Site do Azenha - 13/08/08 - Atualizado e Publicado em 13 de agosto de 2008 às 19:55
CARTA CAPITAL, edição 87, de 25 de novembro de 1998
POR BOB FERNANDES
- O negócio tá na nossa mão, sabe por que Beto? Se controla o dinheiro, o consórcio. Se faz aqui esses consórcios borocoxôs, são todos feitos aqui. O Pio (Borges, vice-presidente do BNDES) levanta e depois dá a rasteira. (Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações, em conversa com o irmão José Roberto, secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior.)
- Temos que fazer os italianos na marra, que estão com o Opportunity. Combina uma reunião para fechar o esquema. Eu vou praí às 6h30 e às 7 horas a gente faz a reunião. Fala pro Pio que vamos fechar (os consórcios) daquele jeito que só nós sabemos fazer. (Luiz Carlos Mendonça de Barros para André Lara Resende, presidente do BNDES, sobre a intenção de operar em favor do consórcio integrado pelo banco de investimentos Opportunity e a Telecom-Itália.)
- Vai lá e negocia, joga o preço para baixo. Depois, na hora, se precisar, a gente sobe e ultrapassa o limite. (André Lara Resende para Pérsio Arida, sócio do Opportunity.)
A revista CartaCapital ouviu fitas gravadas na presidência do BNDES. A revista Veja conta ter tido acesso às duas fitas que o governo enviou para a Polícia Federal. São muitas as fitas. Fala-se em 27, mas certeza só tem quem participou dos grampos. As fitas ouvidas por CartaCapital têm trechos – os explosivos fragmentos acima – que, pelo relato de Veja, não constam das fitas repassadas pelo governo à Polícia Federal.
É certo que são fitas editadas, como tem repetido o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, mas é certo também que os diálogos ouvidos por CartaCapital existem e, claramente, não são uma montagem. Têm uma seqüência – sem espaços – e uma lógica que indicam extrema dificuldade para uma edição de diálogos.
Filhos corretores. Das fitas que se conhece, as gravações mais importantes foram feitas entre 21 de julho e 12 de agosto últimos, mas os grampos na sala da presidência do BNDES (os diálogos em celulares são capturados) foram instalados no início deste ano.
O alvo principal era o ministro Mendonça de Barros, então presidente do BNDES. Seus adversários buscavam, com os grampos, conversas entre Mendonça e seus filhos, Marcello e Daniel. Nas fitas por ora na praça não há registros de tais conversas.
Os filhos do então presidente do BNDES tornaram-se sócios-proprietários de uma corretora na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F). A Link Corretora de Mercadorias Limitada, registrada na Junta Comercial em 2 de fevereiro, quatro meses depois, em junho, já era a terceira operadora no ranking de volumes de operações no mercado de Índice Bovespa futuro.
Cerca de 40% desse índice, então, era composto pelas ações da Telebrás. Empresa sob comando do ministro. E que seria privatizada em operação de R$ 22 bilhões pilotada por Mendonça de Barros, o pai.
Pérsio e os italianos. O leilão de privatização do Sistema Telebrás deu-se no dia 29 de julho. O central e incisivo numa seqüência de mais de 30 conversas grampeadas é a tentativa de favorecer um consórcio que uniria o banco de investimentos Opportunity e a Telecom-Itália.
"Os italianos", como diz o ministro Mendonça de Barros inúmeras vezes ao longo dos diálogos. Favorecer "os italianos" em detrimento do consórcio Telemar, formado pelo Grupo La Fonte (do empresário Carlos Jereissati), a Andrade Gutierrez, a Brasil Veículos, Macal e Aliança do Brasil. O Fundo de Previdência do Banco do Brasil, a Previ, é peça decisiva nas negociações e nos telefonemas.
Mendonça de Barros, o presidente do BNDES, André Lara Resende, Pio Borges, vice-presidente do BNDES, e Pérsio Arida, sócio do Opportunity, combinam como pressionar a Previ para que feche com "os italianos" e o Opportunity.
Enfim, a explosão. Nos telefonemas, o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, chamado de "a bomba atômica", é instado a pedir à Previ que feche com o Opportunity. O mesmo se dá com o diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira.
As conversas e a montagem de pressões chegam ao auge quando Mendonça de Barros sugere:
—— Temos que falar com o presidente.
E André Lara Resende responde:
—— Isso seria usar a bomba atômica.
André Lara Resende usa a bomba atômica. Em telefonema, pede ao presidente Fernando Henrique Cardoso:
—— Precisamos convencer a Previ.
Na conversa com o presidente (que também não consta na reprodução das duas fitas em posse do governo), Lara Resende não cita o interesse dos "italianos" que freqüentam seus diálogos com Mendonça de Barros. Ao presidente da República, repassa outra informação:
—— Os portugueses (Telecom Portugal) estão interessados...
No mesmo telefonema para Fernando Henrique, o presidente do BNDES tece considerações sobre a "necessidade de um operador estrangeiro" etrata como "aventureiros" os integrantes do Telemar, que não disporiam de "capacitação técnica".
Ao final do telefonema, o presidente diz que vai falar com a Previ. Não se sabe se falou ou não. A Previ ajudou alguns dos seus sócios no consórcio Telemar a bancar o pagamento da compra da Tele Norte Leste. Já o Opportunity ficou com os italianos na Tele Centro Sul.
Questões semânticas. Outro trecho que parece ausente nas fitas do governo – ao menos de acordo com o relato de Veja –, é a referência ao ministro da Fazenda, Pedro Malan, e ao secretário executivo Pedro Parente. Conversam Mendonça de Barros e Lara Resende. O ministro das Comunicações refere-se aos companheiros de governo Malan e Parente como "babacas".
O ministro Mendonça de Barros, em suas versões orais editadas para a imprensa, tem relatado apenas o carinhoso diminutivo "babaquinha", e dedicando-o apenas a Parente. O ministro Malan e Parente seriam "babacas" por terem aceitado argumentos do consórcio Telemar e, quiçá (aqui trata-se de uma ilação não obtida em fitas), por divergirem do conjunto da obra. A propósito de divergências, há outras entre o que ouviu CartaCapital e o que se divulgou das fitas do governo.
Mendonça de Barros, nas fitas, chama integrantes do consórcio Telemar de "ratada", e não "rataiada", conforme relatos oficiais do próprio reproduzidos pela imprensa. As já anunciadas investigações do procurador-geral da República, dr. Geraldo Brindeiro, por certo esclarecerão essa pinimba semântica quanto a roedores.
Algumas contradições. Mendonça de Barros, que iria ao Senado prestar esclarecimentos na quinta-feira, 19, nesta segunda quinzena de novembro tem repetido, em conversas, os argumentos da incapacidade técnica da "Telegangue", da "ratada " – ou, "rataiada". Informa, ainda, que gestões suas, suprimidas nas fitas gravadas, foram feitas também em favor da formação do consórcio Telemar. Restam, então, duas questões.
Por que o ministro, ou quem de direito, não se valeu das regras do processo de privatização para desqualificar uma empresa que não tinha "capacidade técnica"? Por que, uma vez que se tratava de uma "Telegangue", a empresa, mais uma vez, não foi afastada do processo?
A intervenção deu-se apenas no instante em que o Telemar comprou a Tele Norte Leste, com suas 16 operadoras de telefonia fixa na faixa entre Rio de Janeiro e Amazonas.
Na hora da liquidação da compra, o BNDES interveio e arrebanhou para si 25% das ações do Telemar, alegando tratar-se de um consórcio "chapa-branca", devido às seguradoras terem capital estatal. Mais uma vez, pergunta-se: por que o consórcio não foi desqualificado a tempo?
A peça-chave. Vale lembrar. O Tribunal de Contas da União determinou inspeção no BNDES para apurar a legalidade e a regularidade dos atos dos dirigentes da entidade nessa operação. Se o consórcio é "chapa-branca", a ação do BNDES o tornaria ainda mais chapa-branca. Não fosse, é claro, a intenção do ministro em fazer a Telecom-Itália entrar no jogo.
Peça-chave em todas as negociações, e nos diálogos grampeados, é a Previ. Recordemos, então, outra porção do processo de privatização, a da Vale do Rio Doce. À época, a Previ, que parecia compor-se com o grupo capitaneado por Antônio Ermírio de Moraes, à última hora bandeou-se para a nau pilotada por Benjamin Steinbruch.
O mesmo Opportunity integrou também o consórcio vencedor na privatização da Vale. Mais: o mesmo banco Oppportunity, do mesmo Pérsio Arida, ex-presidente do Banco Central no atual governo, tem assento no conselho de administração da Vale. Segundo palavras do próprio ministro Mendonça de Barros, quando do leilão da Vale, o mesmo grupo de senhores "estimulou a competitividade".
O bem da Pátria. Revela o ministro que, então, procurou a Previ – que negociava com Ermírio – e pediu que o fundo entrasse no consórcio da CSN. Tudo em nome da competitividade e, é claro, pelo bem da Pátria.
Naqueles dias, em entrevista à Veja, Antônio Ermírio bateu duro na operação e cutucou o presidente Fernando Henrique. No domingo, 21 de setembro de 1997, a caminho de Fortaleza, vindo de Sobral, o ex-ministro da Fazenda, Ciro Gomes, disse a CartaCapital:
—— O Antônio Ermírio é inteligente. Viu que querem engoli-lo, e berrou a tempo. Agora, pode dizer ao presidente que não é bem aquilo o que ele disse, mas não vão mais atropelá-lo.
Ermírio não mais foi atropelado. Nos leilões de privatização do setor elétrico no Rio Grande do Sul e São Paulo, a Previ estava ao lado do Grupo Votorantim.
No caso do Telemar, em que pesem as pressões de integrantes do governo para que a Previ jogasse preferencialmente com "os italianos" e o Oppportunity, é preciso recordar que o Fundo do Banco do Brasil – que terminaria integrando o Telemar – tem antigas e extensas relações de negócios com o Grupo La Fonte, de Carlos Jereissati.
E o que diz a lei? Nas fitas, o sócio do Opportunity, Pérsio Arida, não apenas surge em conversas com André Lara Resende, como é anunciada sua presença durante um diálogo. Mendonça de Barros, enquanto negocia com Jair Bilachi, presidente da Previ, para que o fundo se una ao Opportunity informa:
—— Estamos aqui eu, André, Pérsio e Pio...
Ainda nas fitas, ao comentar os mandados de segurança contra o leilão, Mendonça de Barros, em conversa com Lara Resende, cita o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, a quem se refere como "aquele pavão". A propósito de juristas, talvez seja útil recordar alguns artigos da Constituição, da Lei de Improbidade Administrativa e da Lei de Licitações.
Diz o artigo 37 da Constituição que a administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, Estados, do DF e dos municípios, obedecerá:
...aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade... Desses, dois são fundamentais. A impessoalidade e a moralidade.
A Lei de Improbidade Administrativa, a de nº 8.429, de 2 de junho de 1992, trata de atos de improbidade que causem lesão ao Erário nos termos do artigo 100, inciso 80: Constitui improbidade administrativa frustrar a licitude do processo licitatório. Penas: perda da função pública, suspensão de direitos políticos de 5 a 8 anos...
Já a profética Lei de Licitações, a nº 8.666, de 1993, no artigo 90, diz: Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto de licitação. Penas: detenção de 2 a 4 anos. E multa.
O artigo 94 da mesma lei, proíbe: Devassar o sigilo da proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiros o ensejo de devassá-lo. Penas: detenção de 2 a 3 anos. E multa.
É importante observar: em nota distribuída na segunda-feira, 16, o Ministério das Comunicações admitiu conhecer o valor da proposta do consórcio liderado pelo Opportunity no leilão da Tele Norte Leste. Está dito na nota que a oferta do Opportunity era superior à do Telemar em R$ 1 bilhão. O lance do Telemar foi de R$ 3,43 bilhões.
Improbidade administrativa. A informação, percebida em seu teor, mas não em seu valor nas conversas grampeadas, e reafirmada na nota oficial, surpreende. O lance do Opportunity, ainda lacrado, foi destruído no pregão da bolsa de valores.
Recordemos, por fim, o artigo 11, inciso 30 da Lei de Improbidade Administrativa: Revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo. Penas: suspensão de direitos políticos de 3 a 5 anos e multa de até 100 vezes o valor da própria remuneração.
Por fim, a Constituição, no artigo 50, inciso 73, reza: Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo à moralidade administrativa.
A divulgação da fitalhada, segue duas lógicas. Numa matriz, a de quem grampeou os telefones, ou recebeu o produto dos grampos. A lógica destes é pressionar – chantagear, sustentam o governo e os seus – o governo, ou setores do governo. A lógica na outra matriz é a do governo, no roteiro da divulgação.
Conteúdo minado. No primeiro final de semana de novembro, a fitalhada, junto com o papelório que teria vindo das Ilhas Cayman, surge nas páginas embrulhada como mera chantagem. Pari passu com a armação caymanesca. Em um salto extraordinário, uma semana depois, a fitalhada ganha contornos, e conteúdo, de escândalo para, em seguida, ir tendo seu conteúdo minado.
No intervalo, na quinta-feira, 12, em ação incomum até para quem conhece Brasília a fundo, o ministro das Comunicações faz sua edição primeira, oral e antecipada, das fitas. Dá detalhes, minúcias e explicações sobre o quê? Sobre algo que nem sequer se conhecia e que, depois, por ele mesmo seria renegado como um conjunto de montagens.
Tudo não teria passado de um enredo de conversas patrióticas, de homens públicos interessados em estimular a competitividade e elevar a Pátria. Apesar da oposição, aqui e ali, dos babacas – ou babaquinhas –, da ratada – ou rataiada – e de um conjunto de comunistas que, à frente, tinha um ou outro pavão.
Nem o ministro nem os envolvidos imaginam ter atropelado em qualquer momento algum item de um conjunto que resulta em algo conhecido como Estado de Direito. Grampos telefônicos, ninguém desconhece, ferem também o tal Estado.
Versões estranhas. Se, ao se ouvir as fitas, ou mesmo o que vem dizendo o ministro, alguém manifestar dúvidas sobre onde começa o BNDES e onde termina o Opportunity, assim como o vice-versa, a resposta estará pronta:
—— Trata-se de uma chantagem, propiciada por grampos, e tudo não passa de uma montagem.
Quanto à chantagem, imagina-se que os chantageados sabem o que estão dizendo. Grampos, escuta ilegal, segundo o tal Estado de Direito, dá cadeia. Uma vez que o presidente da República recebeu a fitalhada em mãos, estranha-se que só após o vazamento, quase um mês depois, tenham sido acionadas a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República.
Da mesma forma, estranhas são as versões do governo. Primeiro, a captura das fitas teria sido obra dos espiões da agência de inteligência, a Abin. Depois, elas teriam chegado às mãos do general Cardoso após terem sido encontradas debaixo de um viaduto. Há aí um ruído.
Como, admitiu o próprio Lara Resende em conversa com o ex-deputado Aloísio Mercadante, o presidente havia recebido as denúncias, fica sem se saber quem foi até o viaduto: o general Cardoso, um dos seus agentes, ou o próprio presidente?
André admite. Por fim, a montagem. Nesse quesito, dá-se outro bololô. Ora o conteúdo das fitas é admitido. Lara Resende, por exemplo, ao receber o relato de Mercadante, confirmou a veracidade dos diálogos expostos. O ministro Mendonça de Barros, na suas edições-orais-oficiais republicadas pela imprensa, em um momento dedica-se a explicar o teor de fitas que não têm valor e, noutro instante, empenha-se em desqualificar as fitas.
As fitas existem. Os diálogos existem. As fitas ainda são muitas e, com o passar do tempo, mais ainda deverão surgir. Sempre que surgirem, anote, primeiro se discutirá a forma, o grampo (criminoso, ilegal, dá cadeia, como todos já sabem), não apenas por ser isso inescapável, mas de forma que a discussão da forma empane, se possível, o conteúdo.
Da junção da fitalhada com o obscuro papelório das Ilhas Cayman, é possível observar algo. O papelório, sem origem oficialmente conhecida e, ao menos até agora, sem confirmação de absolutamente nada decisivo, informa haver uma conta bancária no Exterior em nome do presidente da República, do governador Mário Covas, do ministro José Serra e do finado ministro Serjão Motta.
Digitais comprometedoras. O que parece pouco crível (uma vez que, posta de lado a discussão, importante, sobre o caráter dos envolvidos, uma operação do gênero exigiria enorme ingenuidade), torna-se ainda mais estranho quando se sabe o nome de alguns dos personagens da história.
Nela, percebem-se as digitais de Fernando Collor, Paulo Maluf, Lafaiete Coutinho, Gilberto Miranda, Cleto Falcão, etc., etc., etc... Ao que parece, seriam 40 ao todo. Não se sabe se a reunião decisiva deu-se no Brasil ou na Flórida. Nem se foi realizada em uma caverna.
Porque, ainda que diante da precariedade do até agora conhecido no papelório, dúvidas surjam quando Fernando Collor, com seu rútilo olhar, murmura: "Quero ver se ele (o presidente Fernando Henrique) vai manter toda essa indignação daqui a três meses". Por que o frisson quando um dos 40 alerta que o papelório sustentaria "seis homeopáticos meses de campanha"?
O que não existe como comprovado – ao contrário da física evidência das fitas –, sobrevive. Talvez, para buscar uma explicação, seja útil ressuscitar o conceito das duas éticas sempre exposto pelo professor Fernando Henrique Cardoso.
Relendo Weber. O conceito, segundo os que são do ramo, seria uma cardosiana releitura de escritos do sociólogo alemão Max Weber. Uma das éticas, expôs o professor, valeria para a política e seus interesses. A outra, valeria para o resto da sociedade. Na verdade, sabem todos, é o que acaba se dando.
Haveria, no entanto, uma regra nesse dueto de éticas. O que vale para a política deve permanecer subjacente, silencioso. Quando exposto, há o choque, traumático, com a ética da sociedade. Remember o ocorrido quando do vazamento das leis de Ricupero, e da necessidade do seu imediato afastamento.
Quando, como no caso da fitalhada, o que deve permanecer subjacente emerge e não são tomadas providências, o embaralhamento das duas éticas leva a um encurtamento de distâncias. Se o que está na fitalhada não é nada, é coisa sem importância, apenas um conjunto de atos patrióticos, torna-se possível que, quem sabe, não soe tão pouco crível algo com as digitais de Collor, Lafa, Maluf e Cia.
O presidente da República diz que "deveria estar na cadeia" quem está por trás do papelório, numa clara referência a Fernando Collor. Pois bem: Collor foi condenado a pagar uma multa superior a US$ 1 milhão pelo Conselho de Contribuintes. Valesse uma lei dos dias do próprio Collor, ele poderia ter sido preso.
As duas éticas. A lei, que tratava do Imposto de Renda, permitiu a captura de PC Farias. Porém, enquanto se comiam castanhas e perus, no dia 26 de dezembro de 1995, o presidente Fernando Henrique sancionou a Lei 9.249, na qual o artigo 34 extinguiu a pena de prisão para sonegadores, desde que paguem a dívida antes da denúncia. Lei votada na Câmara com 101 emendas e relatada por quem seria seu ministro mais adiante e havia sido ministro de Collor: o deputado Antônio Kandir.
Ainda quanto às duas éticas do professor Cardoso. Quando ambas se confundem, desaparecem os parâmetros. Cayman parecem ser tão reais quanto, por exemplo, os telefonemas no BNDES. Ainda que nem seja. O caso da fitalhada é ainda mais difícil de ser abordado por uma outra característica destes tempos e deste governo.
Empresas de comunicação, muitas, são sócias do processo de privatização. Disputaram e venceram nacos da telefonia – celular e convencional –, das TVs a cabo, dos pagers, etc., etc. Negócios de bilhões e bilhões de dólares.
Pressões crescentes. Legalmente, não há problema algum em tais associações, mas, num instante em que surgem severas suspeitas em relação à privatização da Telebrás – onde também estão empresas de comunicação –, como esperar que poderosos setores da mídia investiguem, com o devido apuro e a propalada isenção, um processo ao qual tantos estão, direta ou indiretamente, associados?
Não por acaso são crescentes as pressões do ministro das Comunicações sobre determinadas empresas. Não por acaso, em algumas redações, o reportariado – sempre disposto e ávido, é bom lembrar – está a festejar o rompimento do lacre.
Como nos idos do governo Collor, pode estar-se aproximando a hora do Grande Salto. Aqui e ali, quem atacava os pessimistas e chorões em artigos, colunas e matérias, começa a criticar os juros – mas não ainda os responsáveis –, as dívidas – mas sem nominar seus autores – e a dependência externa – ainda que sem responsabilizar o responsável.
Crise econômica, expectativa de recessão, fitalhada, rumores das Cayman, evidências de disputa – fissura? – no sistema de poder? É hora de se posicionar para o Grande Salto.
Governos, por poderosos que sejam, passam. Jornais, revistas, emissoras de televisão, rádio, pretendem ficar. Jornalistas, ainda que confiem pouco na memorabilia amarela, querem permanecer. Dias de ajustes, chi lo sa, para a possibilidade do Grande Salto.
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“A imprensa está muito favorável, com editoriais”
Trechos das fitas enviadas pelogoverno à Polícia Federal
O ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, André Lara Resende e Pérsio Arida estão reunidos. Eles conversam com Jair Bilachi, presidente da Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil. O trio quer que a Previ se junte ao Opportunity, visando formar um consórcio para arrematar a Tele Norte Leste:
“Estamos aqui eu, André, Pérsio e Pio (Borges, vice-presidente do BNDES)”, diz Mendonça de Barros a Bilachi. “Mas estamos muito preocupados com a montagem que o Ricardo Sérgio está fazendo do outro lado (junto ao consórcio de Carlos Jereissati). Porque está faltando dinheiro, doutor. E a gente está sabendo que uma das alternativas (do consórcio concorrente) é fundir as empresas com a holding. Aí, o negócio não fica limpo e a minha primeira preocupação, e o presidente já me ligou, é que a gente ponha em pé este negócio. Senão, o que aparentemente for um puta sucesso pode ficar um negócio amargo.”
“Ministro, nós estamos concentrando forças e a nossa proposta é bem diferente”, responde Bilachi. “Mas é justo na linha dos negócios. Nós estamos cacifando aqui. Mas, essa questão do outro negócio (apoio de Ricardo Sérgio de Oliveira, do Banco do Brasil, ao grupo de Jereissati), acho que vocês deviam conversar com o Ricardo Sérgio.”
“Tudo bem”, diz Mendonça de Barros. “Mas o importante para nós é que vocês montem com o Pérsio, evidentemente chegando a um acordo, e tudo o que precisar nós ajudamos. Temos um probleminha agora que é a carta de fiança. E é chato chegar agora, no meio da tarde, e o Banco do Brasil dizer que não vai dar.”
“Vou falar com ele (Ricardo Sérgio)”, diz Bilachi.
“Sei que ele (Ricardo Sérgio) está falando com a Telefónica de España, um negócio meio esquisito.”
O ministro das Comunicações telefona para o diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira. E revela: o Opportunity quer participar do leilão da Tele Norte Leste, mas depende da concessão de uma fiança do Banco do Brasil:
“Está tudo acertado”, diz Mendonça de Barros para Ricardo Sérgio. “Mas o Opportunity está com um problema de fiança. Não dá para o Banco do Brasil dar?”
“Acabei de dar”, responde Ricardo Sérgio. “Dei para a Embratel e 874 milhões para o Telemar (Tele Norte Leste). Nós estamos no limite da nossa irresponsabilidade. São três dias de fiança para ele”, continua o diretor do Banco do Brasil, quase rindo.
“É isso aí, estamos juntos”, diz Mendonça de Barros.
“Na hora que der merda (Ricardo Sérgio se refere ao astronômico valor da fiança), estamos juntos desde o início.”
O presidente Fernando Henrique liga para o ministro Mendonça de Barros na sede do BNDES. FHC queria saber como estava o andamento do leilão das teles:
“Estamos aqui praticamente com o quadro fechado”, diz Mendonça de Barros ao presidente.
“Você acha que, no conjunto, vai dar o quê?”, pergunta FHC.
“Vai dar uns 16 bi, que é o que eu tinha dito”, responde o ministro. “O nosso preço mínimo é de 13 bi e 400, e nós chegaremos a uns 16 bi, que é muito dinheiro.”
“Ajuda, né?, as reservas”, comenta FHC.
“A imprensa está muito favorável, com editoriais”, diz Mendonça de Barros.
“Está demais, né?”, diz FHC em tom de brincadeira. “Estão exagerando, até.”
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Estado de direito ferido
O governo interferiu no processo
CartaCapital: O senhor esteve com o presidente do BNDES, André Lara Resende?
Aloísio Mercadante: Estive. Disse a ele que tinha tido acesso ao conteúdo das fitas, mas, como elas eram editadas, queria confirmar sua veracidade. Ele, a princípio, negou.
CC: E depois?
AM: Quando relatei diálogos, ele admitiu que eram verdadeiros, que aquelas conversas, entre aquelas pessoas, haviam acontecido. E me disse que o presidente da República já havia recebido as fitas e que providências seriam tomadas. O André tentou ainda defender a posição deles. Argumentou que consórcios não tinham capacitação técnica e que eles estavam tentando estimular a competitividade.
CC: Qual foi, então, sua posição?
AM: Disse a ele que esperava que as providências fossem realmente tomadas e discordei dos argumentos. Disse-lhe que, para mim, a ação deles caracteriza uma claríssima intervenção no processo de privatização, fere o Estado de Direito e coloca sob suspeita todo o processo de privatização.
CC: E ele, respondeu o quê?
AM: Lamentou-se. Disse que a intenção dele era apenas ajudar...
CC: Lê-se, nesses dias, que ele teria dito que iria cair fora...
AM: A mim ele disse a mesma coisa.
CC: Por que o senhor não denunciou?
AM: Porque era um relato sem provas, mas à medida em que o conteúdo das fitas se torna público, o Congresso terá de instalar uma CPI da privatização da Telebrás.