viomundo - publicado em 30 de novembro de 2013 às 10:26
Governo
Mais perguntas e nenhuma resposta
O escândalo Waldomiro continua sem solução e já surge outro com conexões muito complexas
Policarpo Junior e Alexandre Oltramari, na Veja, em 07.04.2004
O subprocurador-geral da República, José Roberto Figueiredo Santoro, 50 anos, é um homem de múltiplos interesses. É apaixonado por cinema, música clássica e é fluente em quatro idiomas.
O subprocurador é sobrinho do físico Alberto Santoro, um dos descobridores da menor partícula da matéria, o top quark, e do músico Cláudio Santoro, autor de catorze sinfonias e um dos grandes maestros brasileiros.
Na semana passada, ele apareceu em uma fita cassete, divulgada pelo Jornal Nacional, tentando convencer o bicheiro Carlos Cachoeira a lhe entregar um vídeo no qual um ex-assessor do ministro José Dirceu, Waldomiro Diniz, é flagrado pedindo propina.
Na gravação, feita às 3 horas da madrugada no gabinete de Santoro, ouve-se o subprocurador explicar ao bicheiro que se eles forem vistos juntos tão tarde da noite seu chefe na procuradoria, Cláudio Fonteles, indicado pelo PT para o cargo, poderia desconfiar de seu excesso de zelo.
“Daqui a pouco o procurador-geral vai dizer assim: ‘P…, você tá perseguindo o governo que me nomeou procurador-geral, Santoro, que sacanagem é essa? Você tá querendo ferrar o assessor do Zé Dirceu, que que você tem a ver com isso?’ ”
Na contagem aritmética simples das abóboras políticas do microcosmo de Brasília, a divulgação da fita em que o subprocurador é grampeado foi um alívio para José Dirceu. Na visão do governo, o conteúdo da gravação deixa claro que houve manipulação política da outra fita, a de vídeo, em que Waldomiro pede ao bicheiro Carlos Cachoeira contribuição para campanhas políticas, além de uma propina.
O episódio retratado na fita de vídeo ocorreu há dois anos, portanto, antes de Waldomiro se instalar no Palácio do Planalto. Fora do Palácio do Planalto a visão é outra.
O surgimento da nova fita não melhora em nada a situação de quem quer que seja. Ela só ajuda a piorar a situação de um número ainda maior de pessoas. Os últimos acontecimentos em Brasília são terríveis para a imagem do Ministério Público, que até então estava fora do escândalo.
A guerra das fitas sugere que não existe propriamente um Ministério Público, mas ministérios privados, cujos membros teriam lealdade a interesses partidários, e não compromisso exclusivo com o interesse público. Nessa linha de raciocínio, por seu zelo em meter-se na apuração de um escândalo que acabaria estourando no colo de José Dirceu, ex-homem forte do Planalto, Santoro estaria querendo apenas “ferrar” o governo, e não apurar um crime.
Santoro pertenceria então ao ministério privado dos tucanos, os oposicionistas do PSDB. Outros procuradores, como o famoso Luiz Francisco de Souza, que se notabilizaram pelo excesso de zelo em apurar desvios do governo passado, o dos tucanos, e até agora não mostraram nenhum empenho em levantar escândalos de petistas, formariam no outro time. Esses últimos seriam, então, procuradores do ministério privado do PT. Péssimo negócio para os brasileiros.
O governo pode ter razões políticas para comemorar a divulgação do grampo em Santoro, mas os brasileiros só têm a lamentar o que parece ser o uso político de uma instituição que deveria, por sua própria natureza, ser integrada por “intocáveis”.
Trata-se de uma gangrena institucional, que acaba solapando os princípios republicanos e transformando cidadãos em súditos. Do Ministério da Justiça, saiu a idéia de criar o instituto do controle externo para o Ministério Público, e não só para o Poder Judiciário, e voltou-se a discutir a chamada Lei de Mordaça, que impede procuradores de fornecer quaisquer informações a respeito de investigações em andamento.
São idéias que precisam ser amadurecidas e debatidas num clima de serenidade, para evitar açodamentos. Na semana passada, na euforia da comemoração, o ministro da Justiça cometeu a leviandade de dizer que Santoro promovera uma “conspiração” contra o governo. Ora, que conspiração?
Se o ministro José Dirceu e todo o governo do PT garantem que não têm nenhuma relação com os apliques de Waldomiro, por que raios a apuração dos crimes cometidos pelo ex-assessor colocaria o governo em risco?
Com mais de vinte anos de trabalho, e há três como subprocurador-geral, penúltimo degrau da carreira, Santoro é um dos membros mais dinâmicos e talentosos do Ministério Público – e um dos mais enigmáticos.
Quase nunca aparece em público, não dá entrevistas, só recebe jornalistas para conversas reservadas e não gosta de fotos. Sua discrição é útil para seu hábito de perambular pelos bastidores de investigações com as quais não tem nenhuma ligação funcional.
Sendo um dos 62 subprocuradores da República, Santoro só pode atuar em processos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça. Além disso, mas apenas se for designado pelo chefe, pode trabalhar em casos em andamento no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral.
Na interpretação estrita de suas atribuições, Santoro não poderia participar da apuração do caso Waldomiro. Não poderia tomar a iniciativa de colher depoimento, tarefa que deveria ser executada por procurador comum, de primeira instância.
Relevando o fato básico de que Santoro estava apurando um crime, o procurador-geral Cláudio Fonteles preferiu ater-se às tecnicalidades que descrevem as funções dos subprocuradores. Fonteles classificou a ação de Santoro de “flagrantemente ilegal”.
Santoro esteve a cargo ou acompanhou com interesse muitos dos casos rumorosos dos últimos tempos, mas nunca apareceu sob holofotes.
Em alguns desses casos, houve ganhos políticos diretos ou indiretos para o ex-ministro José Serra.
O episódio de maior repercussão ocorreu em março de 2002, quando a polícia invadiu o escritório da empresa Lunus, de Roseana Sarney, em São Luís, flagrando a dinheirama de 1,3 milhão de reais num cofre. A foto do dinheiro exposto sobre uma mesa chocou o país.
A ocupação da Lunus foi concebida e planejada em Palmas, capital do Tocantins, onde trabalhava o procurador do caso, Mário Lúcio de Avelar. Na época, Santoro visitou Palmas com freqüência.
Dos 28 dias do mês de fevereiro, passou doze na cidade, sempre com a justificativa de acompanhar desvio de dinheiro do sistema de saúde. Há uma sincronia suíça entre suas viagens a Palmas e o andamento do caso Lunus.
Santoro estava em Palmas no dia 22 de fevereiro, quando foi apresentado à Justiça o pedido de busca e apreensão na Lunus. Santoro estava em Palmas no dia 1º de março, quando a polícia ocupou a Lunus.
“Ele foi o cérebro da operação”, denunciou o senador José Sarney. O caso Lunus cortou as chances de Roseana Sarney se candidatar à Presidência da República, em um momento em que ela aparecia em primeiro lugar nas pesquisas.
Na semana passada, com a figura de Santoro na crista da onda levantada pela divulgação das fitas, Sarney voltou a se interessar pelo assunto. Soube que Santoro esteve em São Luís nos dias anteriores à invasão da Lunus, em viagem até agora desconhecida.
De um amigo, Sarney recebeu um boleto do hotel Abbeville, em São Luís, no qual se lê que Santoro esteve na capital do Maranhão entre os dias 17 e 18 de fevereiro de 2002, participando de uma “convenção”, segundo informou no boleto do hotel.
Na lista oficial das viagens de Santoro, não há essa ida a São Luís. No dia seguinte, 19 de fevereiro, Santoro estava de volta a Palmas. “Eu já havia alertado sobre isso há tempos”, diz Sarney. “O comportamento do Santoro é uma traição a uma instituição séria como o Ministério Público.”
Em 2001, quando ainda disputava a indicação presidencial pelo PSDB com Serra, o hoje senador Tasso Jereissati passou por maus bocados. Em dezembro daquele ano, descobriu que estavam investigando sua vida e percebeu o súbito aparecimento de notinhas maldosas nos jornais. Era uma armação dos próprios tucanos?
Na dúvida, Jereissati foi ao Palácio da Alvorada reclamar com o presidente Fernando Henrique. No jantar, ele quase saiu aos sopapos com o então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, a quem acusou de agir com “safadeza e molecagem” por colocar agentes federais em seu encalço.
Na semana passada, Jereissati voltou ao assunto e, tal como Sarney, descobriu uma novidade: o ex-superintendente da Polícia Federal no Ceará, Wilson Nascimento, confirmou-lhe que, em 2001, quem estava no seu calcanhar era o delegado Paulo de Tarso Teixeira, da PF.
“O delegado estava buscando indícios de envolvimento do Tasso com lavagem de dinheiro”, conta Nascimento. A investigação foi encerrada sem que se descobrisse nenhuma novidade, mas não parou aí.
No início de 2002, quando Jereissati já desistira de concorrer à Presidência, Santoro fez uma visita a Fortaleza, onde se encontrou com o procurador José Gerin. Queria saber se a investigação de lavagem de dinheiro sobre Jereissati, feita no ano anterior, encontrara algo contra Ciro Gomes.
“Santoro passou uns três dias aqui”, conta Gerin, que ainda trabalha em Fortaleza. “Ele estava atrás de alguma coisa sobre um doleiro. Surgiu uma especulação de que esse doleiro tinha alguma coisa com o Ciro Gomes.” No início de 2002, Jereissati já estava fora da disputa presidencial e Ciro Gomes era mais candidato que nunca. Claro que, na época, Serra tinha interesse político em enfraquecer Ciro Gomes, assim como antes quis afastar Jereissati da disputa presidencial, mas nada disso autoriza acusá-lo de estar por trás das dissimuladas andanças de Santoro.
Jereissati, no entanto, ao saber desses novos detalhes, não se conteve. “Estou estarrecido”, disse. “Achava que essas coisas vinham de grupos que apoiavam esta ou aquela candidatura. Hoje, não tenho certeza. Espero que minhas suspeitas sobre a origem de toda essa perseguição não estejam corretas.” Na quinta-feira passada, Serra ligou para Jereissati para lhe dizer que desconhecia essa história.
No fim de 2001, um dos mais conhecidos lobistas de Brasília, Alexandre Paes dos Santos, deixou vazar que teria provas de que dois funcionários do Ministério da Saúde, então capitaneado por Serra, estavam achacando o presidente de um laboratório farmacêutico com o objetivo de fazer caixa para a campanha presidencial do tucano.
Ao saber do assunto, Serra convocou Santoro ao seu gabinete e pediu providências. Em vez de investigar os dois suspeitos, Santoro mirou no lobista, mas o fez da forma habitual – disfarçadamente.
No caso, recorreu a um dos seus auxiliares mais fiéis, o procurador Marcelo Ceará Serra Azul. “Ele me passou o caso, sim”, confirma Serra Azul.
De posse de um mandado judicial, Serra Azul invadiu o escritório do lobista e recolheu pencas de documentos, entre eles a célebre agenda que continha informações escaldantes – até códigos dos pagamentos de propinas a parlamentares.
A agenda chegou a passear pelo Ministério da Saúde, pousando de mão em mão. “Eu precisava identificar todos os nomes de funcionários citados na agenda”, diz Serra Azul, ao admitir que levou a agenda ao ministério.
“Como eu iria fazer isso sem a ajuda do governo?”, explica. Talvez ele pudesse pedir a lista de todos os funcionários do ministério para cruzar com os dados da agenda, não? “Demoraria séculos”, responde.
José Serra diz que conheceu Santoro por indicação de Geraldo Brindeiro, procurador-geral no governo de FHC. “Nunca foi meu amigo. Temos relações cordiais. Só isso”, diz Serra.
O ex-ministro afirma que jamais viu a agenda, nem soube que ela esteve circulando pelo ministério. “Se soubesse mandaria imediatamente devolver sem olhar”, diz.
O fato é que, com a exótica investigação, na qual se invadiu o escritório do denunciante e levaram-se as supostas provas ao denunciado, nunca mais se falou sobre a tal extorsão dos funcionários da Saúde.
É lamentável que a saúde política do país fique flutuando ao sabor de fitas nas quais um subprocurador enxerga o potencial de “ferrar” o ministro-chefe da Casa Civil e pelas quais o próprio governo se sente ameaçado a ponto de ver em seu tráfego uma “conspiração”.
“Entrega a fita”
No trecho abaixo, o subprocurador José Roberto Santoro tenta convencer o bicheiro Carlos Cachoeira a lhe entregar a famosa fita de vídeo em que Waldomiro Diniz, ex-assessor do Palácio do Planalto, pede propina.
SANTORO – Faz o seguinte: entrega a fita, não depõe, diz que vai depor mais tarde pra ver o que que aconteceu, porque aí você acautela que você colaborou com a Justiça, entregou a fita, acautelou prova lícita, o cacete a quatro… Aí você avalia o tamanho do cafofo… Aí você diz: “Aí eu quero falar…”
Nas mãos do governo
Sem querer entregar a fita, Cachoeira sugere que a Polícia Federal faça uma operação de busca e apreensão em sua casa e pegue a fita. Assim, ele, Cachoeira, não se comprometia e o subprocurador Santoro teria a fita que tanto desejava. Santoro não concorda sob o argumento de que a fita desapareceria nas mãos do governo:
SANTORO – A busca e apreensão vai ser feita pela Polícia Federal, a Polícia Federal vai levar a fita… é isso?… A primeira coisa que vai ser, vai ser periciada e a primeira pessoa que vai ter acesso a essa fita é o Lacerda (refere-se a Paulo Lacerda, diretor-geral da Polícia Federal). O segundo é o ministro da Justiça, o terceiro é o Zé Dirceu e o quarto, o presidente.
“Que sacanagem é essa?”
Diante da resistência de Cachoeira, Santoro comenta que ele mesmo está se expondo na conversa, mantida em plena madrugada no prédio da Procuradoria-Geral da República, de tal modo que pode ser flagrado, a qualquer momento, por seu chefe:
SANTORO – Daqui a pouco o procurador-geral vai dizer assim: “Porra, você tá perseguindo o governo que me nomeou procurador-geral, Santoro, que sacanagem é essa?… Você tá querendo ferrar o assessor do Zé Dirceu, que que você tem a ver com isso?…” Aí eu vou dizer: “Não, eu não tenho nada… tô ajudando… ” …”Porra, ajudando como? Você é um subprocurador-geral, você não tem que ficar na madrugada na procuradoria tomando depoimento dos outros…”
“Pra ferrar o chefe da Casa Civil”
Como Cachoeira não concordasse em entregar a fita, Santoro volta a dizer que seu chefe está prestes a chegar ao trabalho e poderá flagrá-lo tomando um depoimento comprometedor para o governo:
SANTORO – Estourou o meu limite. Daqui a pouco o Cláudio chega (refere-se ao procurador-geral Cláudio Fonteles), chega às 6 horas da manhã, vai ver teu carro na garagem, vai saber o que tem e vem aqui… e vai ver um subprocurador-geral empenhado em derrubar o governo do PT… Três horas da manhã, bicho! Ele vai vir aqui na minha sala, ele é meu amigo, ele vai vir aqui, e vai ver eu tomando um depoimento pra… desculpe a expressão… pra ferrar o chefe da Casa Civil da Presidência da República, o homem mais poderoso do governo, ou seja, pra derrubar o governo Lula… A primeira coisa que ele vai dizer é o seguinte: “O Santoro é meu inimigo, porque ele podia, como meu amigo, ter ligado pra mim e ter dito assim: ‘Olha, vai dar porcaria pro Zé Dirceu’ “.
“Ou você não acha que eu podia dar busca
e apreensão na tua casa em Anápolis”
Em outro trecho, Santoro diz a Cachoeira que poderia ter dado mandado de busca e apreensão na casa do empresário em Anápolis.
SANTORO – “Ou você não acha que eu podia dar busca e apreensão na tua casa em Anápolis, e isso eu perdia uma semana… eu poderia ter dado busca e apreensão na tua casa em Anápolis, podia ter dado… agora, tu imagina a violência… o cara fala: “nego tem filho, tem mulher, Santoro, (ele) sentou contigo, por favor”…você acha que eu não chegaria e falaria: “olha, o (barato)”… se eles não tivessem… vamos dar uma geral no cara… a Federal tinha arrebentado em cima de Anápolis, principalmente sabendo o conteúdo da fita… tinham pego essa fita e você sabe o que que eles iam dizer? Eles iam pegar documento na tua casa, carteira de identidade da tua mulher, e essa fita nunca ia aparecer, tá?… porque se eles soubessem que não fariam… (medo do) Lacerda… desculpe, ele vai ficar puto comigo, a instituição dele não é bem assim… mas em toda casa tem bandido, você sabe disso, não é não?…
PS do Viomundo: O mais cômico é ler o Caneta escrevendo sobre o Cachoeira e lamentando a política ao “sabor de fitas”.
PS2 do Viomundo: E o helicóptero, hein?! Apreendido bem no interior do Espírito Santo!