viomundo - publicado em 28 de fevereiro de 2013 às 11:57
O
problema não reside no fato de sermos apresentados como a oportunidade
do momento. E sim nos custos implícitos do conjunto dessas operações de
privatização travestidas retoricamente de “mera concessão”. A sociedade
brasileira vai arcar com o ônus de mais um ciclo de acumulação privada
às expensas do dinheiro público.
O enredo é vendido, para os incautos e desavisados, como a busca da
chave encantada, que serviria de ingresso pleno para o paraíso. Afinal –
já pensou que maravilha? – o Brasil estaria sendo muito bem aceito lá
fora, sempre atuando como plataforma cordial de ganhos assaz
interessantes para o capital financeiro. Mas, na verdade, tudo isso se
assemelha muito mais a um grande pesadelo, tendo em vista as
conseqüências atuais e futuras, bem perversas, que virão para a maioria
de nosso povo. Refiro-me a essas viagens dos representantes do governo
da Presidenta Dilma pelos 5 continentes, na tentativa desesperada de
vender as vantagens de nossas terras como a grande alternativa de
investimento sólido e seguro para o capital internacional.
Tudo se passa como se estivéssemos no interior de uma roda do tempo,
voltando às últimas décadas do século XIX. A economia brasileira se
apresenta completamente dependente da exportação de produtos primários –
em especial, a produção de café. Os poucos e localizados surtos de
tentativa de industrialização terminam sendo abafados pelos interesses
do setor agrário exportador. O movimento abolicionista enfrenta a dura
oposição e os fortes obstáculos do “establishment”, pois o fim da
escravidão e a introdução do trabalho assalariado significariam a
explosão dos custos de produção e inviabilizariam a economia nacional.
(sic)
Naqueles tempos, o ingresso na era da economia urbano-industrial
também estava a exigir um investimento maciço em infra-estrutura. Como a
capacidade de poupança nacional era bastante reduzida, em função da
inexistência de remuneração para aqueles que exerciam o trabalho
produtivo, a estratégia envolveu a atração de investidores e empresas
estrangeiras. Estando o pólo dinâmico do capitalismo internacional
localizado na Inglaterra, para cá vieram as corporações como “Light and
company”, “Bond and company”, e todas as “railways” que tivemos o
direito de acolher. O foco era a geração e a transmissão de energia
elétrica, além da organização e exploração econômica dos transportes
urbanos (bondes) e interurbanos (trens).
As semelhanças com o Brasil do século XIX
Corta para 2013. A dependência de nosso modelo de política econômica
frente à exportação de produtos primários (agricultura e extrativismo
mineral) permanece a mesma. O processo de desindustrialização de nossa
economia é um fato objetivo e o governo pouco ou quase nada faz para
reverter essa tendência destruidora do patrimônio nacional, dos empregos
e da renda interna. A prioridade cega e irracional concedida aos
interesses do agronegócio e a política da valorização cambial sufocam a
indústria que tenta produzir em nosso território. A inundação dos
manufaturados importados é justificada como resultado inevitável das
chamadas “leis de mercado”, uma suposta fatalidade à qual deveríamos nos
acostumar e adaptar. O governo se encarrega de reduzir o “custo
Brasil”, ao promover a desoneração irresponsável da folha de pagamentos e
generalizar as isenções de tributos para o capital.
Os problemas de nossa infra-estrutura são bem conhecidos há muito
tempo. As décadas de ajuste econômico conservador e neoliberal, o
processo de privatização e a prevalência da lógica do financismo não
podem mais ser utilizadas como desculpa para a inatividade ao longo dos
últimos 10 anos. Se no final dos anos 1800 não tínhamos quase nada em
termos de transpores e energia, hoje em dia temos muito por construir no
conjunto do parque de infra-estrutura. Porém, a exemplo do passado,
mais uma vez incorporamos a lógica do neocolonialismo e saímos por aí,
passando o pires pelo mundo afora.
O “road show” e as concessões ao capital internacional
O chamado “road show” protagonizado por estrelas do primeiro time de
Dilma é a manifestação mais simbólica da incorporação da lógica da
dependência e da submissão. A página do Ministério da Fazenda na
internet apresenta a versão em inglês da apresentação do Ministro
Mantega e da publicação impressa a ser distribuída aos interessados. Os
títulos sugestivos são, respectivamente, “The Brazilian Economy and
Investment Opportunities” e “
Infrastructure in Brazil: projects, financing instruments, opportunities”.
O problema não reside no fato de sermos apresentados como a
oportunidade do momento. E sim nos custos implícitos do conjunto dessas
operações de privatização travestidas retoricamente de “mera concessão”.
Afinal, tendo em vista as condições que oferecemos para lograr tal
objetivo a qualquer preço, a sociedade brasileira vai arcar com o ônus
de mais um ciclo de acumulação privada às expensas do dinheiro público.
Essa rodada global, patrocinada por nossos representantes, pontua os
elementos positivos do desempenho econômico brasileiro ao longo do
período recente e o potencial de crescimento futuro de nossa economia.
Até aí, nada de novo. Os grandes investidores internacionais conhecem
muito bem as oportunidades abertas para quem se interessa em vir para cá
e aplicar os seus recursos. E esse cenário de ganhos continua válido,
mesmo depois da corajosa e necessária mudança de postura de nossa
Presidenta, que determinou a seus assessores a redução da taxa oficial
de juros, a SELIC. A diferença é que a maior parte dos interessados
agora deveria estar motivada tão somente pelos ganhos derivados da
atividade produtiva ou na área de serviços.
A apresentação menciona a necessidade de um montante total de US$ 235
bilhões, a serem investidos ao longo dos próximos anos em programas de
concessão de infra-estrutura. A distribuição desses valores de acordo
com os projetos setoriais é a seguinte: i) logística: US$ 121 bi; ii)
petróleo e gás: US$ 74 bi; e iii) energia elétrica: US$ 40 bi. Os
principais projetos detalhados são:
a) Rodovias: 7.500 km.
b) Ferrovias: 10.000 km.
c) Portos: 159 unidades.
d) Trem de alta velocidade: 511 km.
e) Aeroportos: 2 internacionais.
f) Petróleo e gás: 3 rodadas de leilão para exploração de reservas.
g) Energia elétrica: 33.000 MW de geração e 23.200 km de linhas de transmissão.
As facilidades oferecidas ao investidor estrangeiro
Além disso, o documento procura convencer o investidor estrangeiro a
respeito das vantagens em aplicar seus recursos por aqui. Para tanto são
ressaltados justamente os aspectos mais negativos e conservadores da
política econômica do governo. Ou seja, aquelas medidas que se destinam a
beneficiar apenas os interesses do capital em detrimento das
necessidades da absoluta maioria da população. E dá-lhe receituário
típico das demandas dos colunistas de economia dos grandes meios de
comunicação, sempre a serviço dos interesses das associações de
empresários e do financismo.
Com todo o orgulho, o texto em inglês reforça o compromisso do
governo em reduzir as despesas e o déficit com a previdência social, bem
como busca assegurar a continuidade da política de redução dos gastos
correntes de forma geral. A apresentação exibe com toda a satisfação o
êxito da política de obtenção de superávit primário, de forma sucessiva
ao longo dos últimos anos.
Por outro lado, tranquiliza os gestores dos fundos de investimento
quanto à continuidade da definição da taxa de câmbio baseada no
pressuposto da liberdade cambial. Finalmente, o texto reforça a
tendência irreversível para com a desoneração tributária (em especial a
da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos) e com a
redução de impostos de uma forma geral. Em poucas palavras, o recado é
claro: podem vir que o retorno do investimento está tranqüilo, pois o
Estado vai cumprir com seu papel de assegurar seus ganhos.
Não bastasse essa ladainha toda, o governo ainda anuncia medidas que
concretizam tais compromissos, com mais pacotes de benesses. Depois do
grande “lobby” exercido pelos representantes do capital, Dilma recua e
aceita elevar as taxas de retorno previstas para os projetos de
concessão. Ou seja, em total oposição ao discurso a respeito da queda da
taxa de juros, sua equipe anuncia que as taxas de lucro dos projetos de
concessão de infra-estrutura podem chegar a 15% ao ano. Uma loucura,
caso consideremos que a taxa real de juros para uma aplicação em títulos
da dívida pública fica em torno de 2% atualmente.
O conglomerado empreendedor estrangeiro participa de uma licitação
patrocinada pelo próprio Estado brasileiro, para gerir um bem ou serviço
público, em uma operação quase sem nenhum risco envolvido, com uma
demanda garantida por uma eternidade e ainda tem a autorização e o
estímulo do governo para auferir esse tipo escandaloso de retorno
financeiro. Um absurdo!
Não bastasse tamanha generosidade, sempre realizada com recursos
públicos previstos no orçamento, o governo decide por oferecer aos
interessados e vitoriosos nas licitações a engenharia financeira do
BNDES. Leia-se: o banco “nacional” de desenvolvimento vai participar com
aporte de recursos, a custo praticamente nulo, para que os agentes do
imperialismo venham aqui dentro explorar atividades econômicas de
natureza pública!
Imagine-se o que não vai ocorrer dentro de 30 ou 35 anos, quando da
renovação de tais contratos. O segredo desse tipo de empreendimento,
como qualquer outro, é determinado por uma conta muito simples: o
resultado líquido entre receitas e despesas. Aumentar receitas significa
ampliar o número de usuários e, principalmente, o valor das tarifas.
Diminuir despesas significa processos mais eficientes, mas também
reduzir a qualidade dos serviços oferecidos. Os resultados da
privatização de telecomunicações e da energia elétrica estão aí para
quem quiser refletir sobre tarifa pública e qualidade do serviço. E
também sobre a incapacidade das agências reguladoras exercerem seu
verdadeiro papel.
Infra-estrutura: interesse estratégico e soberania nacional
Por se tratar de áreas de interesse estratégico para o País, com
elevada sensibilidade econômica, política, social, tecnológica,
ambiental e de segurança nacional, esse movimento delicado deveria
merecer muita mais atenção e preocupação por parte do governo. Vender
dessa forma irresponsável uma parcela essencial de nossa capacidade
econômica pode trazer consequências irreparáveis no médio e no longo
prazos. A crise econômica internacional reduziu as taxas de ganho por
todo o planeta. Se o Brasil é efetivamente um dos principais pólos de
atração para novos investimentos estrangeiros, nossa postura deveria ser
muita mais exigente e seletiva na procura dos interessados.
Ao invés de oferecer mundos e fundos, deveríamos sim é colocar nossas
exigências em termos de contrapartidas. Isso significaria estabelecer
condições quanto a re-investimento dos lucros auferidos, internalização
de tecnologia aportada, limitação das taxas de retorno financeiro nos
projetos, multas para não cumprimento de cláusulas importantes, entre
outros aspectos.
Em poucas palavras, seria uma excelente oportunidade para
demonstrarmos ao resto do mundo que não existe mais espaço para o
servilismo nem para o excesso de cordialidade nas relações econômicas
com o capital estrangeiro. Que a partir de agora, o Estado brasileiro
iria responder – em primeiro lugar – aos interesses nacionais e
soberanos, sempre da perspectiva da maioria de sua população. Porém,
como o governo não trabalha com um projeto de País nem com uma
estratégia de Nação, vamos cedendo e concedendo o futuro para tocar o
ramerrame do dia-a-dia.
Paulo Kliass é especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Esse é governo do partido que fechou as portas para o "lado de cá".