"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, novembro 17, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil - Out 07

A invenção de “bairros problemáticos”

A espacialização dos problemas socias marginaliza a questão central da pobreza estrutural urbana. A periferia transcende o espaço físico e esbarra na mentalidade segregacionista e na manutenção de uma sociedade "moderna" de castas

Sylvie Tissot

“Cités -guetos”, [1] “bairros problemáticos” ou outros “bairros de exílio” são, há vinte anos, objeto de reportagens dramáticas e às vezes sensacionalistas [2].Mas essa é a única coisa que deve nos instigar ou inquietar? Porque essas categorias territoriais, surgidas na França de 1985-1995, não são um simples “reflexo”, mesmo que deformado, da realidade social; não são apenas exageros ou mentiras. O que está em questão é também, e principalmente, uma nova maneira de olhar e de refletir sobre a pobreza urbana, que, paradoxalmente, mesmo insistindo sobre a gravidade do “problema”, tem como característica principal deixar de lado a origem da dominação social, econômica ou racista.

Como chegamos a essa situação? Para compreender, é preciso desviar o olhar – pelo menos por um instante – desses eternos objetos de investigação, os “bairros problemáticos” e seus moradores, e se interessar pela maneira como o “problema das periferias” foi definido nos anos 1985-1995. Foi nessa época que uma nova política pública foi implementada nos 500 bairros de habitação social. Esse foco teve um duplo efeito. Os dispositivos da chamada política do município permitiram a renovação de inúmeras cités, oferecendo também um acompanhamento realizado localmente por profissionais do desenvolvimento social. Ao mesmo tempo, os financiamentos suplementares obtidos e gastos jamais tomaram a forma de uma redistribuição social e espacial das riquezas que poderia refrear o fosso das desigualdades econômicas. Apesar dos inúmeros apelos aos “Planos Marshal para as periferias”, eles foram limitados. Por outro lado, na mesma época, cortes significativos estavam sendo infligidos às políticas de direito comum, em matéria de educação ou de saúde, nesses mesmos bairros populares.

Além do que, o foco nos “bairros problemáticos” atinge apenas alguns problemas. O diagnóstico sobre o qual a política municipal se apoiou não se limitou às estruturas; a reabilitação das cités degradadas foi conduzida com base em uma nova palavra de ordem: a participação dos moradores. Foram desenvolvidos então, e pela iniciativa dos agentes locais, reuniões de deliberação conjunta sobre a reabilitação das cités, piqueniques coletivos e conselhos de bairros, em que estes podem expressar suas reivindicações para que elas realmente sejam levadas em consideração.

Tais medidas são necessárias. Mas, enquanto elas eram priorizadas, eram relegadas a um segundo plano as realidades econômicas, como o desemprego que os moradores desses bairros, em sua maior parte operários e/ou imigrantes, sofrem diretamente. Os “bairros” chamaram a atenção dos poderes públicos, mas à custa de uma outra maneira de ver os “problemas”. As categorias territoriais, amplamente utilizadas para se pensar a pobreza, representaram um papel paradoxal, funcionando como eufemismos para designar os moradores descritos, não mais em referência ao estatuto social, mas em função de suas “origens” nacionais, culturais ou “étnicas”. Essa “etnização” da questão social (cujas raízes estão bem além da política do município) teve como efeito apresentar as raízes étnicas como sendo a única origem dos problemas – e mesmo das ameaças – para o resto da sociedade e não como um problema também para as pessoas que sofrem o racismo.

“Cidadania”, “participação dos moradores”, “projetos”, valorização da “vizinhança” e do “lugar”, “transversalidade” e “concertação” entre “parceiros”: é difícil questionar essas palavras de ordem de tão familiares que se tornaram. A questão torna-se ainda mais difícil quando esse vocabulário passa a nos parecer humanista e progressista, em um contexto político em que a retórica da insegurança, da “escória” e das “zonas do não-direito” prevalece. No entanto, desde que a participação dos moradores se tornou o remédio miraculoso para cuidar dos “males das periferias”, ela foi definida de maneira singularmente restritiva: ocultação das condições de vida material em benefício do “diálogo” e da “comunicação” entre os moradores; psicologização e, portanto, despolitização dos problemas sociais, alimentadas por uma representação do bairro como um espaço neutro e pacificador; valorização da boa vontade individual e das soluções modestas e pontuais, desvalorização concomitante do conflito e das reivindicações consideradas “políticas” demais.

Uma série de livros e outros manuais destinados aos novos profissionais do desenvolvimento social explica, por exemplo, como “transformar as reivindicações em proposições”, “os pedidos de assistência em projeto de desenvolvimento” e, sobretudo, segundo o consagrado provérbio, ensinar os moradores a “pescar o peixe” em vez de recebê-lo. Vemos assim como a política do município participou da redefinição das políticas sociais enquanto intervenções individualizantes e “responsabilizantes”, convidando os moradores à “tomar nas mãos” as transformações necessárias.

Além disso, a virada repressiva que aconteceu a partir de 1997 não está desvinculada da maneira como o problema dos bairros foi definido de 1985 a 1995. Ela se baseia nas mesmas categorias territoriais, e parecerá bem mais legítima já que há dez anos a pobreza vem sendo apresentada mais como uma questão psicológica e local, e os indivíduos por ela afetados são convidados a transformar a si mesmos em vez de apontar os mecanismos estruturais que os condicionam.

A história dessa despolitização apresenta, porém, aspectos surpreendentes. Ela tem de fato suas raízes em um movimento contestatório particularmente poderoso. Durante a década de 1960, urbanistas, assistentes sociais, militantes e pesquisadores denunciaram a atitude autoritária e tecnocrática do Estado planejador para promover, em nome do “meio ambiente”, uma ação global de reabilitação das cités, implicando as coletividades locais e funcionando com base em uma concertação maior com os moradores. Um movimento particularmente importante se desenvolveu na França, bem como em outros países europeus e americanos, contra o urbanismo de altos edifícios, de conjuntos habitacionais e auto-estradas, e contra as brutais operações de renovação dos centros das cidades.

Os princípios fundadores das políticas de habitação desde o pós-guerra (o planejamento urbano e a afirmação do Estado, representante e promotor do interesse geral) têm na década de 1970 um impulso suplementar, mesmo que a inspiração ideológica seja bem diferente, com a ascensão dos dogmas neoliberais. A profunda crise que se seguiu abriu caminho para outras formas de fazer e de pensar os problemas urbanos.

A Política do Município é o resultado desses novos movimentos reformadores, mas suas manifestações concretas só podem ser compreendidas em relação ao contexto em que ela se institucionalizou. Na década de 1980, a esquerda no poder assume posições políticas e econômicas ditas da austeridade.

Oriundos, em sua grande maioria, do meio associativo e para-público, mas também de todo o movimento crítico e contestador do pós-maio de 1968, os promotores do desenvolvimento social dos bairros ocupavam posições marginais na administração. A Política do Município, por meio da qual eles vão procurar consolidar as experiências conduzidas nos bairros de habitação social lhes oferece uma reclassificação profissional e um lugar de reconversão militante. [3] Mas isso só é possível à custa de uma adesão a um reenquadramento orçamentário e a uma redefinição das políticas sociais, concebidas não mais como políticas de redistribuição, mas como a implantação local e mínima de uma rede de assistência aos mais desfavorecidos.

O termo “bairro”, primeiramente de “habitação social” depois “de risco” e finalmente “problemático”, se impregna de conotações negativas: esses territórios são descritos como necessitando menos do desenvolvimento de uma ação autônoma do que da intervenção de terapeutas. De forma que a dimensão contestadora, muito presente no apelo à mobilização dos moradores, se dilui para dar lugar a uma ação pública racionalizada e profissionalizada, com produção estatística e desenvolvimento de uma nova função: o desenvolvimento social urbano.

Não somente os agentes da Política Municipal se submetem a esse novo quadro político, mas alguns, desejosos de reformar o Estado e não somente os bairros carentes, vão retomar por sua conta a temática da “modernização dos serviços públicos” que, nas versões liberais dominantes, se reduzem com freqüência a um simples recuo. [4] Vemos assim antigos militantes (como, por exemplo, os originários do movimento maoísta) desenvolverem uma crescente desconfiança em relação aos moradores, acusados de se comprazer com o assistencialismo e sobretudo em relação ao Estado como tal, suspeito de encorajar esse assistencialismo e de só gerar disfunções e rigidez.

Além das trajetórias dos promotores de uma ação nos “bairros” e das escolhas da esquerda governamental, os intelectuais representaram igualmente um papel chave. Nas universidades como nos ministérios, a questão das periferias suscitou uma importante literatura, que não se limita a uma análise dos problemas sociais e econômicos. Vários intelectuais desenvolveram a idéia de que esses territórios marcavam ou encarnavam o advento de uma nova questão social. Ora, essa categoria de análise, retomada pela mídia e igualmente utilizada pelos agentes da política municipal, postula que os problemas sociais colocariam em questão os “excluídos” e os “incluídos”, e estariam ligados exclusivamente à cidade. Estreitamente associados ao conceito de exclusão, alguns trabalhos vieram assim legitimar o abandono das questões ligadas ao trabalho. Esses últimos pertenceriam a um período pretensamente terminado, e seria necessário então olhar para as periferias, territórios percebidos como “separados” ou “relegados”, e ajudar as populações descritas como “esquecidas”, e não mais “exploradas” ou “dominadas”. [5]

Último elemento-chave: a atitude das municipalidades, em primeiro lugar aquelas que são administradas pela esquerda, onde se encontra a maior parte dos bairros de habitação social. Desde o final da década de 1980, essas municipalidades adotaram a temática da “exclusão” nos “bairros” e validaram sua dimensão despolitizante. A política da municipalidade trouxe confiança e, sobretudo, apareceu no início da década de 1990 como portadora de novas soluções para enquadrar a juventude popular (e assim evitar as “revoltas”). Principalmente, a “democracia local” suscitou a esperança de preencher o fosso que se criou entre a classe política e os cidadãos, e mais particularmente as classes populares. [6]

A “espacialização dos problemas sociais” [7] tem como efeito tornar invisível tudo o que a situação dos bairros mais pobres deve ao que se passa em outros universos, como nos “bairros nobres” menos mediatizados, mas também segregados, ou ainda no mundo do trabalho onde a “condição trabalhadora” se desfaz e se recompõe. [8] Mas é preciso insistir sobre as batalhas simbólicas de efeitos verdadeiramente decisivos que são travadas nos ministérios, nos escritórios de especialistas, na mídia... e mesmo entre os intelectuais, e cuja saída há várias décadas conduz ao esquecimento do impacto das políticas macroeconômicas, do questionamento da função redistributiva e protetora do Estado social ou ainda da amplitude e da impunidade das discriminações.

A espacialização dos problemas socias marginaliza a questão central da pobreza estrutural urbana. A periferia transcende o espaço físico e esbarra na mentalidade segregacionista e na manutenção de uma sociedade de castas «moderna»



[1] Cité: A partir da década de 1980 a palavra cité também é usada como sinônimo de periferia (N.T.)

[2] Loïc Wacquant. Parias urbains, Ghetto. Banlieues. Etat. Paris : La Découverte, 2006.

[3] Sylvie Tissot, Christophe Gaubert e Marie-Hélène Lechien. Reconversions militantes. Limoges : PULIM, 2006.

[4] Yasmine Siblot. Faire valoir ses droits au quotidien: Les services publics dans les quartiers populaires. Paris : Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 2006.

[5] François Dubet et Didier Lapeyronnie, Paris. Les quartiers d’exil. Seuil, 1992.

[6] Michel Koebel, Le Pouvoir local ou la Démocratie improbable. Broissieux : Editions du Croquant, 2006.

[7] Sylvie Tissot e Franck Poupeau, “La spatialisation des problèmes sociaux”, Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, set. 2005, n° 159, pp. 5-9.

[8] Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, Grandes fortunes: dynasties familiales et formes de richesse en France. Paris : Payot, 2006; Stéphane Beaud e Michel Pialoux. Retour sur la condition ouvrière: enquête aux usines Peugeot de Sochaux. Paris : Fayard, 2005.

Instituto Humanitas Unisinos - 17/11/07

O futuro do trabalho em discussão. Um artigo de Gilberto Dupas

"Ofuturo do trabalho aparece com contornos muito sombrios. Os otimistas que tratem de torcer para estarmos aqui a ver fantasmas", escreve Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, em mais um artigo sobre o tema, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 17-11-2007.

Eis o artigo.

Terminaremos aqui o exame da profunda crise que enfrenta o trabalho estável e de boa qualidade no capitalismo global. Um dos paradoxos contemporâneos é que muitos dos que enfrentam o desemprego ou o subemprego receberam uma sólida educação; mas a máquina substituiu o homem ou o trabalho migrou para lugares onde se aceita trabalhar a preços vis.

Na pujante Coréia do Sul, orgulhosa de seu amplo e forte ensino superior, a queixa da juventude atual é constatar que essa conquista não é suficiente para garantir uma ocupação.

Na área de serviços, a automação transformou em realidade a melhor ficção científica. No Brasil, o moderníssimo e altamente rentável setor bancário se ampliou largamente nos últimos 20 anos e, apesar disso, reduziu pela metade seus postos de trabalho.

Na indústria pesada dos EUA - entre 1982 e 2002 - a produção de aço aumentou de 75 milhões para 102 milhões de toneladas, embora o número de operários metalúrgicos tenha caído de 290 mil para 74 mil. O grosso desses empregos não saiu do país, foi substituído por máquinas sofisticadas.

Os que mais sofrem são os jovens, que precisam entrar, e os “velhos”, que lutam por permanecer no mercado. Agora os dispositivos inteligentes de ativação de voz também ameaçam a recentíssima fronteira de empregos - ainda que de má qualidade - dos serviços de telemarketing. E os leitores de códigos de barra estão liquidando muitas funções em lojas e supermercados. Um dos poucos mercados para jovens que ainda permanecem em ampla expansão mundo afora, pasme-se, é o dos moto boys. Mas, em geral, as novas oportunidades não cobrem as crescentes perdas.

Richard Sennett, professor de Sociologia da London School of Economics, entrevistou, nos anos 1990, jovens e talentosos profissionais de publicidade na Europa. Eles tinham a sensação de estar “dobrando o cabo” aos 30 anos de idade e de ficar “fora do jogo” aos 40. Essa é uma das evidentes contradições do “progresso” no mundo globalizado. A nova medicina permite-nos viver e trabalhar por mais tempo, mas a extinção de capacitações se acelera e ninguém quer mais saber de “velhos”. Vivemos mais tempo, mas para quê? No atual padrão tecnológico, os especialistas em computação e os médicos precisam reaprender suas técnicas, no mínimo, três vezes em sua vida profissional. E isso vai piorar. O empregador aprendeu que é melhor contratar um jovem de 25 anos, barato e cheio de energia, que voltar a treinar um homem de 50 anos. Além do mais, um jovem imigrante turco europeu se comporta, em geral, de maneira prudente - quando tem problemas no emprego “sai de fininho” porque carrega menos “bagagem familiar”.

A extinção de capacitações é uma característica permanente do avanço tecnológico. A automação pouco precisa da experiência. Enfim, as forças do mercado fazem com que seja mais barato comprar novas capacitações do que pagar pelo retreinamento. Os Estados nacionais, por sua vez, pouco conseguem influir na geração de empregos formais; aprenderam a atender razoavelmente os que estão no desemprego absoluto, mas não sabem como lidar com o subemprego.

O processo de avaliação de talento depende agora da “aptidão potencial”, da capacidade de transitar de um tema a outro. Como os conteúdos do trabalho e a solução dos problemas estão em contínua modificação, qualquer aprofundamento exagerado é um desperdício, pois os projetos são sempre de curta duração. O conceito de trabalho em equipe muda. Não há tempo para conhecer bem os companheiros, pois daqui a pouco serão outros. A questão se resume em colocar logo um novo grupo em ação. A pressão é para obter resultados rápidos. Não há mais como aprender com os erros.

O ressentimento que os trabalhadores cultivavam, por conta das tensões do sistema econômico, nos anos do “capitalismo social”, persiste hoje ainda mais forte, agora por razões diferentes: sentimo-nos muito desprotegidos diante de Estados frágeis e ineptos; as empresas, cada vez mais pragmáticas, minimizam de toda forma a importância do trabalho; e os sindicatos se transformaram em trambolhos inúteis diante da dura realidade do emprego informal e flexível. Para alguns cientistas sociais, esse ressentimento pode explicar o fato de tantos trabalhadores que se posicionavam na centro-esquerda terem passado para a extrema-direita, transformando tensões materiais em símbolos culturais.

O que mais queremos são âncoras mentais e emocionais que nos amparem nas novas tormentas. Na falta delas, fica a busca aflita de uma proteção que não existe mais, e uma necessidade ainda maior de fabricar heróis salvadores. Isso gera fenômenos de massa estranhos, como os violentos filmes dos justiceiros americanos ou o sucesso de Tropa de Elite entre nós.

Diante desse quadro de cores pesadas, o lúcido Sennett enxerga três frágeis iniciativas “inovadoras”. Uma delas é fazer os sindicatos funcionarem como uma espécie de agência de empregos; e “comprarem” cotas de planos de aposentadoria complementar e assistência médica para “sortear” entre seus membros, oferecendo com isso um mínimo senso de solidariedade e comunidade, tão escasso no mercado de trabalho. Outra é sugerir às pessoas que tenham - se possível - sempre mais de um trabalho parcial para estarem mais preparadas quando da inevitável perda de um deles, preservando a auto-estima. Finalmente, antevê-se um Estado limitado a “bolsas-família” e programas de “renda mínima” para minorar o sofrimento mais radical.

Visto assim, o futuro do trabalho aparece com contornos muito sombrios. Os otimistas que tratem de torcer para estarmos aqui a ver fantasmas.

Instituto Humanitas Unisinos - 17/11/07

Maranhão ganha banco quilombola. A moeda é o guará


O primeiro banco exclusivamente quilombola do País começa a operar na próxima terça-feira, dia da Consciência Negra, em Alcântara, no Maranhão. Ele funcionará a partir de parcerias com instituições que organizam as comunidades quilombolas locais. Sua moeda corrente será o guará, com o mesmo valor do real e usada apenas naquela comunidade. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo, 17-11-2007.

Instituto Humanitas Unisinos - 17/11/07

Por que cresce a desigualdade? Artigo de Jean-Paul Fitoussi

"O aumento das desigualdades internacionais tem sido, nas úlitmas décadas, um fenômeno universal em todos os níveis de desenvolvimento" constata Jean- Paul Fitoussi, prestigiado economista francês, em artigo publicado no jornal italiano Repubblica, 13-11-2007.

Eis o artigo.

Segundo o que emerge incontestavelmente da última edição das perspectivas econômicas do FMI, nestas últimas décadas o aumento das desigualdades internacionais tem sido – salvo pouquíssimas exceções – um fenômeno universal em todos os níveis de desenvolvimento. As causas invocadas para explicá-lo são conhecidas há tempo: a globalização comercial, a globalização financeira e o progresso tecnológico. E também não surpreende a conclusão do estudo do FMI, que imputa a amplitude do fenômeno essencialmente ao terceiro dos mencionados fatores. Os dois primeiros, no entanto, se compreenderiam em parte alternadamente, já que a intensificação dos movimentos dos capitais amplia as desigualdades e o incremento das trocas internacionais tenderia, ao contrário, a reduzi-las. Como se realmente fosse possível distinguir entre estas três causas, que de fato se alimentam reciprocamente! Como se a globalização não fosse induzida pelo baixo custo de todos os transportes – a começar por aquele das informações. E de que outra coisa se trata, senão de um progresso tecnológico?

De fato, o aumento quase universal das desigualdades é uma realidade não contestável nem contestada. Mas, a esta altura devemos interrogar-nos sobre suas conseqüências. De maneira anistórica, isenta dos efeitos das diferenças entre as condições de partida dos indivíduos, onde o passado não determine o presente e o futuro, as desigualdades constituiriam um potente motor de progresso econômico e social.

Suponhamos, por exemplo, que o título de habilitação ao ensino superior permita aspirar a uma remuneração dez vezes superior àquela percebida pelos professores das escolas secundárias. A dinâmica da alocação dos recursos e dos incentivos encorajaria um número sempre maior de jovens a prosseguir nos estudos após o exame de maturidade, em benefício próprio e pelo bem do país. O mesmo raciocínio vale também para as diferenças de remuneração em outros setores de atividade que promovem uma eficaz dinâmica de realocação do trabalho, em benefício da expansão econômica e às custas das indústrias em declínio. Evidentemente, dinâmicas virtuosistas deste tipo não existiriam se os salários fossem iguais em todos os setores, ou se os laureados percebessem remunerações um pouco superiores aos outros. Em tal caso, a globalização e/ou o progresso tecnológico fariam infalivelmente crescerem as desigualdades.

O tipo de progresso tecnológico que hoje conhecemos não é neutro na medida em que aumenta ao mesmo tempo a demanda de trabalho qualificado e o desinteresse pelo não qualificado. Mas, o aumento das desigualdades que disso resultam seria fecundo se incitasse realmente os jovens a se empenharem por estudos superiores (mesmo à custa de contrair empréstimos) e os menos jovens a aumentarem as próprias competências através da formação permanente. Nesta visão anistórica, as desigualdades e o seu crescimento seriam potentes motores de uma mobilidade social ascendente, prenúncio de novas oportunidades.

Mas, voltemos ao nosso mundo assim como ele é, com seus obstáculos à instrução, à formação e ao investimento pessoal, assinaladamente em razão do racionamento do crédito. A mobilidade social é freada, se não impedida em razão do incomensurável capital social, cultural, financeiro e patrimonial herdado por cada indivíduo. Por isso, os únicos a poderem colher as oportunidades criadas pelas novas desigualdades são aqueles que já se beneficiam de condições favoráveis. Para nos limitarmos a um único exemplo: o melhor funcionamento dos mercados financeiros – ou seu “aprofundamento”, como hoje se diz – favorece quem já dispõe de suficiente riqueza, aumentando assim artificialmente as desigualdades.

Para a grande maioria, as esperanças e os incentivos à mobilidade social são reduzidos também pela dificuldade de acessar as grandes escolas, socialmente ainda mais homogêneas do que no passado, e pela atual degradação de muitas universidades. Vários estudos demonstram, por exemplo, que nos níveis mais baixos da escala dos rendimentos a desocupação é muito mais difusa e a continuidade do trabalho muito inferior em confronto com as faixas de renda mais altas. Quando a esperança de mobilidade social é vã, o trabalho tem um sabor amargo. Em vários países europeus os pais tiveram que rever por baixo as suas previsões de progresso social e temem para os seus filhos uma sorte pior do que a sua.

Um dos sintomas de quanto sejam frágeis as esperanças que se alinham no horizonte é o atual debate sobre o modo de mensurar o poder aquisitivo. Segundo alguns, o índice dos preços que, por definição, corresponde a uma média, não reflete corretamente o andamento do poder aquisitivo e principalmente aquele das faixas de população de mais baixa renda, tanto que se pensou na criação de uma pluralidade de índices, para melhor refletir a evolução dos preços por categorias. Por que não? Mas, ao mesmo tempo é evidente que, se hoje o problema se põe nestes termos, é porque se pressupõe implicitamente a crescente dificuldade de passar de uma categoria à outra, e, sobretudo porque um aumento do poder aquisitivo através do incremento da renda e dos salários parece sempre improvável.

No contexto de uma sociedade bloqueada, as crescentes desigualdades deixam de ser o motor de uma mobilidade social ascendente, perdendo assim sua justificação essencial. Além do mais, as diferenças se ampliam em medida muito maior do que a imputável à globalização e ao progresso tecnológico, precisamente porque os benefícios e as oportunidades que eles oferecem são reservados a uma faixa muito restrita da população. E a distância, ou melhor, o abismo entre as categorias sociais corre o risco de se ampliar tanto que pode tornar a sociedade ainda menos dinâmica.

Tem se afirmado hoje um discurso corrente e consensual sobre a necessidade de investir na instrução e, mais em particular, no ensino superior e na pesquisa. Serei certamente o último a discordar. Este consenso nasce, todavia, da idéia de ser importante investir neste campo principalmente para favorecer o crescimento, e aqui tenho algumas dúvidas. A menos que este esforço seja acompanhado por todas as medidas necessárias para repor em movimento a mobilidade social ascendente, ou, em outros termos, para uma dinâmica de progresso social. Seria este, então, seu mais benéfico resultado.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 16/11/07

'No século XIX, Marx já previa a globalização'. Entrevista com Eric Hobsbawm


Eric Hobsbawm aos 90 anos é uma referência indiscutível no mundo dos historiadores. Autor da História do século XX. 1914-1991, Guerra e paz no século XXI e de sua autobiografia Anos interessantes, entre muitos outros títulos, defende a força das idéias de Marx para analisar o que acontece hoje no mundo. A reportagem-entrevista sobre diferentes temas é do El País, 13-11-2007 com o historiador inglês que esteve em Barcelona. A tradução é do Cepat.

Weimar e Hilter. “Era inevitável à politização naqueles dias. Vivia na Alemanha e não podia ser social-democrata (eram muitos moderados), nem nacionalista (eu era inglês e judeu), nem me interessava o sionismo. Assim foi que me alistei em uma associação juvenil que embora se chamasse socialista, estava dominada pelos comunistas. Assisti ao colapso da República de Weimar e participei ativamente (o que significava correr riscos) nas eleições de 1933 que ganhou Hitler. Foi então quando fui para a Inglaterra e comecei a estudar em Cambridge”.

Trinta anos de guerra. “Com a guerra de 1914 terminou o mundo da grande cultura burguesa. Veio depois mais de trinta anos de guerras, revolução, instabilidade e crise, uma época catastrófica. Quando terminou a II Guerra Mundial entramos numa aceleração da economia, a sociedade e a cultura não cessarão mais. Não foi um salto, foi um crescimento continuado. A Internet transformou tudo faz apenas 15 anos”.

A força do marxismo. “Os marxistas acreditavam que a classe operária ia crescer e o que aconteceu é que ela decresceu e em países como os Estados Unidos ou a Inglaterra estão de desindustrializando. A luta política baseada na luta de classes já não é muito efetiva. Mas Marx sobrevive em sua concepção materialista da história e na sua análise do capitalismo. No século XIX já vaticinava a globalização, e quando se celebrou o 150º aniversários do Manifesto Comunista, as crises econômicas do sudeste asiático e da Rússia em 1997 e 1998 confirmavam sua predições. O poder do marxismo segue intacto”

A revolução russa. “O socialismo triunfou em países atrasados e sua obsessão foi modernizá-lo. Na União Soviética a idéia era desencadear uma rápida industrialização e para fazê-lo se tornou necessário recorrer a procedimentos autoritários. Não quero justificar os campos de trabalho forçados que são injustificáveis, mas o sucesso conseguido foi extraordinário. Durante a II Guerra Mundial, a União Soviética não sucumbiu, mas derrotou o seu inimigo mais poderoso: o exército alemão. Não fez isso mobilizando as massas. Conseguiu porque era um país industrializado com notáveis avanços tecnológicos e com gente preparada. O modelo para conseguir uma industrialização tão rápida foi a economia de guerra. O preço foi não conseguir que a economia tivesse uma dinâmica própria”.

Os fundamentalismos. “Afeta a todas as religiões. No caso islâmico, a revolução que triunfou no Irã tinha uma forte vontade de consolidar um Estado, centraliza-lo e moderniza-lo. Os fundamentalistas judeus são desde 1967 os mais acérrimos defensores de Israel e reclamam suas ambições imperialistas. E não se pode esquecer que da reviravolta fundamentalista dos católicos com os últimos papas e das comunidades de protestantes dos Estados Unidos”.

Instituto Humanitas Unisinos - 16/11/07

Caos à vista no RS. O comentário de Nassif


Do economista Luis Nassif em seu blog, 15-11-2007.

“A crise das finanças gaúchas é trabalho de várias gerações, com a contribuição inestimável dos três últimos governadores, Antonio Britto, Olívio Dutra e Germano Righotto. Sempre achei o desafio de colocar as finanças em ordem muito acima das forças e qualidades da governadora Yeda Crusius. Com o veto ao aumento de impostos, pela Assembléia Legislativa gaúcha, é caos à vista. É navio à deriva sem comando.
Não é uma mera crise política, não. Tem perspectiva concreta de lançar o Estado no caos.”

Instituto Humanitas Unisinos - 16/11/07

As importantes mudanças no Ipea. O resgate do papel do Estado

O economista político e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), Gilberto Dupas, avalia que as mudanças no quadro de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) fazem parte da tentativa do governo de resgatar no segundo mandato de Lula o papel de planejamento estratégico do Estado. Braço mentor dos programas de desenvolvimento dos governos das décadas de 60 e 70, no regime militar, o Ipea, com a democratização do País, perdeu espaço na formulação de políticas públicas e se tornou nos últimos anos um órgão de pesquisa mais voltado à análise de conjuntura econômica. A reportagem é de Adriana Fernandes e Fabio Graner e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 16-11-2007.

Isso fez surgir um quadro de técnicos com maior liberdade para avaliar a política econômica e criticar o próprio governo.Com o novo formato do Ipea, afirma Dupas, era de esperar mudanças no quadro da instituição. “Aparentemente, o governo Lula está interessado em fazer uma política de maior participação do Estado na definição de políticas de longo prazo do País, e o Ipea é o órgão disponível para isso”, destaca. O movimento ficou mais previsível com a criação do Ministério Extraordinário de Assuntos Estratégicos, comandado por Roberto Mangabeira Unger, para onde o Ipea foi transferido.

“Era natural que o perfil dos técnicos se adequasse a essa nova orientação”, ressalta. Sem querer avaliar as mudanças, Dupas pondera que as críticas à política econômica feitas pelos economistas afastados do Ipea não deixavam o governo numa situação “muito confortável”.

“São críticas importantes. De outro lado, talvez o local mais desejável seja outro”, pondera Dupas, que já trabalhou na coordenação de planejamento do Ipea no fim da década de 1960 e início dos anos 70 e é defensor do resgate da capacidade de planejamento do Estado. Dupas ressalta que essa é a estratégia da Coréia, para se recuperar do declínio rápido com a ascensão da China e da Índia.

Uma fonte com trânsito no governo e no atual comando do Ipea disse que a saída dos economistas já era esperada, porque, na avaliação da ala desenvolvimentista do governo, estaria prevalecendo, sobretudo no Grupo de Acompanhamento Macroeconômico, um pensamento que é considerado próximo da ortodoxia neoliberal. “Era um espaço que não permitia debates”, afirmou a fonte.

Instituto Humanitas Unisinos - 16/11/07

Chávez diz que país desenvolverá energia nuclear


A Venezuela “vai começar a desenvolver energia nuclear com fins pacíficos, como o Brasil está fazendo, como a Argentina está fazendo”, declarou ontem o presidente venezuelano, Hugo Chávez, em entrevista à TV France 24. Chávez se referiu à questão nuclear ao ser questionado sobre seu apoio ao Irã, que ele pretende visitar nos próximos dias. Os EUA e alguns de seus aliados ocidentais acusam o Irã de estar usando seu programa nuclear para desenvolver armas atômicas. “Eu, particularmente, exijo respeito para o Irã. Não creio que o Irã esteja construindo uma bomba atômica. Há anos venho viajando a Teerã e o Irã está desenvolvendo energia nuclear com fins pacíficos”, afirmou Chávez. “Tal como o Irã, a Venezuela vai começar a desenvolver também a energia nuclear com fins pacíficos”, disse. A notícia é dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Clarín, 16-11-2007.

Instituto Humanitas Unisinos - 15/11/07

Califórnia move ação contra Washington para reduzir emissões de CO2

No dia 8 de novembro, a Califórnia moveu uma ação contra o governo federal americano, para forçar Washington a decidir se o Estado da costa oeste tem o direito ou não de impor aos fabricantes de automóveis uma regulação estrita de emissões de gás poluente dos veículos. A reportagem é do Le Monde, 9-11-2007. A tradução é do Cepat.

Se a iniciativa der certo, a Califórnia será o primeiro Estado americano a tomar este tipo de medida restritiva, temida pelos fabricantes americanos. Cerca de 12 outros Estados poderão pisar no calcanhar dessas empresas se a Califórnia obtiver o sinal verde da lei federal.

Um porta-voz do procurador geral de um desses Estados, o de New Jersey, declara: “É hora de a EPA [a Agência federal para a proteção do ambiente] se decidir a agir ou de liberar o caminho”. A ação do Estado da Califórnia visa especificamente a EPA. Ela estava sendo aguardada desde que o governador republicano da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, havia anunciado na primavera sua intenção de mover a ação.

Desde dezembro de 2005, a Califórnia reclama uma emenda à lei federal sobre o ar próprio, a fim de ela incorpore um texto legal californiano instituindo uma regulação das emissões de gás de efeito estufa dos carros e dos caminhos ligeiros. Onze outros Estados adotaram disposições similares visando a lutar contra o aquecimento do clima, e cinco outros estão dispostos a fazer o mesmo.

Em sua ação de 16 páginas, o procurador geral da Califórnia explica: “Quanto mais retardarmos a redução das emissões [de gás de efeito estufa], tanto mais o impacto do aquecimento na Califórnia será caro e prejudicial”. Arnold Schwarzenegger afirma que uma modificação da lei federal é indispensável se a Califórnia quiser atingir seu objetivo de diminuir suas emissões anuais em 25% até 2020, objetivo inscrito na legislação californiana desde 2006.

Instituto Humanitas Unisinos - 15/11/07

Lucro das construtoras dispara

A nova safra de balanços das companhias imobiliárias, que terminou ontem com números grandiosos de lucro, confirma a nova era de euforia no setor. Os crescimentos foram de, no mínimo, dois dígitos. O da Rodobens foi de 1.155%. Algumas empresas saíram do vermelho. Com a queda dos juros, a melhora na renda e a disposição dos bancos em alongar os prazos de financiamentos, o brasileiro passou a comprar imóveis num ritmo há muito tempo não visto, dando uma escala inédita às empresas de capital aberto. A reportagem é de Patrícia Cançado e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-11-2007.

O caso da Cyrela, maior companhia imobiliária do País, é emblemático. Ontem, ela divulgou um lucro 187% superior ao do terceiro trimestre de 2006. No acumulado de janeiro a setembro, os ganhos dobraram em relação a 2006 e atingiram R$ 330,7 milhões. O Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização), indicador que mede a capacidade de geração de caixa de uma companhia, cresceu nada menos que 318%.

Nesse setor, o lucro não é a melhor forma de medir o desempenho das empresas. Ao contrário dos bancos ou de uma indústria tradicional, o ciclo do negócio é mais longo. Os ganhos que elas têm hoje também são resultados de lançamentos feitos há dois ou até três anos. Mas o crescimento do lucro não deixa dúvida: o ritmo dos negócios mudou radicalmente.

As empresas estão lançando mais produtos, vendendo mais rápido e com menos custo. “O mercado ganhou uma escala diferente. E o principal facilitador dessa situação é o aumento do financiamento”, diz o gerente de relações com o investidor da Gafisa, Bruno Teixeira. “Muitas empresas que antes faziam lançamentos de R$ 80 milhões, agora, com abertura de capital, chegam a R$ 1 bi.” Cálculos da Cyrela prevêem que os lançamentos podem chegar a R$ 50 bi, 40% a mais que em 2007. Só as empresas listadas na Bolsa podem despejar projetos de mais de R$ 30 bi no próximo ano.

Segundo levantamento feito pelo núcleo de Real Estate da Poli/USP, a capacidade de investimento das empresas ficou oito vezes maior nos últimos dois anos. “Com todo esse dinheiro entrando, é natural que os lucros venham bons. Eles só seriam ruins se o foco das empresas estivesse errado. E parece que esse não é o caso”, afirma o professor da Poli/USP, João da Rocha Lima Jr.

Ainda é cedo para dizer se as empresas continuarão com resultados muito acima da média dos outros setores. A tendência desse negócio é ganhar ainda mais escala. Os financiamentos imobiliários representavam apenas 2% do PIB em 2006. As empresas trabalham com cenário otimista: porcentuais entre 10% e 15% em cinco anos.

Instituto Humanitas Unisinos - 15/11/07

Um retorno ao passado para entender o futuro. Entrevista especial com Gunter Axt

O processo e o contexto histórico brasileiro, platino e mundial são, freqüentemente, analisados à margem da história do Brasil e do Rio Grande do Sul. Ainda que possua um histórico peculiar, todo o processo que envolveu a construção do Estado depende muito desse contexto mais englobado e pouco analisado. Com o intuito de resgatar a história do Estado, entendendo-o globalmente, um grupo de historiadores lançou “História Geral do Rio Grande do Sul” (Porto Alegre: L&PM Editores, 2007). São análises diversas, de diferentes pesquisas, que visam a entender o Rio Grande do Sul como um todo. Um dos períodos de maior destaque e debatido amplamente ainda hoje é a República Velha, tema do terceiro tomo do livro.

Sobre o período e seus contextos, a IHU On-Line conversou, por telefone, com Gunter Axt, que fala das reflexões que podem ser realizadas a partir deste assunto e sobre a importância desse resgate histórico. “A história tem esse dinamismo, as perguntas formuladas sobre o passado partem justamente de impasses e desafios vividos no presente. E é sempre uma riqueza as pessoas consultarem o manancial da pesquisa histórica, porque elas vão encontrar elementos que talvez as ajude a compreender melhor as situações vividas no presente”, contou-nos Axt.

Gunter Axt é graduado e mestre em História, pela UFRGS. Realizou doutorado em Historia Social pela USP. É pós-doutor pela Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Ele é pesquisador associado da USP e diretor da Axt Consultoria Histórica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que reflexões podemos fazer acerca do Volume IV da obra "História Geral do Rio Grande do Sul", que se propõe a discutir a República Velha?

Gunter Axt – A primeira questão é que nós precisamos saber que o Rio Grande do Sul não precisa ser analisado separadamente. Ele é uma parte do processo histórico brasileiro, bem como do processo histórico platino e do processo histórico mundial. Logo em seguida, é importante considerar os motivos que levaram a passagem do Império para a República do Brasil, e como isso repercutiu no Rio Grande do Sul. Eu diria que uma das coisas fundamentais que garantiu durante o século XIX, portanto durante o Império, a unidade territorial brasileira e aquilo que se convencionou também de chamar de estabilidade institucional brasileira, foi justamente um certo acordo tácido que a elite econômica e dirigente desse país formou na época no sentido de preservar uma unidade jurídica. Isso porque a unidade jurídica era fundamental para que se preservasse o sistema escravista, que era base para a economia e das relações sociais da época. Veja: se uma província do Império tivesse autonomia política e administrativa e legislativa, ela poderia, de forma autônoma e independente, decretar a abolição da escravatura. E os escravos das outras províncias poderiam fugir para lá e automaticamente seriam alforriados. Portanto, esta unidade jurídica era fundamental.

Esse foi o motivo pelo qual o Brasil não teve uma Federação, porque a Federação foi o projeto inicial candente no início do século XIX, haja vista, por exemplo, o que foi proposto na Revolução Pernambucana de 1817 (1). No entanto, se optou por um modelo administrativo centralizado durante o Império, justamente para que tivéssemos unidade jurídica e preservássemos a escravidão. Agora, no momento em que a escravidão é abolida, em 1888, e novas elites econômicas estão surgindo em novas fronteiras econômicas para o país, sobretudo São Paulo e Rio Grande do Sul, o clamor por autonomia federativa ressurge, e o império acaba caindo quase como fruta podre, até porque a necessidade de unidade jurídica se esvaeceu. Então, a República se afirma na esteira de um projeto federativo descentralizador em muitos aspectos. Isso deu aos estados razoável autonomia legislativa e política, mas essa autonomia de fato só valia para os estados mais fortes (leia-se os estados que tinham condições de montar aparatos institucionais militares próprios, como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). Estes três foram os estados fortes durante o período da República Velha. Portanto, o primeiro aspecto importante é: estava mais do que na hora de nós sistematizarmos essa história do Rio Grande do Sul durante esse período, porque o Estado foi, sim, importante para a história brasileira naquele momento.

O segundo aspecto importante, que decorre da remoção da unidade jurídica e da centralização administrativa do Império, é que na esteira dessa remoção foi também abolido o poder moderador. Num país onde o poder infra-estrutural, o poder burocrático, a capacidade do estado intervir na sociedade eram frágeis, e onde a indistinção entre o espaço público e o privado era tradicionalmente muito significativa, aconteciam o clientelismo, a corrupção, as fraudes eleitorais. O poder moderador era justamente o instrumento que mediava o conflito entre as elites. Então, nesse sentido, as elites suportavam o poder moderador em benefício da preservação da unidade jurídica e, portanto, do sistema escravista. No momento em que cai o sistema escravista, e são removidos a unidade jurídica, a centralização e o poder moderador, essa elite se banha em sangue e a nossa República, conseqüentemente, é uma história de sangue. O Rio Grande do Sul talvez tenha sido justamente o torrão brasileiro onde isto tenha ficado mais evidente. A grande guerra civil brasileira foi precisamente a Revolução Federalista (2), de 1893, cuja pacificação se deu em agosto de 1895. Foram mais de dois anos, portanto, de um verdadeiro banho de sangue. Calcula-se que até um por cento da população do Estado, na época, pode ter perecido. Três estados da federação foram conflagrados: Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. A capital federal foi bombardeada, porque a federalista se conectou com a Revolta da Armada e os países vizinhos, sobretudo Uruguai e Argentina, acabaram se envolvendo também nesse processo revolucionário, ou porque os revolucionários se escondiam ou porque eram por esses países que contrabandeavam armas e munições.

Então, veja que houve realmente uma movimentação muito grande em torno desses processos históricos e a Revolução Federalista não apenas questionava uma parte dos segmentos envolvidos nesse processo revolucionário, como defendia efetivamente a restauração monárquica e questionava o modelo republicano, que foi adotado em 1890 pela Constituição Federal e que estava sendo vazado especialmente na ditadura então instalada do Marechal Floriano Peixoto (3) e de Julio de Castilhos (4), nacional e regional, respectivamente. Porque eram ditaduras de fato. Tanto que Floriano Peixoto governou abaixo de estado de sítio, quase que permanente afrontando os outros poderes. Então, eu acho que é a marca deste início de República Velha, que foi um período de muitos conflitos e de grande instabilidade política, no que pese, à primeira vista, muitos imaginarem que foi um período de instabilidade, à medida que a Constituição foi a mesma, tanto a estadual quando a federal, de 1891 a 1930. Na verdade, as duas passaram por reformas; a estadual em dezembro de 1893, e a federal em 1926. Agora, além dessas reformas constitucionais, a verdade é que foi um período de grande turbulência político-institucional, tanto em nível regional quanto em nível nacional.

IHU On-Line – Qual é a importância dessa retomada da história geral do Estado para o modelo político desenvolvido e vivido hoje?

Gunter Axt – Eu acho que, do ponto de vista editorial, esta série Historia Geral do Rio Grande do Sul nos chega em boa hora porque se publicou muito aqui no Estado, entre o fins dos anos 1970 e meados dos anos 1980 sobre, justamente, a história regional dos mais diversos aspectos: econômicos, político, cultural etc. E, depois disso, houve um desinteresse das editoras pelo assunto. Surpreende-me esse desinteresse porque ele vai justamente na contramão de um crescimento do interesse da população em geral pela identidade regional, pela identidade coletiva e pela história do Estado. Nós vemos isso claramente quando sai algum livro de história e há uma grande procura nas livrarias. Quando se organizam seminários que debatem temas de história, há sempre um público cativo que transcendo os muros das academias. Enfim, o que as pessoas querem é uma linguagem um pouco mais saborosa, não aquela linguagem árida, do ambiente acadêmico. Agora, eu penso que há um grande interesse pelos assuntos relativos à memória e ao patrimônio, mas havia uma inapetência das editoras pelo assunto, o que é uma contradição.

O segundo ponto é que boas partes das pesquisas sobre o período se encontravam dispersas em artigos, publicações diversas, ou até não haviam sido publicadas porque se encontravam em dissertações e teses acadêmicas. O que essa série procurou fazer foi sistematizar, consolidar o estado da arte, no que diz respeito à República Velha no Rio Grande do Sul. Então, eu acho que ela preenche uma função social, cultural e científica de grande relevância neste momento. Eu acho que a história, de um modo geral, é sempre rica porque a boa história é sempre viva, ou seja, aquela história que parte de perguntas formuladas no presente. Essas perguntas somente são formuladas quando um determinado historiador, enfim, se vê diante de um impasse social qualquer. Por exemplo, a questão agrária só será estudada se, em algum momento, se tornar um problema social-político-econômico no presente vivido pelas pessoas. Portanto, a história tem esse dinamismo, as perguntas formuladas sobre o passado partem justamente de impasses e desafios vividos no presente. E é sempre rico as pessoas consultarem o manancial da pesquisa histórica, porque elas vão encontrar elementos que talvez as ajude a compreender melhor as situações vividas no presente.

IHU On-Line – Que tipos de relações de poder entre o Estado e a sociedade se davam durante a República Velha?

Gunter Axt – Essa é uma discussão bastante extensa. Eu te diria que os historiados não estão de acordo a respeito desta resposta. Existem várias tendências que chegam a conclusões diferentes para a República Velha no Rio Grande do Sul. Eu posso te falar da minha posição: eu penso - e concluí isso na minha tese de doutorado defendida em 2001 na Universidade de São Paulo, em torno dos governos Julio de Castilhos, Carlos Barbosa e Borges de Medeiros (5) - que houve uma aliança estratégica de frações da classe dominante. Quais eram essas frações? Sobretudo de pessoas ligadas ao meio financeiro regional, ao meio charqueador regional e ao grande comércio de importação e exportação do Estado. Esses segmentos eram minoritários no interior da classe dominante, que era dominada pelos estancieiros, que acabavam ficando em segundo plano nessa aliança estratégica. Essa aliança estratégica formou aquilo que nós chamamos de bloco histórico, para o qual interessava um modelo político autoritário e centralizador, que era justamente o que propunha a personalidade persecutória e intolerante de Julio de Castilhos, porque se queria impor ao estado inteiro uma certa hegemonia mercantil. Era preciso fazer com que Porto Alegre se transformasse no centro mercantil de todo o Estado.

Na época, cada cidade tinha sua legislação tributária, e isto era uma coisa que precisava ser eliminada para que existisse uma legislação comum amigável ao comércio estadual; esse era um aspecto. O outro aspecto era uma tensão muito forte entre fronteira e os núcleos urbanos litorâneos, sobretudo Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Porque as fronteiras estavam muito mais integradas ao que alguns chamavam de comércio livre e outros de contrabando, mas que era, na prática, uma integração com o sistema mercantil hegemonizado por Montevidéu. Essas eram as grandes tensões que estavam postas no momento. Eu acho que esse bloco histórico tinha uma tendência que, no geral, foi muito mais conservadora do que progressista e dificultou o desenvolvimento econômico do Estado em diversos aspectos, contribuindo para que houvesse transferência de recursos e capitais das zonas de colonização ítalo-germânica para os centros urbanos-litorâneas. Isso também contribuiu para que a fronteira entrasse num momento de progressiva importância econômica política. Também acho que foi uma aliança conservadora no sentido que, embora existisse um discurso demagógico em torno da incorporação do proletariado da sociedade vazado na esteira de todo um cabedal de conceitos contistas e positivistas, na prática existia um esforço de desmobilização do sindicato e das associações de classe.

O governo Borges de Medeiros, em 1919, aplicou um duro golpe sobre o movimento trabalhista e operário gaúcho, dissolvendo sindicatos e prendendo lideranças. Além disso, fez sempre todo o possível para dificultar o surgimento de uma associação de classe dos empresários, justamente por entender que essa nova classe capitalista que estava emergindo, sobretudo como um desdobramento de um capital comercial colonial, deveria ficar sub-representada embaixo da asa da associação comercial de Porto Alegre. Essa sub-representação só foi rompida em 1930, justamente na conjuntura da revolução que aconteceu naquele ano. Nós sabemos que empresários como A. J. Renner (6) e Alberto Bins (7) ajudaram a financiar a Revolução de 1930, e o retorno foi justamente a criação da Fiergs (Federação das Industria do Estado do Rio Grande do Sul). Outras entidades de classe e a própria Farsul (Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul) poderiam ter sido criadas antes, mas tiveram sua criação dificultada em grande medida pela ação desmobilizadora deste governo, que logicamente não assumia isso em seu discurso.

Nós vemos, hoje em dia, como os governantes dizem uma coisa e fazem outra. Naquela época, era exatamente a mesma coisa. No meu entendimento, muitos dos cientistas políticos que analisaram o período da República Velha na década de 1970 se equivocaram por não entenderem isso. A dificuldade extra que se tem na República Velha no Rio Grande do Sul é que é difícil perceber o discurso desviante. Em primeiro lugar, porque nós vivemos uma ditadura. Assim, a justiça e o Ministério Público não tinham autonomia, o Tribunal de Contas não existia, a Assembléia não era Legislativa, ou seja, não existiam atribuições legislativas, e a imprensa também sofria uma série de restrições. Com esse panorama, a oposição era anatematizada, demonizada. Para além do discurso de oposições, é possível fazer uma análise desse bloco histórico, que é aquela feita por mim. Agora, outros historiadores propõem interpretações diferentes, e o livro que foi publicado contempla todas essas outras interpretações, não abraçando uma ou outra versão. Desse modo, o leitor terá acesso a todas elas. Encontrará, por exemplo, textos de autores que defendem que o Partido Republicano rio-grandense possuía um viés modernizador, uma preocupação com a diversificação da economia, uma aliança estratégica com a zona de colonização ítalo-germânica, enfim, que era um governo progressista. Portanto, exatamente o contrário da interpretação que eu sustento.

IHU On-Line – Como o poder Judiciário, constituído durante a República Velha, influenciava as leis executadas durante este período? E como esse poder se desenvolveu para que em 1932 fosse criada a Justiça Eleitoral?

Gunter Axt – O Poder Judiciário não influenciava nada ou influenciava muito pouco. A primeira coisa em que devemos prestar atenção é que Borges de Medeiros, herdeiro do carisma e da política de Julio de Castilhos, era um desembargador, então a origem dele é o Poder Judiciário. O conceito de poder que o Borges abraçou foi justamente o conceito de um poder sacerdotal que pairasse acima das vontades políticas, que se libertasse do processo eleitoral. É, na verdade, uma espécie de poder ditatorial justificado quase que de forma religiosa, que se libertaria do processo eleitoral e operaria como um mediador esclarecido do conflito entre as elites. Essa era a justificativa que Borges de Medeiros passou a dar para seu poder a partir de 1907. No entanto, a justiça na República Velha no Rio Grande do Sul é diferente de como foi a justiça em São Paulo e no Rio de Janeiro.

No Estado, o que nós vemos é um Poder Judiciário com uma autonomia bastante constrangida, tanto que muitos teóricos do governo da época diziam que ele era um órgão auxiliar do governo e em seus relatórios estavam compreendidos os do secretário da justiça. O presidente do tribunal não comandava nenhum tipo de cerimonial e nem mesmo assinava as promoções ou aposentadorias dos juízes. Muito menos, tinha um orçamento próprio. Além disso, o que se vê é que eram razoáveis as chances de os concursos para juízes serem manipulados pelo governo, além de existir todo um ambiente propício à intervenção do governo em assuntos judiciais. Portanto, essa era uma justiça em grande medida atrelada aos designos do governo, especificamente do partido e do governante que estavam no poder. Uma das conquistas da cidadania brasileira é uma justiça, talvez a mais autônoma e independente, da América Latina. Uma outra coisa importante, em relação à justiça eleitoral: as eleições nesse período eram um mar de fraudes e não havia um código eleitoral unificador.

Existiam regras municipais, estaduais e federais. Desse modo, todos os processos eleitorais eram fraudados do início ao fim. Isto criava um quadro muito complicado, porque quem estava no poder permaneceria permanentemente nele, a não ser que fosse retirado dali por algum processo revolucionário ou de conflitos, o que aconteceu em diversos momentos da República Velha brasileira. Os casos de instabilidade institucional e política no Brasil são muitos. O Rio Grande do Sul teve esse banho de sangue inicial, e isto consolidou o Partido Republicano rio-grandense no poder. O que não significa que tenham acontecido outros momentos de instabilidade, sobretudo em municípios como os de Canguçu, Lagoa Vermelha e até mesmo Caxias do Sul. É justamente por isso que se entendeu que ou o país viveria em permanente estado de instabilidade institucional e uma potencialidade de escambar para o banho de sangue, ou ele encontrava uma fórmula redentora. Essa fórmula foi precisamente a Justiça Eleitoral, que veio moralizar o processo e garantir estabilidade ao nosso quadro institucional e a nossa cidadania.

IHU On-Line – As características da política desenvolvida durante a República Velha permanecem na política e na cultura gaúcha hoje?

Gunter Axt – É complicado responder a essa pergunta. Eu acho que algumas sim, outras não. O sistema político da República Velha deixou de existir há muito tempo. Era o sistema coronelista de poder, com algumas especificidades regionais determinadas pelo estado forte centralizado, garantido por uma Brigada Militar bem armada. Esse padrão deixou de existir, assim como o padrão autoritário. Existem, assim, sobrevivências de práticas políticas. O Rio Grande do Sul, nesse aspecto, não é tão diferente assim do restante do Brasil. Nós temos um déficit histórico no esforço de distinção entre espaço público e privado, o que nos empurra para essas situações de corrupção que preenchem com letras garrafais as manchetes dos jornais todas as semanas. Então, na verdade, essa era uma característica corrente na República Velha. De alguma forma, ela ainda persiste na política contemporânea. Por outro lado, eu acho que nós equacionamos relativamente bem o problema eleitoral. Penso que o Brasil avançou muito neste aspecto. A República Velha agregou, também, algumas qualidades ao processo político no Estado.

Em primeiro lugar, houve, entre nós, uma maior sistematização do discurso político, porque, como nós tínhamos uma ditadura de fato na prática, havia uma certa necessidade de justificar isto sociológica e filosoficamente, no sentido de dizer que não era uma ditadura de fato. E esse esforço se fez na época. Isso contribuiu para que, em alguma medida, os gaúchos tivessem mais “antenados” para o debate em torno da ocupação do espaço pública. Eu acho que se trata de uma herança que nós trouxemos da República Velha, o que talvez nos diferencie um pouco do restante do Brasil.

Veja, eu não estou embarcando naquela interpretação corrente que afirma ser a política do Rio Grande do Sul melhor do que no resto do país, ou que o Estado é o mais politizado do Brasil. É uma linha de pensamento com a qual não concordo. Eu acredito que o cidadão gaúcho está mais antenado para um debate em torno da ocupação do espaço público. Trata-se de algo mais civilizado e mais republicano, mas não indica, necessariamente, que temos uma política melhor, tanto é que os escândalos de corrupção também acontecem por aqui. Além disso, o Estado se debate, há vários governos, com uma crise estrutural da qual ele não consegue sair, o que talvez sinalize para uma ausência de projeto de desenvolvimento. Então, eu acredito que a política é eficaz quando ela consegue garantir um projeto de desenvolvimento, com maior distribuição de justiça social e de renda para a população. O estado do Rio Grande do Sul está nessa crise dramática e precisa encontrar caminhos para sair disso.

Notas:

(1) A chamada Revolução Pernambucana eclodiu em 1817 na então Província de Pernambuco. Dentre as suas causas, destacam-se a crise econômica regional, o absolutismo monárquico português e a influência das idéias Iluministas, propagadas pelas sociedades maçônicas.

(2) A Revolução Federalista ocorreu no sul do Brasil, logo após a Proclamação da República. Isto ocorreu devido à instabilidade política gerada pelos federalistas, que pretendiam "libertar o Rio Grande do Sul da tirania de Júlio Prates de Castilhos", então presidente do Estado. Empenharam-se em disputas sangrentas, que acabaram por desencadear a revolução federalista, uma guerra civil que durou de fevereiro de 1893 a agosto de 1895 e foi vencida pelos pica-paus, seguidores de Júlio de Castilhos. A divergência se iniciou por atritos ocorridos entre aqueles que procuravam a autonomia estadual frente ao poder federal e seus opositores. A luta armada durou aproximadamente três anos e atingiu as regiões compreendidas entre o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.

(3) Floriano Vieira Peixoto foi um militar e político brasileiro. Primeiro vice-presidente e segundo presidente do Brasil, presidiu o Brasil de 23 de novembro de 1891 a 15 de novembro de 1894. Seu governo sofreu grande oposição de setores conservadores, como a publicação do Manifesto dos 13 generais. O apelido de "marechal de ferro" era devido à sua atuação enérgica e ditatorial, pois agiu com determinação ao debelar as sucessivas rebeliões que marcaram os primeiros anos da república do Brasil. Entre estas, a Revolta da Armada no Rio de Janeiro, chefiada pelo Almirante Saldanha da Gama, e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, ambas com apoio estrangeiro.

(4) Julio Prates de Castilhos foi um político brasileiro. Embora formado em Direito, atuou como jornalista e político. Membro do Partido Republicano Riograndense (PRR), dirigiu o jornal A Federação, onde fez propaganda das idéias republicanas. Em 1891, elegeu-se deputado para a Assembléia Constituinte e se opôs a Rui Barbosa, no capítulo que versava sobre a discriminação de rendas, defendendo os pequenos estados da federação. Em 1891, Julio de Castilhos foi eleito presidente do estado do Rio Grande do Sul. No entanto, com a queda de Deodoro da Fonseca, foi deposto naquele mesmo ano. Pouco mais de um ano depois, Julio de Castilhos disputa uma eleição (sem concorrentes) e volta a ocupar o antigo posto. Obteve 26.377 votos e sua posse ocorre em 1893. Neste mesmo ano, contém a Revolução Federalista, de tendência parlamentarista e liderada por Gaspar Silveira Martins.

(5) Antônio Jacob Renner, mais conhecido como A. J. Renner, foi um empresário brasileiro e o fundador da Lojas Renner. Em 1911, aos vinte e sete anos, participou da fundação de uma pequena tecelagem, chamada Frederico Engel & Cia. Um ano depois, passou a produzir capas para chuva, que se tornaram famosas em todo o Estado por serem impermeáveis. A empresa instalou-se inicialmente, num galpão de madeira utilizado para pouso de tropeiros e o capital investido foi pequeno para a época. No final da década de 1920, a empresa era a maior indústria de fiação e tecelagem do Rio Grande do Sul. Passou a produzir, além das capas, roupas masculinas que utilizavam o mesmo tecido.

(6) Alberto Bins foi um industrial, comerciante e político brasileiro. Foi o primeiro porto-alegrense a assumir a prefeitura da capital gaúcha. Sua primeira grande atividade profissional foi como sócio majoritário da empresa E.Berta & Cia., fabricante de cofres, fogões, camas e outros utensílios de ferro. Foi também presidente da Associação Comercial de Porto Alegre, um dos fundadores do Banco Pelotense e do Centro da Indústria Fabril do Rio Grande do Sul. Também participou da fundação da Varig e do Sindicato do Arroz. Com a Revolução de 1930, deflagrada dois anos depois, foi mantido no cargo de prefeito pelo interventor estadual Flores da Cunha. A prefeitura procurou melhorar a prestação de serviços à população, inaugurando ainda em 1928, a primeira estação de tratamento de água da cidade, a Hidráulica Moinhos de Vento. As dificuldades financeiras, entretanto, complicaram a administração. Para salvar a cidade da insolvência, em 1929 o prefeito assinou um acordo com o governo do Estado, repassando a responsabilidade municipal sobre os serviços de higiene, policiamento e instrução pública.

Instituto Humanitas Unisinos - 13/11/07

'Voracidade'. Editorial de Ignácio Ramonet


Houve quem pensou que com a globalização o capitalismo estaria por fim saciado. Engano. Um nova forma de rapinagem acomete o mundo. O comentário é Ignácio Ramonet no editorial do Le Monde Diplomatique de novembro. A tradução é do Cepat.

Eis o editorial.

Ao mesmo tempo em que contra o horror econômico, o discurso crítico – a que durante algum tempo se chamou altermundista – se enreda e de repente se torna inaudível, vai-se instalando um novo capitalismo, ainda mais brutal e conquistador: o de uma nova categoria de fundos de rapinagem, os private equities, fundos de investimento rapaces, com apetites desmesurados e detentores de capitais gigantescos.

Os nomes destes titãs – The Carlyle Group, Kohlberg Kravis Roberts & Co (KKR), The Blackstone Group, Colony Capital, Apollo Management, Starwood Capital Group, Texas Pacific Group, Wendel, Eurazeo, etc. – continuam sendo pouco conhecidos do grande público. E graças a esta discrição apoderam-se da economia mundial.

Em quatro anos, de 2002 a 2006, o montante dos capitais obtidos por estes fundos de investimento, que coletam o dinheiro dos bancos, dos seguros, dos fundos de pensões, e os investimentos de riquíssimos particulares, passou de 94 bilhões de euros para 358 bilhões… O seu poder de fogo financeiro é fenomenal, ultrapassando 1,1 trilhões de euros. Nada resiste. O ano passado, nos Estados Unidos, os principais private equities investiram cerca de 290 bilhões de euros na aquisição de empresas, e mais de 220 bilhões só no primeiro semestre de 2007, passando assim a controlar 8000 empresas… Atualmente, um em cada quatro assalariados norte-americanos e quase um em cada doze franceses já trabalham para estes mastodontes.

A França tornou-se, aliás, depois do Reino Unido e dos Estados Unidos, o seu primeiro alvo. O ano passado, em território francês, estes fundos apoderaram-se de 400 empresas (por um montante de 10 bilhões de euros) e já gerem ali mais de 1600. Marcas muito conhecidas – Picard, Dim, os restaurantes Quick, Buffalo Grill, Les Pages Jaunes, Allociné ou Afflelou – são agora controladas por private equities, quase todas anglo-saxônicas, que já estão de olhos postos nos gigantes do índice CAC 40.

O fenômeno destes fundos rapaces surgiu há uns quinze anos, mas nos últimos tempos, estimulado pelo crédito barato e graças à criação de instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados, adquirem uma amplitude preocupante. Porque o princípio é simples: um clube de investidores afortunados decide adquirir empresas, que depois gere de forma privada, longe da Bolsa e das suas regras constrangedoras, e sem ter de prestar contas a acionistas minuciosos. A idéia consiste em contornar os próprios princípios da ética do capitalismo, apostando apenas nas leis da selva.

Concretamente, como no-lo explicam dois especialistas, as coisas acontecem assim: "Para adquirir uma sociedade que vale 100, o fundo aplica 30 do seu bolso (percentagem média) e os restantes 70 pede-os emprestados aos bancos, aproveitando as muito baixas taxas de juro do momento. Durante três ou quatro anos reorganiza a empresa com a direção em funções, racionaliza a produção, desenvolve atividades e capta a totalidade ou parte dos lucros para pagar os juros… da sua própria dívida. Depois revende essa mesma empresa por 200, com freqüência a um outro fundo, que irá fazer a mesma coisa. Reembolsados os 70 obtidos a crédito, ficam com 130 no bolso, por um investimento inicial de 30, obtendo assim mais de 300 por cento de taxa de retorno sobre o capital investido em quatro anos. Tem coisa melhor?".

Ao mesmo tempo em que pessoalmente ganham fortunas exponenciais, os dirigentes destes fundos praticam doravante, sem sentimentalismos, os quatro grandes princípios da "racionalização" de empresas: reduzir o emprego, comprimir os salários, aumentar os ritmos de produção e deslocalizar.

São nisso estimulados pelas autoridades públicas, as quais, como em França hoje em dia, sonham "modernizar" o aparelho de produção. E fazem-no em detrimento e para desespero dos sindicatos, que denunciam vigorosamente o pesadelo e o fim do contrato social. Houve quem pensou que com a globalização o capitalismo estaria por fim saciado. Vê-se porém agora que a sua voracidade não tem limites. Até quando?

Instituto Humanitas Unisinos - 13/11/07

Congresso custa R$ 11 mil por minuto, diz Transparência Brasil


Levantamento feito pela ONG Transparência Brasil comparando os orçamentos do Congresso brasileiro com os de outros 11 parlamentos do mundo, demonstrou que o parlamento brasileiro é o terceiro que mais pesa no bolso da população. Só para este ano o orçamento do Congresso foi de R$ 6.068.072.181,00, o que representa um custo de R$ 11.545,04 por minuto. A notícia é do sítio Congresso em Foco, 12-11-2007.

Comparando os gastos do Congresso com a população do país, cada cidadão gasta anualmente R$ 32,49 para manter o Legislativo. Nos outros países considerados na pesquisa – Alemanha, Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal – apenas Itália e França superam esse patamar.

Mas apesar dos italianos gastarem, em média e individualmente, R$ 64,46 com o parlamento e os franceses pagarem R$ 34,00 para manter seus congressistas, ao se considerar o salário da população desses três países, o brasileiro é quem mais sofre financeiramente para manter seus parlamentares. O mandato de cada congressista custa 2.068 salários mínimos.

Além disso, o levantamento mostra que os custos com os 513 deputados e 81 senadores foi quatro vezes maior no Brasil que a média dos gastos com os parlamentares europeus e canadenses. Em tese, se os padrões europeus fossem adotados no Brasil, o mesmo valor gasto hoje no país seria o suficiente para manter 2.556 congressistas.

Nos estados

Além dos gastos com a Câmara e o Senado, a população também arca com as despesas das assembléias legislativas e câmaras de vereadores. Pelo balanço feito pelo Transparência Brasil nas capitais brasileiras, a Assembléia Legislativa mais cara por habitante é a de Roraima (R$ 145,19), e a mais barata, a de São Paulo (R$ 10,63).

Essa diferença se mantém quando consideramos os gastos das capitais com as três esferas – federal, estadual e municipal – de governo. Os cidadãos de Boa Vista, capital de Roraima, pagam R$ 224,82, anualmente, para manter seus deputados, senadores e vereadores. Em São Paulo capital, os custos são de R$ 68,61 por habitante.

Instituto Humanitas Unisinos - 13/11/07

Iedi. Produção industrial crescerá 5,5% em 2007

“Embora a indústria tenha se retraído em setembro vis-à-vis agosto pela série sazonalmente ajustada, as demais bases de comparação apontaram desempenho bastante positivo. Assim, na avaliação do IEDI, o encerramento do terceiro trimestre consolida a perspectiva da produção industrial do país crescer 5,5% em 2007. Mesmo não sendo uma expansão fenomenal (em 2004, o setor evoluiu 8,3%), esse novo patamar deixará para trás as marcas de 2,8% e 3,1% dos dois anos anteriores”. A síntese é da ‘Carta do Iedi' - Novembro de 2007 - nº 285.

A 'Carta" comenta ainda que "no plano internacional, a distância entre as taxas de crescimento da indústria brasileira em relação aos seus congêneres voltou a se ampliar. Em setembro, enquanto a indústria de transformação brasileira cresceu 5,7%, a indústria de transformação da Argentina avançou 8,8% em relação a setembro de 2006. Já as da Índia e Tailândia experimentaram incremento, respectivamente, de 10,4% e 9,3% em agosto na mesma base de comparação".

Instituto Humanitas Unisinos - 13/11/07

Lula suspendeu a venda do direito de explorar petróleo nas novas reservas

É correta a decisão de Lula de suspender a venda do direito de explorar petróleo nas novas e talvez enormes reservas do litoral. “Excluir as novas reservas do próximo leilão de áreas de exploração de petróleo foi uma decisão acertada”, escreve Vinicius Torres Freire, jornalista, no jornal Folha de S. Paulo, 13-11-2007. “Além de não ser conhecido o potencial das reservas – comenta o jornalista - não se conhecem as suas conexões (se se trata de um único imenso campo etc.), não há política para o ritmo de extração de petróleo naquelas áreas e, enfim, as reservas são da União, ponto”.

Segundo ele, “os lobistas que criticaram a decisão oficial recorreram ao clichê vulgar e automático ("quebra de contratos", "incerteza", "ameaça ao investimento privado"). Mas até quem estudou petróleo com o Visconde de Sabugosa, de Monteiro Lobato, poderia argumentar que os investimentos e tecnologia de Petrobras e cia., que gastaram os tubos para descobrir petróleo literalmente no quinto dos infernos, poderiam ser vampirizados por empresas que despenderiam uns trocados para comprar a concessão de explorar petróleo na área vizinha às da estatal”.

E ele continua:

“Se o governo e o império da Petrobras pretendem estatizar todo o negócio, são outros quinhentos (maus quinhentos). Por ora, houve apenas atitude prudente e razoável de repensar as concessões. Mas os lobistas choram uns US$ 4 milhões que as petroleiras interessadas no leilão teriam investido em estudos etc., que alegam desperdiçados agora que o governo suspendeu a concessão das reservas boca-rica. Oh, dó! Dá até vontade de fazer uma vaquinha para compensar Chevron, Repsol, ExxonMobil ou quaisquer que fossem as grandes irmãs interessadas”.

E conclui:

“As viúvas do tucanato e/ou lobistas ainda reclamam do atropelamento da agência reguladora do setor, a ANP, pelo governo. Supondo que tal coisa tivesse ocorrido (e não uma decisão de governo legítima), onde estavam nossos amigos da concorrência, do mercado e da regulação independente quando FHC transformou a Aneel num dois de paus? Foi o que fez ao criar o ministério do apagão, a "junta" que pôs esparadrapo na mãe de todas as lambanças administrativas, o racionamento elétrico. Onde estavam quando o governo FHC politizou a privatização das teles, abjurando a fé em leilões de desestatização, que seriam por si só capazes de dar conta de preço e concorrência justa?”

Instituto Humanitas Unisinos - 13/11/07

Tupi. 'É a segunda maior descoberta do mundo’, constata presidente da Petrobras

O presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, disse ontem em Roma que não existem dificuldades para equacionar o financiamento do campo de Tupi, maior descoberta da história da companhia, anunciada na semana passada. Localizada na bacia de Santos, a reserva de Tupi é explorada pela Petrobras em sociedade com a portuguesa Galp e a britânica BG. Embora não fale ainda em cifras, o executivo disse que "dinheiro não é problema" para desenvolver a descoberta. A reportagem é de Pedro Soares e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 13-11-2007.

O entrave, porém, pode surgir se o preço do petróleo baixar muito e tornar a reserva inviável comercialmente. Indagado se uma queda brusca das cotações do barril de petróleo poderia levar a estatal a desistir do projeto, Gabrielli afirmou: "No nosso plano estratégico, o valor usado é de US$ 35 o barril para gerar valor presente líquido positivo".

Segundo o executivo, esse valor é a referência do plano de negócios em vigor neste ano, que sempre é revisto anualmente. Gabrielli disse, no entanto, que ainda não foram feitos cálculos precisos sobre o valor do óleo que torna o projeto viável economicamente.

Os números já conhecidos sobre o campo, porém, são muito altos para o padrão de custos da indústria petrolífera no Brasil. No primeiro poço perfurado, foram gastos US$ 240 milhões. No segundo, o valor baixou para US$ 170 milhões, segundo o executivo. Para Gabrielli, porém, foi um investimento bastante proveitoso. "'É a segunda maior descoberta do mundo, atrás apenas de outra no Cazaquistão. É o dobro da descoberta de Marilm, que é o maior em operação no Brasil atualmente."

Em entrevista à CNN, Gabrielli disse que a produção de Tupi deve começar em 2010 ou 2011. Numa primeira fase, vai produzir 100 mil barris por dia. Para ele, os preços do barril de petróleo devem se manter no atual patamar.

Instituto Humanitas Unisinos - 12/11/07

Pessoas da favela, treinadas na Suíça, pilotam projetos da Nestlé

"Hoje temos pessoas da favela, que passaram por treinamento na Suíça, contratadas para pilotar projetos para o consumidor de baixa renda", afirma Ivan Zurita, presidente da Nestlé, no Brasil, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 12-11-2007, comentando o crescimento da empresa no Nordeste.

"Durante a reestruturação - constata Zurita - fizemos uma imersão para conhecer o povo brasileiro. Numa das análises, todos os diretores, inclusive eu, fomos para favelas conhecer de perto o consumo das classes C, D e E. Aprendemos, por exemplo, que o fluxo de caixa dessas famílias é diferente. É semanal e o desembolso é de R$ 1. Por isso, criamos a estrutura de vendas porta-a-porta e muitos produtos para esses consumidores. Fizemos sorvete líquido que congela em meia hora, que tem custo menor de distribuição e o consumidor tem custo menor de eletricidade. Tem tablete de chocolate cuja moeda de troca é R$ 1. Adaptamos e criamos produtos. Não adianta pegar o modelo do Carrefour e jogar na favela que não vai funcionar. Hoje temos pessoas da favela, que passaram por treinamento na Suíça, contratadas para pilotar projetos para o consumidor de baixa renda. Temos 97% de penetração nos domicílios brasileiros. O que precisamos fazer para intensificar a relação com o consumidor? Esse tipo de atividade... Não é necessariamente a mais rentável para nós, mas não interessa. Acreditamos que o país e o poder aquisitivo das pessoas vai melhorar".

Instituto Humanitas Unisinos - 12/11/07

Nem tudo o que reluz é verde. Um artigo de Boaventura de Sousa Santos

"É de esperar que as indústrias da ecologia resolvam o problema ambiental quando é certo que a sustentabilidade econômica delas depende da permanente ameaça à sustentabilidade da vida na terra?", pergunta Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 12-11-2007. Segundo ele, é preciso que sejam estabelecidos critérios exigentes de sustentabilidade global; "democratização do acesso à terra e regularização da propriedade camponesa; subordinação do agrocombustível à segurança alimentar; novas lógicas de consumo (se a eficiência do transporte ferroviário é 11 vezes superior à dos transportes rodoviários, por que não investir apenas no primeiro?); alternativas ao mito do desenvolvimento e numa nova solidariedade do Norte para com o Sul".

Eis o artigo.

A questão ambiental entrou finalmente na agenda política, o que não deixa de causar alguma surpresa aos ativistas dos movimentos ecológicos, sobretudo àqueles que militam há mais tempo e se habituaram a ser apodados de utópicos e inimigos do desenvolvimento.

Ao longo das últimas décadas, os movimentos ecológicos foram ganhando credibilidade à medida que a ciência foi demonstrando que os argumentos por eles invocados se traduziam em fatos indesmentíveis -a perda da biodiversidade, as chuvas ácidas, o aquecimento global, as mudanças climáticas, a escassez de água etc.- que, a prazo, poriam em causa a sustentabilidade da vida na terra.

Com isso, ampliaram-se os estratos sociais sensíveis à questão ambiental e a classe política mais esclarecida ou mais oportunista (por vezes disfarçada de sociedade civil, como é o caso de Al Gore) não perdeu a oportunidade de encontrar nessa questão um novo campo de atuação e de legitimação.

Assim se explica o importante relatório sobre a "conta climática" de um economista nada radical, Nicholas Stern, encomendado por um político em declínio, Tony Blair.

Nesse processo foram "esquecidos" muitos dos argumentos dos ambientalistas, nomeadamente aqueles que punham em causa o modelo de desenvolvimento capitalista dominante.

Esse "esquecimento" foi fundamental para a segunda razão do atual boom ambiental: a emergência do ecologismo empresarial, das indústrias da ecologia (não necessariamente ecológicas) e, acima de tudo, dos agrocombustíveis, cujos promotores preferem designar, "et pour cause", como biocombustíveis.

As reservas que os movimentos sociais (ambientalistas e outros) levantam contra esse último fenômeno merecem reflexão, tanto mais que, tal como aconteceu antes, é bem provável que só daqui a muitos anos (tarde demais?) sejam aceitas pela classe política.

A primeira pode formular-se como uma pergunta: é de esperar que as indústrias da ecologia resolvam o problema ambiental quando é certo que a sustentabilidade econômica delas depende da permanente ameaça à sustentabilidade da vida na terra?

A eficiência ambiental dos agrocombustíveis é uma questão em aberto. Sua produção usa fertilizantes, polui os cursos de água e é já hoje uma das causas do desflorestamento, da subida do preço da terra e da emergência de uma nova economia de plantação, neocolonial e global.

A segunda reserva diz respeito ao impacto da expansão dos agrocombustíveis na produção de alimentos. Em setembro, o bushel de trigo atingiu preço recorde na Bolsa de Mercadorias de Chicago. Más colheitas (derivadas das mudanças climáticas), o aumento da procura pela China e a Índia e a produção de agrocombustíveis foram as razões do aumento, e a expectativa é que a subida continue.

O aumento do preço dos alimentos vai afetar desproporcionalmente populações empobrecidas dos países do Sul, pois gastam mais de 80% dos seus parcos rendimentos na alimentação.

Ao decidirem atribuir US$ 7,3 bilhões anuais em subsídios para a produção de agrocombustíveis, os EUA contribuíram para um aumento (que chegou a 400%) do preço do alimento básico dos mexicanos, a tortilla.

Reside aqui a terceira reserva: os agrocombustíveis podem vir a contribuir para a desigualdade entre países ricos e países pobres. Enquanto na União Européia a opção pelos agrocombustíveis corresponde a preocupações ambientais, nos EUA a preocupação é com a diminuição da dependência do petróleo.

Em qualquer dos casos, estamos perante mais uma forma de protecionismo sob a forma de subsídios à agroindústria e, como a produção doméstica não é de nenhum modo suficiente, é, de novo, nos países do Sul que se vão buscar as fontes de energia. Se nada for feito, repetir-se-á a maldição do petróleo: a pobreza das populações em países ricos em recursos energéticos.

O que há a fazer? Critérios exigentes de sustentabilidade global; democratização do acesso à terra e regularização da propriedade camponesa; subordinação do agrocombustível à segurança alimentar; novas lógicas de consumo (se a eficiência do transporte ferroviário é 11 vezes superior à dos transportes rodoviários, por que não investir apenas no primeiro?); alternativas ao mito do desenvolvimento e numa nova solidariedade do Norte para com o Sul.

Nesse domínio, o governo equatoriano acaba de fazer a proposta mais inovadora: renunciar à exploração do petróleo numa vasta reserva ecológica se a comunidade internacional indenizar o país em 50% da perda de rendimentos derivados da renúncia.