Instituto Humanitas Unisinos - 23/01/09
Thomas G. Maheras, ex-supervisor de operações do Citigroup, é o protagonista de um episódio desta crise financeira que, pela simbologia, talvez explique melhor a bolha dos empréstimos "subprime" do que um gráfico da valorização irracional do mercado imobiliário americano nos últimos anos. Em setembro de 2007, diante de toda a diretoria daquela que é uma das maiores instituições financeiras do mundo, Maheras foi questionado por seu chefe, Charles O. Prince III: os US$ 3 bilhões em hipotecas representavam algum risco para o Citi? O executivo garantiu que as posições do banco eram seguras.
A reportagem é de Jorge Félix e publicada pelo jornal Valor, 23-01-2009.
As amizades e a palavra de Maheras foram suficientes para convencer a todos naquela sala. E ajudaram a ocultar segredos para manter a alavancagem do grupo e sustentar as remunerações milionárias da diretoria. No entanto, o conúbio revelou-se fatal. O governo teve de socorrer o Citigroup por duas vezes, nos últimos meses - sem resultado. Na semana passada, depois de divulgar perdas de US$ 8,29 bilhões no quarto trimestre de 2008, que elevaram os prejuízos no ano a US$ 18,7 bilhões, o banco anunciou que partia para o remédio extremo de cindir-se em duas partes, a (presumivelmente) sadia, dos negócios tradicionais de crédito, e a de corretagem de valores e gestão de ativos, envolvida em operações de qualidade questionável.
O caso Maheras, relatado pelo "New York Times", ilustra a impressão generalizada, se não a constatação, de que esta crise, tanto quanto financeira, é ética (no sentido mais geral, teórico, das opções de procedimentos possíveis, e no sentido das preferências morais de grupos e de indivíduos em sua orientação prática). Ao proporcionar um desfile de casos de gestão leniente, ganância desenfreada e equívocos governamentais, a cada episódio a atual turbulência confirma, e acentua, seus contornos e conteúdo enodoados pelo decaimento dos mercados. A amoralidade de executivos financeiros que se esmeravam na criação de instrumentos de negócios tanto complexos quanto escusos fica, então, como o registro mais forte e mais lembrado de escolhas, inspiradas no pior dos oportunismos, entre possibilidades éticas que sempre estarão à disposição do ser humano. A ausência de regulamentação mais rigorosa contribuiu em muito, é verdade, para a propagação irrestrita das malfeitorias, durante anos - nutridas, contudo, por essa amoralidade "escolhida" para parceira de ambições desmedidas, em todas as esferas do mercado. Espantoso também é que nesse vazio regulamentar e moral possa ter frutificado, ao lado de sofisticados instrumentos financeiros, o velhíssimo esquema de "pirâmides", usado por Bernard Madoff para montar uma fraude que acrescentou algo como US$ 50 bilhões, calcula-se, ao espetáculo de cifras gigantescas que ilustram, de diferentes maneiras, o colapso do sistema financeiro americano, até outro dia tido como um modelo para o mundo.
No entanto, o alerta de que o desprezo às melhores oções éticas estava contaminando o capitalismo contemporâneo americano poderia ter sido ouvido muito antes de a bolha dos empréstimos "subprime" estourar. "Tudo começa lá atrás, na Enron (em 2001), com os escândalos de maquiagem de balanços", observa Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, coordenador pedagógico da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas (SP), autor do livro "Ética e Economia-Impactos na Política, no Direito e nas Organizações".
"No caso da Enron e dos outros que vieram depois houve uma clara sinalização de que era necessário impedir, limitar, controlar as informações ditas sigilosas", lembra o professor de filosofia Roberto Romano, da Universidade de Campinas (Unicamp). Segundo ele, o fermento desta crise é a busca do sigilo, a necessidade de esconder informações em beneficio - ou por exigência - de um sistema desregulado.
A excessiva liberdade dos agentes econômicos desmontou aquilo que até mesmo Adam SmithA Riqueza das Nações" (1776) como um desdobramento de suas reflexões em "Teoria dos Sentimentos Morais" (1759), obra em que aparece pela primeira vez a frase sobre a tal "mão invisível" - muito citada e pouco compreendida, por sua interpretação moderna estar mais ligada à livre concorrência, quando o autor, na verdade, se referia à alocação de capitais. Como escreveu Joseph Schumpeter, a "Teoria" deve ser sempre lembrada para derrubar o argumento de que Smith não defendia a ética e a moral em detrimento da riqueza. Bem ao contrário. defendeu como condição sine qua non para o funcionamento do capitalismo. O "pai da economia política" escreveu "
Este particular do pensamento smithiano foi cada vez mais ignorado. "Aquilo tudo se perdeu e deixaram de impor limites ao auto-interesse dos agentes, a crise moral foi sendo constituída por uma defesa da busca do lucro com desregulamentação e, a partir daí, veio a crença de que não haveria nenhum problema com as contas de capital, com livre fluxo de capitais etc.", analisa Gonçalves da Silva. De acordo com Romano, esse arcabouço financista, sempre baseado em sigilo e segredo, acabou formando uma "nomenklatura financeira" tal qual aquela que existiu para sustentar os regimes totalitários ou absolutistas. "Mas no regime democrático a justiça e a fé pública fazem com que as coisas venham à tona em algum momento e isso hoje significa crise."
"O que ocorreu foi que o 'accountability' [a aceitação de responsabilidades e a implícita justificação de ações] era puramente uma estratégia financeira, só para o mercado, sem dimensão ética, política, jurídica, envolta em segredo e transparência inferior àquela necessária para se prestarem contas ao cidadão ou ao Estado, e rompeu-se a confiança", analisa Romano. Assim como ninguém viu que a bolha iria estourar, ninguém se deu conta dos rumos atrevidos que a gestão de riscos tomava, em empresas financeiras e em suas clientes da chamada economia real. Conselhos de administração com nomes famosos impressionavam os investidores, mas não tinham grau satisfatório de independência ou de influência sobre a gestão.
"O neoliberalismo confiou em um homem eticamente perfeito, num puritanismo weberiano, reinvindicando razões de Estado para enfraquecer valores éticos e permitir a licenciosidade nos pressupostos jurídicos." Em nome de quê? De algo que remete novamente a uma carência de atitude ética por trás da crise. "Tudo isso foi montado para atender a uma necessidade de superconsumo da sociedade moderna, que é um problema moral, não só devido à enorme desigualdade, mas também por que há escassez de recursos, há a questão ecológica e deveria haver um compromisso ético com as gerações futuras", destaca Gonçalves da Silva.
O professor da FGV lembra que a ganância, palavra do momento, foi a motivadora de hipotecas que permitiram a especulação e esta foi derrubando instituições criadas para emprestar ao capitalismo aqueles princípios éticos fundamentais. "A Califórnia consumir 20% da gasolina global é uma atitude absurda, sem ética nenhuma. Para isso, foi preciso destruir as regras de Bretton Woods, a fiscalização, a regulação, que agora terão que ser resgatadas", afirma Gonçalves da Silva, referindo-se ao acordo de gerenciamento financeiro internacional criado no pós-guerra.
Esse ressurgimento de princípios limitadores, no entanto, é cada vez mais difícil na sociedade contemporânea, movida pela velocidade da informação on line. Da mesma forma que a conectividade 24 horas acelerou o fluxo de capitais e ajudou a promover a crise, esta sociedade informacional também acirra a concorrência e suscita atitudes condenáveis em nome do rápido crescimento da riqueza e da acumulação insaciável. "Não nos demos conta disso. Esta sociedade veloz desafia a todos, desnorteia a humanidade, coloca em crise o Estado, coloca setores em antagonismo, por que quem não cresce, diminui", analisa Romano.
Será preciso enfrentar uma empreitada de reconstrução desses valores, na qual, segundo Romano, o Estado está sendo chamado a assumir um papel do qual abriu mão na historia recente, embora tenha sido fundamental para o desmonte da regulamentação. "Como podemos pensar em regras morais se a União Européia não tem uma Constituição?", pergunta Romano. "Os aparelhos de Estado não acompanharam a evolução dessas relações sociais complicadas e novas do capitalismo contemporâneo e chegamos a um período de negação dos direitos públicos. Logo, o cidadão é empurrado para as razões de mercado quando se pergunta quem vai lhe garantir a felicidade. Será defendido pelo Estado ou não? Quem vai pagar a aposentadoria?"
A diminuição do papel do Estado com a promessa de fazer-se presente em outras funções - como saúde e educação - levou, segundo Romano, a uma "proteção ilusória". Esta seria a chamada Nova Ordem. A conseqüência foi produzir um raciocínio que muito contribuiu para a construção da crise, aquele mais pernicioso para os valores éticos, de levar o cidadão a acreditar, às vezes inconscientemente, de que era tudo natural, as coisas são mesmo de um certo jeito. "O cidadão não pode parar para refletir, senão ele titubeia e não faz sua tarefa que é gerar lucro, fazer o maior número de operações no menor tempo possível".
Impor uma retomada da ética, afirma Romano, implica desconstruir o discurso inflacionado por palavras e números - a estratégia maquiavélica para impedir a transparência de informações - e menos individualismo. Algo como aquilo que Adam Smith imaginou ao escrever, na "Teoria dos Sentimentos Morais", que, "por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros".