"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, setembro 13, 2007

Instituto Humanitas Unisinos- 13/09/07

Semente suicida gera dependência do produtor

Desde o ano passado, o Congresso avalia o projeto de lei que libera o uso das sementes terminator para pesquisa no Brasil. As sementes, também conhecidas como suicidas, não estão liberadas para plantio, comercialização e nem mesmo para estudo em qualquer outro país. Atualmente, o projeto da senadora Katia Abreu, do DEM de Tocantins, está sendo analisado pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. A reportagem é de Raquel Casiraghi e publicada pela Agência de Notícias Chasque, 13-09-2007.

O motivo para a resistência à tecnologia desenvolvida pela empresa Delta e Pine, dos Estados Unidos, está no fato de que a semente representa o fim da independência dos agricultores. A variedade terminator pode ser utilizada somente uma vez, pois ela não se regenera. Além disso, todas as sementes originadas de uma planta suicida são estéreis, ou seja, não germinam. Na avaliação do técnico Gabriel Fernandes, da entidade ambientalista ASPTA, a discussão no Congresso expõe a tentativa de controle das empresas sobre a agricultura.

"O que está em jogo, na verdade, é o controle absoluto das multinacionais sobre as sementes. Cada vez que as multinacionais conseguem aumentar seu controle sobre as sementes os agricultores, de outro lado, perdem a autonomia sobre a semente", diz.

Os deputados favoráveis à tecnologia terminator afirmam que ela poderia ser mais uma garantia para a biossegurança. Por ser estéril, ela impede a contaminação das sementes convencionais pelas transgênicas. No entanto, Gabriel rebate os argumentos.

"Na verdade, esse argumento é uma grande falácia, porque as sementes terminator não vão evitar a contaminação, pelo contrário, podem promover uma contaminação ainda mais grave, que seria de passar essa esterilidade para outras sementes. Então o agricultor que vai colher a semente dele e separar para plantar na próxima safra, se tiver sido contaminada com as sementes terminator, boa parte da lavoura não vai nascer no ano seguinte", defende.

As sementes terminator são muito rentáveis para as empresas. Além de o agricultor ter que comprar as sementes todas as safras, a tecnologia permite uma fiscalização mais eficiente em relação aos royalties. Gabriel avalia que se algum agricultor escapar do controle das empresas, a semente terminator resolve a situação, já que não germina. Além disso, ainda há a possibilidade de se fazer uma alteração genética na planta como, por exemplo, fazer com que a semente produza somente se for aplicado determinado agrotóxico.

A tecnologia terminator pertence à empresa Delta e Pine. No entanto, a Monsanto já assinou contrato em que desenvolve a tecnologia em suas sementes transgênicas.

Instituto Humanitas Unisinos - 12/09/07

Os EUA, a bomba e a moeda. Artigo de José Luís Fiori

"Neste sistema mundial em que vivemos, toda decisão monetária da autoridade responsável por alguma "moeda internacional" sempre terá efeitos contraditórios e provocará danos que fortalecerão, no médio prazo, a vontade competidora dos seus concorrentes e de suas moedas", escreve José Luís Fiori em artigo publicado pelo jornal Valor, 12-09-2007.

Segundo o professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, "também se pode afirmar que, neste mesmo sistema, qualquer projeto de 'moeda mundial' será sempre uma fantasia ideológica ou uma estratégia defensiva, como no caso do 'Bancor', que foi proposto por John M. Keynes na Conferência de Bretton Woods, em 1944, e rejeitado pelos Estados Unidos. Harry D. White, o chefe da delegação americana, era 'keynesiano', mas não era idiota, nem estava num 'piquenique' acadêmico. Representava os interesses dos Estados Unidos e de sua moeda nacional vitoriosa, o dólar, que cumpriu o papel da 'bomba de Hiroshima', na construção hierárquica da nova ordem monetária internacional, depois de 1945".

Eis o artigo.

"O presidente do banco central norte-americano, Ben Bernanke, já definiu em Wyoming, no primeiro fim de semana de setembro, a sua posição frente à crise imobiliária que se alastra a partir dos Estados Unidos: não é responsabilidade do Fed proteger financiadoras e investidores das conseqüências de suas decisões, mas é obrigação de todo banco central impedir que as crises financeiras atinjam a economia real e impeçam o bom funcionamento dos mercados. A mesma posição defendida pelos presidentes dos BCs da Europa, Inglaterra, Japão, Austrália e Canadá, que se mantém, até o momento, cautelosos e receptivos, à espera da reunião mensal do Fed, no dia 18 de setembro, que decidirá a nova taxa de juros da economia norte-americana. Mas, apesar disto, o dilema do senhor Bernanke vem crescendo a cada hora que passa, sob pressão das forças políticas e econômicas internas dos Estados Unidos e dos demais governos que sustentam, neste momento, o crescimento da economia mundial. Uma coisa é certa: qualquer que seja a sua decisão final, ela terá conseqüências negativas, no médio e no longo prazo, dentro e fora dos Estados Unidos. E não é fácil de definir o que seja "menos pior", numa situação como esta: a reativação imediata dos mercados e da atividade econômica, dentro dos Estados Unidos, através da desvalorização do dólar, pode provocar, logo à frente, uma nova bolha e um aumento do protecionismo econômico que já vem sendo defendido pelos candidatos democratas à eleição presidencial de 2008; mas a proteção da moeda americana, através de uma recessão purgativa, pode escapar ao controle da autoridade monetária e ter um impacto mundial em cadeia, de duração e efeitos imprevisíveis. De qualquer forma, o presidente do Fed não é representante da humanidade, e tomará suas decisões a partir dos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Por isto mesmo, neste momento, o maior medo que ronda o mundo é que a decisão americana desencadeie uma "guerra de moedas", mesmo que ela não seja desejada por Bernanke e por nenhum dos BCs envolvidos com a crise. Mas apesar destas boas intenções, não é impossível que esta guerra venha a ser travada, porque no campo econômico, como no campo geopolítico, "a própria potência ganhadora é que costuma desestruturar sua situação hegemônica".

Por isso, do nosso ponto de vista, neste momento qualquer exercício especulativo sobre o futuro deve partir de uma conclusão ou premissa que está na contramão de todas as teorias ortodoxas e heterodoxas sobre o processo da globalização econômica. Do nosso ponto de vista, os grandes "surtos" de internacionalização econômica - como os que ocorreram, no fim do século XIX e XX - provocaram, ao mesmo tempo, grandes movimentos de fortalecimento da competição e do conflito entre as nações. Em momentos de aceleração da internacionalização capitalista, a tendência simultânea foi sempre de aprofundamento do conflito entre os interesses comerciais e financeiros das economias nacionais do sistema. Nestas situações, aumenta invariavelmente o protecionismo, e, em algum momento, a guerra comercial atinge e envolve as moedas nacionais e as políticas monetárias das principais potências econômicas do sistema, independente da posição teórica ou da ideologia econômica dos seus condutores e a despeito da cooperação que possa existir entre seus bancos centrais. No limite, esta competição e este conflito podem passar para o plano político-militar, como aconteceu no caso da hegemonia inglesa e do seu "padrão libra-ouro" que vigorou no século XIX e que terminou com a Primeira Guerra Mundial. Mas esta mesma contradição "implodiu" o "sistema dólar-ouro" e a hegemonia americana em 1973, sem que tivesse ocorrido uma guerra direta entre as grandes potências. E hoje há fortes indícios de que o novo "sistema dólar flexível" esteja sofrendo um stress provocado pelo mesmo tipo de contradição que poderá levar os EUA a uma nova ruptura com suas próprias regras e instituições.

Como explicar este paradoxo, de que a internacionalização econômica seja, ao mesmo tempo, a grande responsável pelo renascimento e fortalecimento periódico do nacionalismo econômico? Se olharmos para a história, veremos que o sistema econômico mundial, que se formou a partir da Europa, depois do século XVI, foi sempre constituído por Estados, economias e moedas que competiram e lutaram permanentemente entre si para aumentar a sua riqueza nacional, sem jamais abrir mão de sua identidade econômica nacional. Através da conquista de territórios econômicos supranacionais cada vez mais extensos, onde pudessem impor suas moedas e onde seus capitais financeiros pudessem usufruir de vantagens monopólicas. Por outro lado, sempre foram estes mesmos Estados e economias nacionais vencedores que lideraram a expansão capitalista, e que conseguiram ao mesmo tempo "internacionalizar" as suas moedas dentro de uma região ou à escala global, como no caso da libra e do dólar, nos séculos XIX e XX. O que chama a atenção é que, mesmo depois de sua internacionalização, a riqueza e os capitais destes países sempre tiveram que se expressar e realizar em alguma moeda nacional e só conseguiram se internacionalizar porque mantiveram seu vínculo com a sua própria moeda nacional, ou com a moeda nacional de algum Estado mais poderoso.

Deste ponto de vista, neste sistema mundial em que vivemos, toda decisão monetária da autoridade responsável por alguma "moeda internacional" sempre terá efeitos contraditórios e provocará danos que fortalecerão, no médio prazo, a vontade competidora dos seus concorrentes e de suas moedas. Por outro lado, também se pode afirmar que, neste mesmo sistema, qualquer projeto de "moeda mundial" será sempre uma fantasia ideológica ou uma estratégia defensiva, como no caso do "Bancor", que foi proposto por John M. Keynes na Conferência de Bretton Woods, em 1944, e rejeitado pelos Estados Unidos. Harry D. White, o chefe da delegação americana, era "keynesiano", mas não era idiota, nem estava num "piquenique" acadêmico. Representava os interesses dos Estados Unidos e de sua moeda nacional vitoriosa, o dólar, que cumpriu o papel da "bomba de Hiroshima", na construção hierárquica da nova ordem monetária internacional, depois de 1945."

terça-feira, setembro 11, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 11/09/07

Mercado interno sustenta crescimento, diz Coutinho

A demanda doméstica será capaz de sustentar o crescimento da economia brasileira mesmo em um cenário internacional menos favorável, como o visto no último mês, avalia o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Luciano Coutinho. O otimismo do professor da Unicamp, no entanto, não é compartilhado por outros economistas. José Roberto Mendonça de Barros, sócio-diretor da MB Associados, acredita que o mercado interno dará em breve sinais de desaceleração, já que as condições de crédito, que têm impulsionado esta demanda, não devem mais apresentar grandes melhoras. A reportagem é de Raquel Salgado e publicada pelo jornal Valor, 11-09-2007.

Coutinho argumenta que o Brasil iniciou desde o ano passado um ciclo de investimento bastante vigoroso, que dará condições para que a demanda se expanda sem que existam gargalos na oferta. "A carteira de projetos do BNDES indica um crescimento bastante firme do conjunto dos investimentos da economia e nós esperamos que seja um processo robusto mesmo diante das tensões financeiras internacionais", disse no fim de uma apresentação no seminário "Agenda de Competitividade para a Indústria Paulista", promovido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

O presidente do BNDES diz que o problema na crise internacional é que ainda não se sabe precificar o tamanho do prejuízo trazido pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos. Ele acredita que a crise pode levar a uma contração do crédito em economias desenvolvidas mais prolongada do que ocorreu em outras crises desse tipo. No entanto, Coutinho avalia que isso não impedirá a economia chinesa de seguir crescendo a taxas robustas. O mesmo vale para alguns países da Europa e até mesmo para os Estados Unidos, onde poderá ocorrer uma redução no ritmo de crescimento e não uma recessão econômica.

Mesmo que o cenário internacional não seja mais tão favorável, esse ciclo de investimentos vivido pelo Brasil dará condições à economia de mitigar efeitos externos negativos. Para Coutinho isso será possível porque tanto o setor financeiro quanto o setor empresarial e os consumidores do país estão sadios. "A alavancagem e o grau de endividamento do setor privado ainda é baixo, o sistema de crédito pode sustentar a expansão da economia fora da dependência da conjuntura interna", argumenta.

O ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex), José Roberto Mendonça de Barros, tem uma visão diferente do assunto. Para ele, o ritmo crescente de expansão da demanda vai ser contido em breve. As melhoras da condições de crédito, com prazos mais longos e juros mais baixos, tendem a se esgotar. "E são estas condições favoráveis que sustentam boa parte da demanda atual", afirma. Além disso, ele lembra que os juros prefixados já estão subindo e que vão impactar o crédito ao consumidor.

Ainda assim, Mendonça de Barros diz que o crescimento deste ano já está dado, não será impactado pela turbulência externa. Para o próximo ano, sua previsão de elevação do PIB segue em 4,8%. "Ainda é cedo para saber o que vai acontecer", pondera. O economista, porém, traça um cenário de inflação incômodo para o país até o fim deste ano. "A forte demanda asiática e a quebra de safra de alguns alimentos ainda vão seguir pressionando os preços."

Coutinho, por outro lado, está confortável com a questão da inflação. "Eu gosto de brincar dizendo o seguinte: o BC (Banco Central) cuida da inflação no curto prazo e o BNDES cuida no longo prazo, porque ele ajuda a criar capacidade produtiva nova, a gerar aumento de oferta que impede a subida de preços."

Assim, segundo ele, a combinação do uso das importações de forma flexível com o aumento da oferta doméstica a partir do investimento permitirá conciliar crescimento da economia com estabilidade de preços. Ele acredita que as tensões recentes são transitórias e que é preciso olhar para a economia do país com uma visão de longo prazo, como fazem os países asiáticos, que tem tido grandes sucessos econômicos. "Investir muito significa inflação controlada a médio e longo prazo", garante.

Como está otimista com o incremento dos investimentos, Coutinho espera que em breve o BNDES precise buscar mais recursos para emprestar às empresas brasileiras. Ele contou que o Banco Europeu de Investimento acabou de oferecer 400 milhões de euros à instituição. Bancos internacionais, porém, não serão a única fonte de recursos. "Há um mês e meio lançamos R$ 1,350 bilhão pela BNDESPar. Possivelmente lançaremos mais debêntures ou outro tipo de instrumento de dívida no mercado interno."

Instituto Humanitas Unisinos - 11/09/07

Mecanização ceifa 700 mil empregos na agricultura nos últimos trinta anos em SP

No período de 30 anos, compreendido entre o início da década de 70 e meados dos anos 2000, a agricultura paulista eliminou aproximadamente 700 mil postos de trabalho, número que equivale à população de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Uma das causas desse brutal enxugamento é a intensificação do processo de modernização dos métodos de produção, cujo reflexo mais marcante está na progressiva mecanização das atividades anteriormente cumpridas de forma manual. A constatação faz parte da tese de doutorado de José Marangoni Camargo, em reportagem do Jornal da Unicamp, 10 a 16 de setembro de 2007

De acordo com José Marangoni Camargo, as transformações técnico-produtivas ocorridas na agricultura do Estado provocaram um enorme impacto sobre o emprego no setor. “Vale ressaltar que esse fenômeno não se esgotou. Ao contrário, ele está em curso e ainda deve trazer novas conseqüências”, adverte o economista.

Embora o recorte temporal adotado pela pesquisa seja de 30 anos, Marangoni concentrou sua investigação mais detidamente no período de 1990 a 2004. É nele, afirma o economista, que ocorreram as mudanças mais profundas na ocupação agrícola paulista, principalmente em razão da modernização dos métodos de produção. O pesquisador explica que o nível de emprego direto gerado pela agricultura depende fundamentalmente de quatro fatores: área cultivada, composição das culturas, desempenho da safra e estágio tecnológico dos empreendimentos. “No caso específico de São Paulo, dado o esgotamento precoce de sua fronteira agrícola, a ocupação no campo tem sido influenciada principalmente pelas mudanças da base técnica dos processos produtivos adotados pelos estabelecimentos”, afirma.

Um dos setores que mais experimentou transformações nesse aspecto foi o sucroalcooleiro. Nos últimos quinze anos, o nível de mecanização, sobretudo na etapa de colheita da cana-de-açúcar, aumentou muito. Só para se ter idéia, uma colhedora realiza a tarefa de 100 trabalhadores. “Vale ressaltar que, atualmente, a cana ocupa metade da área cultivada do Estado. Ou seja, qualquer mudança no processo produtivo desse segmento tende a produzir impactos importantes nos indicadores da agricultura como um todo”, analisa o autor da pesquisa.

Um dado relevante levantado por Marangoni é que a modernização é um processo ainda em curso. O economista lembra que, embora tenha evoluído, o índice de mecanização no campo, de maneira geral, segue baixo. “Ainda há muito espaço para a introdução de máquinas em substituição aos trabalhadores”, constata.

O desemprego registrado na agricultura paulista, aponta o estudo, trouxe consigo outras conseqüências igualmente sérias. Com a eliminação de 700 mil postos de trabalho ao longo dos últimos 30 anos, o que equivale a 40% da ocupação agrícola nesse período, alguns problemas de ordem social se agravaram.

Marangoni lembra que muitas famílias passaram por um profundo processo de empobrecimento, visto que seus chefes não conseguiram nova inserção no mercado de trabalho. Primeiro, porque não possuíam qualificação para tentar uma mudança de atividade. Segundo, porque o mercado de trabalho urbano não conseguiu absorver esse excedente. “Isso sem falar que o próprio meio rural começou a optar por uma mão-de-obra mais qualificada, visto que passou a necessitar de pessoas capacitadas para operar máquinas e equipamentos mais sofisticados”.

Essa nova realidade, conforme Marangoni, criou situações paradoxais nas relações de trabalho no campo. O dado positivo é que parte dos trabalhadores remanescentes passou a ter vínculos mais estáveis e melhores salários. Outra parcela, porém, continua sendo explorada e enfrentando situações de trabalho ainda mais precárias. Um exemplo dessa última situação vem do noticiário veiculado pela mídia, que vez ou outra registra a existência de trabalho semi-escravo em algumas regiões de São Paulo.

“Além disso, os trabalhadores que conseguem manter o emprego no corte manual da cana têm sido forçados, por exemplo, a alcançar metas de produtividade cada vez maiores. Isso tem levado ao cumprimento de jornadas de trabalho cada vez mais extensas e extenuantes, o que pode ter contribuído para a morte de vários trabalhadores agrícolas no período recente”.

De acordo com o economista, a pesquisa identificou, ainda, outras transformações relativas à ocupação agrícola. “Foi possível observar, por exemplo, que existe uma tendência de declínio da mão-de-obra residente nas propriedades. Atualmente, cerca de 60% dos ocupados na agricultura paulista moram fora dos seus locais de trabalho”, revela.

Ademais, continua Marangoni, os assalariados temporários, que nos anos 80 representavam aproximadamente 22% do total da população ocupada, passaram a responder por 19% desse mesmo segmento em 2004. Por fim, o estudo apurou que, embora todas as regiões do Estado tenham registrado redução do nível de emprego no campo, algumas foram mais afetadas do que outras. “Nas localidades onde predomina a pecuária e a monocultura, o desemprego foi mais acentuado do que nas regiões onde as culturas são diversificadas”, compara o economista, que foi orientado pela professora Ângela Kageyama.

Mas se o fenômeno que levou à eliminação de 700 mil postos de trabalho na agricultura paulista nos últimos 30 anos ainda está em curso, como fazer para pelo menos minimizar os seus efeitos futuros? Na opinião de Marangoni, a resposta está na adoção de um conjunto de políticas públicas que amplie e valorize o trabalho no campo. Uma alternativa, segundo o pesquisador, é o incentivo à geração de novos negócios de base familiar. “Nesse caso, é fundamental tanto a oferta de financiamento a juros decentes quanto de assistência técnica de qualidade”, destaca.

Não se pode pensar em ações desse tipo, acrescenta o economista, sem se considerar a adoção de um amplo e consistente programa de reforma agrária. “Além disso, também é recomendável a definição de medidas para o incentivo de atividades não-agrícolas, como o turismo rural. Somente com a conjugação dessas e de outras iniciativas, nas variadas instâncias de governo, é que será possível enfrentar com determinação o problema do desemprego na área rural”, afirma Marangoni, que atualmente é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, em Marília.

Instituto Humanitas Unisinos - 10/09/07

O Rio Grande do Sul está redesenhando o seu mapa econômico?

Plataformas de petróleo, dique seco, hidrovias e porto para exportação de celulose. O Rio Grande do Sul está redesenhando o seu mapa econômico? A reportagem é de Paulo Totti para o jornal Valor, 10-09-2007.

Eis a reportagem.

O futuro vai chegar e atracar no extremo sul do Rio Grande do Sul, entre hoje e quarta-feira. Um colosso de aço, com 346 metros de comprimento, 57 metros de largura e 29 metros de altura, irromperá lentamente do horizonte por entre os molhes de pedra que avançam 4 mil metros mar a dentro, e depois de demorada e delicada manobra, encostará no cais do Porto Novo da cidade de Rio Grande, a 340 quilômetros de Porto Alegre. É o casco do velho petroleiro "Sette Bello" que, comprado pela Petrobras, saiu em julho de Cingapura e, navegando a 12,5 quilômetros por hora (sete nós), praticamente oco e sem motor, mas auxiliado por seis rebocadores oceânicos, será transformado, em Rio Grande, na primeira plataforma de extração de petróleo montada no Brasil, abaixo do tradicional eixo Rio de Janeiro-Niterói-Angra dos Reis.
A chegada estava prevista para ontem à tarde, mas foi adiada porque um nevoeiro impedia a entrada do petroleiro na barra.

"Consolida-se, finalmente, o pólo naval do Rio Grande do Sul", comemora o prefeito de Rio Grande (32 anos), Janir Branco (PMDB), que estará no cais à espera do "Sette Bello", na companhia da governadora Yeda Crusius (PSDB) e prefeitos (diversos partidos) de 22 municípios da região menos desenvolvida do Estado. Está convidada a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), gaúcha por adoção e impulsionadora da promessa do presidente Lula de revitalizar a indústria naval brasileira.

Em 2008, o "Sette Bello" se chamará P-53, terá 140 metros de altura e vai incorporar-se às demais plataformas da Petrobras na Bacia de Campos (Marlim Leste), com capacidade de acomodar 240 pessoas e extrair 180 mil barris/dia, perto de 8% da produção nacional. Os cabos de energia que ligam Rio Grande à cidade de São José do Norte, do outro lado da Lagoa dos Patos, terão de ser retirados e substituídos por uma rede subaquática, pois seriam atingidos pela plataforma quando esse "Maracanã flutuante" (o estádio tem um diâmetro de 320 metros) passar novamente pelos molhes, de volta ao mar.

Há 50 anos, o Rio Grande do Sul meridional não progride, perdeu influência na pecuária, na agricultura, na política. E nunca teve indústria destacável, depois das charqueadas do século 19 e dos frigoríficos da primeira metade do século 20. Seu último presidente da República foi o general Emílio Garrastazu Médici, de Bagé, indicado por razões da ditadura e não da geografia, e a região elege no máximo vice-governadores, como Edmar Fetter, nos anos 70, tio de Adolfo Fetter Jr. (PP), hoje prefeito de Pelotas.

"O Brasil tem uma dívida com esta parte do Rio Grande", diz Adolfo Fetter, 52 anos, formado em agronomia e administração de empresas, com doutorado de ciência política em Paris e estudioso da economia do sul do Estado. "Na crise financeira mundial de 1930, quebrou o Banco Pelotense, que era o terceiro banco brasileiro em depósitos. Fortunas viraram fumaça em toda esta região. O presidente Getúlio Vargas, gaúcho, não quis socorrê-lo e com os ativos restantes e as 56 agências do Pelotense espalhadas pelo país, criou o Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Getúlio também impediu que se instalassem indústrias dinâmicas a 150 quilômetros da fronteira (Pelotas está a 135 quilômetros de Rio Branco, no Uruguai). Passamos a viver de costas para Uruguai e Argentina e de frente para o Brasil, que estava longe. O Mercosul é, na prática, uma integração comercial entre São Paulo e Buenos Aires. Mas, na fronteira, concorremos com os mesmos produtos uruguaios".

Com variação de detalhes, o diagnóstico que Fetter faz de Pelotas - em 1832, esta aristocrática cidade de 4 mil habitantes, que importava artesãos, artistas e mordomos da França, inaugurou o Teatro Sete de Abril, o mais antigo do Brasil, com platéia de 650 lugares - vale para toda a metade sul do Rio Grande do Sul, uma faixa de terras arenosas ou de antigas pastagens, hoje cansadas ou destruídas pela bossoroca, que, ao sul de Porto Alegre e Santa Maria, sai do oceano e da Lagoa dos Patos, passa por Bagé e Livramento e vai até Uruguaiana, na fronteira com a Argentina.

Mas o progresso que chega esta semana com a P-53 não vem sozinho. De repente tudo está acontecendo em torno do porto de Rio Grande, que, como reflexo do comportamento instável da economia agrícola gaúcha, há décadas procura espaço entre os maiores portos brasileiros.

No Porto Novo, o consórcio Quip, uma associação da construtora carioca Queiroz Galvão com a Ultratech e a Jurong, de Cingapura, monta as 12 estruturas modulares que vão rechear a P-53 e se prepara para a concorrência pela P-55. Nas proximidades, a construtora paulista WTorre vai começar também este ano as obras de um dique seco, que o orgulho recuperado dos rio-grandinos considera o "segundo maior do mundo" (investimento de R$ 480 milhões, estrutura de 140 metros, largura de 130m, altura livre de 16,5m e calado de 13,8m). Num contrato de dez anos, a Petrobras utilizará o dique para reparos e manutenção de plataformas e petroleiros.

O complexo portuário de Rio Grande tem três divisões. Na extremidade oeste, ainda na Lagoa dos Patos, está o Porto Velho, que data da fundação da cidade em 1737. A 90 graus, está o chamado Porto Novo, de 1915, hoje totalmente modernizado, com um terminal automotivo que serve às exportações dos carros produzidos pela General Motors em Gravataí, próximo a Porto Alegre (dólar baixo e mercado interno aquecido têm reduzido as exportações este ano) e junto a ele estão a Quip e o dique seco da WTorre. Mais adiante, em direção ao mar, surgiu o Superporto, privatizado na década de 90, explorado por empresas como Tecon (terminal de contêineres), Termasa (oito armazéns graneleiros), Tergrasa (soja e trigo), Bunge Alimentos (grãos, farelos e óleos vegetais), Bianchini (quatro armazéns graneleiros), Copesul (petroquímicos), Petrobras (derivados de petróleo e ácidos para fabricação de adubos, combustíveis para navios), e Trevo (matérias primas para fertilizantes e produtos químicos).

O retroporto é considerado o maior do país (1,6 mil hectares), rivalizando com o de Sepetiba, no Rio de Janeiro. No de Rio Grande, há a vantagem de já estar bastante ocupado, com informatizados terminais para armazenagem, manuseio, limpeza de contêineres, consolidação e estufagem de cargas e empilhadeiras com capacidade para até 45 toneladas. O Porto Velho tem calado de 15 pés (4,5 metros), o Porto Novo, de 30 pés (9 m), e o Superporto, de 40 pés (12 m).

Orgulhoso, o contador aposentado Flávio Monteiro, que trabalhou 40 anos em uma empresa de navegação, repetiu para o Valor o que diz ter ouvido uma vez de um "especialista americano": "O maior porto do mundo será o de Rio Grande. Sabem por que? Porque tem espaço". "E agora teremos um quarto porto, o de São José do Norte".

"Os astros nos protegem", disse também ao Valor, em Porto Alegre, a governadora Yeda Crusius. Ela se referia às obras que, já em outubro, serão iniciadas do outro lado da Lagoa dos Patos, em São José do Norte, para a instalação de um porto de exportação da celulose produzida pela Aracruz, em sua fábrica de Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre.

São José do Norte, de 25 mil habitantes, ligada a Rio Grande por lanchas que cruzam a Lagoa dos Patos a cada 25 minutos e um serviço de barcaças para transporte de carros, caminhões e mercadorias a cada hora, já foi considerada a "capital mundial da cebola" - está registrado no hino oficial da cidade "Há uns trinta anos, o agricultor vendia uma tonelada de cebola e podia voltar da cidade com um caminhãozinho Mercedes Benz", dizem alguns de seus mais antigos moradores, à espera da lancha "Cearense" (153 passageiros, três tripulantes), protegidos do frio e da chuva num mal construído atracadouro. E acrescentam: "Hoje a cebola não vale nada. Se planta cebola até em Brasília".

O prefeito de São José do Norte, José Vicente Ferrari (PSDB), 64 anos, economista com doutorado em planificação urbana na Universidade de Paris, e passagem pelo ministério da Agricultura e antiga Superintendência da Pesca (Sudepe), em Brasília, considera os investimentos em plataformas de petróleo e no dique seco de Rio Grande, e principalmente no porto de São José do Norte, com calado natural de 50 pés (15 metros), a redenção, não só de sua cidade, "mas de todo o sul do Estado".

" O que a Aracruz pretende fazer altera o conceito do transporte de cargas no Rio Grande do Sul. A celulose sairá daqui para os terminais que a empresa tem na China e na Malásia e de lá será distribuída para a Coréia do Sul, o Japão, a Austrália e a Indonésia. Modestamente, São José do Norte ingressa na globalização".

A Aracruz, realmente, vai introduzir o modal hidroviário no sistema de transporte gaúcho. Pelo rio Jacuí, a partir de Cachoeira do Sul, passando por Rio Pardo, e chegando a sua planta industrial de Guaíba, virá a matéria prima (eucalipto) plantada na região. Em Guaíba, com a duplicação da fábrica, será produzida a celulose que seguirá em barcaças de quatro mil toneladas pela Lagoa dos Patos até o porto de São José do Norte e dali para a exportação. Em todo o projeto serão investidos em torno de US$ 1,8 bilhões, de agora até 2012. Do governo do Estado, em crise crônica de falta de dinheiro para sequer pagar o funcionalismo em dia (55% da folha é gasto com aposentadorias), a Aracruz só quer a dragagem de correção da Lagoa dos Patos, a manutenção da dragagem e a sinalização. O tráfego de barcaças pela Lagoa será ininterrupto nas 24 horas do dia. Todo o complexo empregará 12 mil pessoas.

Funcionários da Aracruz já estão em São José do Norte, selecionando e qualificando mão-de-obra. Precisarão imediatamente de 150 pedreiros e 150 carpinteiros, 200 armadores de ferragens, 80 operadores de empilhadeira e outros 80 de ponte rolante. O teste é feito ao vivo, em futuras escolas ou na reforma de prédios históricos pertencentes ao município (a própria prefeitura, entre eles). Se a equipe for reprovada, a construção é desfeita e a próxima turma vai recomeçá-la.

Paulo Nozari, da Florestal Pinus Sul, exportadora de madeira serrada de pinus elliottii (US$ 150 o metro cúbico) para Espanha e Estados Unidos (e também de cavaco e serragem), para a confecção de cercas e de "pallets" - um trançado de madeira fina que dará suporte a embalagens como as de cerâmica - depõe a favor da mão-de-obra da região. " 'O que você já fez na vida?', eu perguntava a quem vinha pedir serviço. 'Plantei cebola'. 'Que mais?' 'Cortei cebola'. 'Que mais?', 'Vendi cebola'. Era assim. Com um mês de treinamento, já estavam prontos para o trabalho". Nozari tem hoje 300 operários em duas serrarias e quer abrir uma terceira no distrito de Bujuru.

O prefeito Ferrari tem grandes planos para modernizar sua pequena cidade. Além de escolas e saneamento, pretende, por exemplo, embelezar com uma praça o atracadouro para a ligação com Rio Grande e pensa até na construção de um túnel para a travessia de sete quilômetros da Lagoa. "Uma ponte é impossível por causa da altura das plataformas da Petrobras", explica.

A Votorantim Celulose e Papel (VCP), que já planta eucaliptos no sul do Estado, pretende também instalar sua fábrica na região (Rio Grande, Pelotas, Arroio Grande, Pedro Osório, Capão do Leão e Cerrito estão no páreo). Ao contrário do que se poderia esperar, não se estabeleceu uma guerra fiscal entre os prefeitos. Decidiram que o município a ser escolhido no ano que vem pela VCP (investimento de R$ 600 milhões) ficará com 50% do adicional de ICMS gerado pela fábrica e os 50% restantes serão divididos entre os demais. O PT é adversário de todos os outros partidos com prefeituras na região, mas os seus prefeitos de Bagé e Santa Maria se uniram aos adversários de Rio Grande, Pelotas e Uruguaiana (este, do PSDB) para pleitear em conjunto um empréstimo do Banco Mundial de US$ 100 milhões.

Rio Grande e Pelotas já foram aquinhoados com suas primeiras verbas do PAC para investimentos na infra-estrutura urbana e no saneamento, necessários para dar suporte aos milhares de empregos a serem criados. Só em Rio Grande, segundo o prefeito Janir Branco, estão decididos e até mesmo em implantação investimentos da ordem de US$ 2,4 bilhões, com a geração de mais de 5 mil postos de trabalho.

"Precisamos escolas de formação profissional, moradia, água, esgoto, e muito mais", reconhece Branco. A construtora WTorre já anunciou que vai construir um conjunto para três mil casas. É grande a procura de lotes urbanos, que sobem de preço. As fornecedoras da Petrobras encontram dificuldades para contratação de mão-de-obra qualificada. A NHT, empresa de transporte regional - aviões para 18 passageiros - ampliou de um para três seus vôos diários de Porto Alegre a Pelotas e Rio Grande nos dias úteis e já há um vôo no sábado e outro no domingo.

Mas Rio Grande se ressente da falta de hotéis e executivos têm de hospedar-se em Pelotas, a 65 quilômetros. Tem mais: a BR-101, totalmente asfaltada, já está chegando (novembro) ao seu extremo meridional, exatamente em São José do Norte. Isso permitirá a ligação de cidades e centros produtores de eucaliptos e pinus situados numa franja arenosa, esquecida e espremida entre a Lagoa dos Patos e o mar.

A governadora Yeda Crusius reconhece que o progresso "chegou meio que de repente", e que, em dois anos - quando estiver no auge de sua concretização tudo o que se prevê de bom para a região - o serviço prestado pelo Estado e pelas prefeituras tem que "estar em linha" com os investimentos atraídos. "Temos projetos", diz, "e estamos correndo para realizá-los".

O presidente do sindicato dos portuários de Rio Grande, Clênio Fagundes Nunes, o "Galinho", faz questão de destacar: "Nunca um governo investiu tanto em portos quanto o do presidente Lula. Não se pode negar que a Petrobras impulsionou tudo isso, cumprindo promessa de campanha do PT. Ao ser criado um pólo metalmecânico, com a construção de plataformas e o dique seco, isso vai repercutir diretamente no trabalhador. Teremos aqui até um forte sindicato de metalúrgicos".

A governadora evita o debate apaixonado e afirma: "O importante é que há uma sincronia entre o que o governo federal está fazendo e o que, nós, do PSDB, sempre pensamos. Essa sincronia facilita nosso trabalho. Precisamos de mais ensino técnico em Rio Grande, por exemplo, e parece que o Ministério da Educação também pretende entrar nessa área. Então, viva a competição!"

O prefeito Janir Branco, que, em Brasília, recentemente, elogiou a ministra Dilma e foi retribuído, em Rio Grande, com elogios da ministra, diz que não está preocupado com a disputa partidária e nem com as eleições municipais do ano que vem. Mas dá uma mostra de como será essa campanha. "O PT dirá que o governo federal fez os investimentos e diremos que, quando apareceu o dinheiro do PAC, nós tínhamos os projetos. Mostraremos nossa competência".

A governadora vai mais ou menos no mesmo tom: "O importante é que não só o pólo naval está sendo criado em torno de Rio Grande, mas também o pólo madeireiro (Aracruz e Votorantim). E haverá uma revolução no transporte hidroviário. O investimento é atraído quando se percebe que há ambiente amigável para os negócios".

É fato. Quando a secretária estadual do Meio Ambiente criou obstáculos à aprovação dos planos da Aracruz e da Votorantim, Yeda a demitiu e criou uma força tarefa para apressar as liberações de licenças ambientais. Mesmo assim, a Votorantim se queixa de provável atraso na operação de sua futura fábrica de celulose. Para 2012, data prevista para inauguração da fábrica, já há eucalipto, plantado em 2005, mas como a árvore leva sete anos para crescer, com a demora nas atuais liberações pode faltar matéria prima em 2014.

Instituto Humanitas Unisinos - 10/09/07

O Estado brasileiro é esquizofrênico. A análise de José de Souza Martins

A organização do Estado brasileiro é defeituosa da base ao topo. Vemos um Estado doente e uma sociedade enferma. A opinião é do sociólogo José de Souza Martins, professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo, 09-09-2007. Entre as manifestações de esquizofrenia da política nacional, o sociólogo comenta o Congresso do PT.

Diz ele: ”O Congresso do PT, que reúne seis partidos ideologicamente distintos e até conflitantes sob um único nome, refletiu o drama da harmonização da sociedade anômica com o Estado esquizofrênico: proclama estratégias para se aproximar dos movimentos sociais e das organizações populares, cuja grande e fundamental base é católica. No entanto, aprova a descriminalização do aborto, medida moderna de saúde pública, que conflita com a orientação católica de seus constituintes. E ninguém debate o conflito que há nessas decisões. Ao mesmo tempo o partido, nominalmente operário, aprova enfática moção que proclama a reforma agrária como o principal problema do País e sua principal meta. Mas não se propõe a enfrentar politicamente o esvaziamento econômico da categoria “trabalho”. Esvaziamento que se agrava em conseqüência da intensificação das trocas econômicas com os países asiáticos, especialmente a China, países que em troca do que nos compram nos vendem produtos de trabalho degradado que degrada ainda mais o de nossos trabalhadores”.

Mais a frente, José de Souza Martins comenta o que considera uma esquizofrenia de Lula: “Os políticos são atores desse teatro do desencontro. Alguns têm clareza e consciência do cenário de contradições em que se movem. Outros, se têm essa clareza, não o demonstram. O presidente Luiz Inácio, com freqüência, compara positivamente seu governo com todos os que o antecederam. Nega-se em Cardoso, que copia, e reconhece-se em Getúlio, que não copia e seu partido abominava. O seu ‘nunca antes neste País’ tornou-se o bordão do governo, como, com muito mais sentido, o ‘brasileiros e brasileiras’ de José Sarney e o ‘trabalhadores do Brasil’, de Getúlio Vargas. Nestes últimos, porém, havia o reconhecimento da alteridade do povo, como referência, motivo e destinação”.

Continua: “Esse ‘nunca antes’ não é só desconhecimento da história. É, também e sobretudo, negação da história e da historicidade da política, do poder como missão delegada do outro que é o povo e o cidadão. Nem por isso o povo deixa de estar lá, mutilado, oculto, nas falas do presidente. Lula, embora nesse sentido precedido por um amador, o presidente Collor, difundiu no Brasil o poder teatral como forma de governar. Ele é platéia e ator ao mesmo tempo. Governa e faz oposição ao governo. Esse, aliás, é o segredo da nova aparência da política brasileira, personificação das duplicidades que nos abatem. Nesse cenário, o povo conta pouco”.

O sociólogo ao final do artigo destaca: “Lula não é o problema. Ele apenas o personifica e seu teatro político constitui a expressão criativa do governante que, cindido, desempenha com convicção, num mesmo dia, e não raro no mesmo palco, papéis opostos. Ser ou não ser, eis a questão teatral e política. O problema é a organização do Estado brasileiro, defeituosa da base ao topo, na mutilação da representação política. A Constituinte tentou harmonizar os antagônicos, criou caminhos de expressão harmônica dos opostos, conciliou além da política para viabilizar a política e, ao viabilizar a política, viabilizou o político antes de viabilizar o País e o Estado”.