"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, agosto 24, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 24/08/07

Abelhas estão desaparecendo no Sul do Brasil

As primeiras notícias sobre o fenômeno do desaparecimento das abelhas foram recebidas como uma espécie de enredo de um novo filme de ficção científica. Mas o problema tornou-se muito real. Nos Estados Unidos recebeu o nome de Colony Collapse Disorder (Desordem e Colapso da Colônia). Agora, o problema foi detectado também no Brasil, particularmente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. A reportagem é de Marco Aurélio Weisheimer e publicada pela Agência Carta Maior, 23-08-2007.

Matéria publicada no jornal Diário Catarinense, de Florianópolis, afirma que o desaparecimento das abelhas já é motivo de grande preocupação entre apicultores dos dois Estados. E o desaparecimento vem acompanhado de outro problema: as abelhas que permanecem nas colméias estão morrendo infectadas por diversas doenças. Em depoimento ao jornal, o apicultor e pesquisador Leandro Simões, de Campo Alegre, diz que nunca viu algo parecido em 35 anos de profissão.

O fenômeno pode causar graves desequilíbrios ambientais, uma vez que as abelhas são responsáveis por mais de 90% da polinização e, de forma direta ou indireta, por 65% dos alimentos consumidos pelos seres humanos. Alguns produtores já registram perdas de 25% na produção de mel.

Segundo Jair Barbosa Júnior, do Instituto de Estudos Socioeconômicos, com sede em Brasília, uma das possíveis causas do fenômeno pode ser a influência de lavouras transgênicas. No Brasil, lembrou Barbosa, não há estudos aprofundados sobre o impacto dos transgênicos no ecossistema. Outra possível causa apontada pelo pesquisador é o aquecimento global. O sistema de orientação das abelhas funciona por meio dos olhos. As abelhas dependem da luz solar para encontrar o caminho de volta para as colméias. O aumento da incidência de raios ultravioletas poderia, assim, ser uma das causas do fenômeno. Essa possível causa não explica, porém, o que está atingindo o sistema imunológico dos animais.

A advertência de Einstein

O físico Albert Einstein disse que se as abelhas desaparecessem, a humanidade seguiria o mesmo rumo em um período de 4 anos. A razão é muito simples: sem abelhas não há polinização, e sem polinização não há alimentos. O desaparecimento das abelhas começou a ser tema na mídia em 2006, nos EUA e no Canadá, quando criadores que alugam enxames para agricultores começaram a relatar o desaparecimento destes animais em níveis muito elevados.

Em várias regiões destes dois países, apicultores chegaram a perder 90% de suas colméias. O biólogo norte-americano Edward Wilson, chamou o fenômeno de “o Katrina da entomologia”, numa referência ao furacão que arrasou Nova Orleans, nos EUA.

Na Califórnia, entre 30% e 60% das abelhas desapareceram. Em algumas regiões da costa leste dos EUA e do Texas, esse índice chegou a 70%. Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), o fenômeno foi registrado em 42 estados norte-americanos e duas províncias canadenses. A redução das colônias de abelhas no país vem ocorrendo, pelo menos, desde 1980. De acordo com dados do USDA, o número de colméias hoje nos EUA (2,4 milhões) é 25% do que aquele que existia em 1980.

Já segundo a Associação de Apicultura Americana, o desaparecimento das abelhas atingiu 30 estados dos EUA. A morte repentina de abelhas também já foi registrada em países como Alemanha, Suíça, Espanha, Portugal, Itália e Grécia. Manfred Hederer, presidente da Associação Alemã de Apicultores, relatou uma queda de 25% nas populações de abelhas por toda o país.

Transgênicos entre os suspeitos

Entre as possíveis causas do fenômeno, são citadas a radiação de telefones celulares, o uso indiscriminado de herbicidas e o uso de transgênicos, em especial os do milho Bt (com gene resistente a insetos; contém pedaços do DNA da bactéria Bacillus thuringiensis).

Diversos países proibiram, recentemente, variedades transgênicas do tipo Bt, o segundo transgênico mais plantado hoje no mundo (fica atrás apenas da soja). O governo peruano proibiu a variedade da batatinha transgênica Bt, em razão do país ser o centro de origem e biodiversidade desta cultura. O México proibiu totalmente o plantio ou consumo do milho Bt pelas mesmas razões. O governo da Grécia tomou a mesma decisão, estendendo a proibição a 20 variedades do milho Bt, por risco de ameaça à espécie humana, à vida silvestre e à indústria de criação de abelhas. O Brasil, por sua vez, vem aprovando a liberação de transgênicos Bt.

Outra hipótese levantada relaciona o problema à radiação dos telefones celulares. O jornal inglês The Independent publicou matéria a respeito, afirmando que a radiação dos celulares poderia estar interferindo no sistema de navegação das abelhas, provocando a desorientação das mesmas, que, assim, não conseguiriam mais voltar para suas colméias. Além disso, citou pesquisas alemãs que apontaram mudanças de comportamento das abelhas nas proximidades de linhas de transmissão de alta tensão.

Ainda não foi encontrada nenhuma prova sobre a real causa do problema. A possibilidade de uma praga causada por algum produto químico é questionada pelo fato de que não são encontrados restos mortais das abelhas em grande número. Quando uma colônia é afetada por algum microorganismo, há muitos insetos mortos em torno delas. Nos casos relatados nos EUA e em outros países, as abelhas simplesmente estão desaparecendo.

Alguns cientistas, por outro lado, minimizam o problema. O professor emérito de entomologia da Oregon State University, Michael Burgett, disse ao jornal The New York Times que as grandes baixas em abelhas em algumas regiões poderiam simplesmente ser um reflexo de picos populacionais superiores à taxa normal de mortalidade em décadas recentes. Segundo ele, no final dos anos 70 houve um fenômeno similar a este, que, na época, foi chamado de “doença do desaparecimento”. Não foi encontrada uma causa específica para o desaparecimento.

Mas não se trata de uma simples repetição. A novidade é que, desta vez, o problema está aparecendo ao mesmo tempo em várias regiões do planeta, inclusive no Brasil.

Para ler mais:

Agrotóxicos matam abelhas no RS

Abelhas desaparecem das colméias nos Estados Unidos

Um fenômeno misterioso acomete as abelhas

O colapso das colônias de abelhas. Artigo de Fernando Gabeira

Abelhas desaparecem nos EUA e na Europa, provocando prejuízos de bilhões de dólares a agricultores

Instituto Humanitas Unisinos - 24/08/07

'EUA perderam força e o Brasil ocupa espaços' Entrevista com Luiz Alberto Moniz Bandeira

Os Estados Unidos vêm perdendo força, já não são uma estrela de primeira grandeza e o Brasil aproveita o momento histórico para ocupar os espaços possíveis - coisa que seus vizinhos também procuram fazer. Isso não significa que a América Latina esteja indo para a esquerda: apenas que o equilíbrio é outro. Mas engana-se quem imaginar que essa “autonomia” é um fato novo: a agenda entre os dois países já era intensa e marcada por tensões e divergências em outros períodos do passado.

Um exemplo: o governo do Império rompeu relações três vezes com Washington, em meados do século 19. Outro, mais recente: o regime militar brigou muito e votou 185 vezes contra o interesse americano na ONU, entre 1964 e 1985. O afastamento a que se assiste hoje ocorre, porém, num cenário em que o País se industrializou e modernizou e já dilatou sua diplomacia para muitas outras regiões.

Episódios como esses são analisados com profundidade em Presença dos Estados Unidos no Brasil, um livro já considerado clássico do professor de História da Política Exterior Luiz Alberto Moniz Bandeira - trabalho que ele atualizou e está relançando esta semana. A reportagem e a entrevista são de Gabriel Manzano Filho e publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, 24-08-207. Na entrevista, o professor, que já lançou mais de 10 livros sobre o tema, avalia a convivência entre os dois países.

Eis a entrevista.

O sr. diz que os EUA são hoje um país mais vulnerável. De que modo isso altera as relações entre os dois países?

Os EUA não são mais uma estrela de primeira grandeza. O advento de governos de esquerda no continente, como os de Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, e mesmo o presidente Lula, no Brasil, não significa que a América Latina se tornou mais esquerdista. E nem que os Estados Unidos mudaram a sua política. Simplesmente os Estados Unidos perderam força. Na região eles tentaram planos de estabilização com os governos militares, não funcionou a contento. Depois tentaram com governos democraticamente eleitos, aplicando o Consenso de Washington, também não adiantou. Hoje, vêem o distanciamento desses países e se pudessem se livrariam de figuras como Hugo Chávez, na Venezuela, mas não vêem condições para isso.

No resto do mundo, como o sr. vê esse quadro?

Eles não podem deixar de reconhecer o Bric (o grupo Brasil-Rússia-Índia-China), que são novas potências regionais. Enfrentam enormes déficits, comercial e orçamentário. A dívida do povo americano é quase do tamanho do PIB do país, coisa de US% 9 trilhões. Há uns US$ 2 trilhões de papéis americanos em poder de Europa, Japão e China. Essa crise que estourou agora, lembro-me que o Joseph Stiglitz previu uns três anos atrás.

No seu livro, abordam-se outros momentos dessa história.

O livro, agora atualizado, mostra que o Brasil, ao contrário do que se imagina, nem sempre se submeteu à predominância americana. Ao contrário. Embora dependesse dos EUA como comprador de seu café, o principal produto, o Brasil reagia à predominância americana. Por exemplo, durante o período imperial, por três vezes o Brasil cortou relações com os EUA. Depois, eles tomaram posição contra o Brasil na guerra contra a Argentina (em 1827), de novo contra o Brasil na guerra do Paraguai (1865). Quiseram invadir a Amazônia (entre 1849 e 54), quando o Brasil quase foi à guerra contra eles.

Que briga foi essa, pela Amazônia?

Eles queriam transportar os negros americanos para a região. Para isso, era preciso abrir o Rio Amazonas à navegação. O Brasil não deixou. Só o fez em 1865, durante a guerra do Paraguai, por temer que os EUA insuflassem o Peru e o Equador contra o Brasil naquela ocasião.

No regime militar, houve momentos críticos nas relações entre os dois países. Como o sr. analisa hoje aquelas divergências?

Dediquei um livro a essas relações desse período, chamado Rivalidade Emergente. O fato é que os interesses nacionais são definidos pelas necessidades da produção de um país. A partir dos anos 50 o Brasil tornou-se predominantemente industrial, o café diminuiu seu peso nas exportações, dando lugar às manufaturas. O País começou a buscar outros mercados e isso teria impacto na política exterior, que até então era alinhada como a Casa Branca. Daí aquela virada com o governo de Jânio Quadros (1961), depois com João Goulart (1961-64). Começaram os atritos.

Houve cobrança também, no governo Jimmy Carter, contra os abusos dos militares na questão dos direitos humanos...

Não, essa não foi uma grande razão. Aquilo foi um pretexto dos EUA para deixar o governo brasileiro na defensiva. Mas o fulcro da briga, então, foi de fato o acordo nuclear do Brasil com a Alemanha Ocidental. O que os preocupava era a hipótese de um caminho próprio para a energia nuclear nacional. O Brasil já podia fornecer grande parte do material de suas Forças Armadas, devido a seu processo de industrialização. E o acordo militar com Washington só fazia atrasar a produção armamentista do Brasil, sua evolução tecnológica. Então Geisel denunciou o acordo.

Então os conflitos sempre foram intensos?

A certa altura, os EUA temeram pelo futuro do Atlântico Sul. O Brasil apoiava Angola, Cuba também a apoiava até militarmente, o Atlântico Sul ameaçava virar um mar brasileiro. De 1968 a 1985, o Brasil votou 185 vezes com a União Soviética e países do chamado Terceiro Mundo, na Assembléia Geral das Nações Unidas - mais vezes do que a favor dos Estados Unidos. No governo Geisel, o Brasil até apoiou uma moção que considerava o sionismo uma forma de racismo. Como você vê, a dimensão e variedade dos problemas era até maior do que a que assistimos hoje.

Qual é, então, a diferença entre as relações hoje e naquele período?

Hoje, a situação é diferente porque, além de os EUA perderem força, o Brasil, por seu lado, está diversificando seus mercados. E vale lembrar: se não fizesse isso, a crise que vivemos hoje - surgida com os créditos podres no sistema habitacional americano e espalhada pelo resto do mundo - afetaria muito mais o Brasil. Uma recessão americana, hoje, afeta muito menos a economia brasileira porque o País dilatou sua política externa e se relaciona de forma mais diversificada com as mais diferentes regiões. É um avanço importante.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/08/07

País estuda suspensão de direito de propriedade intelectual para retaliar EUA

O governo brasileiro começou a preparar os instrumentos legais para, se necessário, suspender direitos de propriedade intelectual de empresas ou cidadãos americanos, como retaliação pelos subsídios ilegais dos EUA aos seus produtores de algodão. No primeiro semestre do próximo ano, a Organização Mundial de Comércio (OMC) deverá concluir o chamado caso do algodão, em que já deu ganho de causa ao Brasil na acusação aos EUA de darem subsídios ilegais aos produtores locais. Falta comprovar que, como é evidente pela nova lei agrícola americana, os EUA desacataram as determinações da OMC, e autorizar o Brasil a adotar represálias.

Se optar por retaliar os EUA no campo da propriedade intelectual e for autorizado pela OMC (o que se chama no jargão comercial "retaliação cruzada"), o Brasil poderá suspender direitos de patente, marcas e de autor, de empresas ou cidadãos americanos; fornecer licenças para fabricação de produtos e serviços hoje protegidos por direitos de propriedade intelectual, permitir uso de indicações geográficas protegidas, ou, até, antecipar o fim de patentes.

"O Brasil já pediu autorização à OMC para a retaliação cruzada, mas ainda não decidimos se a usaremos, ou como", explica o subsecretário-geral para assuntos de comércio e tecnológicos do Ministério das Relações Exteriores, Roberto Azevedo. "O importante é termos os instrumentos, caso decidamos." Apesar da reticência do diplomata, há forte entusiasmo no governo com a idéia, que, se bem-sucedida, traria um inédito instrumento de pressão para os países em desenvolvimento na OMC.

Os diplomatas acreditam que a ameaça de causar danos aos detentores de direitos de propriedade intelectual é arma mais eficaz para pressionar o governo dos EUA a cumprir as normas da OMC do que os mecanismos tradicionais de retaliação. Em geral, seguindo critérios da OMC, os países retaliam com aumentos de tarifas de importação - que terminam por causar pequeno impacto em países de grandes economias, e prejudicar o autor das retaliações, com alta nos custos de importação.

Na quarta-feira, os ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex), coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento, encarregaram um grupo de especialistas dos próprios ministérios a prepararem o modelo a ser aplicado caso o Brasil aplique a retaliação cruzada. Embora o grupo não tenha data fixada para concluir os trabalhos, os ministros querem, dos técnicos, definições até o fim do semestre, para orientar as possíveis ações do governo em 2008.

Na próxima semana, a estratégia do governo chega ao Congresso, com a apresentação, pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP), de um projeto de lei alterando a lei brasileira de propriedade intelectual, para evitar problemas legais em caso de suspensão de direitos no campo da propriedade intelectual. Teixeira, que tomou a iniciativa de procurar o Itamaraty, por sua antiga militância no combate à Aids e facilitação do acesso a medicamentos para a doença, apoiou-se em estudos da especialista da Universidade de São Paulo Maristela Basso, que aponta dificuldades na aplicação da medida, mas a considera uma forma eficaz de pressão contra países que violam as normas da OMC, como os EUA.

"Fiz uma fórmula ampla, que permite ao governo suspender ou diluir diretos em obras de autoria, direitos de artistas e intérpretes, produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão, marcas, indicações geográficas, patentes, desenhos industriais", lista o deputado. Maristela sugere, entre as medidas possíveis, escolher produtos que tenham patentes próximas ao fim do prazo para antecipar o fim dos direitos a esses bens. "A princípio, penso que as retaliações deverão ser aplicadas na mesma área. No caso do algodão com os EUA, poderia ser contra produtos transgênicos, por exemplo", exemplifica Teixeira.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/08/07

Hora de reavaliar o movimento de desregulação financeira? Artigo de Fernando Cardim de Carvalho

"Não deve surpreender ninguém que turbulências financeiras de maior ou menor gravidade fizeram sua reentrada no cenário mundial exatamente depois que a contra-revolução liberal persuadiu lideranças políticas de vários países a promover a chamada desregulação", afirma Fernando Cardim de Carvalho, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) em artigo publicado no jornal Valor, 24-08-2007.

Segundo ele, "as ineficiências de mercados financeiros insuficientemente regulados não são pragas apenas de países em desenvolvimento. A crise atual foi gerada nos Estados Unidos e expandiu-se pelos centros financeiros mais avançados da Europa e da Ásia. Países em desenvolvimento, como o Brasil, sofrem o impacto dessa crise porque também tomaram o bonde da desregulação, mas nada têm a ver com sua origem".

Eis o artigo.

"A reação dos principais mercados financeiros nesta semana, após os repetidos acenos de altas autoridades, especialmente americanas, de que utilizariam os instrumentos que fossem necessários para impedir que as turbulências se agravassem, podem dar ao público em geral uma falsa sensação de segurança e conforto. Não é impossível que os mercados financeiros passem a se comportar de forma mais estável daqui para diante, mas é altamente improvável. As medidas tomadas pelos principais bancos centrais do mundo, especialmente o Federal Reserve e o BCE, foram até certo ponto surpreendentemente inspiradas, contribuindo para desacelerar a degradação do mercado de títulos imobiliários, mas, neste ponto, a probabilidade maior ainda é a de que estejamos vivendo no intervalo de duas ondas de um tsunami, em que a calmaria do mar é apenas temporária.

Muitos economistas acreditam que novos problemas virão exatamente porque os bancos centrais intervieram desta vez para conter danos. Para eles, só se aprende pelo sofrimento e, por isso, as crises são profiláticas, ao fazerem com que investidores se conscientizem dos riscos que cercam qualquer oportunidade de investimento e tomem as precauções necessárias. Esses economistas acenam com o fantasma do "risco moral", isto é, do incentivo perverso que a intervenção pública estaria dando a esses investidores ao protegê-los das conseqüências de seus próprios atos. Postulam que os mercados financeiros são "eficientes" e que, se deixados a si mesmos, funcionariam de forma estável e eficaz. Alguns chegam mesmo a anunciar a próxima crise, porque o governo conteve esta (até agora).

Já para outros economistas, mercados financeiros são inerentemente instáveis, propensos a gerar exageros, seja exagerando altas até transformá-las em bolhas especulativas, seja exagerando as quedas, gerando as chamadas crises sistêmicas. Essa instabilidade não resultaria da intervenção pública, nem seria acidental, mas, sim, do fato da vida de que investimentos dependem de expectativas e essas, ao contrário da ficção proposta pelos adeptos das "expectativas racionais", são influenciadas por fatores subjetivos, como o estado de confiança e o animal spirits de que falava Keynes. Todo investimento implica na aceitação de um risco, muitas vezes incalculável, em troca da perspectiva de um ganho. A avaliação desse risco é inevitavelmente subjetiva, mas sofre também a influência da experiência do investidor. Os investidores que perderam o que tinham na crise das Bolsas brasileiras em 1971 certamente se tornaram instintivamente pessimistas. Já aqueles investidores e operadores americanos que se acostumaram com o longo impulso expansivo dos mercados nos anos 1990, naturalmente foram se tornando sempre mais ousados. A experiência desse período foi a de que não havia como perder dinheiro, por mais exótico que fosse o investimento.

Hyman Minsky certa vez observou que "a estabilidade é desestabilizante". Por mais cautelosos que sejam os participantes do mercado financeiro, se as precauções tomadas se mostram bem-sucedidas, e perdas são efetivamente evitadas, esses mesmos participantes acabarão por se questionar se não estão perdendo oportunidades de aumentar seus ganhos por excesso de cautela. Quando se chega a esse ponto, os investidores e operadores começam a se expor a riscos sempre maiores e obter ganhos crescentes, tomando posições cada vez mais especulativas. O próprio sistema financeiro permite e incentiva sua própria fragilização, ao acomodar uma alavancagem crescente. Investidores endividam-se para comprar ativos, fazendo o valor destes subir, o que lhes permitirá endividar-se ainda mais para ampliar sua carteira, numa espiral que parece desafiar a lei da gravidade. Imaginar-se que um sistema com essa dinâmica possa convergir espontaneamente para qualquer forma de equilíbrio, para sequer falar de um "equilíbrio eficiente", exige uma capacidade de auto-ilusão que beira ao delírio.

Neste quadro, a intervenção pública deve estar sempre dirigida à contenção de excessos, embora nem sempre isso seja viável. O primeiro instrumento a ser utilizado é a regulação financeira. Não deve surpreender ninguém que turbulências financeiras de maior ou menor gravidade fizeram sua reentrada no cenário mundial exatamente depois que a contra-revolução liberal persuadiu lideranças políticas de vários países a promover a chamada desregulação. As ineficiências de mercados financeiros insuficientemente regulados não são pragas apenas de países em desenvolvimento. A crise atual foi gerada nos Estados Unidos e expandiu-se pelos centros financeiros mais avançados da Europa e da Ásia. Países em desenvolvimento, como o Brasil, sofrem o impacto dessa crise porque também tomaram o bonde da desregulação, mas nada têm a ver com sua origem. Os já lendários fundos de hedge, que levaram o mundo à beira da catástrofe, em 1998, com a crise do LTCM, continuam atuando de forma livre e desimpedida, a ponto de incomodar até líderes conservadores como a primeira-ministra Merkel ou o presidente Sarkozy.

Mas mesmo o mais eficaz e rigoroso regime de regulação financeira dificilmente evitará que turbulências assolem o mercado financeiro de tempos em tempos. Neste caso, a segunda família de instrumentos a serem utilizados compõem a chamada rede de segurança, inclusive a assistência de liquidez, amplamente utilizada nos últimos dias nos Estados Unidos e na Europa. Quanto mais deficiente for a regulação, maior será a responsabilidade da rede de segurança em conter os desequilíbrios.

Por outro lado, o impacto dessas turbulências em países como o Brasil devem levar também a uma nova reflexão sobre um aspecto importante do processo de desregulação, que foi o desmantelamento dos controles de capitais. O Brasil, com a liberalização da conta de capitais, se expõe aos efeitos dessa crise, com a entrada e saída repentina de capitais tanto de residentes quanto de não-residentes, a troco de nada. A crise, e seus desdobramentos futuros, abrem uma oportunidade de corrigir este erro."

Instituto Humanitas Unisinos - 24/08/07

Economista critica acúmulo de reservas

Co-diretor do Laboratório Econômico Mundial, o economista espanhol Ricardo Caballero, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), causou polêmica ontem ao defender que os emergentes parem de acumular reservas internacionais gigantes e passem a adotar mecanismos de mercado, como investimento que funcione como seguro, para defenderem suas economias. A notícia é do jornal Folha de S. Paulo, 24-08-2007.

Para Caballero, países como o Brasil (que tem US$ 160 bilhões) deveriam usar as reservas internacionais para fazer investimentos que alavanquem a capacidade de crescimento da economia, como em projetos de infra-estrutura. "Por que acumular reservas, que têm custo alto, e não fazer um porto?"

Como exemplo, o economista afirmou que os países emergentes poderiam investir em contratos do índice VIX, da Bolsa de Opções de Chicago, que mede a volatilidade do índice Standard & Poor's 500, termômetro da Bolsa de Nova York.

Já para Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista-chefe da Quest Investimentos, ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações (governo FHC), mesmo num cenário "mais perverso, não espere uma crise grave como vivemos no passado. Os US$ 160 bilhões de reservas serão um eficiente guarda-costas para todos nós". A opinião está expressa em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 24-08-2007.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/08/07

'A revolução feminista não transformou o papel da mulher, mas agregou funções a ela'. Entrevista especial com Joana de Vilhena Novaes


Magra, alta, cabelos compridos e esvoaçantes: esse é o padrão de beleza da sociedade contemporânea. Como é um padrão que se adapta apenas às minorias, a massa recorre às plásticas e aos inibidores de apetite. É excluído, assim, aquele que está acima do peso e, portanto, fora do padrão. Isso é o que a pesquisadora Joana de Vilhena Novaes chama de moralização da beleza, em seu mais recente livro, fruto da sua tese de doutorado, “O intolerável peso da feiúra. Sobre mulheres e seus corpos” (Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2006). Sobre as questões abordadas na obra, Joana falou, por telefone, com exclusividade, à IHU On-Line.

Na conversa, Joana fala dos impactos sociais que o padrão de beleza tem na sociedade e, principalmente, o impacto da gordura. “A obesidade tem, sim, um impacto social de exclusão mais forte na sociedade contemporânea”, afirma. Ela fala ainda das ações afirmativas que a publicidade precisa fazer para contemplar as pessoas consideradas gordas nos nichos de mercado e faz uma relação entre sociedade de consumo, padrões de beleza e a cultura do excesso.

Joana de Vilhena Novaes é graduada em Psicologia pela PUC-Rio, com mestrado e doutorado em Psicologia Clínica pela mesma universidade. Atualmente, é professora da PUC-Rio, onde coordena o projeto de pesquisa “Estética feminina e regulação do corpo” e faz atendimento psicológico à comunidade de baixa renda. É voluntária na Associação Santa Clara e pesquisadora do Instituto Delphos.

Eis a entrevista.

IHU On-Line – A mulher, com todas as revoluções feministas que aconteceram nas últimas décadas, ainda está presa a um padrão de beleza? Quais são os impactos sociais que esse padrão de beleza causa ainda hoje?

Joana de Vilhena Novaes – Saímos de uma ditadura e partimos para uma revolução feminista, que é, ainda hoje, um marco histórico muito significativo. No entanto, o que é mais enigmático, nesse sentido, é que a mulher conquistou muitos espaços a que antes não tinha acesso, como, por exemplo, o mercado de trabalho. Nem por isso, deixou de desempenhar papéis clássicos, como o de mãe. Ou seja, a revolução feminista não transformou o papel da mulher, mas agregou funções a ela. Hoje, além de ocupar os espaços que conquistou, ela ainda precisa ser, além de boa, gostosa, precisando cuidar, constantemente, da aparência. Então, a mulher só ganha novos tipos de obrigação.

Mas o grande advento da liberação sexual é a liberação da mulher daquela idéia que a relaciona sempre à beleza e à feminilidade. Isso aconteceu devido ao advento do feminismo, ou, melhor dizendo, com as conquistas feministas. Este rompimento é a grande conquista feminista. O que normalmente não é dito é que, ao longo da história, há também padrões estéticos que aprisionam a mulher da mesma maneira que essa ditadura estética da beleza. Temos esse advento, mas, em termos históricos, há uma migração de uma ditadura para outra, ou seja, a mulher não está verdadeiramente livre de uma determinada ditadura. Hoje, por exemplo, ela recorre a práticas questionáveis para atingir um padrão de beleza.

Não estou querendo satanizar, neste sentido, as práticas corporais, como as cirurgias, que realmente a rejuvenesce e melhora a sua auto-estima. No entanto, há uma variável muito opressora nesse discurso. As mulheres (desde a adolescente até a idosa) querem sempre se adequar a um determinado padrão estético e recorrem a algum tipo de recurso para que não se sintam excluídas. Isso é, sem dúvida, uma moralização da beleza e do corpo feminino. A responsabilidade que se impõe sobre o sujeito e sobre seu corpo acaba sendo uma espécie de moralização.

IHU On-Line – A obesidade tem um impacto social mais elevado do que outros “defeitos” que tiram a mulher de um padrão de beleza preestabelecido?

Joana de Vilhena Novaes – A obesidade é um problema de saúde pública que atinge 15% da população. O sobrepeso já atinge 25%, sobretudo quando falamos das camadas menos favorecidas. É um problema de saúde pública que demanda investimentos, provoca gastos, onera o Estado. Em relação a isso, temos vários fatores associados. Há várias campanhas informativas, mas que também são terroristas. Há algum tempo, em São Paulo, por exemplo, houve uma campanha contra a obesidade infantil, que mostrava uma criança com uma tarja preta e trazia a seguinte mensagem: “O seu filho obeso de hoje é o diabético de amanhã”.

Tal pensamento é até adequado se a idéia fundamental for realmente instruir e informar a população. No entanto, o que se precisa sublinharr nessa mensagem é que a gordura acaba sendo criminalizada. Isso está dentro do fenômeno de moralização da beleza. Há alguns meses, o Fantástico, da Rede Globo, fez uma enquete para saber se seu público achava que os pais de crianças obesas deveriam perder a guarda dessas crianças. Este é um exemplo bastante ilustrativo de como a gordura é vista no imaginário social. Então, respondendo à pergunta, a obesidade tem, sim, um impacto social de exclusão mais forte na sociedade contemporânea.

IHU On-Line – Você propôs uma ação afirmativa aos “gordos” vítimas de preconceito. Como se define essa ação?

Joana de Vilhena Novaes – É uma brincadeira, uma proposição, porque esse livro é fruto da minha tese de doutorado e, na época da minha pesquisa de campo, eu notava que a questão da gordura era relacionada sempre à questão da feiúra. Daí o título do meu livro “O intolerável peso da feiúra. Sobre mulheres e seus corpos”. Neste trabalho, eu estabeleci uma equivalência, associando a gordura à forma mais representativa de feiúra na contemporaneidade, capaz de levar o indivíduo a uma exclusão socialmente validada.

Ou seja, é politicamente incorreto você falar mal de judeu, de negro e de outras minorias, mas não é errado falar mal de gordo. Daí a minha brincadeira. Quando as entrevistadas obesas diziam que não há nenhum nicho de mercado voltado a elas, eu me perguntava como, na sociedade de consumo, uma indústria que movimenta milhões em cuidados com o corpo, e que faz com que as pessoas se sintam satisfeitas, não dedica um nicho, como nos Estados Unidos, voltado aos obesos. Era mais uma brincadeira no sentido de dizer que a indústria deve se organizar, baseando-me numa queixa de exclusão que as pessoas relatavam.

IHU On-Line – Você foi uma das consultoras responsáveis pela campanha da marca Dove, que prezava pela beleza natural das mulheres. Como foi a receptividade do comercial? Muitas mulheres puderam se libertar do padrão a partir do momento em que se “enxergavam” no comercial da novela das oito?

Joana de Vilhena Novaes – Foi uma jogada de marketing fenomenal. Essa campanha foi baseada numa pesquisa mundial e, por isso, os resultados foram adequados, por se tratar de uma campanha lançada somente no Brasil. O que tem por trás dela, principalmente, é um trabalho de responsabilidade social. A idéia era trabalhar a auto-estima das pessoas, e em cima disso a campanha foi feita. No caso desse comercial, foi feito um recorte para que se trabalhasse com adolescentes, meninas carentes e negras, no sentido de retratar todas as mulheres em uma campanha publicitária. Eu, pessoalmente, acho que conseguimos atingir nosso objetivo com muito sucesso.

A campanha foi um movimento que, fora a jogada de marketing, deu um start para contemplar uma coisa mais crítica, apostando na inclusão de pessoas que costumam ser excluídas. Você tem mais de seis bilhões de pessoas no Planeta Terra e só dez top models. Isso quer dizer alguma coisa. Ou seja, geneticamente poucas pessoas terão essas características que foram determinadas como belas. Como essa indústria gera milhões, foi preciso pensar que caso se continue investindo somente na exclusão, as pessoas vão parar de consumir.

IHU On-Line – Por que você acha que o Brasil é o segundo país com o maior número de cirurgias plásticas realizadas no mundo?

Joana de Vilhena Novaes – Porque o Brasil possui uma cultura de superexposição do corpo. Além disso, existe um mito de que é o país das sociabilidades. Criou-se um mito sobre a forma como as pessoas se percebem. E qual é essa percepção? É a de um país cuja sensualidade e sexualidade estão muito expostas. Ou seja, além do fato de ser um país em que é importante a forma como cada um percebe seu corpo, a exposição transcende isso e passa a incluir como os outros percebem o “meu” corpo. Há teóricos que falam sobre isso. O livro Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre (1) fala sobre isso, sobre o que é corpo brasileiro e as representações dele. Dentro dessas representações, contempla a idéia de que o brasileiro tem um corpo liberado, com ritmo e musicalidade exacerbada, enfim, com sensualidade. O problema se agrava ainda mais quando constatamos que, além do alto número de cirurgias plásticas realizadas, o Brasil tem um consumo imenso de inibidores de apetite e anorexígenos, a fim de que o padrão do corpo seja mantido da melhor maneira possível, em todos os sentidos.

IHU On-Line – A exclusão é maior quando a mulher que se considera feia pertence a uma classe econômica mais baixa?

Joana de Vilhena Novaes – Muito pelo contrário. Os discursos estão aí e todos somos, independente das classes sociais, afetados por essas imagens dos belos corpos, vindos de toda essa produção imagética que a mídia lança. De uma maneira geral, o padrão de beleza é democrático, mas o uso que se faz disso, em compensação, é diferente. Temos, constatadamente, uma relação maior com os corpos nas classes mais pobres. Nas classes mais altas, há um desconforto com as imperfeições e se esconde o corpo. Nas classes menos favorecidas é o contrário: o indivíduo precisa ser mais gordo para ser considerado como tal.

IHU On-Line – Onde a cultura do excesso, a sociedade do consumo e os padrões de beleza se encontram?

Joana de Vilhena Novaes – É um encontro que se dá a todo o momento. A sociedade de consumo é, por excelência, a sociedade do excesso, do desperdício. É um paradoxo esse ideal estético de magreza em tempos de excesso de comida e desperdício. O padrão estético é sempre um padrão da minoria.

Na Idade Média, com a escassez de comida, o padrão, por exemplo, apresentava formas mais rechonchudas, pois quem comia era a elite. Hoje, acontece justamente o contrário. Vemos a obesidade crescendo no mundo todo, nas camadas menos favorecidas, justamente porque não têm dinheiro para fazer uma dieta mais balanceada. Paradoxalmente, precisamos ter a disciplina de não consumir. Neste fenômeno, que nós denominamos como moralização da beleza, a responsabilidade é de cada um. Por isso é tão difícil, à medida que o sujeito está inundado em mensagens coloridas. Se não tivesse estímulo, o sujeito não seria tão exigido. Estamos numa época de compulsões ou patologias narcísicas. Assim, também estamos em meio a uma cultura do excesso, porque o sujeito passa a existir pela via do consumo.

Notas:
(1) Casa-grande & senzala, obra clássica de Gilberto Freyre, publicada em 1933. Através dela, Freyre destaca a importância da casa-grande na formação sociocultural brasileira, bem como a da senzala, que complementaria a primeira. Sobre a obra, confira o texto "Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado - Gênese e dissolução do patriarcalismo escravista do Brasil. Algumas considerações", de Mário Maestri e publicado nos Cadernos IHU, no. 6. O texto está disponível nesta página.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/08/07

Índia é agredida por garotos em Dourados

A série de crimes contra os índios da reserva de Dourados (MS) teve ontem um dos mais terríveis episódios. A índia caiová Adélia Garcia Garcette, 37 anos, foi espancada por quatro menores entre 12 e 14 anos. Dois deles foram detidos com as roupas ainda sujas de sangue da vítima. O de 12 anos estava alcoolizado. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo, 23-08-2007.

Segundo testemunhas, os garotos invadiram a casa de Adélia, dentro da reserva, e começaram a agredi-la com facões. Ela teve ferimentos graves no olho esquerdo e a mão esquerda foi decepada. A índia está internada no Hospital Evangélico de Dourados. Este ano, 14 índios foram assassinados no Estado.
O Senhor Mercado. Um artigo de Washington Uranga

“Caracterizado como um personagem presente em nossas vidas cotidianas, o Mercado é apresentado com sentimentos quase humanos: é capaz de ter ‘medo e ‘ambições’. É ‘hábil’, às vezes ‘racional’ e outras tantas ‘irracional’. Em alguns casos tem ‘pânico’. Está em condições de ameaçar, escorar ou desestabilizar governos de países como os nossos”, diz o jornalista argentino Washington Uranga em artigo para Página/12, 20-08-2007. A tradução é do Cepat.

As notícias dos últimos dias e meus conhecimentos apenas básicos sobre questões de economia global reavivaram em mim uma velha incerteza e, porque não aceitá-lo, certo pânico diante de um ator alheio, mas ao mesmo tempo presente na minha vida cotidiana e que se costuma imaginar tão inteligente quanto sinistro, audaz mas também arteiro, e que sempre está na espreita para surpreender os desatentos em hora inesperada. É uma espécie de animal multiforme com nome, mas sem sobrenome: Mercado. O mesmo que às vezes se multiplica num plural ainda mais perigoso: Mercados. Um ator sem corpo nem rosto, mas apesar disso visível. Todos os dias as notícias, escritas por aqueles que conhecem o tema em profundidade, nos falam da “estabilidade” ou da “instabilidade” dos Mercados.

Caracterizado como um personagem presente em nossas vidas cotidianas, o Mercado é apresentado com sentimentos quase humanos: é capaz de ter “medo” e “ambições”. É “hábil”, às vezes “racional” e outras tantas “irracional”. Em alguns casos tem “pânico”. Está em condições de ameaçar, escorar ou desestabilizar governos de países como os nossos, mal chamados “emergentes”, desconhecendo e desprezando o que as urnas da democracia tenham determinado. Suponho que aqueles que o conhecem devem chamá-lo respeitosamente de Mister Mercado, porque também dizem que o inglês (e nunca o espanhol) é a linguagem própria dos Mercados. Mr. Mercado se comporta de maneira “inquieta” ou “serena”.

Quando quero imaginá-lo situado em algum lugar concreto, corporificá-lo, escapa dos limites em que tento circunscrevê-lo para aparecer simultaneamente e com diferentes rostos aqui, em Nova York, em Tóquio ou em Londres. Quase nunca na África, onde não deve se sentir muito à vontade, não pelo clima mas por tanta pobreza. Entra e sai sem necessidade de vistos e passaportes, porque em tempos de globalização parece ter cidadania em todos os lugares.

Do ponto de vista ideológico, há Mercados que têm “olhares ortodoxos” e, outros, “heterodoxos”. Pressinto que nem uns nem outros devem guardar alguma analogia com conservadores e progressistas. Todos devem ser “mercadistas”, quer dizer, liberais capitalistas da primeira e da última hora.

As ações do Mercado transcendem cada lugar concreto e específico para incidir na vida de todos os cidadãos e de todas as cidadãs deste mundo global. Também na minha vida. O tal Mercado me condiciona até no preço das abobrinhas na feira, para não falar de temas mais complexos como o valor da moeda, a taxa de juro, o preço dos aluguéis ou a cotização dos bônus da dívida externa.

À luz dos desenvolvimentos científicos, o figuro com rosto tecnológico e cheio de sofisticação informática. E a cada característica que lhe acrescento fica mais distante e mais perverso, para colocar-me no lugar da impotência absoluta diante das suas iniciativas, que não deixam espaço nem para a defesa nem para a réplica com a única arma que possuo: o pequeno salário de cada final de mês. Porque acontece também que cada vez que o Mr. Mercado teve a ver com o meu salário, o único apoio doméstico com o qual continuo contando no marco da economia global, nunca me foi favorável. Quero pensar que não se trata de nada pessoal comigo, mas está claro – porque é isso pelo menos o que dizem os seus porta-vozes e o transmitem aqueles que realmente sabem sobre o tema – que o Mr. Mercado se “inquieta” com as reclamações salariais e até “ameaça” quando acha que as demandas são excessivas.

A julgar pelas conseqüências, o Mercado maximiza benefícios para os que já contam com muito e os minimiza para os que vivem do que ganham no final do mês. Suspeito, então, que, se bem que tem vida própria, o Mr. Mercado e todos os Mercados são alimentados e sustentados por aqueles que se favorecem com as suas ações. Minha pouca ciência sobre o tema não me impede de chegar à certeza de que o manual de cabeceira do Mercado tem vários capítulos sobre “como obter lucros” e nenhum sobre “solidariedade”.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/08/07

Por que desvalorizar o real. Comentário de Luís Nassif

Luís Nassif, no seu blog, 22-08-2007, comenta o fechamento de algumas fábricas da Marisol, em Santa Catarina. Segundo ele, "agora, quando a crise ameaça corrigir os erros do câmbio, é bem provável que, passado o maremoto, o Banco Central volte a apreciar o real, dentro de sua missão pertinaz de matar o futuro".

Eis o comentário.

"Anos atrás fui a um evento na Federação das Indústrias de Santa Catarina. Lá, foi apresentado o caso da Marisol, uma indústria têxtil catarinense que tinha montado uma rede de lojas em todo o Oriente Médio. Estava exportando seus produtos – roupas para crianças – e pensava em transformar as lojas em ponto de vendas de outros produtos brasileiros.

Ontem, li nos jornais que a Marisol fechou algumas fábricas, despediu 800 empregados e resolveu implantar um método Toyota de redução de custos. Não resistiu ao dólar barato, nem nas exportações nem no mercado interno. Provavelmente, vai continuar bolando produtos por aqui, mas terceirizar a produção para a China.

***

O caso Marisol é emblemático da perda de rumo da economia brasileira. Há vários modos da economia crescer. Em um mundo globalizado, com as economias nacionais cada vez mais abertas, enfrenta-se uma competição cerrada com o exterior. Se uma empresa perde competitividade, é derrotada não apenas no mercado externo, como no interno.

Além disso, as empresas expostas à competição externa se constituem na vanguarda das inovações em qualquer economia. Elas puxam a inovação, a criatividade, os novos métodos de produção, a melhoria da qualidade.

Justamente por isso, todos os grandes movimentos de desenvolvimento modernos tiveram por base a competição no mercado externo. E, como primeiro passo, uma moeda competitiva. Isto é, um câmbio desvalorizado.

***

Foi assim com a Alemanha, Itália e Japão no pós Guerra, com a Coréia nos anos 60, com a Itália nos anos 90, com a China. O câmbio desvalorizado serve para compensar as vulnerabilidades iniciais da economia. Não há infra-estrutura, o sistema tributário é inadequado, não há condições para investir em alta tecnologia? É a moeda desvalorizada que permite ao produtor interno colocar um produto lá fora tendo como vantagem o preço mais barato.

Em 2003, logo após a grande desvalorização cambial de 2002, centenas de pequenas empresas brasileiras passaram a competir com produtos com componentes tecnológicos, valendo-se do fator preço. Ofereciam quase a mesma coisa dos líderes de mercado a um preço muito menor.

Se a desvalorização cambial tivesse se mantido, elas aumentariam suas vendas, seus lucros. E, em um segundo momento, passariam a investir em mais tecnologia, inovação, galgando a escala de qualidade dos produtos globais.

Esse movimento – o mesmo que levou a Marisol a montar sua rede no Oriente Médio – foi abortada pela revalorização do real, promovida pelo governo Lula na gestão Antonio Palocci, e que prosseguiu na gestão Guido Mantega.

***

Com a apreciação cambial, apenas os grandes grupos, que atuam em áreas de matéria-prima, conseguirão competir. O conjunto da economia perde. Todos os países que se desenvolveram – desde a Inglaterra, no início da Revolução Industrial – tinham por princípio importar matéria prima e exportar produtos acabados.

Agora, quando a crise ameaça corrigir os erros do câmbio, é bem provável que, passado o maremoto, o Banco Central volte a apreciar o real, dentro de sua missão pertinaz de matar o futuro."

Instituto Humanitas Unisinos - 23/08/07

Fed empresta US$ 2 bi a 4 grandes bancos

Quatro grandes bancos americanos - Citigroup, JPMorgan Chase, Bank of America e Wachovia - disseram ontem que cada um pegou emprestado US$ 500 milhões do fundo do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), depois que o organismo reduziu, na última sexta-feira, a taxa de empréstimo para bancos de 6,25% para 5,75%. A notícia é do jornal Folha de S. Paulo, 23-08-2007.

Em nota, o JPMorgan Chase, o Bank of America e o Wachovia afirmaram que a medida era basicamente simbólica e que mostrava o apoio deles à decisão do BC americano. Eles disseram que tinham condições de conseguir o montante em condições mais favoráveis, "mas que é importante neste momento assumir um papel de liderança, demonstrando o potencial valor do crédito do Fed e encorajando outras instituições a usá-lo".

Já o Citigroup afirmou que estava "satisfeito" em injetar liquidez no sistema financeiro durante período de "estresse" nos mercados.

A chamada taxa de redesconto é utilizada pelo Fed para conceder empréstimos de curto prazo a instituições com escassez temporária de liquidez causada por problemas internos ou externos.

A decisão de reduzi-la em 0,50 ponto percentual foi tomada pelo Federal Reserve na semana passada porque, segundo o organismo, a turbulência no mercado financeiro poderia afetar o crescimento econômico dos Estados Unidos.

O corte anunciado na última sexta-feira não afeta a taxa de juros básica (atualmente em 5,25%), que é a principal da economia americana e influencia itens como empréstimos para compra de carros e cartão de crédito.

A tomada desse tipo desse empréstimo é raramente feita pelos bancos, já que ela é vista como uma medida de desespero, usada por bancos que estão em sérias dificuldades.

Além de cortar os juros de empréstimos para bancos, o Fed já injetou mais de US$ 100 bilhões nos mercados financeiro desde o dia 9 deste mês -ontem, o BC dos EUA emprestou mais US$ 2 bilhões. Essa injeção de dinheiro e os cortes na taxa de redesconto são uma tentativa de garantir a estabilidade da taxa de overnight (usada para operações de um dia em empréstimos entre os bancos).

Pelas regras, os bancos dos EUA devem ter em dinheiro cerca de 10% dos depósitos. Para garantir o montante, no final de cada dia, eles emprestam dinheiro entre si usando a taxa de overnight.

Caso muitos bancos precisem de dinheiro, as instituições que emprestam podem aumentar os juros cobrados. E, se essas taxas subirem demais, os bancos acabarão emprestando menos dinheiro para empresas e pessoas físicas, como uma forma de garantir que terão os 10% no final do dia.

Se isso ocorre, é menos dinheiro circulando, desacelerando a economia. Assim, ao injetar dinheiro, o Fed garante a manutenção da taxa. O BC americano também pode retirar dinheiro do mercado, caso queira que os juros subam.

Um dos perigos da medida é gerar inflação, mas as chances de isso acontecer aumentam somente se o Fed emprestar mais dinheiro do que os bancos precisam

quarta-feira, agosto 22, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 22/08/07

Deportação de Elvira Arellano provoca protestos nos EUA

Uma paralisação de trabalhadores latino-americanos e até uma greve de fome são as primeiras manifestações convocadas ontem contra a deportação da mexicana Elvira Arellano, 32, dos Estados Unidos. A reportagem é de Raul Juste Lores e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 22-08-2007.

Ela foi deportada no sábado, depois de passar um ano refugiada em uma igreja em Chicago para fugir da expulsão.

Mãe solteira de Saúl, 8, nascido nos EUA, Arellano se tornou ativista pelos direitos dos imigrantes. A revista "Time" a colocou na lista das "pessoas que fizeram diferença" em 2006.

Na semana passada, ela deixou a igreja para começar uma campanha no país para pedir uma reforma imigratória. A ativista tinha acabado de fazer um discurso em Los Angeles quando foi presa e deportada.
"Eles se apressaram em me deportar porque viram que eu ameaçava mobilizar e organizar nosso povo para lutar pela legalização", disse Arellano à agência Associated Press.

Como Saúl nasceu nos EUA, ele não pode ser deportado. Ele está com a mãe em Tijuana (México), mas voltará a Chicago, onde começa a cursar o terceiro ano do equivalente ao ensino fundamental americano em setembro, e vai morar na casa de sua madrinha, Emma Lozano.

Existem 12 milhões de imigrantes ilegais nos EUA, 80% dos quais mexicanos. Uma reforma imigratória que prometia criar um mecanismo para a regularização gradual dos que vivem no país há no mínimo cinco anos foi engavetada.

"O incidente chama atenção para o sofrimento de centenas de milhares de famílias de imigrantes que foram separadas por um sistema imigratório que não funciona", disse Ronald Blackburn-Moreno, presidente da Aspira, uma das maiores organizações hispânicas do país, em Washington.

"Não podemos aceitar essa separação em uma sociedade civilizada. Foram os republicanos que bloquearam a reforma imigratória, logo eles que dizem defender tanto os valores familiares", diz.

A Coalização 1º de Maio pediu que os imigrantes não trabalhem em 12 de setembro nem comprem nada em grandes lojas, como foi feito no ano passado em 1º de maio. Em 12 de setembro, outro ativista, Victor Toro, será julgado.

No mesmo dia, protestos estão marcados para Washington, Los Angeles e Albany, capital do Estado de Nova York, para pedir fim às deportações e uma reforma imigratória justa.

Em Nova York, uma greve de fome é organizada pelo movimento pacifista "Troops Out Now" (retirada das tropas já).

O movimento compara Arellano a Rosa Parks, a negra que foi detida quando se negou a ceder o seu assento em um ônibus a um passageiro branco nos EUA - detonador, nos anos 1950, do movimento pelos direitos civis dos negros.

O Ministério de Relações Exteriores do México criticou a atitude das autoridades americanas. Segundo a Chancelaria, a deportação não coincide com "o espírito e os termos estabelecidos pelos acordos bilaterais para repatriação segura e ordenada". Arellano disse que, durante sua prisão em um escritório da Imigração em Santa Ana, Califórnia, foi impedida de se reunir com representantes consulares mexicanos, diz a nota da Chancelaria.

O consulado mexicano pediu o adiamento da deportação de Arellano até segunda-feira para que fossem considerados outros argumentos jurídicos, mas teve o pedido negado.

Instituto Humanitas Unisinos - 22/08/07

EUA adverte que não haverá solução fácil para a crise hipotecária

A crise de liquidez que se vive nos mercados de crédito tardará um tempo para ser resolvida. Foi esse o claro recado dado pelo secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, pouco antes de se reunir, ontem, com Bem Bernanke, presidente do Fed (Banco central americano) e Christopher Dodd, presidente do comitê de finanças do Senado. A notícia é do jornal El País, 22-08-2007.

Segundo o senador Christopher Dodd, há entre dois e três milhões de americanos que correm o risco de perderem as suas casas por não pagar as hipotecas.

Obs: recentemente o nosso grande Guido Mantega apareceu na televisão comentando que era uma crise passageira, que o Brasil não devia se preocupar.

segunda-feira, agosto 20, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 20/08/07

A monstruosa vivissecção da Índia. Um artigo de Henri Tincq

Gandhi teve um papel fundamental no processo que culminou na independência da Índia. No entanto, sempre se mostrou contrário à separação entre Índia e Paquistão, que ele qualificou de “monstruosa vivissecção”, mas que tampouco pôde impedir. Henri Tincq, jornalista francês, analisa, em artigo publicado no Le Monde, 4-08-2007, a desastrosa e fratricida luta pela separação.

Tincq retoma as duas explicações - a “primordialista” e a “artificialista” – usadas para compreender os violentos e sangrentos massacres que envolveram hindus e muçulmanos. Ao final diz que ambas são apenas caricaturais, pois a verdadeira fratura se encontra “no interior de cada campo”.

Segue a íntegra do artigo de Henri Tincq traduzido pelo Cepat.

Em Thoa Khalsa, 84 mulheres engolem o ópio e pulam, uma após outra, num poço. Muçulmanos ocupam este vilarejo do Punjab em abril de 1947, alguns meses antes da divisão da Índia, e a tradição sikh quer que as mulheres se imolem quando os homens não estiverem por perto para defendê-las. Quatro delas sobreviveram porque não havia água suficiente no poço para afogar todas, mas as outras são “mártires”.

Ao morrerem, elas preservaram a honra da comunidade. Mártires são também essas meninas que foram mortas por seus pais, com sabre ou por suas próprias mãos, para evitar que fossem arrastadas, violentadas e convertidas ao islã. Mangal Singh e seus dois irmãos mataram 17 membros de sua família, crianças e sobrinhos. Em Les Voies de la partition Inde-Pakistan (Os caminhos da partição Índia-Paquistão), Urvashi Butalia enumera as crueldades ligadas a este capítulo da história indiana que, sessenta anos depois, ainda corrói o país de remorsos e de pesar.

As mulheres arrastadas – 75 mil, segundo as estimativas – são violentadas, vendidas, convertidas à força. Elas são levadas a passear nuas pelas ruas, têm os seios cortados, o sexo tatuado de sinais da “outra” religião. Porque, na orgia de violências nascidas da separação, uma obsessão submerge a Índia: raptar, violar a mulher do “outro” para humilhá-lo, intimidá-lo e destruir a sua capacidade de reprodução. Obsessão que, por rivalidade mimética, devasta tanto os hindus como os muçulmanos. Mutiladas, arrancadas de sua comunidade, essas mulheres são a metáfora do corpo mutilado da Índia, deusa-mãe da Índia – Bharat Mata. E uma das caricaturas mais caras aos nacionalistas hindus é a de um corpo feminino tomando a forma da Índia e Nehru decepando um braço que representa o Paquistão.

A independência é proclamada no dia 15 de agosto de 1947, simultaneamente à divisão em dois Estados: a União índia, de maioria hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana. O Lord Mountbatten, o último vice-rei das Índias, e da Inglaterra, foge deixando para trás a jóia da coroa, que se transformou num lamaçal infernal. Outros suicídios coletivos e tumultos provocaram milhares de mortos em Rawalpindi (Punjab) em março de 1947. Ou em Bengala, em novembro de 1946, quando peregrinos muçulmanos massacraram, em Garh Mukhteshwar, comerciantes muçulmanos. Em agosto de 1946, em Calcutá, uma Action Day da Liga Muçulmana voltara à “grande matança”: armados de machados, paus, chuços, armas de fogo, homens assassinaram, pilham, depois de verdadeiros pogroms, e profanaram mesquitas. Em represália, no distrito de Noâkhâli, muçulmanos mataram e queimaram templos.

Todo o mundo sabe que a divisão dos dois países se transformará num banho de sangue, mas, em agosto de 1947, o Congresso produz um momento de alívio. Jawaharlal Nehru, pai da independência, reconhece: “Nós estávamos prostrados. Era preciso que se terminasse. Nós pensávamos que a divisão seria temporária”. Chefe da Liga Muçulmana, Mohammed Jinnah expõe o sonho de sua vida: uma Índia independente em “duas nações”. Mas “ninguém sabe onde vai passar esse Paquistão da utopia, esse país de nenhuma parte”, escreve o historiador Eric-Paul Meyer. Votado em Londres em julho, o Ato da Independência da Índia não diz uma só palavra sobre os riscos do êxodo, do dilaceramento das famílias. A comissão Radcliffe traça uma fronteira que mutila zonas urbanas e rurais, populações misturadas. Punjab e Bengala são de maioria muçulmana, mas abrigam numerosas minorias de hindus e de sikhs. Lahore e Karachi, cidades de comerciantes e de funcionários, são de maioria hindu.

Desde que o traçado da fronteira se tornou oficial, em 15 de agosto, as casas são evacuadas. Em Déli, cidade na fronteira entre os dois novos países, a milícia hindu RSF tira à força os ocupantes muçulmanos de seus bairros, refugiados nas mesquitas, para abrir espaço para os hindus que chegam em comboios. Karachi é esvaziada de seus hindus como Déli de seus muçulmanos. Nos bairros mistos, pessoas comuns massacram seus vizinhos sem outra razão que a diferença de religião. É a primeira vez na Índia que se elimina fisicamente, em tal escala, populações para confiná-las a zonas etno-religiosas puras.

Políticos e clérigos fanáticos atiçam os ódios. É a hora da grande “limpeza” – safa’i. É assim que relata um sikh da fronteira de Attari: “Um dia, toda a nossa cidade se encontrou na estrada rumo a uma cidade muçulmana próxima, para uma expedição punitiva. Nós enlouquecemos... E isso me custou cinqüenta anos de remorsos, de noites insones. Eu não consigo esquecer os rostos das pessoas que matei”. O mesmo se ouve de Nasir Hussain, agricultor muçulmano: “No espaço de dois dias, uma onda selvagem de ódio nos dominou. Eu não consigo me lembrar de quantos homens eu matei”.

A divisão fez da Índia um território dividido ao meio. As duas partes do novo Paquistão, a ocidental e a oriental [a partir de 1971, Bangladesh], estão separadas por 1.300 km de território indiano. E o número de vítimas é fenomenal. As estimativas mais elevadas informam um milhão de mortos em três meses e um êxodo humano jamais visto. Quinze milhões de pessoas cruzaram a fronteira nos dois sentidos: 9 milhões de hindus e sikhs vindos do Paquistão; 6 milhões de muçulmanos deixando a Índia. Um milhão o fizeram a pé nas kafila, colunas que se estendem dezenas de quilômetros, homens e mulheres esfarrapados, esfomeados, abatidos, esmagados de pesar, mas encontrando ainda um pouco de força para provocar o outro. Numa única noite, milhares de famílias são separadas, vidas para sempre deslocadas. Segundo Urvashi Butali: “É difícil separar duas vidas. Separar milhões é pura loucura”.

Uma “monstruosa vivissecção”, havia previsto Mahatma Gandhi a propósito da divisão. Aos 77 anos, Gandhi, herói shakespeariano, anda alucinado, como o Rei Lear, entre as ruínas e o caos do mundo. De seu mundo. Ele caminha pelas ruas desertas de Calcutá, onde os habitantes são enterrados entre as carcaças calcinadas dos carros e as casas incendiadas. Ele se dirige aos vilarejos destruídos onde os urubus já rondam os cadáveres. Ele tem encontros de oração, ouve os relatos das atrocidades, “enxuga as lágrimas de todos os olhos”, escreve a escritora Christine Jordis em sua bela biografia. Até o último minuto, sobre sua tábua de madeira que servia de cama e de escritório, ele terá tentado de tudo: estabelecer contatos, jejuar, buscar um acordo com Mohammed Jinnah para convencê-lo a não ceder à miragem de uma Índia dividida que é, para ele, um contra-senso histórico, um nonsense absoluto.

Mas, ninguém mais ouve Gandhi. Ele é detestado pelos ativistas dos dois campos, que não acreditam mais, há muito tempo, nas virtudes da ahimsa (não-violência). Os britânicos sempre viram nele um político hábil ou um santo fanático. Acaso, já se viu alguma vez um opositor prevenindo tão cortesmente a potência colonial das ações de resistência civil que tenha feito dele o revolucionário mais original do mundo? Os massacres de 1947 e o êxodo marcam o insucesso de seu combate pelo swaraj, a emancipação de uma Índia sonhada. Ele havia lutado pela harmonia entre as religiões, mas elas se entregaram a um impiedoso massacre; contra a “intocabilidade”, mas isso lhe vale o ódio de todos os extremistas hinduístas; contra a opressão das mulheres, mas elas são as primeiras vítimas da desgraça indiana. Gandhi perdeu. Ele retoma sua roca e sua marcha cantando com o poeta Tagore, seu amigo: “Marcha sozinho. Se ninguém responder ao teu apelo, marcha sozinho”.

A crueldade da separação permanece por longo tempo um segredo muito pesado para ser carregado, um parto doloroso para cuja memória não há tempo porque outras tempestades se multiplicam. Na Caxemira, por exemplo. O assassinato de Gandhi, a 30 de janeiro de 1948, permanece como o gesto isolado de um desequilibrado hindu mais que o último morto de uma longa série. A ironia da história quis que Jinnah morresse também, de tuberculose, a menos de oito meses depois. Depois as línguas se soltaram, como por uma necessidade compulsiva de explicar, de compreender, de exorcizar. Mas cada tumulto posterior – contra os sikhs depois do assassinato de Indira Gandhi em 1984, a destruição da mesquita de Ayodhya em 1992, os massacres antimuçulmanos de Gujarat em 2002 – ressuscita as lembranças da separação. Sessenta anos depois, o trabalho de memória apenas começou.

A tentação foi opor, durante muito tempo, duas religiões de valores antagônicos: o islã, monoteísta, igualitarista e prosélito; o hinduísmo, politeísta, hierarquizado, tolerante. O islã conquistou a Índia, que dominou, embora minoritariamente, durante seis séculos, da criação do sultanato de Déli à decadência dos mongóis no século XVIII. Mas a conquista britânica (1715-1818) pôs fim à sua hegemonia e pôs em relevo sua fraqueza numérica. “Na Índia, o islã deixou de ser a referência política e cultural dominante”, explica o estudioso do islã Marc Gaborieau. O enfrentamento tornou-se inevitável. Em 1940, Jinnah afirmava: “Os hindus e os muçulmanos pertencem a duas civilizações diferentes, fundadas sobre idéias e concepções contraditórias”.

Esta explicação dos massacres, chamada de “primordialista”, foi defendida por Louis Dumont em seu Homo Hierarchicus: O Sistema das Castas e suas Implicações (São Paulo: EDUSP, 1992), de 1966. Esta é ainda a visão tanto dos historiadores oficiais e islamistas paquistaneses como da extrema direita hindu. A outra tese, chamada de “artificialista”, consiste, ao contrário, em negar esta oposição de fundo entre o islã e o hinduísmo e atribuir a catástrofe da separação ao colonizador britânico. Em nome do sempiterno princípio “dividir para reinar”, a reforma Morley-Minto de 1909 cedeu às pressões muçulmanas de eleitorado separado das províncias e que transformou as comunidades religiosas em circunscrições eleitorais.

O que foi suficiente para atiçar a tensão entre a Liga Muçulmana, fundada em 1906, e o Partido do Congresso (1885), que reagrupa majoritariamente as elites nacionalistas hindus. A teoria das “duas nações” nascerá de um reflexo de medo da minoria muçulmana. Os efeitos combinados da democracia e da política do raj (império) teriam, dessa maneira, feito eclodir conflitos intercomunitários estranhos à história da Índia.

Esta tese se apóia sobre uma suposta era de ouro – pré-colonial – em que muçulmanos e hindus teriam vivido juntos em boa vizinhança. Os soberanos hindus escolhem muçulmanos como oficiais e gurus e os soberanos muçulmanos, mulheres, generais e conselheiros hindus. Eles falam as mesmas línguas, têm os mesmos gostos musicais, arquitetônicos, culinários e as mesmas estruturas familiares (poligamia). Os valores que partilham são mais numerosos que aqueles que os dividem. Longe de ser “igualitarista”, sublinha Marc Gaborieau, o islã indiano reproduz hierarquias sociais que não estão tão distanciadas do sistema das castas.

As duas explicações, a “primordialista” e a “artificialista”, são, na verdade, caricaturas. Apesar dos séculos de coabitação mais ou menos pacífica, as duas culturas estão, de fato, de costas uma para a outra: em nome das regras de pureza, não se come junto, não se tocam, não se casam. Os hindus consideram o islã ou o cristianismo como religiões impuras e bárbaras. Muçulmanos e cristãos estão, como os intocáveis, no último degrau da escala. Um sikh conta esse estranho fato no livro de Urvashi Butalia: “Se um muçulmano vinha até nós e trocava conosco um aperto de mão e nós tivéssemos um pacote de alimento na outra, este alimento estava sujo e nós não o comíamos. Se tivéssemos numa mão um cachorro e na outra um alimento, este alimento poderia ser comido sem nenhum problema”.

A verdadeira fratura estava, de fato, no interior dos dois campos. Diante da arrogância do colonizador, as identidades se revelam no final do século XIX. Os hindus restauram os rituais de purificação, retomam a memória mitificada do passado pré-muçulmano, retornam a um rigoroso espírito de castas, ao culto da vaca e ao sacrifício na guilhotina. O nacionalismo hindu explora o descontentamento das populações reticentes à ocidentalização da Índia e que se agrupam em torno de um vedismo original que teria sido pervertido pelo islã e pelo cristianismo.

A mesma evolução se dá entre os muçulmanos que querem “deshinduizar” o islã, eliminar o culto dos ídolos, voltar à letra do Corão, cassar o sufismo, visto como uma contaminação do islã pelo hinduísmo. Assim, o fundamentalismo islâmico nasce em Bengala e no Punjab. Em 1927, a organização Tabligh (Fé e prática) – ainda hoje muito ativa na França – é criada com a vocação de purificar, de purgar o que séculos de coabitação poluíram. No mesmo ano, um intelectual ocidentalizado, Maududi, um dos inspiradores dos Irmãos Muçulmanos no Egito, publica um livro retumbante sobre a “guerra santa”, que ele encoraja em todo o mundo muçulmano, e funda, em 1941, o Jamaat al-Islam, que transformará o Paquistão em República islâmica.

A recuperação política desses extremistas religiosos prepara a tragédia. A organização radical hindu Rashtriya Svayamsevak Sangh (RSS) organiza manifestações rituais que são igualmente demonstrações de força. A Liga Muçulmana, por sua vez, retoma a proposição feita em 1930 pelo poeta e filósofo [Muhammad] Iqbal de um Estado separado que tenha por vocação reunir todos os muçulmanos. Mohammed Jinnad é, portanto, tudo menos um islamista. É um reformador moderno, casado com uma ismaelita, comedor de porco e bebedor de whisky, mas que compreendeu que a única maneira de criar o Paquistão era utilizar os ulemás [indivíduos reconhecidos como autoridades em matéria e de lei e religião]. “É porque atores políticos consideraram que era de seu interesse reativar essas linhas de clivagem religiosa”, conclui o pesquisador Christophe Jaffrelot, “que terminaram por se tornar pertinentes, quando não eram mais”. O cenário estava preparado para o pior.

Para ler

Ao final do artigo, Henri Tincq faz as seguintes sugestões de leitura:

Histoire de l’Inde moderne, sob a direção de Claude Markovits, Fayard, 2005;
Une histoire de l’Inde. Eric-Paul Meyer, Albin Michel, 2007;
Un autre islam. Inde, Pakistan, Bangladesh, Marc Gaborieau, Albin Michel, 2007;
Les voix de la partition Inde-Pakistan, Urvashi Butalia, Actes Sud, 2002;
L’Inde contemporaine, de 1950 à nos jours, Christophe Jaffrelot, Fayard, 2006.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/08/07

Marisol fecha duas fábricas em SC e demite 800

A Marisol deu início a um processo de reestruturação operacional, com fechamento de duas fábricas em Santa Catarina e demissão de 800 funcionários entre junho e julho. A empresa, que sofre com a valorização do real nas exportações e com a concorrência mais acirrada dos importados no mercado nacional, pretende alterar a forma de produção, implantando o método "Lean Manufacturing", uma produção enxuta, originária da Toyota. A empresa acredita que a mudança trará "maior fluidez na produção, simplificação dos controles internos e redução dos volumes de produtos em processo e do tempo entre o pedido e a entrega do produto final." A reportagem é de Vanessa Jurgenfeld e publicada pelo jornal Valor, 20-08-2007.

A diretoria da empresa prefere não comentar a reestruturação. As informações que constam do balanço do segundo trimestre dão conta de que a indústria, uma das maiores fabricantes de roupas infanto-juvenis do país, colocou em curso um "abrangente programa de reestruturação operacional, que consiste na adequação da capacidade produtiva". Em Santa Catarina, de cinco fábricas, a empresa passa a operar três, tendo fechado as unidades de Massaranduba e Corupá, localizadas próximas à matriz, que fica em Jaraguá do Sul (SC). A empresa informou ainda que vai concentrar toda a fabricação "dos produtos mais suscetíveis a preços" em Pacatuba (CE), onde possui uma fábrica em operação, e que a produção de calçados será concentrada na unidade de Novo Hamburgo (RS).

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Têxteis de Jaraguá do Sul e região, Gildo Antônio Alves, disse que as demissões atingiram 806 pessoas, sendo 448 na matriz, 220 em Massaranduba e 138 em Corupá. Segundo ele, há comentários de que a Lunender, uma outra indústria têxtil da região, de menor porte, teria adquirido as instalações da Marisol. A Lunender foi procurada, mas preferiu não comentar o assunto. Alves disse que a Marisol apenas informou que o fechamento era necessário por conta da queda na lucratividade e que não houve alterações nas unidades de Schroeder e de Benedito Novo.

Segundo a Marisol, a economia anualizada será de R$ 9,2 milhões com folha de pagamento e encargos sociais, além dos ganhos de produtividade e daqueles decorrentes da redução dos gastos gerais. Já as despesas extraordinárias com a reestruturação foram calculadas em R$ 7,6 milhões dos quais 51,3% foram reconhecidos no segundo trimestre.

O diretor comercial da Marisol, Robson Amorim, diz que o resultado do segundo trimestre foi um "pouco abaixo das expectativas" e que mantém os planos de ser cada vez mais não só fabricante do setor têxtil, mas uma gestora de marcas e de canais de distribuição. Além da marca Marisol, possui as grifes Pakalolo, Mineral, Rosa Chá, Sais, Lilica Ripilica e Tigor T. Tigre.

Embora as vendas externas não sejam o principal foco de atuação da companhia (respondem por menos de 10% do faturamento), as vendas em reais ao exterior no segundo trimestre tiveram redução forte, de cerca de 30%, tendo sofrido não só com a valorização do real ante o dólar, mas também porque a empresa optou pela estratégia de parar com a fabricação para terceiros, que respondeu em 2006 pela metade de todas as suas exportações. Segundo Amorim, as margens dessas operações estavam muito apertadas por conta do câmbio, com a empresa preferindo apostar no mercado externo com outro enfoque: somente nas vendas dos seus próprios produtos, com uma rede de franqueados, que já somam 17 lojas. "Decidimos qualificar as vendas externas. É um trabalho mais lento e gradual vender apenas as nossas marcas, mas no longo prazo acreditamos em um bom resultado", disse.

O real valorizado foi apontado como problema no próprio mercado nacional, já que aumenta a concorrência dos importados. Em 2006, a Marisol relatou no demonstrativo financeiro a comercialização de produtos nacionais e importados com o uso não-autorizado das suas marcas infantis, importações subfaturadas e crescente prática da informalidade.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/08/07

Cotação de produtos agrícolas caiu 5,2% desde o início da crise; segmento responde por 37% do superávit brasileiro

A crise financeira provocada pelas hipotecas de alto risco nos Estados Unidos apressou a acomodação dos preços das commodities agrícolas e metálicas no mercado internacional e pode interromper a curva de prosperidade da balança comercial brasileira, sustentada em parte por esses produtos. A reportagem é de Márcia De Chiara e Nilson Brandão Junior e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 20-08-2007.

Desde 2003, a alta acumulada nos preços das commodities era de mais de 50%, levando em conta índice feito pelo Commodity Research Bureau (CRB) dos EUA a partir dos preços em dólar de 24 produtos agrícolas e não agrícolas. Mas, neste ano e no próximo, a perspectiva é de queda de quase 7% ao ano do indicador, projeta o sócio da RC Consultores, Fábio Silveira.

“Entramos num terceiro tempo no mercado de commodities e voltaremos no ano que vem para o nível de preços de 2004”, prevê. Entre o início da turbulência, em 26 de julho, quando as bolsas mundiais despencaram, e quinta-feira, a cotação do níquel caiu 21,2% na Bolsa de Metais de Londres, seguido pelo zinco, com queda de 16,2%, chumbo (-11,4%), alumínio (-10,8%) e cobre (-10,4%). Nesse período, as commodities agrícolas recuaram 5,2%.

O economista observa que os preços das commodities ainda ficarão num nível razoável, mas terão acomodação, influenciada especialmente pelas commodities metálicas, as mais afetadas num primeiro momento pela desaceleração do crescimento da demanda global.

“O patamar de preços ainda é alto. Mas esse recuo mostra que o mercado começa a temer contaminação na economia real”, diz a economista-chefe do banco ABN Amro no Brasil, Zeina Latif. O receio é o de que a crise de crédito nos EUA prejudique o crescimento da economia global, reduzindo fluxos de comércio internacional e derrubando preços de produtos, principalmente das commodities.

Para Zeina, ainda não é possível saber se a queda representa reversão definitiva da tendência de cotações elevadas. Mas, caso se confirme essa mudança de nível, os mais afetados serão os países emergentes. “Eles vinham surfando na alta das cotações nos últimos anos.”

A queda das cotações mostra que o fôlego dos preços está curto. “Com exceção da soja, as commodities agrícolas caíram este mês. Como o Brasil depende das commodities, podemos ser afetados ainda neste ano”, prevê o vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro. “A crise financeira deve interromper a curva de prosperidade da balança comercial”, diz Silveira. O saldo da balança comercial projetado pela RC em US$ 45 bilhões para este ano, quase 20 vezes superior ao obtido no início desta década, deve recuar para US$ 37 bilhões em 2008, calcula.

Silveira pondera que ainda há gordura para queimar, pois o nível de reservas internacionais do Brasil é elevado. Mas destaca que o País tem de enobrecer a pauta de exportações com produtos mais elaborados e com preços menos suscetíveis a abalos globais. “Não podemos ficar limitados a commodities.”

Diferentemente de um produto manufaturado, como um carro, as commodities são afetadas mais rapidamente pela volatilidade do mercado internacional. “As commodities são favoráveis quando se está num período de boom”, diz Silveira. Como o preço é basicamente o mesmo e não há diferenciação do produto, em período de enfraquecimento da oferta as cotações se deterioram mais rapidamente do que no caso dos produtos manufaturados, observa.

Dados da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA)deixam clara a importância das commodities agrícolas na balança comercial brasileira. De janeiro a julho, essas vendas responderam por 36,7% de tudo o que o País exportou. No mesmo período de 2006, a participação havia sido de 35,6%.

Outro impacto da crise financeira internacional na economia real pode ocorrer na produção agrícola. A próxima safra de grãos começa a ser plantada em setembro no Centro-Sul e parte dos agricultores ainda não vendeu toda a última colheita.

“O primeiro impacto da crise na agricultura é a insegurança”, diz José Cícero Aderaldo, gerente comercial da Cocamar, uma das principais cooperativas do País. Ele diz que a queda dos preços em dólar das commodities agrícolas foi contrabalançada pelo aumento da cotação em real, graças à subida do dólar. “É como trocar seis por meia dúzia.” Por ora, o impacto da crise não alterou a vida dos produtores da cooperativa do Paraná.

Instituto Humanitas Unisinos - 19/08/07

Sobrevalorização cambial leva o país à regressão industrial, avalia o IEDI

A valorização excessiva e continuada da moeda nacional tem levado a uma reestruturação da indústria brasileira caracterizada pela substituição de bens intermediários fabricados internamente por bens importados. A análise é do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) em sua Carta n. 273, 18-08-2007, sobre a valorização da taxa de câmbio brasileira e seus impactos sobre a indústria no Brasil.

Eis a síntese da análise.

Um primeiro trabalho avaliou o grau de “desalinhamento” do Real em relação a uma cesta de moedas de países que representam 75% das transações comerciais (exportações + importações) brasileiras. No trabalho estimou-se qual seria a diferença entre a cotação da moeda nacional vigente no mercado de câmbio e a cotação que corresponderia aos chamados “fundamentos” determinantes da taxa de câmbio. A análise mostrou que desde o primeiro trimestre de 2005 a taxa de câmbio está sobre-valorizada em relação ao valor correspondente ao dos “fundamentos”.

Essa valorização excessiva e continuada da moeda nacional tem levado a uma reestruturação da indústria brasileira, caracterizada pela substituição de bens intermediários fabricados internamente por bens importados. Como resultado desse ajustamento, ampliou-se substancialmente a participação de insumos importados na produção doméstica, com conseqüente enfraquecimento dos elos intermediários das cadeias de produção. Também impulsionadas pela valorização do Real, cresceram de forma vertiginosa as importações de bens finais. A combinação desses dois processos tem levado à perda de participação da indústria no valor agregado da economia.

Como era de se esperar, esse ajuste da indústria à sobrevalorização cambial vem se refletindo no resultado da balança comercial brasileira. O saldo comercial da indústria de transformação caiu mais de 11% entre o primeiro semestre de 2007 e o mesmo período do ano anterior (U$ 13 bilhões e U$ 11,5 bilhões respectivamente).

O crescimento do saldo global da balança comercial nesse período deveu-se, essencialmente, ao comportamento das commodities brasileiras, impulsionadas pela demanda e preços internacionais favoráveis. De fato, segundo classificação do Banco Mundial, pode-se atribuir quase 80% do crescimento das exportações brasileiras ao desempenho dos bens primários e semi-elaborados (celulose, suco, açúcar, álcool e metalurgia, entre outros).

Visto sob o prisma da intensidade tecnológica, conforme critério adotado pela OCDE, o saldo da balança comercial da indústria mostra inequívocos sinais de deterioração. Os setores de alta intensidade vêm ampliando seu déficit comercial (U$ 6,9 bilhões no 1o semestre de 2007) e, pela primeira vez desde o primeiro semestre de 2004, os setores de média-alta intensidade tecnológica apresentaram déficit no saldo entre exportações e importações (U$ 3,3 bilhões).

A perda de participação da indústria no produto interno brasileiro não é nova, embora tenha se acentuado nos últimos anos. A comparação da trajetória brasileira com a de outros países emergentes é chocante e mostra os quantos se têm regredido em termos industriais em relação a nossos principais competidores.

O ajuste da indústria brasileira à persistente valorização da moeda nacional tem resultado em uma estrutura industrial menos compacta e mais dependente de fornecimento externo, especialmente nos setores de alta e média-alta intensidade tecnológica. Trata-se, em realidade, de uma inversão completa da vitoriosa estratégia de industrialização brasileira, duramente posta em prática ao longo de várias décadas. A que configuração de indústria nos levará a atual política é questão-chave na agenda do atual debate sobre os rumos do desenvolvimento econômico nacional.