"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, março 21, 2008

Resistir Info - 21/03/08

Crise sistémica global

Fim de 2008: Derrocada dos fundos de pensão

por GEAB [*]

Segundo LEAP/2020, daqui até o fim de 2008 vamos assistir a uma formidável derrocada do conjunto dos fundos de pensão do planeta, pondo em perigo todo o sistema de pensões com base no capital. Este cataclismo financeiro terá uma dimensão humana dramática uma vez que corresponde à chegada da idade de aposentação da primeira vaga dos baby-boomers nos Estados Unidos, na Europa e no Japão: os rendimentos dos fundos de pensão afundarão no momento exacto em que devem começar a afectuar a sua primeira grande série de pagamentos aos reformados. Neste número 23 do GEAB, nossa equipe antecipa a evolução desta próxima crise dos fundos de pensão, precisa os países mais afectados (nomeadamente na Europa) e apresenta recomendações operacionais e estratégicas para enfrentá-la.

Paralelamente, neste GEAB Nº 23 (por assinatura), o LEAP/2020 antecipa os próximos meses desta crise sistémica global que já é uma evidência para todos, procurando antecipar os efeitos perversos dos empréstimos da Reserva Federal americana — que estão em vias de fragilizar ainda mais o conjunto do sistema financeiro americano — e analisando os riscos futuros que pesam sobre os estabelecimentos bancários nos Estados Unidos e em certos países europeus particularmente expostos. Paralelamente nossa equipe analisa o impacto da actual crise económica e financeira americana sobre as probabilidades e as consequências de um ataque ao Irão por Israel e os Estados Unidos antes das próximas eleições presidenciais americanas.

De qualquer forma, com o anúncio de um plano de socorro urgente do quinto banco de negócios dos EUA, o Bear Stearns [1] (prelúdio à sua venda [NR1] ou à sua liquidação nas próximas semanas), assiste-se claramente à falência de um grande estabelecimento financeiro no primeiro trimestre de 2008, como a nossa equipe havia previsto no GEAB Nº 19 [2] .

Simultaneamente, o dólar americano retomou a sua queda livre em relação ao Euro, ao Yen, ao Yuan, o ouro está a mais de US$1000 por onça, o petróleo a mais de US$110 por barril, as bolsas mundiais numa baixa de 20% num trimestre, e a última tentativa de travar a crise financeira com o empréstimo de US$200 mil milhões aos bancos pelo Federal Reserve aos bancos já mostrou o seu fracasso ... todos os fundamentos da ordem económico-financeira destas últimas décadas estão a entrar em colapso sob os nossos olhos, a um ritmo cada vez mais rápido. Estão reunidos todos os sinais de uma crise sistémica [3] .

A tomada de consciência a partir de agora generalizada de que o mundo enfrenta uma crise de amplitude e natureza novas já permitiu aos nossos investigadores afinar algumas das suas antecipações. Assim, no que se refere às divisas, nossa equipe propôs-se a rever as suas estimativas acerca do valor do dólar americano em relação às outras três divisas mundiais estratégicas, o Euro, o Yen e o Yuan. Assim, LEAP/E2020 estima que doravante a taxa Euro-US$ atingirá 1,75 no fim de 2008 (ao invés de 1,70 como havia antecipado a nossa equipe em 2006), a taxa US$-Yen cairá para 90 e a taxa US$-Yuan para 6 [4] .

Gráfico 1.

Diante da amplitude da Muito Grande Depressão estado-unidense, doravante em pleno desenvolvimento [6] , o LEAP/E2020 felicita-se por constatar que as autoridades americanas, na sequência de numerosos protestos, decidiram finalmente manter a publicação sintética dos indicadores económicos dos EUA no sítio EconomicIndicators.Gov . Num período tão perturbado, é com efeito importante que a informação estatística sobre a economia dos Estados Unidos permaneça facilmente e amplamente disponível. As finanças de uma multidão de actos privados e públicos, individuais e colectivos, dele dependem.

Nesta mesma lógica, o Federal Reserve de Atlanta faz uma obra útil ao divulgar gratuitamente um DVD intitulado "Preparar-se para a crise: reconectar seu fluxo vital" (" Crisis Preparedness: Reconnecting the Financial Lifeline "), que permite aos operadores de toda espécie anteciparem a crise e, portanto, prepararem-se melhor [8] . Na perspectiva da fase de colapso da economia real dos Estados Unidos, prevista para Setembro de 2008 pelo LEAP/E2020 [9] , estes conselhos oficiais ganham um significado especial. Nomeadamente, como sublinhámos há meses, em caso de crise grave "a liquidez é rei" ("Cash becomes king" como reitera este DVD), quer a crise seja ligada a um desastre natural ou provocada pelo homem, como ilustra perfeitamente o facto de que as companhias de seguros americanas já perderam mais dinheiro por causa crise das subprimes do que por causa do ciclone Katrina, apesar de este ter sido o pior desastre natural da história dos Estados Unidos [10] .

Gráfico 2.

Para concluir, curvas como esta acima ilustram de maneira gritante quanto a situação é infinitamente mais grave do que aquilo que podem mesmo imaginar os mais sagazes dirigentes (e eles não são muito numerosos). Ela mostra a que ponto o sistema financeiro americano, e por trás de si aquele de uma grande parte do planeta, está mortalmente atingido. Os bancos dos EUA não têm mais dinheiro; é tão simples e dramático como isso O contágio vai agora entrar numa segunda etapa do seu desenvolvimento e vai, portanto, gerar uma nova série de falências bancárias daqui até ao Verão, como antecipado no GEAB Nº 20 , o que implica a ruptura do sistema financeiro mundial na segunda metade de 2008.

Notas

(1) Fonte : Reuters , 14/03/2008
(2) No GEAB Nº 19 havíamos anunciado a data de Fevereiro de 2008, e foi finalmente a 14 de Março que este primeiro banco americano deixou de cumprir os seus compromissos. Recordamos que doravante, conforme nossa antecipação de Novembro de 2007, outros bancos americanos, europeus e asiáticos vão se seguir.
(3) O CNN/Money titula correctamente seu dossier especial: "Problema Nº 1: O dinheiro da América". Trata-se com efeito, basicamente da evaporação pura e simples de milhões de milhões de dólares americanos que se acumularam de maneira ilusória nestes últimos anos nas contas de estabelecimentos financeiros, de empresas, de particulares e do governo, através de todo o planeta. Foi exactamente este o problema detectado pela nossa equipe desde o princípio de 2006.
(4) O LEAP/E2020 deseja sublinhar que se os Estados Unidos e Israel lançarem este ano um ataque contra o Irão, nossas estimativas, desenvolvidas no GEAB Nº 23, são ainda mais negativas para o valor do dólar americano daqui até o fim de 2008. Quanto aos rumores de uma acção concertada dos bancos centrais para por fim à queda da divisa americana, sejamos claros: eles não têm qualquer fundamento. Uma tal acção não pode ser executada, doravante os bancos centrais têm interesses divergentes devido à desconexão entre as grandes regiões económicas mundiais, como antecipou o LEAP/E2020 há vários meses. O colapso do dólar americano resulta da entrada em recessão da economia americana e de uma desvalorização correlata de 50% em relação às outras grandes divisas.
(5) Moedas do índice do dólar: Euro, Yen, Dólar canadiano, Libra britânica, Franco suíço e Coroa sueca. Se o Yuan chinês fosse integrado neste índice a sua queda seria ainda mais forte.
(6) Até já existem sítios web especializados neste assunto, como Depression2.TV , cujo subtítulo é eloquente: "Sobreviver à segunda grande depressão".
(7) Extracto do comunicado publicado no sítio EconomicIndicators.Gov : "... a ESA (Economics and Statistics Administration) previra inicialmente cessar o serviço (de publicação dos indicadores) por razões orçamentais, mas face às reacções recebidas, foi tomada a decisão de continuar o sítio...".
(8) Fonte: Banking Information , Federal Reserve Bank of Atlanta (para encomendar o DVD junto ao Fed de Atlanta, clique aqui ).
(9) Ver GEAB N° 22
(10) Fonte : Bloomberg , 14/03/2008

[NR1] O Bear foi vendido a 17 de Março, por imposição do Fed, a preço de saldo. Mesmo assim foi preciso que o Fed financiasse o banco comprador (J.P.Morgan) para este aceitar a compra.


[*] Global Europe Anticipation Bulletin. Comunicado público Nº 23, de 15/Março/2008.

O original encontra-se em www.leap2020.eu

Resistir Info - 18/03/08

Salvar a economia, desmantelar o império
Uma grande negociação global?

por Michael Hudson [*]

Xadrês global. A profunda crise financeira e económica de hoje não pode ser suavizada sem tratar de um certo número de problemas acerca dos quais o público realmente não quer ouvir falar. Simplesmente mencioná-los levanta uma muralha de dissonância cognitiva.

Em primeiro lugar, o problema da dívida actual não é marginal pois tornou-se estrutural — e problemas estruturais não podem ser resolvidos com meros paliativos marginais. Aquilo a que Alan Greenspan chamou "criação de riqueza" resultou ser uma inflação do preço dos activos — aumentando os valores da propriedade e o mercado de acções a crédito. A Bolha Económica carregou de dívidas as habitações, o imobiliário e todas as companhias, ao passo que os cortes fiscais de Bush para os escalões de rendimento mais elevados forçaram os orçamentos federal, estaduais e locais a incidirem muito mais profundamente em dívidas.

Esta política podia continuar enquanto a dívida inflacionasse os preços da propriedade a um ritmo mais rápido do que a taxa de juro que tinha de ser paga. Mas pagar encargos de juros e amortizações afastava os gastos dos consumidores e dos negócios do consumo e da produção. Este é o significado da expressão "deflação da dívida". Os sectores das finanças e da propriedade recebiam o rendimento anteriormente gasto com bens e serviços. Se alguém tem de pagar serviço de dívida não está disponível para empréstimos que foram emitidos para aumentar os preços do imobiliário e das acções. Assim, este rendimento não pode ser gasto com bens de consumo (para proprietários de casas) ou para investimento de capital (para companhias alavancadas por dívida). O efeito foi arrefecer vendas e o rendimento dos negócios, e portanto o mercado de arrendamento comercial e imobiliário.

Em 2006 foi atingido um ponto em que o serviço da dívida cresceu a ponto de exceder o rendimento operacional ou a capacidade de muitos proprietários de casas para arcarem com a mesma — especialmente quando as taxas de juro saltaram. A ideia de salvamento do Fed, de salvamentos das dívidas perdidas, é simplesmente emprestar aos devedores o suficiente para eles pagarem aos seus banqueiros e outros credores, subsidiando a sua insolvência com o bastante para que se mantenham em dia com obrigações que de outra forma não poderiam cumprir. A alternativa é situação líquida negativa: a venda de casas, de edifícios de escritórios e de companhias hipotecadas como colateral e venda a preços abaixo da hipoteca ou do valor do título do empréstimo. Tal subsídio meramente compra tempo até o problema da dívida tornar-se ainda mais profundamente ensanguentado.

A realidade é que o nível de dívida existente não pode ser quitado. O problema não está de modo algum confinado à base da pirâmide económica e sim concentrado no topo. O próprio governo dos EUA tornou-se o maior devedor subprime do mundo. A sua dívida de US$2,5 milhões de milhões (trillion) a bancos centrais estrangeiros — e a ainda maior dívida do sector privado a outros estrangeiros — não pode ser paga, dado o peso dos défices militar e comercial do país. O reconhecimento deste facto político no núcleo do sistema financeiro internacional levou governos e investidores estrangeiros a desfazerem-se de títulos e acções denominados em dólares. Isto tem conduzido para baixo a taxa de câmbio do dólar, elevando os preços dolarizados do petróleo e de outras matérias-primas.

O que é irónico é que quanto mais crescem os défices comerciais e os gastos militares no estrangeiro, maior proporção destes dólares são entregues a bancos centrais estrangeiros por exportadores de outros países e outros receptores de fundos estado-unidenses. Os bancos centrais encontram então, eles próprios, pouco onde gastar o seu dinheiro — excepto comprar títulos do Tesouro dos EUA. Eles compraram tantos que os americanos não têm de arcar com o custo do défice do orçamento federal dos EUA comprando os títulos para financiá-lo. Os estrangeiros compraram estes títulos. Isto significa que, com efeito, eles emprestam ao governo dos EUA os dólares e divisas estrangeiras para travar a sua guerra no Médio Oriente — uma guerra que a maior parte dos eleitores estrangeiros não apoia! Financiar o défice de pagamentos dos EUA e o défice do orçamento federal é subsidiar esta guerra.

Nestes últimos anos, governos estrangeiros têm procurado alguma alternativa à compra de títulos do Tesouro dos EUA. Mas quando os chineses tentaram comprar activos da Union Oil, o Congresso vetou o negócio, acusando a tomada posse por aquele governo de conduzir à estrada da servidão. Para a China comprar privatizações estado-unidenses teria de acreditar que o Congresso dos EUA permitiria suspender portagens e outras taxas de acesso à infraestrutura o suficiente para compensá-la pelo declínio do dólar. A resposta mais provável seriam novas queixas contra o Perigo Amarelo. Assim, os governos estrangeiros encontram-se enterrados em dólares que não podem utilizar para comprar activos reais nos EUA, e também não podem gastar com exportações estado-unidenses pois o país agora está a desindustrializar-se. Tudo o que eles podem fazer é emprestar o dinheiro ao governo dos EUA.

BANCARROTA, MORATÓRIA OU REPÚDIO

Este é o caminho que levou à bancarrota dos banqueiros Medici uns poucos séculos atrás. Em 1776, Adam Smith chegou à conclusão de que nenhum governo havia alguma vez reembolsado a sua dívida externa. Nenhum sector privado tão pouco reduziu o seu nível de endividamento por muito tempo — excepto através da bancarrota, da moratória e do repúdio. São estas as opções que enfrentamos hoje. Mas elas não são politicamente aceitáveis para discussão pública. A última vez que os profissionais da Teoria Económica trataram do problema da dívida global foi na década de 1920, em resposta ao não pagável alto nível de reparações alemãs e dívidas de armamentos dos aliados aos Estados Unidos. Desde aquele tempo tem havido muita conversa sobre teoria monetária, mas pouca atenção à mensuração da capacidade das economias para cumprirem as suas despesas com dívidas internas e externas.

Esta semana o Fed tentou reverter o mergulho nos preços dos activos inundando o sistema bancário com um crédito de US$200 mil milhões. Foi permitido aos bancos transferirem os seus maus empréstimos hipotecários e outros empréstimos para o Federal Reserve ao valor nominal (par value) (ao invés de a preços a apenas 20% da "marca do mercado"). A estória de fachada do Fed é que esta infusão capacitará os bancos a retomarem a concessão de empréstimos a fim de "fazer com que a economia se mova outra vez". Mas os bancos estão a utilizar o dinheiro para apostar contra o dólar. Eles estão a tomar emprestado do Fed a uma taxa de juro baixa, e a comprar títulos denominados em Euros que rendem uma taxa de juro mais elevada — e, neste processo, a efectuar um ganho na divisa quando o Euro ascende contra activos denominados em dólar. O Fed, portanto, está a subsidiar a fuga de capital, exacerbando a inflação ao tornar mais caro o preço das importações (a principiar pelo petróleo e outras matérias-primas). Estas commodities não são mais caras para os compradores europeus, mas apenas para compradores que pagam com dólares depreciados. (Isto também esmaga a América Latina e outros países na área do dólar).

SÃO OS BANCOS CENTRAIS NECESSÁRIOS?

O comportamento do Fed (não apenas sob Alan Greenspan) leva a perguntar se os bancos centrais são realmente necessários. A sua ideia sempre foi patrocinar regras orientadas para o credor, a desregulamentação financeira e salvar o sector financeiro a expensas públicas, encurralando a economia em dívidas. Mas, tendo feito isso, o Federal Reserve não pode resolver os problemas que criou sob o regime Greenspan. O seu papel — e, na verdade, aquele dos bancos centrais em geral — é prosseguir precisamente a espécie de políticas que criou a quadratura financeira de hoje.

Desde que foi fundado o Banco da Inglaterra, em 1694, os bancos centrais de todo o mundo representaram os interesses do sistema bancário comercial. Infelizmente, o modo de actuar (time frame) financeiro sempre foi curto-prazista. Os bancos ganham dinheiro ao encontrarem cada vez mais clientes para lhes emprestar fundos, enquanto os banqueiros de investimento e casas correctoras ganham as suas comissões e correm. O seu interesse está na promoção da Economia da Bolha que induzirá compradores imobiliários e atacantes de corporações a tomarem emprestado a fim de cavalgarem a onda de inflação do preço dos activos. Esta concessão de empréstimos parece, à primeira vista, ser auto-sustentada pois os prestamistas aumentam os preços da propriedade, acções e títulos. Estes activos podem então ser penhorados como colateral para empréstimos ainda maiores pois preços e dívidas aumentam em conjunto.

Esta é a espécie de "criação de riqueza" para a qual o sr. Greenspan tentou ganhar crédito. Mas, ai de nós, não é um processo que de um modo geral proporcione estabilidade para a economia. Quando os interesses do sector financeiro chegam a opor-se àqueles da economia "real" de consumidores e produtores, a política do Federal Reserve procura resolver o problema da dívida ainda com mais dívida, na forma de salvamentos (bailouts) de bancos que efectuaram maus empréstimos. O salvamento é concebido para permitir aos bancos conceder dinheiro a fim de apoiar preços de activos e preservar o preço de mercado do colateral penhorado para suportar seus empréstimos hipotecários e emprestar a companhias altamente alavancadas e hedge funds. Ao salvar bancos para aumentar os seus empréstimos a fim de atingir estes fins, o Fed tornou-se um jogador activo numa guerra financeira para endividar mais o imobiliário, o trabalho e a indústria.

O resultado é uma intrusão sem precedentes do Grande Governo, não de uma maneira socialista e sim de um modo que utiliza os fundos públicos para proteger a finança e a propriedade no topo da pirâmide económica. Isto é feito tomando um caminho estritamente financeiro para a servidão, pela promoção de um regime de escravidão pela dívida (debt peonage). Através do sistema do Federal Reserve o governo está a "resolver" o fim da Bolha da Economia efectuando bastantes empréstimos para endividar a indústria e a agricultura, o trabalho e os capitais tangíveis, quando concede emprestado o dinheiro para pagar serviço de dívida de empréstimos que de outra forma cairiam em incumprimento.

Mas como foi notado acima, a dívida mais problemática é a estrangeira, e o maior devedor subprime internacional é o governo dos EUA. Ele agora está endividado para com governos estrangeiros (através dos haveres dos seus bancos centrais cujas reservas montam a US$2,5 milhões de milhões) e a investidores privados (mais uns poucos milhões de milhões) além da capacidade de pagamento do país, para não mencionar que para além da sua vontade política de assim fazê-lo. É por isso que os estrangeiros não estão mais dispostos a aceitar os dólares a serem libertados pelos consumidores estado-unidenses, investidores dos EUA a comprarem empresas estrangeiras e os militares americanos a estenderem as suas bases no exterior.

E quando o dólar cai, os preços das importações aumentam, a começar por combustíveis e minerais.

Alguém tem de pagar. Como podem proprietários de casas e de negócios pagarem as suas dívidas se os seus custos operacionais com aquecimento, electricidade e transporte estão a absorver o seu rendimento?

O único meio de travar esta hemorragia é negociar um cancelamento da dívida, a começar pelos títulos do Tesouro dos EUA possuídos por bancos centrais estrangeiros. Mas o que é que os EUA têm a oferecer? Ao pedir que governos estrangeiros façam um sacrifício económico desta magnitude não pode haver negociação sem que o governo dos EUA proponha um grande acordo global. Tendo poucas compensações a oferecer, o caminho mais promissor de fazer com que países estrangeiros abandonem voluntariamente os seus direitos financeiros sobre a economia dos EUA deve incluir a única coisa que a América pode oferecer — a dimensão militar.

Só vejo um caminho para ser feito isto. Os Estados Unidos concordariam em desmantelar todas as suas bases além mar (ou pelo menos aquelas fora do Hemisfério Ocidental). Isto significaria abdicar do seu sonho de impor hegemonia mundial pela força das armas. Isto também o libertaria — e aos outros países — da corrida às armas pós-Guerra Fria. Ajudaria a reviver a produção e consumo da economia "real" ao libertar receitas para gastos com consumo e novo investimento directo. No processo libertaria os Estados Unidos do "capitalismo do Pentágono", que é na base de contratos de produção cost-plus que aparentemente levaram a engenharia industrial americana a ser incapaz de utilizar métodos de produção que minimizem custos, perdendo por conseguinte o que costumava ser a sua vantagem tecnológica competitiva.

Há países estrangeiros que começam a encarar os Estados Unidos da mesma perspectiva que a administração Bush encarava outros países. Qualquer potencial económico tem por definição carácter militar. Segue-se que o que PODERIA ser, deveria ser reprimido desde o início. Os Estados Unidos tornaram-se a principal força desestabilizadora agressiva do mundo. Sem tratar abertamente com este "elefante militar na sala", qualquer alívio de direitos estrangeiros sobre a economia dos EUA por governos estrangeiros simplesmente permitiria à América manter e mesmo aumentar a sua presença militar global, construindo ainda mais bases no estrangeiro e impondo uma drenagem da balança de pagamentos ainda maior sobre o dólar. "Apoiar o dólar" é sinónimo de subsidiar o vício do Ramo Executivo com a diplomacia militar hegemónica.

Infelizmente isto não é uma verdade que o público americano queira ouvir.

16/Março/2008
Outros artigos de Michael Hudson:
  • Super-capitalismo, super-imperialismo e imperialismo monetário
  • Greenspan, o grande inflacionador de activos
  • A pirâmide dos US$ 4,7 milhões de milhões: a Segurança Social dos EUA & a Wall Street
  • Irá a Europa sofrer da síndroma suíça?
  • Um grande especialista revela segredos dos centros bancários offshore


  • [*] Professor de Teoria Económica na Universidade de Missouri – Kansas City, ex-Conselheiro Económico Chefe da campanha de Kucinich para Presidente, autor de Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance .


    O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/hudson03152008.html . Tradução de JF.

    Le Monde Diplomatique Brasil - 15/03/08

    A China é o alvo dos EUA

    Uma análise sobre o orçamento militar dos EUA para 2009 indica que suas prioridades têm muito pouco a ver com a “guerra contra o terror”

    Conhecido pela profundidade de suas análises o thinktank norte-americano Foreign Policy in Focus (FPIF) [Política Externa em Foco] acaba de publicar uma análise sobre o orçamento militar proposto pela Casa Branca para o ano fiscal de 2009. O texto, redigido por Um artigo de Michael Kare, revela que a preocupação principal é manter superioridade sobre a China — ainda que, em palavras, o esforço bélico atual dos EUA volte-se contra o terror islâmico e os “Estados-vilões”.

    Klare, professor de Estudos sobre a Paz e a Segurança Global na Universidade de Hampshire, demonstra que o item mais robusto no orçamento de 2009 é a “modernização estratégica”. Ela abocanha US$ 183,3 bilhões — 36% de despesas totais estimadas em US$ 515,4 bilhões (semelhantes a todo o PIB da Argenina…). Entre os itens em que se desdobra, estão a compra de 40 super-caças F-22 (considerado “o mais avançado avião de combate da atualidade”), por US$ 4,1 bilhão; a construção de um porta-aviões de novo tipo (o CVN-78), que deverá dar início à substituição dos navios da classe Nimitz e é equipado, entre outros, com um novo modelo de motor nuclear, um sistema eletromagnético para lançamento de aviões, radares s avançados e outras inovações; o lançamento de novas classes de destroyers e submarinos.

    Klare ressalta que nenhuma destas armas presta-se a combater redes de terror ou Estados com a Síria ou Irã, dotados de armamento ultrapassado. Seu único, sustenta, só pode ser enfrentar, numa “nova guerra fria”, uma potência capaz de representar uma ameaça ao poderio militar dos EUA.

    Le Monde Diplomatique Brasil - 15/03/08

    Crise financeira global: quem pagará a conta?


    Novos sinais de contágio derrubam o mito da “eficiência” dos mercados e sugerem que, para evitar colapso, pode necessária intervenção estatal maciça. Mas qual seria seu sentido, num ano marcado por eleições presidenciais nos EUA?

    A perspectiva de uma nova redução da taxa básica de juros norte-americana (talvez de um ponto percentual) está estimulando uma ligeira alta nas bolsas de valores de todo o mundo, nesta terça-feira (18/3). Nada indica, porém, que os graves desequilíbrios que provocaram uma nova onda de tremores, entre o final da semana passada e ontem, tenham sido sanados. Ao contrário: a decisão mais importante da reunião de emergência realizada no domingo pelo banco central dos EUA (o FED) foi autorizar empréstimos de socorro também ao chamado “mercado financeiro das sombras” (shadow financial market), que não está submetido a regulamentação ou controle por instituições públicas. Esta medida, mais o crédito de 30 bilhões de dólares oferecido ao banco JPMorgan/Chase, para que comprasse o banco de investimentos Bear Stearns, revela que o FED está apavorado. O temor principal é que mesmo a quebra de uma instituição financeira de médio parte (como o Bear Stearns) desencadeie um dominó de calotes, com desdobramentos imprevisíveis.

    A última série de insolvências começou na quinta-feira passada, (13/3), quando o fundo hipotecário Carlyle Capital Corportion (CCC), um dos mais importantes dos Estados Unidos, entrou em colapso. Na sexta (14/3), o Bear Stearns, quinto maior banco de investimentos do país, deu sinais de que não tinha meios de atender nem a seus compromissos financeiros, nem aos investidores que desejavam resgatar suas aplicações.

    Os dois casos são emblemáticos. Ligado ao Grupo Carlyle (um gigante das finanças norte-americanas), e tendo em seu conselho personalidades como o ex-presidente George Bush (o pai), o CCC possuía ativos avaliados em 21 bilhões de dólares. Parte deste patrimônio, porém era constituída de títulos hipotecários que perderam valor, com a onda de inadimplências no setor imobiliário. Em conseqüência, o CCC deixou de honrar, nos últimos dias, compromissos de US$ 400 milhões, não conseguiu chegar a acordos com seus credores e tornou-se ele próprio insolvente.

    A dúvida: até onde a espiral de calotes continuará se expandindo?

    O redemoinho que devorou o Bear Stearns é ainda mais impressionante. Ainda na sexta-feira, depois do anúncio de suas dificuldades e de uma queda de quase 50% na cotação de suas ações, o valor de mercado do banco era de 3,5 bilhões de dólares. Só sua sede magnífica é avaliada em US$ 1 bi. Mas a instituição foi entregue ao JPMorgan/Chase, no domingo, por apenas US$ 236 milhões. Mesmo assim, e apesar da garantia de US$ 30 bi oferecida pelo FED, “é muito cedo para dizer que foi um bom negócio”, advertiu a revista Economist. Não se sabe o volume das perdas do Bear Stearns com títulos baseados em hipotecas imobiliárias. A dúvida é: até onde a espiral de calotes continuará se expandindo?

    Há um agravante: a inadimplência está tornando o crédito, nos EUA, mais escasso e mais caro, como mostrou este blog há alguns dias. A dificuldade de levantar dinheiro pode transformar-se numa bola-de-neve, desencadeando novas falências e restringindo ainda mais as operações financeiras, numa sinergia sinistra. Os problemas têm colocado cada vez mais em evidência o analista turco-norte-americano Nouriel Roubini, que considera necessário incluir, entre os desdobramenos possíveis da crise, o “derretimento do sistema financeiro”.

    Num comentário postado quarta-feira, em seu blog, o próprio Roubini sugere que “qualquer solução efetiva para o desarranjo dos mercados de crédito vai requerer envolvimento do Estado em escala muito maior”. É uma constatação de enorme importância poítica. Primeiro, porque enterra um dos grandes mitos da era neoliberal: a suposta capacidade dos mercados para regularem a si próprios e à vida social. Segundo, porque coloca em pauta o sentido da ação a ser adotada contra a crise. Se cabe ao Estado evitar o colapso financeiro, se as finanças não são capazes de salvar a si próprias, então, em teoria, a sociedade teria o direito de debater como a intervenção deve ser feita.

    Até o momento, todas as iniciativas estatais adotadas significaram vultosas concessões aos próprios mercados. Na terça-feira (11/3), dois dias apenas antes do colapso do CCC, o presidente do FED Ben Bernanke, havia anunciado a abertura de mais uma linha de crédito — agora de 200 bilhões de dólares — em favor das instituições financeiras. Numa atitude raras vezes adotada por um banco cental, o FED aceitará, como garantia para os empréstimos que concederá, até mesmo bônus imobiliários que sabidamente podem não ser resgatáveis. É a terceira medida semelhante desde agosto só nos EUA. Os bancos centrais europeu e japonês também injetaram centenas de bilhões em suas economias, até o momento sem nenhum resultado efetivo.

    “A pior crise desde os anos 1930. Um evento político decisivo”

    Martin Wolf, um festejado colunista do diário britânico Financial Times alerta, num comentário publicado esta quarta-feira (12/3): “prejuízos de US$ 2 trilhões a US$ 3 trilhões [são os cálculos de Nouriel Roubini sobre os efeitos da crise] descapitalizariam o sistema financeiro. O governo teria de resgatá-lo. O meio mais plausível de fazê-lo seria nacionalizar todos os prejuízos. (…) A decisão teria imensos desdobramentos. Teríamos a pior crise financeira do país desde os anos 1930. Seria um evento político decisivo”.

    Você leu corretamente. Nos mercados financeiros globais, já se discute a hipótese de uma mega-operação de salvamento do sistema, algo imensamente superior ao Proer brasileiro, que saneou três bancos com recursos públicos logo após a adoção do Plano Real, em 1994. Por enquanto, porém, o resgate é discutido sem alarde. Não se fala sobre ele nos Parlamentos, nas entrevistas coletivas dos ministros, no horário nobre da TV. Em democracias de baixa intensidade, como as que vivemos, ele seria normalmente apresentado como a única alternativa para evitar o colapso, o remédio amargo que a sociedade será forçada a engolir para evitar um mal pior. Por exemplo uma quebradeira de empresas em larguíssima escala, capaz de paralisar a economia e jogar rapidamente milhões de trabalhadores no desemprego.

    O “derretimento” do sistema financeiro teria de fato conseqüências trágicas — mas o socorro aos bancos não é a único remédio contra ele. Tanto nos EUA quanto na Alemanha, a crise dos anos 1930, por exemplo, foi enfrentada principalmente com ações do Estado direcionadas para a geração de emprego e a redistribuição de renda. Em conferência recente, nos EUA (publicada por Le Monde Diplomatique Brasil), a escritora e cientista política Susan George sugeriu, como alternativa para o colapso, um “keynesianismo ambiental”, cujo núcleo seriam obras e iniciativas públicas voltadas para a preservação do planeta (como ferrovias, centrais elétricas eólicas, metrôs, etc). O próprio Martin Wolf lembra, no Financial Times: uma possível saída para a crise atual seria “elevar as rendas nominais” — mesmo se resultasse no “tributo da inflação”, que “em circunstâncias extremas deve ser atraente”.

    Uma particularidade no cenário internacional amplia as esperanças de escapar do pensamento único, e imaginar uma solução como a proposta por Susan. Os EUA, epicentro da crise, vivem uma conjuntura quase única: eleições presidenciais coincidem com a sensação de empobrecimento e isolamento internacional. Não seria uma grande oportunidade para questionar a saída ortodoxa de salvar a banca, e propor alternativas capazes de construir outro sistema financeiro?

    Le Monde Diplomatique Brasil - Mar 08

    Padrões de uma beleza vulgar

    Programas de TV e desfiles de moda convertem-se em vitrines de um padrão estético em que as próprias diferenças parecem previsíveis. Também na coluna: subsídios à agricultura orgânica, poluição desigual nas transnacionais do automóvel, uso das fibras de bambu, rádios comunitárias e muito mais

    Luiz André Ferreira

    Dizia o poeta Vinícius de Moraes: “Me desculpem as feias, mas beleza é fundamental”. A frase é muito mais provocativa para o radicalismo do movimento feminista da época do que conceitual. Ela é repetida exaustivamente, até hoje, por papagaios que, como a ave, não conseguem contextualizar nem refletir sobre o que estão falando. Demonstram total incapacidade de compreender que a beleza dita por um poeta é bem mais subjetiva do que o padrão plástico vigente. Não é à toa que, grande apreciador do sexo feminino, Vinícius colecionou diversidades em suas conquistas amorosas.

    A ditadura da beleza que vemos hoje vem no rastro do movimento de “celebrização”, em que pessoas se digladiam por um lugar na “calçada da fama”, mesmo que dure apenas 15 minutos. São "famosos" inconsistentes, que vivem de valores fugazes e superficiais. Os modelos de pessoas bem-sucedidas são ocupadas instantaneamente por aspirantes a “célebres”, que têm pouco mais a oferecer que a beleza padrão. Reparem que quase todos apresentam rigorosamente o mesmo biótipo! Até as “diferenças” são padronizadas!

    Como exemplo, é só sintonizarmos no “Big Brother”. Com raras exceções, não dá mais para distinguir quem é quem. São cópias! Até as diferenças são xerocadas. O afro-descendente de “beleza branca”, o homossexual de classe média alta bem resolvido, um falso-intelectual e um falso pobre de classe média. Mas todos padronizadamente bonitos. No Brasil, o programa sempre teve essa característica, mas antes, ainda existia um canal de diversidade, uma vaga na casa global preenchida por meio de sorteio feito por uma revista. Esse dispositivo, que garantia algumas diferenças reais, foi banido.

    Outro exemplo. As “modelos e manequins”, que sempre surgem nos carnavais, festivais de moda ou programas de TV com “celebridades desconhecidas”, hoje, possuem as mesmas caras e corpos. Isso, graças à evolução das cirurgias plásticas, cosméticas, botox, silicones, aumento de bustos e das modelações feitas em série nas academias e com anabolizantes. Parece uma invasão de centenas de gêmeas, uma produção fabril. No carnaval, com raras exceções, tive a impressão que eram as mesmas, multiplicadas em frente das baterias, em carros alegóricos e bailes.

    Mas começo a ver uma luz no fim dessa passarela da “beleza”. Rivalizando com a globalização estética, vamos refletir sobre o Miss Mundo. O decadente concurso nunca tinha tido uma repercussão tão grande, desde o tempo de Martha Rocha, derrotada nos anos 50 por algumas polegadas a mais na cintura. Mas voltou à baila, por conta de outra polêmica estética: a atual Nathália Guimarães, que perdeu para uma oriental. A pobre vencedora foi massacrada esteticamente não só pela imprensa brasileira, mas pela de muitos países ocidentais. Que Nathália é linda, não há dúvida. Mas quem garante que a vencedora também não pode ser de um outro padrão estético? Será que não pode existir uma beleza diferente da nossa?

    E como o mercado não é nada bobo, e para sobreviver está sempre antecipando tendências, destaco a campanha internacional de uma empresa de cosméticos que atua, inclusive, no Brasil. Aposta no abandono da uniformização estética para propor a descoberta da própria beleza de cada um.

    Para não maquiar este conceito, a multinacional buscou refletir a diversidade na pesquisa. Ampliou o recorte além da faixa sempre ouvida nesse tipo de consulta. Foi dos 20 aos 70 anos, com mulheres de seis nações: Alemanha, França, Rússia, China, Estados Unidos e Brasil.

    Não foi à toa que fomos escolhidos entre os 65 países para pesquisa. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, ocupamos a terceira colocação do mercado mundial desse tipo de produtos, movimentando cerca de R$ 40 bilhões — atrás apenas do Japão e Estados Unidos.

    A pesquisa, no entanto, não revela nada diferente do que nós, esteticamente medianos já sentimos na pele: a ditadura de um molde estético e o peso da idade pendendo na balança da beleza, que aqui está muito mais associada a uma aparência jovem. Coincidência? Resultado semelhante ao do Brasil foi constatado no estudo realizado nos Estados Unidos. A Alemanha, ao contrário, não demonstra preocupação visual com o envelhecimento.

    Já as chinesas preferem produtos clareadores: o tom de pele, para elas, indica posição social privilegiada. As francesas, é claro, preferem os perfumes. As emergentes russas são apaixonadas por cabelos e tinturas, mas dedicam muito pouco tempo ao cuidado com os corpos — afinal, com o frio, raramente estão à mostra.

    Que tal aproveitarmos essa pesquisa e procurarmos a nossa beleza? Esqueça os padrões em que não nos encaixamos, por mais que nos violentemos. Se abandonarmos esse modelo externo imposto, será muito mais fácil encontrarmos as nossas belezas interior e exterior.

    Le Monde Diplomatique Brasil - Fev 08

    A hipermassificação e a destruição do indivíduo

    O “tempo livre” é de fato assim tão livre? Esse tempo, saturado de produtos culturais, impede que cada qual se diferencie por escolhas próprias, espoliando sua energia vital. E, levando a uma perda generalizada de individuação, engendra rebanhos de seres em permanente e angustiante mal-estar – rebanhos que se aproximam cada vez mais da horda furiosa

    Bernard Stiegler

    Uma fábula dominou as últimas décadas e iludiu em boa parte os pensamentos políticos e as filosofias, afirmando, desde 1968, que tínhamos enfim alcançado a era do “tempo livre”, da “permissividade” e da “flexibilidade” das estruturas sociais, a sociedade do lazer e do individualismo. Esse conto de fadas, teorizado sob a denominação de “sociedade pós-industrial”, influenciou e fragilizou notadamente a filosofia “pós-moderna”. Inspirou os social-democratas, querendo fazer crer que tínhamos passado da época das massas laboriosas e consumidoras típicas da era industrial para o tempo das classes médias. O proletariado, segundo tal fabulação, estaria em vias de desaparecimento.

    Esse último, porém, não apenas continua a ser numericamente significativo como ainda cresceu, com a larga proletarização dos empregados, assujeitados a um dispositivo maquínico que os priva de iniciativa e de saberes profissionais. Quanto às classes médias, estas se pauperizaram. Falar de crescimento e impulso do lazer – no sentido de um tempo liberado de qualquer coerção, o tempo da “disponibilidade absoluta”, como diz o dicionário – não é nada evidente, pois o lazer não tem mais por função liberar o tempo individual, mas melhor controlá-lo no intuito de supermassificá-lo: tornou-se o instrumento de uma nova servidão voluntária. Produzido e organizado pelas indústrias culturais e do entretenimento, o lazer forma o que Gilles Deleuze [1] chamou de as sociedades de controle. Estas desenvolvem um capitalismo cultural e de serviços que fabrica modos e estilos de vida, transforma a vida cotidiana segundo seus interesses imediatos, padroniza as existências pelo viés dos “conceitos de marketing”. Como este, por exemplo, do life-time value, que designa o valor economicamente calculável do tempo de vida de um indivíduo, cujo valor intrínseco é dessingularizado e desindividualizado.

    O marketing, como o entendeu Deleuze, transformou-se no “instrumento do controle social” [2]. A sociedade pretensamente “pós-industrial” tornou-se, ao contrário, hiperindustrial [3]. Longe de se caracterizar pelo domínio do individualismo, a época mais se aproxima de um devir gregário dos comportamentos e de uma perda generalizada de individuação.

    O conceito de perda de individuação introduzido por Gilbert Simondon [4] expressava aquilo que adveio ao operário submetido à máquina-ferramenta no século 19: este perdeu seus saberes técnicos e, com isso, sua individualidade, reduzido à condição de proletário. Agora, é o consumidor que é padronizado em seu comportamento pela formatação e fabricação artificial de seus desejos. Perdeu, também ele, seu “saber viver”, substituído pelas normas editadas pelas marcas.

    “Racionalmente” promovidas pelo marketing, as marcas assemelham-se às “bíblias” que regem o funcionamento das franquias de fast-food, às quais os concessionários devem conformar-se ao pé da letra, sob pena de ruptura de contrato, ou mesmo de processo. Essa privação de individuação, e portanto de existência, é extremamente perigosa: Richard Durn, o assassino de oito integrantes do conselho municipal de Nanterre, escreveu em seu diário que precisou “fazer o mal para, ao menos uma vez em [sua] vida, experimentar o sentimento de existir” [5].

    Freud escreveu, em 1930, que, mesmo dotado pelas tecnologias industriais dos atributos do divino, e “por mais que se assemelhe a um deus, o homem hoje não se sente feliz” [6]. É exatamente o que a sociedade hiperindustrial faz dos seres humanos: privando-os de individualidade, ela engendra rebanhos de seres em permanente e angustiante mal-estar; seres aos quais falta um vir-a-ser, seres sem porvir. Esses rebanhos desumanos terão cada vez mais tendência a se tornarem hordas em fúria. Freud, em A psicologia das massas e análise do eu, esboçava, já em 1920, a análise dessas multidões tentadas a regredir ao estágio da horda, habitadas pela pulsão de morte descoberta em Além do princípio do prazer e que O mal-estar na civilização retomou dez anos depois, quando o anti-semitismo, o totalitarismo e o nazismo se alastravam pela Europa.

    Ainda que tenha se referido à fotografia, ao gramofone e ao telefone, Freud não evocou o rádio nem – ainda mais estranho – o cinema, utilizado por Mussolini, Hitler e Stálin, esse cinema acerca do qual um senador americano dizia, já em 1912, que “trade follows films” (o mercado acompanha os filmes) [7]. Tampouco imaginou a televisão, cuja emissão pública os nazistas ensaiaram em abril de 1935. No mesmo momento, Walter Benjamin [8] analisava aquilo que denominou o “narcisismo da massa”: o controle dessas mídias pelos poderes totalitários. Mas ele não pareceu aquilatar melhor que Freud a dimensão funcional – em todos os países, incluídos os democráticos – das indústrias culturais nascentes.

    Edward Bernays, ao contrário, duplo sobrinho de Freud, teorizou-as. Explorou as imensas possibilidades de controle daquilo que seu tio chamara de “economia libidinal”. E desenvolveu as “relações públicas”, técnicas de persuasão inspiradas pelas teorias do inconsciente, que pôs a serviço do fabricante de cigarros Philip Morris por volta de 1930 – no momento em que Freud percebia, na Europa, a ascensão da pulsão de morte contra a civilização.

    Freud não se interessava pelo que se passava então nos Estados Unidos. Salvo por uma estranha observação. Ele se diz, primeiro, obrigado a “vislumbrar também o perigo suscitado por um estado particular que se pode chamar de ‘a miséria psicológica de massa’, e que é criada principalmente pela identificação dos membros de uma sociedade uns com os outros, enquanto certas personalidades com temperamento de chefe não conseguem [...] desempenhar esse importante papel que deve lhes caber na formação de uma massa”. E afirma, em seguida: “O estado atual da América forneceria uma boa ocasião para estudar esse temível prejuízo levado à civilização. Resisto à tentação de lançar-me na crítica à civilização americana, não desejando dar a impressão de querer, eu mesmo, usar métodos americanos” [9].

    Foi preciso esperar que Theodor Adorno e Max Horkheimer [10] denunciassem o “modo de vida americano” para que a função das indústrias culturais fosse verdadeiramente analisada, além da crítica dos meios de comunicação surgida desde os anos 1910 com Karl Kraus [11].

    Embora suas análises permaneçam insuficientes [12], esses autores compreenderam que as indústrias culturais formam um sistema conjunto com as indústrias em geral – sistema cuja função consiste em fabricar os comportamentos de consumo, massificando os modos de vida. Trata-se de garantir o escoamento dos produtos sempre novos engendrados pela atividade econômica, cuja necessidade não é espontaneamente sentida pelos consumidores. Essa reticência dos consumidores provoca um risco endêmico de superprodução, e portanto de crise econômica, que só é possível combater – a não ser que haja um questionamento geral do sistema – com o avanço daquilo que constituía, aos olhos de Adorno e de Horkheimer, a própria barbárie.

    Depois da Segunda Guerra mundial, a frente da teoria das relações públicas foi ocupada pela “pesquisa motivacional”, destinada a promover a absorção do excedente de produção quando do retorno à paz – avaliado em 40%. Uma agência de publicidade assim escrevia em 1955: o que faz a grandeza da América do Norte “é a criação de necessidades e de desejos, a criação do desgosto por tudo que é antigo e ultrapassado”. Promover o gosto supõe de fato provocar o desgosto, o que termina por afetar o próprio gosto. Apelava-se ao “subconsciente” para ultrapassar as dificuldades encontradas pelos industriais quando se tratava de levar os americanos a comprarem o que suas fábricas podiam produzir [13].

    Na França, desde o século 19, vários órgãos se empenhavam em facilitar a adoção dos produtos industriais, que transformavam por completo os modos de vida, lutando contra as resistências suscitadas por tais transformações: assim se deu a criação do “reclame” por Emile de Girardin. Mas foi preciso esperar o surgimento das indústrias culturais (do cinema e do disco) e principalmente dos programas e emissões (do rádio e da televisão) para que se desenvolvessem os objetos temporais industriais. Estes permitem um controle íntimo dos comportamentos individuais, transformando-os em comportamentos de massa – embora o espectador, isolado diante de seu aparelho de TV, conserve a ilusão de um lazer solitário.

    É também o caso da atividade dita “de tempo livre”, que, na era hiperindustrial, estende a todas as ações humanas o comportamento mimético e compulsivo do consumidor: tudo deve tornar-se consumível, desde o sabão em pó e o chiclete até a saúde, a educação e a cultura. Mas a ilusão que é preciso oferecer para chegar a isso só pode provocar frustrações, descréditos e instintos de destruição. Sozinho diante de meu televisor, posso sempre pensar que me comporto individualmente; mas a realidade é que eu faço como fazem milhões de telespectadores que assistem ao mesmo programa no mesmo instante.

    As atividades industriais, tornadas planetárias, pretendem realizar gigantescas economias de escala e, por meio de tecnologias apropriadas, controlar e homogeneizar os comportamentos: as indústrias de programas ocupam-se disso, por meio dos objetos temporais que compram e difundem a fim de captar o tempo das consciências que formam suas audiências, e que elas vendem aos anunciantes.

    Um objeto temporal – melodia, filme ou emissão de rádio ou televisão – é constituído pelo tempo de seu desenrolar, aquilo que Edmund Husserl [14] nomeou como “fluxo”. É um objeto que passa. Como as consciências que ele unifica, esse objeto é constituído pelo fato de desaparecer à medida que aparece. Com o nascimento da rádio civil (1920) e mais tarde dos primeiros programas de televisão (1947), as indústrias de programas passaram a produzir objetos temporais que coincidem no tempo de seu desenrolar com o desenrolar do tempo das consciências das quais são objetos. Tal coincidência permite à consciência adotar o tempo desses objetos temporais. As indústrias culturais contemporâneas podem, assim, fazer as massas de espectadores adotar o tempo do consumo do dentifrício, do refrigerante, do automóvel. É quase exclusivamente desse modo que a indústria cultural se financia.

    Ora, uma consciência é essencialmente uma consciência de si: uma singularidade. Só posso dizer “eu” porque dou a mim mesmo meu próprio tempo. Enormes dispositivos de sincronização, as indústrias culturais, em particular a televisão, são máquinas de liquidar esse “si mesmo”. Quando dezenas ou centenas de milhões de telespectadores assistem simultaneamente ao mesmo programa ao vivo, essas consciências do mundo inteiro interiorizam os mesmos objetos temporais. E se, todos os dias, elas repetem, na mesma hora e regularmente, o mesmo comportamento de consumo audiovisual, porque tudo as leva a isso, tais “consciências” terminam por tornar-se a consciência da mesma pessoa – isto é, de ninguém. A inconsciência do rebanho libera um fundo pulsional que não se liga mais ao desejo – pois este supõe a singularidade. Durante a década de 1940, a indústria americana pôs em ação técnicas de marketing que não cessaram depois de se intensificar, produzindo uma miséria simbólica, libidinal e afetiva. Essa última conduz à perda daquilo que eu próprio chamei o narcisismo primordial [15].

    A fábula pós-industrial não compreende que a força do capitalismo contemporâneo repousa sobre o controle simultâneo da produção e do consumo, regulando as atividades das massas. Ela propaga a falsa idéia de que o indivíduo é aquilo que se opõe ao grupo. Simondon demonstrou, ao contrário, que o indivíduo é um processo. E que se transforma ininterruptamente naquilo que ele é. Ora, só nos individualizamos coletivamente. O que torna possível essa individuação intrinsecamente coletiva é o fato de que a individuação de uns e de outros resulta da apropriação, por cada singularidade, daquilo que Simondon chamou de fundo pré-individual comum a todas as singularidades.

    Herança oriunda da experiência acumulada das gerações, o fundo pré-individual sobrevive apenas na medida em que é apropriado singularmente e assim transformado pela participação dos indivíduos psíquicos que o compartilham. Mas só é compartilhado aquilo que é, a cada vez, individuado. E só é individuado na medida em que for singularizado. O grupo social se constitui como composição de uma sincronia, na medida em que se reconhece em uma herança comum, e de uma diacronia, na medida em que torna possível e legítima a apropriação singular por cada membro do grupo desse fundo pré-individual [16].

    As indústrias de programas tendem, ao contrário, a opor sincronia e diacronia, visando produzir uma hipersincronização que torna tendencialmente impossível a apropriação singular do fundo pré-individual constituído pelos programas. A grade desses programas substitui o que André Leroi-Gourhan denominou de programas socio-étnicos: ela é concebida para que o meu passado se torne igual ao passado dos meus vizinhos, e para que nossos comportamentos se gregarizem.

    Um eu é uma consciência consistindo em um fluxo temporal do que Husserl chamou de “retenções primárias”, isto é, aquilo que a consciência retém, no agora, do fluxo em que ela consiste. Assim a nota que ressoa em uma nota se apresenta à minha consciência como o ponto de passagem de uma melodia: a nota precedente continua presente, mantida no e pelo agora; e constitui a nota que a sucede, formando com ela uma relação, o intervalo. Como fenômenos que eu recebo e que eu produzo (uma melodia que executo ou ouço, uma frase que pronuncio ou escuto, um gesto que executo ou sofro etc.), minha vida consciente consiste essencialmente de tais retenções.

    Ora, essas últimas são seleções: não retenho tudo o que pode ser retido [17]. No fluxo daquilo que aparece, a consciência opera seleções que são propriamente as retenções: se eu ouço duas vezes em seguida a mesma melodia, minha consciência do objeto muda. E tais seleções se fazem através dos filtros em que consistem as retenções secundárias, isto é, as reminiscências de retenções primárias anteriores, que a memória conserva e que constituem a experiência.

    A vida da consciência consiste nesses agenciamentos de retenções primárias, filtradas por retenções secundárias, enquanto as relações das retenções primárias e secundárias são sobredeterminadas pelas retenções terciárias: os objetos-suportes da memória e as mnemotécnicas, que permitem registrar sinais – notadamente os fotogramas, fonogramas, cinematogramas, videogramas e tecnologias digitais, que formam a infra-estrutura tecnológica das sociedades de controle na época hiperindustrial.

    As retenções terciárias são o que, tal qual o alfabeto, sustentam o acesso aos fundos pré-individuais de toda individuação psíquica e coletiva. Existem em todas as sociedades humanas. Condicionam a individuação como partilha simbólica, que torna possível a exteriorização da experiência individual por meio de sinais. Quando se tornam industriais, as retenções terciárias constituem tecnologias de controle que alteram fundamentalmente a troca simbólica: repousando sobre a oposição entre produtores e consumidores, elas permitem a hipersincronização dos tempos das consciências.

    Estas tornam-se cada vez mais tramadas pelas mesmas retenções secundárias e tendem a selecionar cada vez mais as mesmas retenções primárias: percebem então que não têm muita coisa a dizer umas às outras e se encontram cada vez menos. Ei-las remetidas à sua solidão, diante das telas nas quais consagram cada vez menos seu tempo ao lazer – isto é, a um tempo liberado de qualquer coerção.

    Tamanha miséria simbólica conduz à ruína do narcisismo e à debandada econômica e política. Antes de ser uma patologia, o narcisismo condiciona a psique, o desejo e a singularidade [18]. Ora, se, com o marketing, não se trata mais apenas de garantir a reprodução do produtor, mas de controlar a fabricação, a reprodução, a diversificação e a segmentação das necessidades do consumidor, são então as energias existenciais que garantem o funcionamento do sistema, como frutos do desejo dos produtores, de um lado, e dos consumidores, do outro – o trabalho, como o consumo, representando a libido captada e canalizada. O trabalho em geral é sublimação e princípio de realidade. Mas o trabalho industrialmente dividido traz cada vez menos satisfação sublimatória e narcísica, e o consumidor cuja libido é captada encontra cada vez menos prazer em consumir: ele debanda, então, trespassado pela compulsão da repetição.

    Nas sociedades de modulação que são as sociedades de controle, trata-se de condicionar, por meio das tecnologias audiovisuais e digitais da aisthesis [19], os tempos de consciência e o inconsciente dos corpos e das mentes. Na era hiperindustrial, a estética – como dimensão do simbólico transformada a um só tempo em arma e teatro da guerra econômica – substitui a experiência sensível dos indivíduos psíquicos e sociais pelo condicionamento das hipermassas. A hipersincronização conduz à perda da individuação pela homogeneização dos passados individuais, arruinando o narcisismo primordial e o processo de individuação psíquica e coletiva, que permitia a distinção entre o eu e o nós, doravante confundidos na enfermidade simbólica de um amorfo e indefinido “alguém”. Nem todos são igualmente expostos ao controle. Vivemos quanto a isso uma fratura estética, como se o nós se dividisse em dois. Mas nós todos, e nossos filhos mais ainda, estamos fadados a esse sombrio destino – se nada for feito para sobrepujá-lo.

    O século 20 levou ao extremo as condições e a articulação da produção e do consumo, com as tecnologias do cálculo e da informação para o controle da produção e do investimento e com as tecnologias da comunicação para o controle do consumo e dos comportamentos sociais, incluídos os comportamentos políticos. Agora, essas duas esferas integraram-se. A grande ilusão não é mais, desta vez, a “sociedade do lazer”, mas a “personalização” das necessidades individuais. Félix Guattari [20] falava de produção de “dividuais”, isto é, de particularização das singularidades pela submissão às tecnologias cognitivas.

    Essas últimas permitem – por meio da identificação dos usuários (users profiling) e outros novos métodos de controle – um uso sutil do condicionamento, mobilizando tanto Pavlov quanto Freud. Assim funcionam os serviços que incitam os leitores de um livro a lerem outros livros lidos por outros leitores desse mesmo livro. Ou os mecanismos de busca que valorizam as referências mais consultadas, reforçando a consulta dessas mesmas referências.

    Doravante, as mesmas máquinas digitais pilotam, pelas mesmas normas e padrões, os processos de produção das máquinas programáveis das oficinas virtuais teleguiadas pelo controle remoto, posto que a robótica industrial transformou-se essencialmente em uma mnemotecnologia de produção. Postas a serviço do marketing, elas organizam também o consumo. Ao contrário do que pensava Benjamin, não se trata do desenvolvimento de um narcisismo de massa, mas, ao inverso, da destruição massiva do narcisismo individual e coletivo pela constituição das hipermassas. Em outras palavras, trata-se da liquidação da exceção, isto é, da gregarização generalizada, induzida pela eliminação do narcisismo primordial.

    Os objetos temporais industriais substituem as histórias individuais e os imaginários coletivos, tramados no interior do processo de individuação psíquica e coletiva, por padrões estandardizados de massa, que tendem a reduzir a singularidade das práticas individuais e suas características de exceções. Ora, a exceção é a regra, mas uma regra jamais formulável. Ela só é vivida na ocorrência de uma irregularidade. Não é formalizável nem calculável por um aparelho de descrição regular aplicável a todos os casos que constituem as diferentes ocorrências à revelia dessa regra. Por isso, durante muito tempo, ela foi remetida a Deus, que constituía o irregular absoluto como regra de incomparabilidade das singularidades. O marketing torna estas últimas comparáveis e categorizáveis, transformando-as em particularidades vazias, reguláveis pela captação ao mesmo tempo hipermassificada e hipersegmentada das energias libidinais.

    Trata-se de uma economia antilibidinal: só é desejável aquilo que é singular e sob esse aspecto excepcional. Só desejo o que me parece excepcional. Não há desejo da banalidade, mas uma compulsão de repetição que tende à banalidade.

    A psique é constituída por Eros e por Tanatos, duas tendências que se compõem incessantemente. A indústria cultural e o marketing visam impulsionar o desejo do consumo, mas, de fato, reforçam a pulsão de morte, por provocar e explorar o fenômeno compulsivo da repetição. Contrariam assim a pulsão de vida: quanto a isso, e porque o desejo é essencial ao consumo, esse processo é autodestruidor ou, como diria Jacques Derrida, auto-imunizador.

    Só posso desejar a singularidade de algo na medida em que esse algo é o espelho da singularidade que eu sou, mas que ainda ignoro, e que este algo me revela. Porém, na medida em que o capital precisa hipermassificar os comportamentos, precisa também hipermassificar os desejos e gregarizar os indivíduos. A partir daí, a exceção é aquilo que deve ser combatido – o que Nietzsche antecipara afirmando que a democracia industrial só podia engendrar uma sociedade-rebanho. Eis uma verdadeira aporia da economia política industrial. Pois o controle das telas de projeção do desejo de exceção induz a tendência dominante tanatológica, isto é, entrópica. Tanatos é a submissão da ordem à desordem. Tanatos tende à equalização de tudo: é a tendência à negação de qualquer exceção.

    O problema não se limita àquilo que se chama comumente “cultura”: a existência cotidiana, sob todos os seus aspectos, é submetida ao condicionamento hiperindustrial dos modos de vida. Trata-se do mais inquietante problema de ecologia industrial: as capacidades mentais, intelectuais, afetivas e estéticas da humanidade estão massivamente ameaçadas, e no momento mesmo em que os grupos humanos dispõem de meios de destruição sem precedentes.

    A debandada que a ruína da libido provoca é também política. Na medida em que os responsáveis políticos adotam técnicas de marketing para se transformarem, eles próprios, em produtos, os eleitores sentem o mesmo desgosto por eles que sentem por todos os demais produtos.

    Já é tempo de os cidadãos e seus representantes despertarem: a questão da singularidade tornou-se crucial e não haverá política futura que não seja uma política das singularidades – sem o que, florescerão os nacionalismos mais extremos e os fundamentalismos de toda espécie.



    [1] Gilles Deleuze (1925-1965), filósofo.

    [2] Pourparlers, Editions de Minuit, Paris, 2003.

    [3] cf. De la misère symbolique. 1. L’époque hyperindustrielle. Galilée, Paris, 2004.

    [4] Gilbert Simondon (1924-1989), filósofo.

    [5] Le Monde, 10 de abril de 2002. Cf. também Aimer, s’aimer, nous aimer. Du 11 septembre au 21 avril. Galilée, Paris, 2003.

    [6] Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1997.

    [7] Jean-Michel Frodon, La Projection nationale. Cinéma et nation. Paris, Odile Jacob, 1998.

    [8] Walter Benjamin (1892-1940), filósofo alemão.

    [9] Sigmund Freud, op. cit.

    [10] Thedor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), filósofos alemães, fundadores da escola de Frankfurt.

    [11] Karl Kraus (1874-1936), escritor austríaco e crítico dos meios de comunicação.

    [12] Tentei, em La technique et le temps. 1. Le temps du cinéma et la question du mal-être (Galilée, 2001, capítulo primeiro), demonstrar por que essa análise permanece insuficiente: os autores retomam favoravelmente o pensamento kantiano do esquematismo, sem se darem conta que as indústrias culturais requerem justamente a crítica do kantismo.

    [13] Vance Packard, La Persuasion clandestine. Paris, Calmann-Lévy, 1958.

    [14] Edmund Husserl (1859-1938), filósofo alemão, pai da fenomenologia.

    [15] Aimer, s’aimer…, op. Cit.

    [16] A sincronia designa aqui o estado da cultura em seu conjunto em um momento dado e a diacronia, as mudanças, os saltos, as evoluções que nela introduzem os indivíduos.

    [17] As retenções primárias formam relações. Em uma melodia, por exemplo, as notas em arpejo que compõem intervalos e acordes ou, em uma frase, os elos semânticos e sintáticos.

    [18] Esse termo se aplica “à descoberta do fato de que o eu, também ele, é investido de libido. Ele seria mesmo seu local de origem e, em certa medida, permaneceria o quartel general” (Freud, O mal-estar na civilização, op.cit.).

    [19] Vocábulo grego, do qual provém a palavra “estética”, que significa “faculdade de sentir”.

    [20] Félix Guattari (1930-1992), psicanalista, pioneiro da antipsiquiatria.

    Le Monde Diplomatique Brasil - Fev 08

    Os direitos do homem são mesmo universais?

    Levado ao resto do mundo pelas asas do imperialismo, este conceito ocidental não foi aceito por todos os povos. Seu efeito isolador é incompreendido nas culturas que privilegiam a integração com o mundo e buscam a não alienação do homem, justamente um dos objetivos inatingidos dos tais direitos impostos

    François Jullien

    Os direitos do homem são um dever universal. Ao menos é isso que o Ocidente tenta impor para todos os povos do mundo, independente de sua cultura. Exige que eles subscrevam seus preceitos, sem exceção ou brechas, e esquece que esse mesmo padrão foi forçado goela abaixo dos próprios europeus.

    A fabricação do “universal” foi excêntrica, para não dizer caótica. Nasceu a partir de projetos múltiplos, e até mesmo inconciliáveis, que culminaram na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. Objeto de intermináveis negociações e compromissos, o texto final é uma associação de fragmentos colhidos de diversos lados. Um termo aqui, uma frase acolá, artigos corrigidos, desmembrados e reescritos inúmeras vezes [1]. Pronta, a Declaração foi reconhecida e aprovada por seus próprios autores como uma obra “não terminada”. “Certamente o pior projeto é o que foi adotado” [2], declarou um deles.

    Com receio de aumentar as desavenças, todos os pontos de disputa foram ignorados. Redigido às pressas, o texto é revestido de uma abstração que o torna sagrado. Ele ostenta ainda uma aura mítica, ao reivindicar sua concepção “em presença e sob os auspícios do Ser supremo”, apesar de ter sido retirado inteiramente do cérebro dos constituintes. Arroga uma universalidade inicial, ao mesmo tempo em que mistura má-fé e entusiasmo. Se desconsiderarmos seu árduo processo de produção, impressiona pelo êxito histórico: foi legitimamente alçado ao estatuto de ideal e necessário, a ponto de influenciar as constituições francesas de 1793, 1795, 1848 e 1946 e a Declaração Universal adotada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948.

    Mas o fato de ter sido constantemente reescrito já mostra que sua suposta universalidade não está dada. Além disso, ao se imporem somente na época moderna, os direitos do homem tornaram-se produtos de uma dupla abstração ocidental: dos “direitos” e do “homem”. Dos “direitos” porque essa noção isola o sujeito, privilegiando o ângulo defensivo da reivindicação, que visa à emancipação e à não-alienação, consagradas como fonte da liberdade. Do “homem” porque o isola de todo contexto vital, do animal ao cósmico, e coloca as dimensões social e política como dependentes de uma construção posterior que garanta sua existência.

    É justamente nessa abstração que está a contradição da universalização dos direitos do homem: o isolamento, preço pago para erigir o “universal”, desfez a incorporação do humano em seu mundo e o distanciou da tão almejada não-alienação. Há uma clara oposição entre integração – seja pelo meio familiar, corporativo, ético ou cósmico – e emancipação. A família, por exemplo, que é o nível primário de inclusão, responsável pela mediação inicial entre indivíduo e sociedade, está ausente das declarações de 1789 e 1793. Só aparece em 1795 e de um modo surpreendente, lembrando as cinco relações confucianas: “ninguém é bom cidadão se não é bom filho, bom pai, bom irmão, bom amigo, bom esposo”. Na Declaração Universal de 1948, a referência a “todos os membros da família humana” continua tendo um estatuto vagamente metafórico e alusivo, mais retórico que explicativo. Até hoje, integração e emancipação foram inconciliáveis. Resta ao mundo decidir se isso continuará assim.

    Para compreender melhor, tentarei explicar por que o conceito de direitos do homem não encontra eco no pensamento oriental clássico. Na Índia, por exemplo, não há isolamento do “homem” em relação ao mundo, pois a aderência é tão grande que não se concebe uma ordem natural da qual o ser humano não faça parte. A integração é estabelecida até a partir dos animais, que para os indianos são dotados do poder de compreensão e de conhecimento e podem já ter sido homens antes de renascerem como bichos.

    A filosofia européia é naturalmente abalada por isso. Na Índia, o homem é tão pouco excepcional que sua vida e morte são vazias de qualquer significado, destinadas a se repetirem indefinidamente. Assim, não encontramos lá nenhum princípio de autonomia individual nem de auto-constituição política a partir das quais os direitos do homem devam ser declarados. Enquanto para o pensamento europeu a liberdade é a última palavra, para o Extremo-Oriente é a harmonia. E sob esse aspecto, a Índia se comunica efetivamente com a China através do budismo. Lá, é o Ocidente que produz uma escandalosa exceção ao introduzir a ruptura que isola o homem.

    Portanto, a despeito de sua pretensão universal, os direitos do homem não estão por toda a parte. Quando a perspectiva dominante é outra, os significados mudam. Sob a hegemonia da transcendência, que culmina na constituição de um outro mundo, os direitos são absorvidos em uma ordem cósmica ou teológica. Este é o caso do Islã. A Revelação e o Corão fixam uma lei que, por sua criação divina, atinge “o ponto final na regulamentação das relações humanas” [3]. O medo do Juízo Final, elemento primeiro da fé islâmica, reduz os direitos humanos à insignificância.

    Por outro lado, quando há uma cultura em que a imanência prevalece, os direitos não são capazes de se destacar do curso espontâneo das coisas e não emergem das relações de força. Este é exemplo da China. A expressão “direitos do homem” é traduzida para o chinês como Ren-quan. Ren é homem. Quan quer dizer “poder”, especialmente político (quan-li), ou “circunstância”, “expediente” (quan-bian, quan-mu), em contraposição à rigidez das regras (jing). Dessa forma, quan significa um não-bloqueio, uma evolução de acordo com a lógica do processo em curso. O fato de essas duas palavras se juntarem num mesmo termo para traduzir “direitos do homem” revela que seu sentido foi adaptado à visão de mundo chinesa, ao invés de ter sido utilizado com os parâmetros que o Ocidente pretendia impor.

    Claro que hoje esse “enxerto” estrangeiro está bem estabelecido na China moderna. Afinal, quando reivindicam os direitos do homem, os jovens chineses da Praça da Paz Celestial sabem que tipo de mensagem estão transmitindo para o Ocidente. Mas por que eles foram praticamente forçados a aprender esse significado e os ocidentais, por outro lado, não compreendem a visão dos orientais? Será que a reivindicação de uma universalidade dos direitos do homem vem do fato que o modo de vida do Ocidente, oriundo da ciência e do capitalismo, acabou se impondo no resto do mundo, e que agora é necessário – ou fatal – adotar a ideologia das relações humanas que vêm junto com essas transformações? E essa sua legitimidade, é decorrência do pensamento europeu ser uma expressão efetiva do progresso histórico e os direitos humanos, como seu produto, constituírem um ganho para a humanidade? O ponto de partida desses questionamentos já é uma acusação, ao menos tácita, de todas as outras culturas. Insustentável, esta visão é criticável por seu etnocentrismo mais obtuso. Afinal, o progresso do pensamento europeu só é julgado positivamente dentro do próprio quadro ideológico que o criou, o ocidental.

    Essas objeções são suficientes para mostrar que qualquer justificativa de uma universalidade dos direitos do homem não funciona. Em vez de amoldar o conceito, fazendo acomodações que tornem esses direitos transculturalmente aceitáveis, deveríamos tomar o partido inverso e confiar no seu efeito de conceito, que permite sua operacionalidade e radicalidade. Pois é somente a partir de sua abstração, de sua separação da cultura e do meio de origem que será possível comunicá-los a outros povos. Não é apenas porque o Ocidente promoveu os direitos do homem no momento em que chegava ao auge do poder que eles são hoje debatidos entre as nações, mas sim porque esse estatuto de abstração os torna intelectualmente manejáveis, comodamente identificáveis e transferíveis, fazendo deles um instrumento privilegiado para o diálogo. Não se poderia, por exemplo, ter a “harmonia” como um objeto de comparação, internacionalmente discutível entre as culturas [4].

    Por outro lado, sua radicalidade conceitual está em apropriar-se do humano no estágio mais elementar: enquanto nascido. Mas isto teria sido concebido apenas a propósito dos direitos do homem e dentro do quadro europeu? Acredito que não. Pensemos em um famoso ensinamento chinês: imagine alguém que, vendo de repente uma criança a ponto de cair num poço, é imediatamente tomado de pavor e faz um gesto para retê-la. Esse movimento lhe escapa, é completamente reativo. Não poderia deixar de fazê-lo, independente de ter relação privilegiada com os pais da criança, ver nisso um mérito, ou temer ser censurado se não o fizesse. Ora, segundo o filósofo chinês Mêncio, [5] “quem não tem tal consciência da piedade não é homem”. Ou seja, quem nessa situação não estendesse os braços “não é homem”. Em vez de partir de uma definição ideologicamente determinada e, por isso, particular, Mêncio faz surgir aquilo que em si tem vocação de universalidade por ser uma reação não controlada de “humanidade”. Esse braço que se estende é, evidentemente, sem que haja necessidade de interpretação nem mediação cultural, algo “intrínseco” ao sentido comum do humano. Em outras palavras, levar em conta a disparidade das culturas e a maneira como ela nos obriga a desencavar o impensado de nosso pensamento não significa renunciarmos à exigência do comum.

    A capacidade universalizante dos “direitos do homem” deve-se, ainda mais, a seu alcance negativo, do ponto de vista daquilo contra o que eles se erguem. Este é infinitamente mais amplo que sua extensão positiva, ou seja, ao que eles aderem. Afinal, sabemos agora que em seu conteúdo positivo, esses direitos são contestáveis – por seu mito do indivíduo, por sua construção da “felicidade” como fim último, por seu pressuposto de ensinar universalmente o significado da vida, exigindo que sua ética seja preferida a qualquer outra. Mas, em contrapartida, eles são um instrumento incomparável para dizer não e protestar, para opor-se ao inaceitável, marcar uma resistência. Os direitos do homem, indefinidamente mutáveis e transculturalmente sem limites, nomeiam precisamente aquilo “em nome de quê”. Ora, essa função negativa, insurrecional, prevalece sobre a dimensão positiva da noção e alcança a utilidade mais geral que a vocação do universal possui: a de reabrir uma brecha na totalidade satisfeita, reacendendo nela a aspiração. Nem todos os que invocam os direitos do homem aderem à ideologia ocidental – às vezes nem mesmo a conhecem –, mas encontram neles o último argumento, o instrumento incansavelmente retomado de mão em mão e disponível para toda causa por vir.

    Isso requer “deslocar” um pouco nossos termos usuais: melhor do que reivindicar uma universalidade arrogante dos direitos do homem – que nos condenaria a desconhecer o quanto eles são culturalmente marcados – e melhor do que renunciar, por despeito teórico, à arma insurrecional e de protesto que eles constituem e podem servir em todos os lugares de nosso planeta, mais vale abrir um desvio em nossas palavras e, vendo-os como universalizante, exprimir ao mesmo tempo duas coisas: primeiro, em vez de supor nos direitos do homem uma universalidade que eles teriam desde o início, o universalizante dá a entender que o universal se encontra em curso, em marcha, em processo que não está acabado; segundo, em vez de deixar-se conceber como uma propriedade ou qualidade passivamente possuída, o universalizante dá a entender que é fator, agente e promotor. É, nele mesmo, vetor do universal, e não por referência ou sob a dependência de alguma representação instituída externamente.

    O caráter universalizante dos direitos do homem, portanto, não é da ordem do saber (teórico), mas do operatório (ou prático): eles são invocados para agir, desde o princípio, em qualquer situação dada. Por outro lado, sua extensão não é a da verdade, mas do recurso. O que distingue o “universalizante” do “universalizável” é precisamente essa diferença de plano. O universalizável é o que pretende a qualidade de universal, enquanto enunciado de verdade. Assim ele depara inevitavelmente com o espinhoso problema de seu “poder ser”. Devendo justificar em nome de quê é legítima a extensão que ele se arroga, o “universalizável” corre sempre o perigo de ser tachado de uma pretensão abusiva, sob o risco de ser considerado fraudulento ou, pelo menos, litigioso. O “universalizante”, por sua vez, é imune a esse problema de legitimidade: sendo de onde emana o universal, por carência e de forma operatória, ele não se pretende nada, ele faz. Seu valor é medido pela força e a intensidade desse efeito.

    Podemos dizer que os direitos do homem são um “universalizante” forte e eficaz. A questão não é mais saber se eles são universalizáveis, isto é, se podem ser estendidos como enunciado de verdade a todas as culturas do mundo – e, nesse caso, a resposta é não. Mas é ter certeza que eles produzem um efeito de universal que serve de arma incondicional, instrumento negativo em nome do qual um combate a priori é justo e uma resistência é legítima.


    [1] Ver Les déclarations des droits de l’homme de 1789 [As declarações dos direitos do homem de 1789], textos reunidos e apresentados por Christine Fauré, Bibliothèque historique, Payot, 1988; e também Marcel Gauchet, La Révolution des droits de l’homme [A revolução dos direitos do homem], Gallimard, 1989.

    [2] Adrien Duquesnoy, deputado de Bar-le-Duc, citado por Christine Fauré, Les déclarations des droits de l’homme de 1789.

    [3] Sami A. Aldeeb Abu-Salieh, Les Musulmans face aux droits de l’homme [Os muçulmandos face os direitos do homem], Bochum, Dieter Winkler, 1994.

    [4] De fato, é esse argumento da “harmonia” que é sistematicamente invocado pelos dirigentes chineses para barrar a postulação ocidental dos direitos do homem, bem como a denúncia que os ocidentais fazem de sua violação na China. Como observa a imprensa chinesa nos últimos meses, os Jogos Olímpicos de Pequim, recusados uma primeira vez em nome dos direitos do homem, mas cedidos para 2008 sob a pressão dos interesses econômicos e de seu realismo político, fazem aumentar a intensidade desse conflito de valores.

    [5] Nome latino de Meng-Tsu (c. 372-289 a.C.).