Por Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 22 de julho de 2010.
Alberto Rangel, Rondon, Lauro Müller e Tasso Fragoso foram alguns dos ilustres colegas de Euclides da Cunha na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Alberto Rangel, por solicitação do “Grêmio Literário Euclides da Cunha”, realizou uma Conferência em homenagem ao aniversário do falecimento do seu grande amigo. Reproduziremos algumas partes desta homenagem que apresenta um pouco do muito que fez esse grande brasileiro pelo seu país e que, infelizmente, não tem, por parte da maioria dos brasileiros, o devido reconhecimento.
- Euclides da Cunha - Um Pouco do Coração e do Caráter
Por Augusto Rangel
Senhoras e Senhores: O tropeiro ou o simples viandante matuto costuma colocar uma pequena pedra qualquer ao sopé da cruz, encontrada à margem das nossas estradas ou veredas rurais e provincianas. Os piedosos semeiam calvários, concorrendo para a imortalidade de anônimos. É o preito humilde do que vai passando, na intenção do monumento que se não há de erguer...
Consagrando estes instantes à obra vindoura, com que se pretende significar a admiração do Brasil por Euclides da Cunha, colaboramos com a mesma ternura e veneração das almas, nos caminhos sertanejos, para o granito e o bronze que lhe devemos à memória.
Realmente, o terrível esquecimento nacional, que tem agruras despenhosas de ribanceira e sorvos repentinos de perau, se predispõe aos nossos olhos a engolir a lembrança do valoroso e emérito escritor. Não vimos dar um grito nesta tribuna, e à moda do fórum antigo acender a revindita, abraçado teatralmente à vítima... Todo impregnado ainda das impressões colhidas na fortuna de excelente convivência, o nosso intento é menos ostentativo das galas e deveres de patrono num pretório, do que o de evocar o amigo, quase que exclusivamente, nas feições do seu caráter raro e nos traços inegáveis da sua meiga e profunda afetividade. (...)
É o prisma do sofrimento o melhor decomponedor das almas. Torna-se o exame mais fácil e mais claro às refrações da dor. Cabem aqui, na verdade, as alusões inescusáveis à angústia do sacrificado, se é, com efeito, a homenagem ao homem moral que perpetraremos, interessados no desenho do coração cristalino, melindroso e probo e no apontamento das linhas tenacíssimas da sua alma de espartano.
Verificando-lhe os sentimentos, nos períodos da correspondência, privada e em lembranças reais da sua vida ativa, havemos de procurar fixar um pouco de luz nos desvãos da sombra injuriosa e maldita. Preferiram-se tais reflexões e sondagens ao esforço de recordar Euclides nos aspectos da sua estupenda produção intelectual. A outros as conjugações da crítica, nos labirintos da estética literária, a debulharem e esgaravatarem as grandezas e nonadas da arte, do pensamento e do estilo, as profanações daqueles para quem a originalidade é possessão diabólica e o ‘regionalismo’ sério motivo de prevenção e de escarmento... (...)
Os admiradores da pena que traçou o “À margem da História” prosternem-se ante os segredos do íntimo e do puro. Foi ele mesmo que escreveu estas palavras brandas e confitentes, entremostrando na forma impiedosa do porfiador sem recuos, o ser de nobre inteligência e de límpida bondade que nele se abrigava: “Minutos existem mesmo em que o abomino e chego a ter-lhe ódio - esses sentimentos porém - como felizmente todos os sentimentos maus em mim (que são inúmeros porém efêmeros) desaparecem facilmente”. O seu talento foi muito e o coração demais. (...)
A 20 de setembro de 1908, Euclides da Cunha expressa-se desta forma: “De mim nada tenho que dizer. Há uma pasmaceira trágica neste país que esperneia galvanizado na praia Vermelha e morre à fome nos sertões. De sorte que vivo mais ai do que aqui - fugindo, através dos livros, para o seio de outras gentes”.
Continua a maré do nojo enchendo-lhe o coração de desdéns. Exila-se na leitura, rompe pelo matagal do pensamento humano a pobre criatura, devorada por um desgosto pungente, que se mascara. Que o sofrimento secreto se abafe no percuciar das páginas sorvidas e decifradas. Adormecer-lhe-ia o mal, ao emoliente das ideias exprimidas pelos cérebros alheios. Por essa época, deveriam ter-lhe jorrado da pena as estrofes do Paraíso dos medíocres... (...)
Eis o que mais adiante Euclides escrevia, disfarçando nos protestos contra a sujeição às mediocridades lerdas de uma secretaria, as lutas morais que então o deviam absorver: “Continuo a desenhar mapas antigos... Até quando? Às vezes penso que foi uma fatalidade o ter caído, como um satélite, na órbita maravilhosa de um Imortal. Submeto-me. Mas ainda não sei se romperei a curva fechada dessa gravitação”. Não o satisfaz o emprego seguro do Estado. O pão quotidiano, assegurado por um grande ministro, sabe-lhe à ração de calceta. (...)
Em 1905 escrevia-nos ele de Manaus, às dez e meia da noite de 20 de março: “A nossa partida está próxima. Chegaram ontem as instruções - e desde que se realize a reunião dos comissários iremos rumo feito para o desconhecido. A minha frota: duas lanchas (uma ainda problemática), um batelão e seis canoas - flutua triunfalmente no extremo do igarapé de São Raimundo -, e teve ontem o batismo de uma tempestade. Nunca imaginei que este rio morto escondesse, traiçoeiramente, ondas tão desabridas. Uma rajada viva de sudoeste imprime-lhe as crispações ensofregadas de um mar - e que mar! Um mar entre barrancos em que as vagas desencadeadas se desatam em corredeiras impetuosas de torrentes... Felizmente resistiram galhardamente os meus navios. É que dentro deles está a 'fortuna de César'. Realmente, creio tanto no meu destino de bandeirante que levo esta carta de prego para o desconhecido com o coração ligeiro. Tenho a crença largamente metafísica de que a nossa vida é sempre garantida por um ideal, uma aspiração superior a realizar-se. E eu tenho tanto que escrever ainda...” São palavras ardentes, mas de outro tom, pois que, embebidas de esperança, cantam vitória, fumegam e roncam nas linhas de batalha.
Euclides da Cunha enviou-as quando se aprestava a inquirir com os delegados da Bolívia sobre a fonte do Purus, e, por ordem do barão do Rio Branco, ia prendê-la no elipsóide terrestre às coordenadas necessárias. A missão que reclamava a arte do geodesista, e as resistências de um vaqueiro nortista, exigia saber e coragem aliados à perseverança de um antigo capitão de bandeira. Nada mais próprio do alvo e mortificações com que costumava sonhar a sua alma: entrar pelo sertão adentro e cravar os olhos no céu medindo os âmbitos escancarados do firmamento e do sertão. (...)
Aos 22 anos, Euclides lançava, em caderno escolar, o programa de itinerário futuro pelo meio das dissensões de sua alma com o Universo, com esta observação digna do frontão de um templo: “A marcha de um homem verdadeiramente bom é feita através de reações contínuas”. (...)
O homem é tanto mais forte, quanto mais só; o conceito ibseniano perde a névoa de contradição, ligando-se-o ao feitio sobranceiro e incomutável de Euclides. Não se lhe conheceram preferências de qualidade suspeita, não se deixou cegar pelo dinheiro, não cheirava a Influência, nem se genuflexava ante o Poder. A independência agiganta - é a tradução verdadeira daquele apótema do norueguês. E seria por isso que, quem via pela primeira vez a pessoa do escritor, se desconcertava, esperando infalivelmente uma estatura maior.
O físico de Euclides da Cunha tinha a vulgaridade mamaluca da nossa humilde e boa caipiragem. Porque não praticava nenhuma lei de Brummel, mas lhe aparecia a insignificância do caboclo magrizela de fonte escampa e arcadas zigomáticas saltadas, onde os olhos brilhavam com reverberos de incêndio à beira-d’água e à noite. (...)
“Misto de celta, de tapuio e grego”, disse ele, retratando-se num decassílabo. Foi mais longe. Definiu-se, reconhecendo a miscelânea da própria combinação étnica com as raças da transmigração e da autoctonia e ainda mais a dos helenos, na componente ideal que lhe exprimisse a devoradora e saborosa tortura de beleza e de perfeição...
Em São José do Rio Pardo, no casebre ao lado de um dos pegões da ponte de ferro, construída sob seus olhos, Euclides escreveu muitas páginas de Os sertões. Era ermo o lugar e a habitação modestíssima, uma guarita de cantoneiro, um taperi de caçador goiano. No interior, nem o divã do sibarita, nem as excitações de alcaloides raros, nem os cômodos uma boa lâmpada; antes o grabato do anacoreta, o pote com a água do riachão e a vela na garrafa do estudante pobre.
Devia lavrar a desordem na cabana do engenheiro. Em tais indivíduos o método cifra-se num puro exercício mental, deixada a execução do arranjo e conformidade às mãos previdentes das senhoras donas de casa. Os esquadros e compassos perder-se-iam na confusão dos papéis quadriculados e das tiras estilizadas do seu futuro livro. Nas cotas dos perfis entremear-se-ia a frase estuosa do repente feliz. No cálculo do momento de flexão da grandeza do empuxo relampejaria a decisão flagrante do verbo, o resumo fiel do qualificativo, a censura harmônica da conjunção.
Euclides da Cunha tinha na verdade o culto da linguagem e não a idiota paixão do vocábulo, em que se sacrifica a raridade à impropriedade, na tessitura de preciosismos fáceis. O joalheiro ama a joia para dar-lhe destino e não como o avaro, pelo fulgor seco e o estúpido valor dos fogos diamantinos. O artista adora a palavra para os fins da expressão. Não ser ela de uso corrente pode ser defeito; menos se calhar à ideia o termo sonoro e estranho que for preciso, que for belo e que for lúcido. Tudo está na escolha e cabimento. É maneira de remoçar ideias e despertar a atenção em torno delas, vesti-las bem e com certo rebuscamento. Nem todos o poderão fazer... A pobreza de um léxico é melhor, contudo, que a pilhagem irracional dos glossários. Insuportável, porém, a pretensão de legisladores e policiais, na república das letras, de impor uma tara à carregação verbal do escritor. Para o pregoeiro da hasta pública toda mesa é sólida, todo piano harmonioso. A crítica nacional tem obtido êxitos antinefelibáticos, aconselhando adjetivos de leiloeiro e podando nos canteiros de estreantes as flores raras da estufa glótica. Tem sido um serviço sensato o dos guardas do cordão gramatical, plasmando a mania contagiosa dos cavadores de dicionário, que sendo afinal de contas um instrumento de utilidade pública e de uso diretamente proporcional à ignorância de cada um, servirá um dia para alguma cousa. Ousadia foi que esses puritanos e contrativos do Verbo se alertassem na ronda à pena dos “Contrastes e confrontos”. (...)
A realidade na obra de Euclides da Cunha acusa o impressivo das visões alucinatórias. O homem parece sonhar acordado. É um parente de Dickens, um sectário de Carlyle, um cultor de Ezequiel. A sua imaginação lancinante e explosiva tinha no entanto o dom de adivinhar. Combinando-se, ele e alguns amigos, para a descrição do estouro das boiadas, apresentou-se Euclides, que era o único, dentre todos, que nunca tinha visto semelhante espetáculo, com a sua lauda cheia. Fizeram-no ler em primeiro lugar. Conheceis o trecho. Está incluso em Os sertões. São linhas inesquecíveis, e honrariam a melhor das antologias. Os concorrentes escutaram o arranco detonante da tropeada, o desconchavo elétrico do rebanho, a manada louca escarvando e atroando na dispersão convulsa pelos tabuleiros, lombas e baixadas... Não se leu mais cousa alguma. Incompletas e pálidas pareceram as impressões que cada um trazia. Aquele, que idealizara, vira melhor que os outros... (...)
Espalhou-se, em recurso de rabularia, que Euclides, cujo coração lia pela cartilha de Terêncio e cujo apego à família recebia os reflexos da vibração permanente do campeiro aferrado a seus pagos, deixava morrer na cinza da indiferença as brasas do seu lar, que o cerebral intensivo, absorto na meditação e no esmero da frase cinzelada, esquecia os deveres de carinho esponsal. Em protesto violento e comprovado, leiamos estas palavras do escritor e as quais se repassam da delicada preocupação do chefe de família, presto nos afagos, através da distância e indo a ponto de designar-lhes ao transporte o intermediário fraterno: “Um favor, mas favor sacratíssimo de irmão: na rua do Cosme Velho, 91 (atual rua Francisco Otaviano), Laranjeiras, moram as minhas quatro enormes Saudades - a minha mulher e os meus três pequenos. Peço-te que os procures e que lhes dês noticias minhas”. Essa ordem fiaria da meiguice de um Barba Azul. “As minhas quatro enormes Saudades.” Como é singelo e diz tanto! Shakespeare não trepidaria em pôr essa frase na boca de uma personagem de amor. “As minhas quatro enormes Saudades”! Euclides transfundia os objetos no sentimento, por uma operação maravilhosa de que seria somente capaz a ternura imensa desse delicado e ultrassensível, compondo o evangelho das adorações para seu uso...
Certa vez, Euclides da Cunha comandava uma trincheira na luta furiosa de setembro de 1893. A fraqueza de uns, o desfibramento completo de outros, imprensados na resolução e desespero mútuo de alguns, faziam fervilhar dos arrabaldes às linhas de defesa no litoral boatos de sublevação geral, qualquer cousa cósmica em que se subvertesse a legalidade, sob as colunas de sua própria cúpula. Na baixa atmosférica do pânico havia enregelados. O medo criava inventores de escapadas, Ciranos de escorrego, heróis invertidos da retaguarda, sonhadores de projetos homéricos de fuga, serra-filas da indenidade, na legião da covardia e do comprometimento. A cidade, vindo a noite, soprava as luzes da beira-mar. Não queria ser vista, tremendo e armada até os dentes! O susto, em que todos se espojavam, despertou em Euclides o sentimento da responsabilidade. Ergueu-se no agacho geral, e por mais ingênuo que nos pareça o seu ato, revela as energias da consciência desdobrada no sentido contrário às ignávias da massa. Sacou do bolso da farda um maço de cartões com o nome dele e o espalhou por sobre os materiais do posto de combate. Semeava o soldado impávido o compromisso de solidariedade aos rumores do terror, aos abalos truculentos num receio coletivo. Era essa a fibra do autor dos Sertões, o seu privilégio adamantino; nem a mentira, nem o medo eram de molde a assombrá-lo. A sua timidez, que seria a atenção da defesa na sociabilidade obrigada dos pataratas e dos servis, dos alarves e dos tratantes, perdia as faixas do mimetismo volitivo. O cavaleiro toava um olifante, saindo a campo raso... Estaria fora de seu tempo o Quixote da própria dignidade e reputação melindrosíssimas. (...)
Se encontrássemos Euclides da Cunha nessa manhã do desastre, vê-lo-iamos assim, descarnado e todo ânsia... Levaria o coração sangrando e bem alto, no esforço de o furtar às crueldades das contaminações morais e disgregativas que o ofendiam...
Frequentava o insigne homem de letras, em Manaus, uma casinhola, que sobranceava o mar de frondes e o algodoal de névoas matutinais de sua molduragem. Em longas horas de vigília, ele escutava o gemer do vento a que seus sentimentos de ausente emprestavam o lancinante dos soluços das Oréadas. Às vezes, a lua comparecia à presença do assombrado, que dizia versos à celicola. Fébe ouvia com encantada doçura o arpejar de Orfeu. Debruçava-se depois Euclides nas suas notas miúdas, lançadas ora numa página, ora noutra de grande livro em branco. Preocupava-se também em mandar aos amigos notícias, carícias e gritos de espanto, no vestíbulo da natureza nova, cujo vigor, mistério e contradições o espasmavam.
Para não contar absurdos e apenas diminuir os rigores da tristura ingênita, ele ia tocando a rebate as rimas, para enfileirar as estrofes na esplanada dos postais. Depois destacava pelo Correio, uma a uma, as patrulhas sentimentais e de pés certos. A poesia embalara-lhe sempre os pensamentos. Poemas da mocidade musicaram-se-lhe nas primeiras ideias. Depois alterou e repartiu os ritmos e sonoridades, variou a métrica e foram ainda epopeias o que nos legou a sua arte. (...)
Por esse tempo notava-se que Euclides pouco dormia. A mariposa decorava Heine. O noitibó relia Michelet. Sentava-se a escrever, pedindo ao café e ao tabaco os venenos das essências excitantes. Uma a uma as horas levantavam a antífona do Silêncio e da noite, dando o tom ao coro das pererecas e dos grilos. Que passaria pela cabeça de Euclides alagada nos clarões da insônia? Nunca a cena que o prostrou na Imortalidade e no pó de estrada suburbana, fuzilado e acertado por quatro balas. (...)
No túmulo de Euclides da Cunha dever-se-á mandar esculpir a flor da passiflora, traspassada da mata para o ornato e o proveito de nossos vergéis e a qual tem no cálice roxo ou vermelho os símbolos do mais celebrizado dos sofrimentos humanos. Caber-lhe-ia a frase semelhante à do jazigo da criança: “Assim eras tu...” sob a corola de mágoa e glória da Paixão: uma flor de martírio, com os seus espinhos e os seus cravos cobertos de um pólen fecundante em poemas!
Fonte: Alberto Rangel - Rumos e Perspectivas (1934)
Coronel de Engenharia Hiram Reis e SilvaProfessor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)Colaborador Emérito da Liga de Defesa NacionalSite: http://www.amazoniaenossaselva.com.br