recebido por e-mail - 06 set 2012
Não
há nome intranscendente e repito: qualquer nome insinua um vaticínio.
Todo o destino de Napoleão Bonapart está no seu cartão de visitas. Ao
passo que um J. B. Martins da Fonseca não tem nenhum destino especial e,
vou mais longe: não tem destino. Quando batizaram William Shakespeare, o
padre poderia perguntar-lhe: “Como vão tuas obras completas?”. No
simples “William Shakespeare” - estava implicita a música verbal do seu
teatro.
Mas
um certo nome exige uma certa cara. Napoleão Bonaparte pedia um perfil
napoleônico. Um Gengis Khan precisa de fotogenia. Ou então um John
Kennedy. O que era o presidente assassinado senão o queixo forte,
plástico, histórico? Ele venceu Stevenson e depois Nixon, porque tinha
as mandíbulas crispadas do Poder. Por isso, o tiro arrancou-lhe o
queixo. Outro: Churchill, com a sua maravilhosa cara de buldogue. Em
todos os citados, cara e nome, justapostos, explicam uma nítida
predestinação.
Fiz
essa pequena introdução para chegar ao nosso presidente. Quando começou
o jogo de candidaturas, disse eu: "Ganha esse, pelo nome e pela cara".
Não é impunemente que um homem se chama Emílio Garrastazu Médici.
Tiremos o Emílio e fica Garrastazu. Tiremos o Garrastazu e ficará o
Médici. Bem sei que essa meditação sobre o nome pode parecer arbitrária e
até delirante. Não importa, nada importa. Depois vi a sua fotografia.
Repeti, na redação, para todo o mundo ouvir: "É esse o presidente". Ora,
numa redação há sempre uns três ou quatro sarcásticos. Um deles
perguntou: "Só pelo nome?" Respondi: "Pelo nome e pela cara".
Como
já disse, a história e a lenda também exigem uma certa fotogenia. E
senti que Emílio Garrastazu Médici tinha um perfil de moeda, de cédula,
de selo. Organizem uma retrospectiva presidencial e verão que os nossos
presidentes são baixos. Getúlio era baixíssimo, embora tivesse um perfil
histórico e, digamos, cesariano. Epitácio foi fisicamente pequeno. Era a
pose que o fazia mais presidencial. Garrastazu Médici é o nosso
primeiro presidente alto.
Dirão
vocês que eu estou valorizando o irrelevante, o secundário, o
fantasista. Desculpem o meu possível equívoco. E se me perguntarem por
que estou dizendo tudo isso, eu me justificarei explicando: conheci,
domingo, o Presidente Emílio Garrastazu Médici. E o pretexto para o
nosso encontro foi um jogo de futebol.
Outra
singularidade do chefe da Nação: gosta de futebol e sabe viver, como o
mais obscuro, o mais anônimo torcedor, todas as peripécias dos clássicos
e das peladas. Isso é raro, ou melhor dizendo, isso é inédito na
história dos presidentes brasileiros. Imaginem um Delfim Moreira ou um
Rodrigues Alves ou um Wenceslau Brás entrando no Estádio Mario Filho.
Qualquer um desses perguntaria: ''Em que time joga o Fla-Flu?", "Quem é a
bola?" ou "O córner já chegou?"
O
nosso presidente sabe tudo de futebol. Eu diria que hoje nenhum
brasileiro será estadista se lhe faltar a sensibilidade para o futeboI.
Mas dizia eu que foi um jogo - São Paulo x Porto - que nos aproximou. Na
sexta-feira passada, o Palácio das Laranjeiras começou por me procurar.
Se eu fosse terrorista, não seria tão perseguido. Finalmente: falo pelo
telefone com o Palácio. O secretário de Imprensa queria me transmitir
um convite. Onde e a que horas poderia falar comigo? Marcamos o
encontro. Simplesmente, o Presidente Médici me convidava para assistir, a
seu lado, na inauguração do Morumbi, ao jogo internacional. Eu iria,
com S. Exa., no avião presidencial. O presidente fazia o maior empenho
em que o acompanhasse.
Confesso,
sem nenhuma vergonha, que o convite me fascinou. O que têm sido as
nossas relações com os presidentes da República? Nada. Sim, há entre nós
e o presidente uma distância infinita, espectral. E o Supremo
Magistrado, como se diz, é um ser misterioso, inescrutável e sinistro.
No meu caso, o presidente se dispunha a acabar com a distância e me
receber na áspera solidão presidencial.
De
mais a mais, o Brasil vive o seu grande momento. Eis o nosso dilema: ou
o Brasil ou o caos. O diabo é que temos a vocação e a nostalgia do
caos. É o momento de fazer o Brasil ou perdê-lo. Esse Garrastazu Médici
é, neste instante, uma das figuras vitais do País. Eu ia vê-lo, ia
ouvi-lo. Sim, ouvir os ruídos da sua alma profunda. Todo o mundo tem, no
bolso do colete, o seu projeto de Brasil. Garrastazu tem o seu e pode
realizá-lo. Ao passo que nós não temos força para tapar um cano furado.
Bem. Aceitei o convite, ressalvando: iria de tudo, menos de avião. "De
automóvel?", perguntou o secretário de Imprensa. E eu: "De qualquer
coisa" - e repeti - "nunca de avião".
Sábado,
o meu filho Nelson levou-me para São Paulo no seu fusca. Durante a
viagem, uma pequena, mas intolerável inibição instalou-se em mi:
“Chamarei o presidente de ‘excelência’ ou de ‘senhor’?”. Imaginava que o
poder desumaniza o homem. Seria Garrastazu uma figura áspera,
hierática, enfática? Pensava, ao mesmo tempo, num episódio recente. No
jogo do Grêmio, e antes de ser presidente, e antes da definição das
candidaturas, o General Garrastazu Médici desce ao vestiário. Vejam se
vocês conseguem imaginar um Delfim Moreira ou um Epitácio num vestiário
de futebol. Pois o general chega e pergunta: "Como é, Alcino, que você
vai me perder aquele gol?" No fusca do meu filho Nelson, eu queria crer
que um homem assim é um brasileiro vivo e não uma pose, e não uma
casaca, e não uma faixa, e não uma condecoração.
No
dia seguinte, estava eu no aeroporto. Tivemos uma primeira conversa e,
durante o dia, uma outra, e uma terceira, e uma quarta. Vi a seu lado a
inauguração (ou a décima inauguração do Morumbi). Ora, no momento não
há nada mais importante do que saber o que pensa, o que sente, o que
imagina, o que quer um presidente da República, investido de tantos
poderes. No meio do jogo, ele insistia para que eu voltasse no seu jato.
Digo, por fim: "Está certo, presidente. Vou voar pela primeira vez".
É
preciso não esquecer o que houve nas ruas de São Paulo e dentro do
Morumbi. No Estádio Mário Filho, ex-Maracanã, vaia-se até minuto de
silêncio e, como dizia o outro, vaia-se até mulher nua. Vi o Morumbi
lotado, aplaudindo o Presidente Garrastazu. Antes do jogo e depois do
jogo, o aplauso das ruas. Eu queria ouvir um assobio, sentir um foco de
vaia. Só palmas. E eu me perguntava: "E as vaias? Onde estão as vaias?"
Estavam espantosamente mudas.
Até
domingo, às seis e meia, sete da noite, eu não entrara jamais num avião
pousado, num avião andando, num avião voando. Lá em cima, não há
paisagem, e, se não há paisagem, estamos fazendo a antiviagem.
Conversamos longamente. Houve um momento em que ele me disse: "Sou um
presidente sem compromissos. Só tenho compromissos com a minha Pátria".
Eis um homem que fala em Pátria, em "minha Pátria". Para a maioria
absoluta dos civis, "Pátria" é uma palavra espectral, "patriota" é uma
figura espectral. E as nossas esquerdas fizeram toda a sorte de
manifestações. Não berravam, não tocavam na "Pátria". Nas passeatas,
berravam, em cadência: ''Vietnã, Vietnã, Vietnã". Pichavam os nossos
muros com vivas aos vietcongues, a Cuba. Nenhuma alusão à Pátria,
nenhuma referência ao Brasil. E, no entanto, vejam vocês: o Amazonas tem
menos população do que Madureira. Aquilo é uma gigantesca sibéria
florestal. E as esquerdas só pensavam no Vietnã, e só pensavam pelo
Vietnã e só bebiam pelo Vietnã.
Certa
vez, conversei com um membro da esquerda católica. Exortei-o a
desembarcar no Brasil. Disse-lhe que, na pior das hipóteses, temos
paisagem. Citei o Pão de Açúcar, o Corcovado. Mas ele batia na tecla
obsessiva e fatal: "O Vietnã, o Vietnã, o Vietnã" etc. etc. Ainda no meu
élan paisagístico, fiz a apologia da Vista Chinesa, recanto ideal para
matar turista argentino. Mas havia entre mim e ele a distância que nos
separa do Sudeste Asiático. Eis o que o meu amigo propõe: que os
brasileiros bebessem o sangue uns dos outros como groselha.
Antes
de se despedir, o membro da esquerda católica concentrou sua ira nas
Forças Armadas. Acusou-as de incapazes, de ineptas, de relapsas. "Os
militares nunca fizeram nada", afirmou. Desta vez, perdi a minha
paciência. Tratei de demonstrar-lhe que os militares fizeram tudo. No
Sete de Setembro (e Pedro Américo não me deixa mentir) foram sujeitos de
esporas e penacho que deram o grito do Ipiranga; e, se os militares não
fizeram nada, que faz a espada de Deodoro na estátua de Deodoro? Foi a
inépcia militar que fez a República, assim como fizera a Independência.
Em 22 e 24, era o sangue militar que jorrava como a água, a água da boca
dos tritões de chafariz. Em 30, em 32, em 35, foram os militares. Assim
em 89. Retirem as Forças Armadas e começará o caos, o puro,
irresponsável e obtuso caos.
Há
anos e anos que eu não digo "Pátria". E quando o Presidente Garrastazu
falou em "minha Pátria", experimentei um sentimento intolerável de
vergonha. Esse soldado é de uma natureza simples e profunda. Está
disposto a tudo para que não façam do Brasil o anti-Brasil. Seja como
for, deixará este nome, para sempre: Emílio Garrastazu Médici.