas trabalhassem harmoniosamente", lembra Michel Fontaine. "Depois, foi preciso agilizar cada vez mais: o tempo da realização dos estudos foi encurtado, e os objetivos, revistos para cima".

"Nunca à altura"

O que dá a alguns saudades do trabalho em equipe, marca de fábrica da empresa. "Aqui, vivemos num lugar fechado, isolado, ultra-seguro com câmaras em todos os lugares", conta um empregado. "Conheço quem nunca levanta o nariz de seu computador".

A Renault, por sua vez, insiste no fato de que os serviços implantados na planta modelo de Guyancourt - concepção, design, desenvolvimento, atelier protótipos - são sempre organizados em "unidades de trabalho de 10 a 12 pessoas" e que o sentimento de orgulho predomina na empresa. "Pessoais, sociais, profissionais: as causas do suicídio são plurais", indica uma porta-voz do grupo.

Enfim, sindicatos como a CFDT denunciam "a extrema pressão" exercida sobre os empregados no contexto da última meta em vigor, chamada de "Renault Contrat 2009" pelo presdiente, o brasileiro Carlos Ghosn: 26 modelos, 13 dos quais novos, devem ser lançados no mercado dentro de dois anos. Um "formidável instrumento de motivação", segundo o construtor. Para "persuadir os mais frágeis de que nunca estão à altura", afirma, ao contrário, a CGT.

Atualmente, a montadora convoca suas tropas ao apaziguamento, "bem remuneradas", ajudadas por uma célula de apoio médico-psicológico. A pesquisa preliminar aberta Ministério Público de Versailles, assim como os dois assuntos precedentes, esclarecerá provavelmente a justiça sobre as condições de trabalho de Raymond D. Em relação ao passado, "nenhum elemento nem infração" da parte do empregador pode ser encontrado.