"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, abril 16, 2011

Desafiando o Rio–mar – Simbolismo da Cerâmica Santarena

Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 26 de março de 2011.

“A ocorrência da representação de animais na decoração de alguns utensílios e principalmente em urnas funerárias, e a identificação dessas espécies na fauna da região, possibilitou que se atribuísse um caráter mágico-religiosos à essas representações, que estariam ligadas a histórias míticas, com base em analogias etnográficas”. (Denise Schaan)

– Símbolos

Os pesquisadores ao longo dos tempos tentaram em vão identificar o simbolismo dos adereços antropomorfos e zoomorfos que compõem a refinada Arte de Santarém. Cada traço, cada representação geométrica ou imagem tem o seu significado, a sua motivação. Os animais representados em cada peça não foram selecionados aleatoriamente, alguns deles são seres místicos cultuados pelos nativos, outros, identificam o clã a que pertenceram os ancestrais reverenciados nas urnas funerárias. Depois de comparar, analisar os Costumes, Organizações Sociais e Ritos Fúnebres de diversas etnias vou esboçar uma teoria a respeito dos ícones cultuados pelos incríveis Tapajó. Infelizmente os desbravadores e religiosos do passado se preocuparam mais em condenar sua “idolatria” do que entender sua cultura, do contrário não estaríamos aqui, hoje, tentando montar este intrincado mosaico na tentativa de interpretar sua magnífica arte cerâmica e seus elaborados ritos pretéritos.

Alguns elementos são muito constantes nos vasos de gargalo e cariátides tais como: o Urubu-rei, o Mutum–cavalo, o Jacaré, o Morcego e a Rã. Estes animais são reverenciados, respeitados ou temidos, por diversas etnias, por uma série de razões que elencarei a seguir. Logicamente os Tapajó consideravam estes seres tão importantes quanto as demais tribos tendo em vista se encontrar muita semelhança nas lendas e costumes destes povos.

– Urubu–rei

O urubu–rei recebe destaque especial no imaginário indígena que o considera como o dono do fogo, chefe das demais aves e o mestre dos ventos. Ele faz parte do repertório das Lendas e Mitos de diversos povos como os Parintintins, os Kamaiurá, os Kuikúru, os Tembé e certamente estava incorporado às Lendas Tapajó.

- Mutum–cavalo

Algumas etnias consideram que a constelação do “Cruzeiro do Sul” é na verdade um enorme mutum no vasto campo do céu, outras acham que a cobra grande pode nascer de um ovo de mutum. Segundo os Mayoruna, que antes só comiam terra, o Mutum os levou para sua terra onde ele lhes mostrou o que comer e como preparar os alimentos.

– Jacaré-açu

O Jacaré-açu pode chegar até setes metros de comprimento e o seu tamanho descomunal, ainda nos dias de hoje, provoca medo e respeito nos povos ribeirinhos. O magnífico réptil, além de ocupar o topo da cadeia alimentar, não encontrava adversários, à sua altura, nem mesmo entre os formidáveis guerreiros Tapajó. Ele era respeitado, talvez até adorado e, por isso mesmo tão presente nos adornos dos vasos rituais.

- Morcego

Franz Kreüther Pereira, no seu livro Painel de lendas & mitos da Amazônia faz o seguinte relato a respeito do morcego:

O Cãoera é uma espécie de “morcegão”, um morcego muito grande do porte de um urubu, que pode sugar todo o sangue de uma pessoa adormecida sem que ela desperte e, em seguida, devorá-la. Adélia Engrácia dá-nos três versões desse mito, recolhidas junto aos índios Mura. Nela encontramos a informação que o Cãoera habita os buracos na terra e surge quando se faz “misturado de jabuti e outras carnes, no mato” ou “quando se queima pêlos ou penas de animais”. Também, pode surgir - adverte Adélia - quando “se joga espinha de peixe n'água” ou até quando “se grita na mata”. Aparentemente a área de abrangência do mito é a região fronteiriça às Guianas, território das famílias Aruak, Karib e também Tupi, porém a estudiosa dos Mura ressalta que, em suas viagens pelos rios Negro e Xingu, jamais ouviu referências a esse sobrenatural. O Cãoera é descrito por Hurley como capaz de suspender “sem grandes esforços, um boi nas garras e o vae devorar nas alteirosas itacangas dos contrafortes de Tumúquehumáque”, o que nos faz lembrar do mitológico pássaro Roca, das “Mil e Uma Noites”. Parece-nos claro que este mito recebeu influência dos povos andinos, incorporando elementos que o associam ao Condor.
- Rãs

É fácil entender porque a pequena rã amazônica recebia tanto destaque na cerâmica ritual de Santarém. A secreção peçonhenta do pequeno batráquio intimidava os adversários e permitia aos Tapajó sobrepujarem todos os seus oponentes no campo de batalha. Eles eram os únicos, naquela região, a dominar a tecnologia de envenenar as flechas e isso os colocava em condições de vantagem sobre as demais tribos. O veneno, certamente, não era o curare pelos motivos vou expor a seguir.

Curare

Carvajal, Acuña, Heriarte dentre outros cronistas e pesquisadores pretéritos mencionam o uso de flechas envenenadas por diversas tribos da Amazônia. A maioria dos relatos menciona que o veneno utilizado era o curare. A primeira referência escrita sobre o veneno foi feita pelo médico e historiador italiano Pietro Martire d’Anghiera. Anghiera narra na sua obra “De Orbe Novo”, publicada em 1516, que um soldado foi mortalmente ferido por flechas envenenadas pelos índios numa expedição ao Novo Mundo.

Em 1833, Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva na sua Corografia Paraense, ou, Descrição física, histórica, e política da Província do Grão Pará faz as seguintes considerações a respeito das flechas ervadas (envenenadas):

O uso das flechas envenenadas remonta a mais alta antiguidade, pois já era conhecido na Ásia muitos séculos antes de Alexandre, na Itália antes da fundação de Roma, na America antes - da chegada de Colombo: algumas tribos Indígenas desta Província apenas se servem delas para as caçadas e não nas guerras, semelhantes nisto aos antigos Gallos. O Padre Plumier na sua obra “Nova plantarum Americanarum species”, dá o nome de Mancanilla, que é o “Hippomanes vegetal de Brown”, a certo arbusto que se encontra nas Antilhas, e ilhas de S. João do Porto Rico, de cujo suco se extrai famoso veneno pelos Caraíbes: este arbusto ainda é mais perigoso que o “verari” porque a ejaculação da “seve” produz cegueira, e algumas vezes a morte subitamente. O “verari” porém, ou curare, segando (cortando) outros, sem a mesma comisturação (mistura) de outras partículas vegetais e animais é mortífera. Pertence à classe dos cipós, dá-se nos lugares pantanosos, suas flores tetrapétalas são de cor amarela pálida, às quais sucedem pequenos frutos do formato de uma fava, numa cápsula periforme: os índios são ciosos em patentear a maneira do fabrico; todavia este consiste na extração por meio do fogo dos sucos venenosos da casca que lhe escabrosa, e raízes colhidas no tempo de verão, tomando na ação do cozimento uma forma espessa, à qual então reúnem outras substâncias vegetais venenosas, e formigas tocandeiras, guardando depois o veneno em pequenas panelas, onde se conserva em continua fermentação que perde pelo trato do tempo, tornando então a sofrer nova ebulição no fogo, misturando-se-lhe o tucupi (ácido cianídrico) ou sumo da mandioca.

Tocandira (Paraponera clavata): é um inseto himenóptero classificado na grande família dos formicídeos, subfamília das poneríneas. De cor preta, chega a medir 25 mm de comprimento. Ocorre da Nicarágua à Amazônia, região onde é também conhecida como tucandeira, tucanaíra, formiga-agulhada, formiga-cabo-verde, formiga-de-febre, formigão e outros nomes. Dentro das matas, onde vive, a tocandira constrói ninhos subterrâneos na base das árvores, cujas copas utilizam para forragear. A maioria de suas atividades restringe-se ao período noturno. As picadas no homem causam manchas e calombos na pele, mal-estar generalizado e vômitos. A dor, profunda e penetrante, é sentida por períodos de 12, 24 ou até 48 horas. Compressas de água quente, na região atingida, auxiliam a difusão e conseqüente neutralização do veneno. (www.biomania.com.br)

Conhece-se a perfeição da composição tocando com qualquer ponta impregnada no veneno, pois que este adquire sangue fresco, em este uma instantânea coagulação; se o contrário, porém sucede torna para o fogo, e são mui prejudiciais os vapores que exala, durante a decocção, aqueles que os recebem pela boca ou nariz, operação esta que os mesmos índios previdentes ou encarregam às velhas decrépitas e inúteis. Conservam as flechas impregnadas por longos anos a sua força, e costumam os índios antes de as disparar metê-las na boca para as salivarem, do que nenhum dano resulta, pois que o perigo consiste em ferir a cútis: então segue-se rapidamente a morte, porque o sangue toma uma coagulação súbita, ou, o que importa a mesma coisa, uma secreção da linfa doa glóbulos sanguíneos: os sintomas dos mortos com esse veneno não diferem dos da mordedura de qualquer cobra; o sangue coagulado nos grandes vasos entende-os excessivamente, e a linfa amarela introduzida nos capilares faz aparecer sobre a cútis manchas lívidas. Não se conhece antídoto contra tal veneno, o açúcar passa pelo melhor, posto que noutros países o sal seja mais eficaz, como se experimentou em Leide, em 1744, com as flechas levadas por Condamine. Sabe-se por Celso que os Romanos costumavam diminuir a força do veneno, chupando a parte ofendida: é provável que a saliva, introduzida assim na chaga, contribua também a diminuir pelo seu sal alcalino a ação do veneno; não é, porem nociva a carne dos animais mortos com esse veneno conhecido no país por hervadura. (SILVA)

Em 1839, o Major Antônio Ladislau Monteiro Baena, no seu Ensaio Corográfico Sobre a Província do Pará, faz um pequeno relato sobre a preparação do curare:

O veneno vegetal, de que se servem para peçonhentar as ponta das flechas dos murucuas e dos curabis, é extraído de um cipó chamado uirari, grosso, escabroso e guarnecido de folhas parecidas com as da maniva. A sua manipulação consiste em mascotar a casca, borrifá-la com água fria, destilá-la e fervê-la ao lume até ficar o sumo espessado em ponto de linimento. Para aumentar a energia do tóxico, adicionam-lhe sucos espremidos de outros cipós e vegetais que sejam de natureza venenosos. (BAENA)

Marcelo Coutinho Vargas (Professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSCar) e Marcelo Fetz de Almeida (Mestrando do PPGCSo/UFSCar) escreveram um interessante artigo a respeito do “curare” denominado “Biodiversidade, Conhecimento Tradicional e Direitos de Propriedade Intelectual no Brasil: por uma abordagem transcultural compartilhada”. O artigo, reproduzido abaixo, deixa claro que a ingestão oral do curare não gera efeitos nocivos embora alguns pesquisadores defendam que pode ocorrer intoxicação quando se ingere quantidades muito grandes e que a paralisia é sua principal manifestação.

A presa envenenada por curare tem sua morte causada por asfixia, uma vez que este provoca o relaxamento e a paralisia dos músculos esqueléticos associados à respiração. Contudo, o veneno somente funciona se inoculado diretamente no sangue, não gerando efeitos nocivos ao ser ingerido por via oral. Durante o envenenamento por curare, conforme observado por Benjamin Brodie, em 1811, o coração da presa continua a bater, mesmo quando a respiração cessa, o que significa que a função cardíaca não é bloqueada pelo curare. O horror do envenenamento por curare estaria no fato da vítima permanecer consciente, sentindo a paralisia tomar-lhe conta progressivamente de todo o corpo. Os principais elementos químicos do curare são alcalóides que afetam a transmissão neuromuscular. Entre estes alcalóides, o mais comum é a curarina e a tubocurarina. Isolada em 1897, sua forma cristalina só foi obtida a partir de 1935, passando a ser comercializada com os nomes de Tubarine, Metubine Iodine, Tubadil, Mecostrin, Atracurium e Vecuronium, indicados como relaxante muscular. Sua utilização como anestésico teria início apenas em 1943, quatro anos depois que o princípio ativo da d-tubocurarine foi isolado. As drogas derivadas desta substância são utilizadas como um poderoso relaxante de músculos esqueléticos durante cirurgias “de peito aberto”, especialmente as cardíacas, para controlar possíveis convulsões. (COUTINHO e ALMEIDA)

Curt Nimuendajú afirmou categoricamente que o veneno usado nas flechas dos Tapajós não era o curare, pois os efeitos registrados eram muito diferentes dos provocados por esta toxina. O Padre João Felipe Bettendorf confirmava esta teoria informando que os Tapajó adicionavam veneno aos alimentos para eliminar pessoas indesejáveis.

No final das contas escapamos quase sem problemas, ainda que tenha sido morto outro companheiro nosso chamado Garcia de Soria, natural de Logronho. Na verdade não lhe entrou a flecha meio dedo, mas como estava já com peçonha, não suportou nem vinte e quatro horas e rendeu a alma a Nosso senhor. (CARVAJAL)

Garcia Soria, da equipe de Orellana, morreu quase um dia depois de ser atingido por uma flecha Tapajó. Como já citamos, anteriormente, a ingestão oral de curare não gera nenhum efeito nocivo, qual seria, portanto, o veneno usado pelos temidos Tapajó? O outro veneno, utilizado por diversas tribos amazônicas, advinha da secreção de pequenas rãs venenosas. Algumas delas, com o passar do tempo e privadas de alimentos altamente tóxicos perdiam, pouco a pouco, sua letalidade e isto justificaria a longa agonia de Garcia de Soria. A preparação do curare, por sua vez, obedecia a um processo rígido e uniforme perfeitamente dominado pelos pajés e de eficácia comprovada.

Muiraquitãs

Desde a colonização foram encontrados objetos manufaturados com pedras verdes no norte do Brasil. Estes pequenos pingentes imitando, na sua maioria, batráquios fascinaram os pesquisadores nacionais e estrangeiros.

Barbosa Rodrigues (Muirakitã, Estudo da Origem Asiática da Civilização Amazônica – 1889) defende que o amuleto é a mais evidente prova da origem asiática das antigas civilizações amazônicas, pois acreditava que até então, na Região, como no restante do continente americano, não havia ocorrência de jazidas de jade, ou que ele aqui tenha sido trabalhado, o que faz acreditar que os artefatos do mineral pertencem à mesma civilização e origem. Esta teoria apaixonou pesquisadores brasileiros, havendo muita discussão sobre o assunto, em virtude de se desconhecer jazidas do mineral (jadeíte) no continente americano. Relatos de Gabriel Soares de Sousa (1558) e Frei Ivo d’Evreux (1613) contradizem a afirmação de Barbosa Rodrigues e revelam a existência de “pedras verdes” nos sertões brasileiros, tese confirmada mais tarde por Simoens da Silva, em sua obra Nephrite in Brazil, apresentando ocorrências do mineral em Amargosa (BA) e peças encontradas em Campinas (SP), Piuí (MG), Pinheiros (RJ), Óbidos (PA) e Olinda (PE). Outros pesquisadores também jogam por terra a origem asiática da civilização amazônica, inclusive a arqueóloga Ana Roosevelt (Revista VEJA - 24 de abril de 1996), que afirma, em recente descoberta, ser Monte Alegre (PA) o berço do homem americano. As traduções do nome variam (mira-ki-tá, botão ou nó de gente, muira-kitá, nó de pau), assim como a própria lenda do Muiraquitã pode ser contada de outras maneiras. Esta que acabamos de ler é uma das versões. Neste contexto, outras controvérsias pairam sobre a origem do artefato pré-colombiano, quer em formato de peixe, sapo e tartaruga, geralmente arredondado, que até hoje fascina o imaginário popular. Sua história romântica se propaga através dos tempos, fascinando ouvintes, leitores e até mesmo os que não acreditam em lendas, que podem sentir o poder mágico do talismã em estudos arqueológicos mais ortodoxos e nas peças expostas em museus. (Apolonildo Brito)

Os muiraquitãs foram encontrados nas bacias dos Rios Tapajós, Trombetas e Nhamundá, mas a maior parte foi encontrada na bacia do Tapajós onde habitavam os Tapajó. A maioria dos artefatos representava pequenos batráquios o que nos leva a acreditar que os Tapajó ou outros povos antes deles estavam homenageando o animal que garantia sua supremacia guerreira, a rã venenosa. A secreção era usada nas pontas das flechas e lanças e, provavelmente, como ainda hoje o fazem algumas etnias em rituais místicos e de cura. A espécie responsável pela hegemonia bélica dos Tapajó jamais será descoberta. Novas espécies são descobertas e catalogadas enquanto outras são levadas à extinção por diversos fatores.

– Vacina do Sapo – Aplicação “Medicinal”

A aplicação das secreções produzidas pela Phyllomedusa bicolor (rã Kambo) é conhecida popularmente como Vacina do Sapo. O paciente é queimado com um cipó nos braços ou nas pernas, sobre estes pontos se aplica o veneno que desta maneira atinge a corrente sanguínea. Os indígenas acham que a “vacina” possa acabar com a má sorte na caça ou na pesca e afastar os espíritos que causam doenças. As substâncias contidas na secreção da rã Kambo são venenosas, causando diarréia, vômitos, taquicardia e colapso sistêmico, levando ao óbito de pessoas saudáveis por overdose ou anafilaxia.

Anafilaxia: aumento da sensibilidade do organismo diante de determinada substância, provocado pela aplicação prévia (injeção ou ingestão) de uma dose, embora mínima, dessa substância.

A vacina fazia parte do conhecimento ancestral dos katukinas, do Acre. O seringueiro Francisco Gomes Muniz que convivera muito tempo com os katukinas aprendeu a aplicar a vacina e a identificar a rã. Ao regressar para a cidade, na década de sessenta, foi o precursor da aplicação da vacina entre os não-índios. Desde então o “remédio” ganhou os centros urbanos do país.

- Terribilis Phyllobates

A título de exemplo vamos citar aquela que é considerada a mais mortífera de todas as rãs. A rã-flecha amarela ou rã amarela venenosa (Terribilis Phyllobates) é endêmica da costa do Pacífico da Colômbia e é considerada como um dos animais mais venenosos do planeta. O veneno da rã-flecha, batraquiotoxinas, bloqueia a transmissão dos impulsos nervosos podendo levar à insuficiência cardíaca ou fibrilação. O veneno, alojado em glândulas sob a pele da rã, pode ser armazenado durante anos mesmo que ela seja privada do alimento que seja fonte dessa toxina. Alguns pesquisadores acham que a criatura que transmite os alcalóides assassinos para a rã é um besouro da família Melyridae. Os indígenas Emberá Choco, da Colômbia, usam seu veneno nas flechas para caçar. Os Emberá prendem a rã pelas patas e aproximam, cuidadosamente, uma fonte de calor até que ela exale seu líquido venenoso. As pontas das flechas embebidas no líquido mantêm o seu efeito mortífero por mais de dois anos.

– Clãs

Precisamos analisar outro aspecto antes de concluir qualquer tipo de hipótese sobre o simbolismo dos vasos rituais dos Tapajós (cariátides e gargalo). Considerando que sua cultura se perdeu nas brumas do passado precisamos recorrer à sofisticada organização social e aos rituais fúnebres de outras etnias indígenas cujos costumes lembram, um pouco, a dos Tapajó. Além dos animais reverenciados pelos Tapajó teríamos aqueles que simbolizavam o clã ou mesmo a genealogia do morto.

Tikuna

“Yo’i fez um caniço e usou como isca para pescar o caroço do tucumã maduro, os peixes quando caíam na terra se transformavam em animais, novamente o herói experimentou outra isca, dessa vez, usou a macaxeira, com essa comida os peixinhos começaram a se transformar em seres humanos. Yo’i pescou muita gente, mas seu irmão não estava entre essas pessoas. A mulher pegou o caniço e pescou Ipi, este saltou para a terra e pescou os peruanos e outros povos que acompanharam o herói e foram embora na direção do poente. Da gente pescada por Yo’i descendem os Tikuna e também outros povos que rumaram para a direção do nascente, inclusive brancos e negros, daí vem a autodenominação dos Tikuna que se chamam Maguta, o povo pescado”. (GRUBER)

“Mas Yo’i separou-as, colocando as suas a Este e as de Ipi a Oeste. Então ele ordenou que cozinhassem um jacururu e obrigou todo mundo a provar o caldo. E assim cada um ficou sabendo a que clã pertencia, e Yo’i ordenou aos membros dos dois grupos que se casassem entre si”. (NIMUENDAJÚ)

Ao descer o Solimões, em 2008, conheci os formidáveis Tikuna. Através de textos de conhecidos antropólogos e do cacique João Farias Filho, da Comunidade Feijoal, conheci suas Lendas, Costumes e Organização Social. A sociedade Tikuna está dividida em Metades exogâmicas (Metade Plantas e Metade Aves), cada qual composta por Clãs patrilineares. Para ser reconhecido como Tikuna é necessário falar a língua Tikuna, pertencer a um Clã e casar obedecendo às regras dos Clãs.

Exogâmica: regime social no qual os casamentos só se podem realizar com membros de outras tribos ou Clãs.

Patrilinear: sucessão por linha paterna.

Curt Nimuendaju estudou os Costumes e Organização Social dos Ticuna na década de quarenta e, na oportunidade, identificou quinze Clãs para a “Metade Plantas” e vinte e um para a “Metade Aves”. Os Ticuna identificam esses grupos através do nome de árvores, animais terrestres e insetos (“Metade Plantas”) e aves (“Metade Aves”). O fato da “Metade Plantas” ser composta por elementos tão distintos, segundo Nimuendaju, encontra amparo na mitologia Tikuna que acredita que a alma de algumas árvores vagueiam à noite, assumindo a forma do animal com o qual mais se identificam. Segundo os Tikunas, as formigas saúvas pertencem, também, a “Metade Plantas” simplesmente porque elas têm o costume de subir nas árvores. Alguns pesquisadores, no entanto, defendem que os critérios para pertencer a este ou àquele Clã eram baseados apenas entre os grupos de animais de “Pena” e dos grupos “Sem Pena” o que simplificaria muito a classificação, mas que, ingenuamente, deixaria de levar em conta o misticismo Tikuna.
Metades
Plantas
Aves
Clãs
AuaíArara
SaúvaMutum
BuritiTucano
OnçaUrubu Rei


A origem dos Clãs está intimamente ligada ao mito da criação do mundo segundo a versão Tikuna. Os irmãos e Ipi são os personagens centrais da Criação da Humanidade. Yo’i resolveu, um dia, pescar seu povo usando como isca uma fruta de tucumã, os peixes logo que saíam da água se transformavam em queixadas, porcos do mato e outros animais. Yo’i resolveu trocar a isca para a macaxeira e os peixes se transformaram no povo Maguta (povo pescado do rio). Os Maguta pertenciam a um único Clã e as pessoas, consequentemente, não podiam casar-se. Yo’i fez, então, um caldo de jacururu e distribuíram ao povo para que o provassem. Os primeiros que provaram a mistura passaram a ser reconhecidos como “Clã da Onça”, depois o “Clã da Saúva”, e desta maneira foram criados os diversos Clãs.

Apinagé

Arthur Ramos de Araújo Pereira, médico psiquiatra, psicólogo social, etnólogo, folclorista, considerado o pai da Antropologia Brasileira escreveu uma obra monumental - “Introdução à Antropologia Brasileira” - que deveria ser o livro de cabeceira dos que se candidatam, nos dias de hoje, ao estudo da antropologia. Vamos reportar suas considerações sobre a organização social dos Apinagé, um dos ramos do povo Gê.

O estudo mais recente e mais completo sobre a organização social dos Gê se deve a Curt Nimuendajú No seu trabalho citado sobre os Apinagé, vemos que são Matrilocais e organizados em Metades. (Moieties) Matrilineares (Me-Ga-Tcha), cada uma das quais ocupa inicialmente uma determinada parte da aldeia.

Matrilocal: o marido, depois do casamento, é obrigado a seguir a mulher, passando a morar na localidade dela.

Matrilinear: sucessão por linha materna.

O todo é disposto em circulo, sendo a metade superior (Kol-Ti) localizada ao norte e a metade inferior (Kol-Re) ao sul. Os Apinagé de hoje, embora topograficamente não mais obedeçam aquela localização, ainda se referem a Kol-Ti e Kol-Re, como sendo a “Aldeia de Cima” e a “Aldeia de Baixo”, respectivamente. De acordo com a lenda, Kol-Ti foi criado pelo Sol e Kol-Re pela Lua. As cores são o vermelho para os primeiros e preto para os segundos. Os chefes são sempre Kol-Ti tendo esta “metade” a preeminência na vida social de todo o grupo, embora nos grandes festivais, cada “metade” tenha o seu próprio chefe. As metades Apinagé não são exogâmicas, sendo o casamento regulado por um sistema diferente.

Cada “metade” possui uma série de nomes pessoais “grandes” e “pequenos”, masculinos e femininos. Esses nomes são transferidos do tio materno ao filho da irmã, e da tia materna à filha da irmã. A avó materna ou sua irmã podem tomar o lugar da tia, enquanto que o avô materno pode tomar o lugar do tio. Acontece que, impacientes, o tio ou a tia materna se apressem a transferir o nome, antes de a criança nascer e pode suceder que a menina fique com o nome masculino e vice-versa. Os portadores de nomes gozam de privilégios de acordo com a sua categoria. E há festas com dança e música especiais, não só nas cerimônias de transferência dos nomes, como em ocasiões futuras quando o portador do nome se obriga a certas tarefas

Independentemente da organização dual, em “metades”, a tribo Apinagé é dividida em quatro Kiyé, nome que significa “lado” ou “partido”. Estes Kiyé não são Sibs unilaterais, mas unidades bilaterais, constituídas no modelo familiar, isto é, os filhos seguem o pai, as filhas seguem a mãe. São exógamos, os homens de um Kiyé só podem desposar as mulheres de outro Kiyé. Suponhamos os quatro Kiyé, A, B, C, D; os homens de A só podem se casar com as mulheres de B; os homens de B com as mulheres de C, etc. As mulheres seguem o caminho inverso: as de B só podem casar com os homens de A; as de C com os homens de B; as de D com os homens de C. (RAMOS)

– Ritos Fúnebres

Novamente Arthur Ramos, na obra já citada, faz referência ao rito fúnebre dos Bororo e da importância do clã neste momento em que cada membro utiliza as cores e ornamentações especiais de cada clã e, logicamente, estes mesmos cuidados são levados em conta em relação ao clã a que pertencia o morto.

Os Ritos Funerários, a avaliar pelas descrições de Karl von den Steinen e do Padre Colbacchini, são bem complexos entre os Bororo. Quando um índio está muito mal, o Bari (feiticeiro da tribo) é chamado e prediz a sua morte. Daí em diante, o índio não toma nenhum alimento. Se a morte não chega no dia previsto, o Bari encarregasse de mostrar a exatidão da sua profecia, sufocando o moribundo. Quando o índio morre, seu corpo é ungido de urucu e imediatamente coberto a fim de que as mulheres e as crianças não o vejam. Começam então os altos lamentos das mulheres. Os parentes demonstram a sua dor, talhando o corpo profundamente com conchas cortadiças, de maneira a fazer correr profusamente o sangue. O número dos ferimentos é proporcional ao afeto que se tributava ao morto. Os ferimentos são depois tratados com a polpa do fruto do jenipapo.

Começam os cânticos fúnebres, cadenciados ao ritmo do Babo, instrumento feito de uma cabaça elíptica oca, contendo no seu interior algumas sementes duras, e um cabo de madeira. Enquanto isso, o morto é envolvido numa esteira com os objetos que lhe pertenciam, inclusive o arco e as flechas quebrados.

O cadáver é em seguida transportado ao Baimannageggeu, espaço de terreno, no centro da aldeia, onde se iniciam os funerais oficiais, que duram toda a noite. Os cânticos são dirigidos pelo chefe da aldeia, ornado com o Pariko. O cântico principal é depois seguido dos cânticos de cada Clã. A sepultura, de 30 a 40 centímetros de profundidade, é cavada próximo ao Baimannageggeu. Nela é depositado temporariamente o morto, e coberto de terra e água, enquanto que os parentes novamente retalham o próprio corpo, em altos gritos.

Diariamente os parentes vêm lançar água à sepultura, para apressar a putrefação do corpo e poderem retirar os ossos. O luto é observado pelos parentes, da maneira seguinte: arrancam ou cortam os cabelos e depois, à medida que vão crescendo, não os cortam na fronte e ao nível das orelhas, enquanto dura o luto. Abstêm-se de pintar o corpo com urucu. A duração do luto é de alguns meses a um ano e mais.

Na mesma tarde do enterramento, o Aroettowarari (médium) evoca as almas para saber a localidade onde se encontra a caça. Partem então todos os índios para essa caça religiosa-mágica em honra do morto. Os animais mortos são levados aos parentes do defunto e são comidos numa refeição comum. Duas semanas depois do enterramento, recomeçam os cânticos e as danças especiais – Mariddo, Aige e Aroe Maiwo – e por fim, ao som de um cântico especial, o morto é desenterrado, ainda putrefeito, e os ossos são extraídos e lavados no rio próximo. É organizada uma refeição social, para a qual são convidadas as almas dos mortos. As mulheres não tomam parte nesta refeição.

Os ossos são então pintados de urucu e ornados com as cores do Clã do morto. O crânio é também adornado cuidadosamente com penas. Tudo é colocado num cesto, também ornado com as cores do Clã, e na manhã seguinte, os ossos, dentro do cesto, são entregues à sua sepultura definitiva, no rio próximo ou num lago, mas sempre num lugar determinado, o Aroe Gari, ou “morada das almas”. Durante todo o tempo dos funerais, os índios adotam as ornamentações especiais, já descritas, e que variam para cada Clã. (RAMOS)

Logicamente os vasos de gargalo dos Tapajó reproduziam, também, embora de forma secundária, o animal que representava o clã do defunto. Muitas vezes o animal que representava o clã do finado fazia parte da lista dos animais místicos. O fato de as aves se apresentarem com as asas abertas ou fechadas pode sugerir que o falecido havia morrido em combate ou simplesmente de velhice na segurança de sua aldeia. As figuras antropomorfas que, eventualmente, faziam parte dos ornamentos representando adultos ou crianças indicam a idade do homenageado.

– Blog e Livro

Os artigos relativos à “3ª Fase do Projeto–Aventura Desafiando o Rio–Mar – Descendo o Amazonas I” estão reproduzidos, na íntegra, ricamente ilustrados, no Blog desafiandooriomar.blogspot.com desenvolvido, recentemente, pela minha querida amiga e parceira de Projeto Rosângela Schardosim. O Blog contempla também as duas fases anteriores de minhas descidas pelo Rio Solimões e Rio Negro de caiaque.

O livro “Desafiando o Rio–Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, rede da Livraria Cultura, Livraria Dinamic – Colégio Militar de Porto Alegre ou ainda através do e–mail: hiramrsilva@gmail.com.


Fontes:

ACUÑA, Christóbal de – Nuevo Descubrimiento del Gran Rio de las Amazonas – Espanha – Madrid – Ed. García, 1891.

BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio Chorographico do Pará - 1839 - Brasil - Brasília, 2004 - Senado federal.

Bettendorf, João Felipe – Chronica da     Missão da Companhia de Jesus em o Estado do Maranhão (1698) - Belém: Secult, 1990.

CARVAJAL, Gaspar de – Relatório do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto Pelo Capitão Francisco de Orellana – Brasil – Consejería de Educación – Embajada de Espana – Editorial Scritta, 1992.

GRUBER, J. G. - O livro das Árvores. Benjamim Constant, AM: Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues. Global, São Paulo, 2000.

NIMUENDAJU, Curt – Os Tapajó. In: Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi – vol X, Belém, 1948.

RAMOS, Arthur - Introdução à Antropologia Brasileira as Culturas Européias. Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1961.

SILVA, Inácio Accioli de Cerqueira e - Corografia paraense ou descrição física, histórica e política da província do Grão Pará (1833) - Typografia do Diário, Salvador, 1833.

VARGAS, Marcelo Coutinho e ALMEIDA, Marcelo Fetz de - Biodiversidade, Conhecimento Tradicional e Direitos de Propriedade Intelectual no Brasil: por uma abordagem transcultural compartilhada – UFSCar, 2006.



Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br