"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, junho 21, 2007

Ciência Hoje

Tem mais alguém aí?
Colunista discute a possibilidade de haver vida extraterrestre capaz de se comunicar conosco

Sempre haverá entre nós uma inquietação quando olharmos para o céu noturno ornado com um número quase infinito de estrelas: será que nosso planeta foi, entre um sem-número de locais de nossa galáxia, o único que reuniu condições adequadas para o surgimento e desenvolvimento da vida? Ou será que a existência de seres vivos é um processo comum e estaríamos cercados por um grande número de planetas habitados?

Devido à grande distância entre a Terra e os outros corpos celestes e à nossa limitação técnica atual, esse antigo questionamento humano só é passível de ser tratado na teoria – por enquanto! Mesmo com o advento de telescópios e radiotelescópios muito mais potentes, ainda estamos longe de termos indícios sobre a existência de vida extraterrestre.

Representação artística do sistema planetário em órbita da estrela Gliese 581, na constelação de Libra. No primeiro plano, o planeta extra-solar Gliese 581c, que é similar à Terra e poderia ter água líquida em sua superfície (arte: ESO).

Esse debate ganhou força com a descoberta recente de um planeta na constelação de Libra, a 20,3 anos-luz da Terra, por uma equipe de astrônomos liderada pelo suíço Michael Mayor, anunciada com estardalhaço na imprensa. Gliese 581c , como foi batizado, chama a atenção por ser o primeiro planeta parecido com a Terra e, portanto, bom candidato a abrigar vida.

Antes dele, mais de 200 planetas já haviam sido descobertos fora do Sistema Solar. Entretanto, a imensa maioria não reúne condições adequadas para sustentar a vida: ou são gigantes gasosos como Júpiter, ou estão muito próximos ou distantes de sua estrela ou ainda orbitam em torno de astros que emitem raios ionizantes mortais. Mas qual será a probabilidade de um planeta como Gliese 581c abrigar uma civilização inteligente, capaz de se comunicar conosco?

Pois existe uma metodologia criada justamente para estimar essa possibilidade, proposta na década de 1960 pelo americano Frank Drake (1930-). Drake, professor de astrofísica e astronomia da Universidade da Califórnia em Santa Cruz (EUA), criou uma equação (também conhecida como equação de Green Bank ou de Carl Sagan) para analisar a probabilidade de existência em nossa galáxia de civilizações extraterrestres que apresentem avanços tecnológicos suficientes para serem detectadas ou para manter contato com nossa espécie ( N ).

A equação de Drake

A equação de Drake pode ser definida do seguinte modo:

N= R*. f p . n e . f l . f i . f c . L

Nessa fórmula, R* representa taxa anual de formação de estrelas na Via Láctea; f p , a proporção de estrelas que possuam planetas; n e , o número de planetas potencialmente habitáveis por espécies vivas; f l , a proporção de planetas habitáveis onde a vida realmente se desenvolveu; f i , a proporção, entre estes planetas, daqueles que têm vida inteligente; f c , o número de civilizações dentro deste conjunto que têm tecnologia para se comunicar com outros planetas; e L , o tempo de vida dessas civilizações em que seus sinais estariam detectáveis no espaço.

Entre os itens acima, a taxa anual de formação de estrelas em nossa galáxia ( R* ) causa menos controvérsias: a maioria dos cientistas acredita que se formam cerca de 6 a 10 estrelas a cada ano na Via Láctea. Estima-se que o universo tenha se formado há cerca de 13 bilhões de anos. Nossa galáxia tem cerca de 250 bilhões de estrelas e estima-se que existam 70 sextilhões (7 seguido de 22 zeros!) desses corpos celestes visíveis no universo – um vasto conjunto que poderia abrigar planetas com civilizações tecnologicamente avançadas.

Cartaz do filme Contato , baseado numa obra de Carl Sagan, em que os humanos tentam estabelecer comunicação com civilizações extraterrestres.

Por esse motivo, mesmo que civilizações extraterrestres ocorram em uma fração diminuta da Via Láctea, deve existir pelo menos um milhão de civilizações capazes de se comunicar com a nossa, segundo a avaliação do astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996), em um fascinante artigo no qual discute a equação de Drake.

Os partidários da hipótese de Sagan defendem um ponto de vista conhecido como “princípio da mediocridade” (não deles, mas das características que originaram nosso planeta e os homens!). Segundo esse princípio, a Terra não possui nada em especial e os elementos químicos, condições físicas etc. ocorrem em outras partes do universo e, portanto, a vida poderia também estar presente em outros locais.

Dados imprecisos

Todos os outros parâmetros da Equação de Drake são baseados em deduções criadas a partir de dados ainda pouco confiáveis. Por exemplo, o número de planetas com condições para suportar o surgimento da vida ( n e ) depende das características da estrela em torno da qual esses corpos celestes orbitam. Apenas planetas localizados em uma distância adequada podem se tornar habitáveis por seres vivos da forma como conhecemos.

Planetas muito próximos de sua estrela (como Mercúrio e Vênus) ou muito distantes (como Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) não podem suportar a vida. As radiações ionizantes produzidas pelas estrelas, assim como as características de cada planeta (como massa, pressão, composição atmosférica e atributos da órbita) também são essenciais para que haja condições para surgir vida nesses locais.

O número de planetas onde a vida realmente surgiu ( f l ) depende de alguns outros fatores, inclusive de sorte, apesar de alguns pesquisadores considerarem que a vida é um processo que sempre tenderá a ocorrer desde que lhe sejam dadas condições para isso.

Já a presença de vida inteligente ( f i ) e a de organismos capazes de manter comunicação com nosso planeta ( f c ) estão relacionadas. A ausência de sinais claros de comunicação até o momento pode significar que ambos os parâmetros – ou ao menos f c – tenham valores baixos. O surgimento de apenas uma espécie com a capacidade de se comunicar com outros planetas em 4 bilhões de anos de evolução da vida na Terra (e que alcançou essa capacidade apenas recentemente) pode também indicar que f i e f c podem não ser elevados. Porém, talvez essa comunicação esteja sendo tentada e ainda não possuímos a tecnologia para sua detecção e compreensão, ou então esses sinais ainda não nos alcançaram.

Outra possibilidade é que a presença de inteligência talvez seja um fenômeno muito raro no universo e que nossa espécie seja a única forma de vida inteligente em toda essa vastidão. Essa teoria, conhecida como “hipótese da raridade da Terra”, afirma que a espécie humana surgiu devido a uma combinação altamente improvável de fatores e que as chances de que isso venha a ocorrer em outros locais são praticamente nulas. Elas envolveriam a existência de um planeta com as características adequadas e uma série imensa de fatores que levariam à evolução de uma espécie como a nossa. Defensores dessa hipótese muitas vezes se apóiam em dogmas religiosos ou no fato de que até hoje não se obteve provas conclusivas de vida fora de nosso planeta.

A Terra na escuta

Uma das estratégias atuais para identificar eventuais sinais transmitidos por civilizações extraterrestres é o uso de radiotelescópios que captam sinais de rádio, como os da imagem acima, instalados no Novo México (EUA).

A emissão de sinais de rádio é a maneira mais viável de captar eventuais tentativas de comunicação de outras civilizações. Porém, foi analisada até o momento apenas a emissão de sinais de rádio provenientes de uma proporção ínfima de estrelas presentes na Via Láctea. Esses sinais têm sido analisados sem gerar resultados comprovadamente positivos. Um dos motivos para esse insucesso talvez seja o curto espaço de tempo em que essa tecnologia vem sendo empregada – desde 1937 – ou a escolha de freqüências inadequadas para o contato com formas extraterrestres.

De volta à equação de Drake, o período de vida de uma civilização inteligente e capaz de se comunicar com outros planetas ( L ) depende de uma série de fatores: pode ser que a evolução de vida inteligente seja algo pouco duradouro e que essas civilizações sejam varridas por fenômenos naturais como a queda de asteróides e glaciações. Alternativamente, pode ser que o processo de obtenção da inteligência seja associado com a autodestruição e que organismos que alcancem esse refinamento estejam fadados a desaparecer após um curto período de tempo, devido ao impacto de suas realizações sobre o meio ambiente.

Uma das dificuldades para solucionar o dilema da existência de vida extraterrestre é se libertar de uma visão antropomórfica, que nos leva a procurar formas de vida similares à nossa e que apresentem uma tecnologia conhecida pela espécie humana. Claramente, não há motivos para que uma civilização extraterrestre tenha desenvolvido tal tecnologia; suas formas de comunicação podem ser muito diferentes das nossas.

Os valores obtidos em estimativas para a equação de Drake têm sido elevados ou diminutos, dependendo do otimismo ou pessimismo de quem faz os cálculos. Prefiro uma posição otimista: não acredito que sejamos tão especiais assim e que tenhamos sido a única espécie capaz de pensamento lógico e abstrato em um universo repleto de estrelas e de planetas. Isso, simplesmente, é algo que não faz sentido e a ciência tem mostrado, desde Galileu, Mendel e Darwin, que somos apenas mais um jogador e, talvez, nem sejamos o craque do time!

Temos também que considerar que os outros organismos inteligentes estejam separados de nossa espécie por distâncias espaciais ou temporais que impeçam essa comunicação. Ou que, simplesmente, esses seres não desejem esse tipo de contato, por falta de interesse ou por não acreditar em vida inteligente fora do planeta deles, ou ainda por acreditarem que a nossa espécie é ainda muito pouco desenvolvida e perigosa para as outras civilizações. Não podemos culpá-los, não é mesmo?

Jerry Carvalho Borges

Colunista da CH On-line

18/06/2007

Ciência Hoje

Novo método para produzir biocombustíveis
Especialista brasileiro não vê motivo para entusiasmo com técnica descrita como promissora


Engenheiros norte-americanos desenvolveram um método para produzir um novo biocombustível derivado da frutose, açúcar simples que pode ser obtido a partir de plantas diversas. Embora o composto tenha vantagens em relação ao etanol, biocombustível mais comum no mundo, é improvável que venha a gerar energia de forma tão eficaz como o álcool produzido a partir da cana-de-açúcar no Brasil.

O DMF (abreviação de 2,5 dimetilfurano) foi produzido em escala de laboratório pela equipe do engenheiro químico James Dumesic, da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA). O grupo desenvolveu um método que permite obter o composto em dois tempos – a frutose é inicialmente convertida em um composto intermediário, chamado HMF (hidroximetilfurfural), antes de ser transformada em DMF.

O método foi descrito na Nature desta semana e saudado como uma novidade promissora para o futuro dos biocombustíveis. “O DMF é menos volátil que o etanol, com um ponto de ebulição 20ºC mais alto, além de ter uma densidade energética 40% mais alta e de não ser solúvel em água”, disse Dumesic à CH On-line .

Usina de produção de etanol em Sertãozinho (SP). A grande competitividade do álcool brasileiro se deve a fatores como o vasto território, altas temperaturas, Sol abundante e a grande eficiência energética da produção do etanol.

A novidade, no entanto, não entusiasmou o engenheiro mecânico Luiz Horta Nogueira, professor da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) e consultor da Organização das Nações Unidas na área de biocombustíveis. Segundo ele, as vantagens alegadas pelos autores são pouco significativas.

"O determinante é saber se esse composto terá uma eficiência energética mais alta que a do etanol, com um baixo impacto ambiental e bom uso dos recursos naturais", afirma. Horta Nogueira acredita que dificilmente o novo combustível seria competitivo com o etanol produzido a partir da cana-de-açúcar no Brasil em relação a critérios como balanço energético, custo e produtividade.

Uso em grande escala
Os autores reconhecem que é cedo ainda para pensar no uso comercial do composto. "É importante testar a segurança e o impacto ambiental do DMF antes de considerar seu uso amplo como combustível", afirma Dumesic. Ainda que os testes para avaliar seu desempenho mostrem que ele é viável e seguro para uso em grande escala, isso pode levar muitos anos para acontecer.

Como o planeta não pode esperar, dificilmente o DMF representará uma alternativa para diminuir de imediato a dependência de combustíveis fósseis e combater o aquecimento global. "As questões centrais que temos que tratar é como expandir a produção de biocombustível de forma realmente eficiente, com matérias primas de baixo custo e tecnologias eficientes", defende Horta Nogueira.

De qualquer forma, o método usado pelos autores, que combina reações químicas e biológicas para a produção do biocombustível, pode representar um avanço importante na pesquisa nessa área. Um comentário ao artigo publicado na mesma edição da Nature prevê que diversos trabalhos devem recorrer à estratégia desenvolvida no estudo para a busca de novos biocombustíveis.

"A etapa fundamental do nosso método foi a obtenção do composto intermediário HMF", explica Dumesic. "Nós e outros grupos de pesquisa vínhamos trabalhando nisso por vários anos, e agora parece que ele está se tornando um composto que faz a ponte entre recursos renováveis da biomassa e a produção de materiais poliméricos e combustíveis líquidos."



Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
20/06/2007

Le Monde Diplomatique Brasil (Diplô) - junho 03

Para onde vai o império?

Os objetivos reais da política imperial norte-americana continuam difíceis de serem compreendidos. Baseada na afirmação de sua força militar e tecnológica em escala global, ela gera impopularidade e instabilidade em todo o mundo.

Eric Hobsbawm

O poder militar em escala global requer o domínio de tecnologia, combinado com um Estado geograficamente muito amplo. Antigamente, esse aspecto era irrelevante

A atual situação mundial não tem precedentes. Os grandes impérios globais que já existiram, como o império espanhol dos séculos XVI e XVII e, em particular, o império britânico dos séculos XIX e XX, pouco têm em comum com o atual império norte-americano.

A globalização atingiu um estágio inédito em três planos: a integração, a tecnologia e a política.

Para começar, vivemos num mundo de tal forma interdependente, que operações banais se encadeiam e qualquer interrupção tem conseqüências globais imediatas. Tomemos o exemplo da Sars (Severely Acute Respiratory Syndrome), cuja origem, desconhecida, surgiu em algum ponto da China: em poucos dias, ganhou proporções de um fenômeno global. Com uma rapidez inimaginável em épocas anteriores, seus efeitos se fizeram sentir sobre a rede mundial de transportes, sobre o turismo, sobre todo tipo de simpósios e instituições internacionais, sobre os mercados mundiais e até sobre as economias inteiras de alguns países.

Em seguida, há o enorme poder de uma tecnologia constantemente revolucionada, tanto no plano econômico, como, e principalmente, no militar. Em questões militares, a tecnologia é hoje mais decisiva do que nunca. O poder militar em escala global requer o domínio dessa tecnologia, combinado com um Estado geograficamente muito amplo. Antigamente, esse aspecto das dimensões era irrelevante. A Grã-Bretanha, que comandou o maior império existente em seu tempo, era um Estado de porte médio, mesmo para os padrões dos séculos XVIII e XIX. E, no século XVII, a Holanda – um Estado de dimensões comparáveis às da Suíça – podia desempenhar o papel de um ator global. Hoje em dia, é inconcebível que um Estado – por mais rico e tecnologicamente avançado que seja – possa se tornar uma potência mundial se não for relativamente gigantesco.

Domínio isolado

Ao contrário do projeto imperial dos EUA, todas as grandes potências e os impérios sabiam que não estavam isolados e não procuravam dominar o mundo sozinho

Finalmente, há o caráter complexo da atual política. Nossa época ainda é a dos Estados-nação – único elemento em que a globalização não funciona. Mas se trata de um tipo particular de Estado em que – virtualmente em todos eles – a população comum desempenha um papel importante. No passado, quem tomava as decisões governava sem se preocupar com o que a maioria da população pensava. No final do século XIX e início do século XX, os governos podiam confiar na mobilização de seus povos. Atualmente, muito mais do que em qualquer outra época, eles devem levar em conta o que a população pensa e o que está disposta a fazer.

Ao contrário do projeto imperial norte-americano – e é aí que reside a grande novidade –, todas as outras grandes potências e todos os impérios sabiam que não estavam isolados e nenhum deles procurava dominar o mundo sozinho. Nenhum deles acreditava ser invulnerável, embora todos pensassem ser o centro do mundo, como a China, por exemplo, ou o império romano em seu apogeu. No sistema de relações internacionais que regeu o mundo até a guerra fria, a dominação regional representava o máximo dos perigos previsíveis. Não se deve confundir a possibilidade de acesso global – o que se tornou possível a partir de 1492 – com a dominação global.

O império “global” britânico

O império britânico foi, no século XIX, o único realmente “global”, no sentido em que agia sobre o todo o planeta e, desse ponto de vista, é, sem dúvida, um precedente para o império norte-americano. Contrariamente, os russos da era comunista, que também sonhavam com um mundo novo, sabiam muito bem, mesmo no auge do poder da União Soviética, que a dominação do mundo estava fora de seu alcance: ao contrário do que dizia a retórica da guerra fria, nunca tentaram seriamente consegui-lo.

Nada é mais perigoso do que impérios que defendem exclusivamente seus interesses, acreditando que, assim, estão prestando um serviço a toda a humanidade.

Mas as atuais ambições norte-americanas são totalmente distintas daquelas que tinha a Grã-Bretanha há um século, ou pouco mais. Os Estados Unidos são um país fisicamente vasto, com uma das maiores populações do planeta e uma demografia crescente (ao contrário da União Européia), devido a uma imigração praticamente ilimitada.

Além disso, há diferenças de estilo. Em seu apogeu, o império britânico ocupava e administrava uma quarta parte da superfície terrestre1. Os Estados Unidos nunca praticaram, realmente, o colonialismo – exceto por um breve período, durante a moda do imperialismo colonial, no final do século XIX e início do século XX. Preferiram se apoiar em Estados dependentes, ou satélites, principalmente no hemisfério ocidental, onde, na prática, não tinham concorrentes. Ao contrário da Grã-Bretanha, adotaram uma política de intervenção militar nesses Estados durante o século XX.

Os perigos do objetivo universal

Como a marinha era, na época, a ponta-de-lança do império mundial, a Grã-Bretanha apoderou-se de bases marítimas e portos de importância estratégica pelo mundo inteiro. É por essa razão que a bandeira inglesa tremulava – e ainda o faz – de Gibraltar às Ilhas Malvinas, passando pela ilha de Santa Helena. Com exceção do Oceano Pacífico, os norte-americanos não tiveram necessidade desse tipo de bases até 1941 e o fizeram com a concordância do que, naquela época, poderia realmente se chamar uma “coalizão de boa vontade” (coalition of the willing). Atualmente, essa situação é diferente. Os Estados Unidos perceberam a necessidade de garantir, de forma direta, um número considerável de bases militares, continuando a controlar os países de forma indireta.

Existem, por fim, diferenças importantes na estrutura do Estado, no plano interno, e em sua ideologia. O império britânico tinha um objetivo britânico, e não universal, embora, evidentemente, seus adeptos também vissem nele motivos mais altruístas. A abolição do tráfico de escravos, por exemplo, foi usada para justificar a potência naval britânica, da mesma maneira que os direitos humanos servem, nos dias de hoje, para justificar a potência militar norte-americana. Tal como a França e a Rússia revolucionária, os Estados Unidos representam uma grande potência baseada numa revolução universalista e, conseqüentemente, dotada da crença de que o resto do mundo deve seguir seu exemplo – e, mesmo, que deveriam ser ajudados na tarefa de libertar o resto do mundo. Nada é mais perigoso do que impérios que defendem exclusivamente seus interesses, acreditando que, assim, estão prestando um serviço a toda a humanidade.

Império para atender vender produtos britânicos

Os Estados Unidos importam do resto do mundo enormes quantidades de bens manufaturados, o que provoca internamente uma reação protecionista

A diferença fundamental, no entanto, é a de que o império britânico, embora fosse global – e, num certo sentido, até mais global do que o atual império norte-americano, pois detinha, sozinho, o domínio de todos os mares, o que nenhum outro país conseguiu fazer dos céus –, não procurava um poder global, nem mesmo um poder militar ou político terrestre em regiões como a Europa e a América. O império buscava atender aos interesses fundamentais da Grã-Bretanha, que eram econômicos, com a mínima ingerência possível nos assuntos dos outros países. Tinha plena consciência de suas limitações em termos de dimensões geográficas e recursos. Depois de 1918, o império estava profundamente consciente de seu declínio.

Por outro lado, o império global da primeira nação industrializada soube, de certa forma, dar os primeiros passos rumo a uma globalização que o êxito da economia britânica tanto ajudou a desenvolver (leia, nesta edição, o artigo de Ha-Joon Chang sobre o livre-comércio). O império britânico era um sistema de comércio internacional que, à medida que a indústria se desenvolvia na metrópole, dependia, basicamente, da exportação de produtos manufaturados para os países menos desenvolvidos, o que lhe permitiu tornar-se o maior mercado de matérias-primas do planeta2. Quando deixou de ser a fábrica do mundo, a Grã-Bretanha tornou-se o centro do sistema financeiro global.

Grande mercado interno importador

O mesmo não ocorreu com a economia norte-americana. Esta se apoiava na proteção às suas indústrias nacionais contra a concorrência externa sobre seu mercado potencialmente gigantesco, fato que ainda é importante na política dos Estados Unidos. Quando a indústria norte-americana se tornou mundialmente dominante, o livre-comércio se adaptou a ela com a mesma perfeição que se adaptara à indústria britânica. Mas o fato de que essa economia não ocupe, no atual mundo industrializado, a posição dominante que ocupava no passado constitui, justamente, um dos pontos fracos do império norte-americano do século XXI3. Os Estados Unidos importam do resto do mundo enormes quantidades de bens manufaturados, o que provoca uma reação protecionista tanto por parte dos interesses comerciais quanto por parte do eleitorado. Existe uma contradição entre a ideologia de um mundo dominado por um livre-comércio sob controle norte-americano e os interesses políticos de elementos importantes dentro dos Estados Unidos que aquela ideologia compromete.

Não existe mais “coalizão de boa vontade” porque a atual política norte-americana é mais impopular que a de qualquer outro governo norte-americano

Uma das maneiras de superar essa fraqueza consiste na expansão do mercado de armas. Esta é outra das diferenças entre os impérios britânico e norte-americano. Especificamente a partir da II Guerra Mundial, o acúmulo de armamento em tempos de paz atingiu, nos Estados Unidos, um patamar espantoso, sem precedentes na história moderna, e pode explicar a predominância exercida pelo que, em sua época, o presidente Dwight D. Eisenhower chamou o “complexo militar-industrial”. Durante os 40 anos da guerra fria, ambos os lados falavam e agiam como se houvesse uma guerra concreta, ou como se esta estivesse a ponto de ser desencadeada. O império britânico atingiu seu apogeu durante um século (de 1815 a 1914) em que não ocorreram guerras internacionais importantes.

Supremacia produzida pela Guerra Fria

E, apesar da óbvia desproporção entre as potências norte-americana e soviética, a tendência a um movimento crescente na indústria armamentista norte-americana se fez acentuar sensivelmente, inclusive antes do final da guerra fria, não parando de crescer desde então.

A guerra fria transformou os Estados Unidos em potência hegemônica do mundo ocidental. No entanto, essa supremacia foi exercida enquanto líderes de uma aliança. É evidente que ninguém tinha quaisquer ilusões acerca da importância relativa dos parceiros. A sede do poder era em Washington e ponto final. De certa maneira, a Europa reconhecia, nessa época, a lógica do império global norte-americano, enquanto atualmente o governo de Washington fica indignado com o fato de seu império, assim como seus objetivos, não serem mais genuinamente aceitos. Não existe mais “coalizão de boa vontade” porque a atual política norte-americana é mais impopular que a de qualquer outro governo norte-americano e, provavelmente, que a de qualquer governo de uma grande potência.

Demonstração de força incompreensível

Essa súbita demonstração de força não se encaixa na política imperial aplicada durante a guerra fria nem atende aos interesses econômicos dos EUA

Antigamente, os norte-americanos conduziam essas relações com a tradicional cortesia das questões internacionais, inclusive porque seriam os europeus que ficariam na linha de frente para dar combate aos exércitos soviéticos; tratava-se, também, de uma aliança soldada aos Estados Unidos, já que dependente de sua tecnologia militar. Washington sempre se opôs, de modo sistemático, à constituição de uma força militar independente na Europa. As raízes dos velhos desentendimentos entre norte-americanos e franceses, que já vêm da época do general De Gaulle, têm origem na recusa, por parte da França, de uma aliança eterna e em sua vontade de manter um potencial independente, capaz de produzir um equipamento militar de alta tecnologia. Apesar das tensões, entretanto, a aliança representava, na época, uma autêntica “coalizão de boa vontade”.

Após o colapso da União Soviética, os Estados Unidos tornaram-se, na prática, a única superpotência, que nenhum outra nação desejava – ou podia – desafiar. É por isso que essa súbita demonstração de força, extraordinária, brutal e hostil, é ainda mais difícil de compreender, pois não se encaixa na política imperial adotada já há muito tempo e aplicada durante a guerra fria, nem atende aos interesses econômicos norte-americanos. A política que prevalece nos últimos tempos, em Washington, dá a qualquer observador a impressão de ser de tal forma tresloucada, que é difícil entender seus objetivos reais. Para quem domina completamente, ou de forma mediana, o processo de decisões nos Estados Unidos, trata-se, obviamente, de afirmar uma supremacia global pela força militar, mas o objetivo desta estratégia permanece obscuro.

Potência dependente de recursos escassos

Será bem-sucedida? O mundo é demasiado complicado para ser dominado por um único país. Sem esquecer que, pondo de lado sua superioridade militar, os Estados Unidos dependem de recursos que vêm se tornando escassos, ou correm o risco de escassez. Embora contem com uma economia forte, a parte que ela ocupa na economia mundial vem diminuindo. É vulnerável, tanto a curto como a longo prazo: imaginemos, por exemplo, que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) decida, de uma hora para outra, que o barril seja faturado em euros, e não em dólares...

A economia dos EUA é vulnerável a curto e a longo prazo: imaginemos, por exemplo, que a Opep decida que o barril seja faturado em euros, e não em dólares...

É forçoso constatar que os norte-americanos pouco ligaram para os trunfos políticos que tinham em mãos durante os últimos dezoito meses, mas ainda sobraram alguns. É verdade que permanece a influência preponderante de sua cultura e da língua inglesa. Mas a principal vantagem de que dispõem para seu projeto imperial é militar. Nesse aspecto, o império norte-americano é inigualável e é provável que continue sendo assim num futuro previsível. Mas, se essa vantagem é decisiva em conflitos localizados, não o é, necessariamente, em termos absolutos. No entanto, em termos práticos, nenhum outro país – nem mesmo a China – dispõe de uma tecnologia comparável à dos Estados Unidos. Mas deve-se refletir sobre os limites de uma superioridade pura e simplesmente tecnológica.

Invasão do Iraque: exemplo de frivolidade

É evidente que, teoricamente, os norte-americanos não pretendem ocupar o planeta inteiro. Seu objetivo é ir à guerra, montar governos amigos e voltar para casa. Isto não irá funcionar. Em termos estritamente militares, a invasão do Iraque foi um enorme sucesso. Contudo – e justamente por se preocupar com esse único objetivo –, o governo Bush não levou em conta as necessidades que se impõem quando se invade um país – governando-o e ajudando-o a se manter, como fizeram os ingleses, por exemplo, no caso da Índia, um modelo clássico de colonialismo. A “democracia-modelo” – que os norte-americanos querem oferecer ao mundo inteiro através do Iraque – não só não tem um modelo como é irrelevante. A crença de que os Estados Unidos não necessitam de verdadeiros aliados entre os outros países, ou de um verdadeiro apoio popular entre os países que atualmente têm condições de conquistar militarmente (mas, na prática, não governam), é pura fantasia.

A invasão do Iraque representa um exemplo da frivolidade com que se tomam decisões em Washington. O Iraque é um país derrotado, mas que se recusou à submissão. É um país tão enfraquecido que parecia fácil derrotá-lo. É verdade que tem recursos, como o petróleo, mas o objetivo fundamental da operação estava na demonstração de força internacional. A proposta política de que falam os extremistas em Washington – uma reformulação completa de todo o Oriente Médio – não faz sentido. Se pretendem derrubar o reino saudita, o que irão colocar no lugar? Se realmente pretendessem mudar o cenário no Oriente Médio, é sabido que há uma única coisa a ser feita: pressionar os israelenses. O pai de George W. Bush estava preparado para fazê-lo, em 1991, após a primeira guerra do Golfo, mas o atual ocupante da Casa Branca não está. Ao invés disso, destruiu um dos dois únicos governos leigos do Oriente Médio e sonha em fazer o mesmo com o outro, a Síria.

Imitações de Rambo

Teoricamente, os norte-americanos não pretendem ocupar o planeta inteiro. Seu objetivo é ir à guerra, montar governos amigos e voltar para casa.

A declaração pública dessa pretensão evidencia seu vazio. Longe de corresponderem à formulação de uma estratégia, expressões como o “eixo do mal” ou “salvo-conduto” não passam de frases que pretendem dispor de um poder em si mesmas. A novilíngua que se esparramou pelo mundo afora durante os últimos dezoito meses revela a inexistência de uma verdadeira política. O próprio George W. Bush não faz política; ele representa. Dirigentes como Richard Perle ou Paul Wolfowitz imitam Rambo quando falam, tanto em público quanto em particular. Só conta uma coisa: o irresistível poder norte-americano. Em termos concretos, isso significa que os Estados Unidos podem invadir qualquer país, desde que não seja muito grande e que a vitória seja rápida o suficiente. Isto não é uma política. Nem irá funcionar.

Para os Estados Unidos, as conseqüências podem ser muito perigosas. No plano interno, para um país que pretende controlar o mundo – basicamente por meios militares – há o risco, até agora seriamente subestimado, de uma militarização. No plano internacional, há o risco de desestabilizar o mundo.

Prova disso é a atual instabilidade no Oriente Médio, muito maior do que dez, ou mesmo cinco anos atrás. A política norte-americana enfraquece todos os esforços de qualquer solução possível – formal ou informal – para a manutenção da ordem. Na Europa, demoliu a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – o que não é uma grande perda; mas, tentar transformá-la numa força de polícia militar mundial a serviço dos Estados Unidos é uma farsa. Washington sabotou ostensivamente a União Européia e também procura, sistematicamente, liquidar uma das maiores conquistas do pós-guerra, o Estado de bem-estar democrático e próspero. Por outro lado, a crise de credibilidade das Nações Unidas parece menos grave: a organização nunca teve condições de agir senão de uma maneira marginal, já que depende totalmente do Conselho de Segurança e do uso, pelos norte-americanos, do direito de veto.

“Imperialismo dos direitos humanos”

Como irá o mundo enfrentar, ou seja, conter, os Estados Unidos? Na ausência de condições para os enfrentar, alguns países irão preferir aliar-se a eles. Mais perigosos são os que, embora detestando a ideologia divulgada pelo Pentágono, apóiam o projeto norte-americano sob o pretexto de que ele irá contribuir para eliminar algumas injustiças locais e regionais. Essa espécie de “imperialismo dos direitos humanos” foi alimentada pelo fracasso da Europa nos Bálcãs durante a década de 90. A divergência de opinião sobre a invasão do Iraque evidenciou que só uma minoria de intelectuais influentes – tais como Michael Ignatieff e Bernard Kouchner – apoiou a intervenção norte-americana, argumentando que era necessário recorrer à força para pôr ordem às desgraças do mundo. É verdade que alguns governos são tão perigosos, que seu desaparecimento significaria uma vitória para o mundo inteiro. Mas isso não justificaria o perigo global que representa para o planeta uma potência mundial que, basicamente, não está interessada num mundo que não compreende, mas tem condições de intervir militarmente, de forma decisiva, sempre que alguém fizer alguma coisa de que Washington não goste.

É verdade que tem recursos, como o petróleo, mas o objetivo fundamental da operação no Iraque era a demonstração de força internacional

Nos bastidores, percebe-se que aumenta a pressão exercida sobre os meios de comunicação: num mundo em que a opinião pública desempenha um papel de tamanha importância, eles são submetidos a enormes manipulações4. Por ocasião da guerra do Golfo de 1990-1991, agentes da “coalizão” fizeram tentativas – para evitar uma repetição do que ocorrera no Vietnã – de impedir os jornalistas de se aproximarem do campo de batalha. Não deu certo: alguns veículos, como a CNN, fizeram a cobertura dos fatos – justamente de Bagdá – da maneira que Washington não desejava. Durante a invasão do Iraque, no entanto, os jornalistas foram integrados às tropas que, desta maneira, podiam ter maior influência sobre suas opiniões. Mas, na verdade, não funcionou. Futuramente, certamente tentarão encontrar meios de controle mais eficientes, talvez diretos, dos últimos recursos tecnológicos. A ação combinada entre os governos e os detentores de monopólios da mídia tende a ser ainda mais eficaz do que foi agora, por exemplo, a da Fox News5, nos Estados Unidos, e a do império de Silvio Berlusconi na Itália.

Prioridades internas

É impossível prever quanto tempo irá durar a superioridade norte-americana. A única coisa de que podemos ter certeza é que se tratará de um fenômeno temporário na história, como foram todos os impérios. No espaço de uma vida, vimos o fim de todos os impérios coloniais, o do suposto “império dos mil anos” de Hitler, que durou somente doze, e o fim do sonho soviético de uma revolução mundial.

O império norte-americano poderia ruir por motivos internos, o mais imediato dos quais seria o fato de que o imperialismo – no sentido da dominação e administração do mundo – não interessa à maioria dos norte-americanos, muito mais preocupados com o que se passa com eles dentro dos Estados Unidos. A economia está tão debilitada, que chegará o dia em que o governo e o eleitorado irão decidir que é mais importante se concentrarem nesse problema do que se lançarem em aventuras no exterior6. Tanto mais que, no caso dessas intervenções militares no exterior, grande parte dos custos será pago pelos próprios cidadãos norte-americanos – o que não foi o caso da guerra do Golfo, nem, em grande parte, da guerra fria.

Reeducar o Império

O império norte-americano poderia ruir por motivos internos, o mais imediato dos quais seria o fato de que o imperialismo não interessa à maioria dos norte-americanos

Desde 1997-1998, a economia capitalista mundial passa por uma crise. Não irá implodir, evidentemente, mas é improvável que os Estados Unidos prossigam com uma política externa ambiciosa, se graves problemas se revelarem no plano interno. A política econômica interna de George W. Bush não atende, necessariamente, a interesses mais locais. E sua política externa não é, necessariamente, racional, mesmo do ponto de vista dos interesses imperiais norte-americanos – e, naturalmente, daqueles do capitalismo norte-americano. Daí decorrem as divergências de opinião dentro do próprio governo.

A questão fundamental é saber o que farão agora os norte-americanos e como irão reagir os outros países. Irá algum deles, como a Grã-Bretanha – o único verdadeiro parceiro da coalizão dominante – continuar apoiando qualquer projeto que venha de Washington? Os governos deverão mostrar que há limites para a potência norte-americana. Até o momento, foi a Turquia que deu a contribuição mais positiva nesse sentido, afirmando, simplesmente, que não estava preparada para tomar certas decisões, ainda que sabendo que estas lhe seriam benéficas.

De imediato, no entanto, o principal objetivo não é o de conter, mas o de educar, ou reeducar, os Estados Unidos. Já houve um tempo em que o império norte-americano tinha consciência de seus limites – ou, pelo menos, sabia as vantagens que poderia ter comportando-se como se tivesse seus limites. Em grande parte, isso se devia ao medo do outro – a União Soviética. Agora que esse medo desapareceu, só um interesse esclarecido e a educação podem tomar seu lugar.

(Trad.: Jô Amado)

1 - Ler, de Eric Hobsbawm, L’Ere dos Empires, ed. Hachette Littérature, Paris, 1999.
2 - Eric Hobsbawm, op. cit.
3 - Ler, de Blowback, The costs and consequences of American Empire, ed. Chalmers Johnson Owl Books, 2001.
4 - Ler, nas edições do dia 16 de maio de 2003 de Le Monde e International Herald Tribune, protestos franceses contra a “conspiração” da imprensa norte-americana.
5 - Eric Alterman, “Macartismo, versão Bush”, Le Monde diplomatique, março de 2003.
6 - Ler “US unemployment hits na 8 year high”, International Herald Tribune, 3 de maio de 2003.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/06/07

Risco de desindustrialização gera polêmica em debate no BNDES

O Brasil está "chegando à hora da decisão" para definir se quer que sua indústria prossiga na vocação histórica da diversificação ou se quer ter uma indústria especializada em setores "basicamente produtores de commodities", aqueles mais competitivos internacionalmente. A constatação é do economista David Kupfer, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou ontem de seminário promovido pelo BNDES para avaliar as Perspectivas do Investimento 2007/2010, compiladas a partir de levantamento do banco. A reportagem é do jornal Valor, 20-06-2007.

"Se continuarmos no quadro atual de custos sistêmicos (infra-estrutura, basicamente) altos, câmbio valorizado e produtividade crescendo lentamente, isso que chamam de desindustrialização irá acontecer", afirmou Kupfer após comentar a apresentação dos números compilados pelo BNDES. De acordo com esses números, o Brasil possui atualmente uma carteira de projetos, considerados apenas aqueles monitorados pelo banco estatal, que somam R$ 1,051 trilhão em 16 setores para efetivação até 2010, mais que o dobro do previsto no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que é de R$ 503,9 bilhões.

O diretor da área de Insumos Básicos do BNDES, Wagner Bittencourt, disse que o banco tem potencial para financiar R$ 53,1 bilhões em obras de infra-estrutura no âmbito do PAC. São 126 projetos nas áreas de energia, logística e saneamento, cujos investimentos totais somam R$ 95,3 bilhões. Os projetos estão no banco em fases que vão da consulta à liberação de recursos. Até 31 de maio haviam sido liberados R$ 624 milhões para 19 projetos de energia do PAC.

A apresentação dos números, transformados em um livro pela equipe do BNDES, acabou transformando-se em pano de fundo para uma discussão sobre o tema da desindustrialização, iniciada com a intervenção de Kupfer. O economista disse que, se os números referentes aos projetos de insumos básicos, ligados ao comércio internacional, e aqueles ligados aos investimentos (imóveis residenciais) e ao consumo de bens duráveis pelas famílias podem ser considerados "firmes", os projetos em infra-estrutura (R$ 197,9 bilhões) estão "sujeitos a chuvas e trovoadas" por serem muito dependentes do Estado brasileiro.

Kupfer disse que gostaria de ver o levantamento do BNDES expandido para as indústrias "que não estão no BNDES", ou seja, que não entram diretamente na relação de projetos encaminhados ao banco. Para ele, serão as medidas de política industrial que serão tomadas pelo governo que irão ou não fazer com que o que ele chama de "miolo da indústria" acompanhe o crescimento dos grandes projetos. "Você pode construir uma plataforma de petróleo com 10%, 20% ou 80% de índice de nacionalização. Vai depender das políticas que tenha para isso", exemplificou.

Do ponto de vista macroeconômico, Kupfer considera que se o real permanecer valorizado como está, o país pagará o preço daqui a, no máximo, dois anos. Junto com a política macroeconômica, ele avalia que a falta de infra-estrutura adequada e a dificuldade de acesso ao crédito para grande parte dessas empresas que produzem insumos industriais (partes, peças e componentes) vão acabar deixando toda a responsabilidade do crescimento industrial no aumento da produtividade. "É como querer que alguém dê respostas sem dar os meios para obter essas respostas", disse.

A economista Maria da Conceição Tavares, também da UFRJ, que mediou uma das meses, também atacou o câmbio. Para ela, o real valorizado traz uma situação paradoxal porque ajuda a controlar a inflação e a aumentar a renda real do trabalho, mas prejudica os segmento industriais que mais empregam. "Há uma situação tão paradoxal que o poder de compra melhora, mas a indústria que tradicionalmente trabalhou para os trabalhadores (para vender a eles), de móveis, têxteis , confecções e sapatos vai para o diabo", disse.

Conceição, conhecida por seu estilo polêmico, causou constrangimento ao criticar a apresentação de Ricardo Carneiro, da Unicamp. Carneiro havia batido na tecla da especialização, dizendo que faltava investimento público em infra-estrutura e que o crescimento da indústria estava sendo puxado pelos segmentos extrativos e pelo agronegócio. A economista da UFRJ, estruturalista e desenvolvimentista como Carneiro, disse que ele estava brigando com seus próprios pares ao não reconhecer que o agronegócio gera uma diversificação industrial também.

Isso tudo após o economista-chefe do Bradesco, Octávio de Barros, ter feito um discurso altamente otimista, com base em pesquisas feitas pelo departamento que dirige. Segundo ele, os dados obtidos mostram que há uma redução de custos industriais generalizada e o ambiente de estabilidade faz com que as empresas estejam com perspectiva de aumentar seus negócios. "É o momento de aproveitar a maré boa a fugir para a frente."

O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, que segunda-feira havia criticado o câmbio valorizado, adotou ontem um discurso mais positivo sobre o setor industrial ao destacar os investimentos feitos. "Os investimentos na indústria vêm crescendo de forma expressiva. Nos últimos 12 meses chegaram a R$ 30 bilhões no BNDES, aumentando em 35%. Portanto, demonstrando vigor num ciclo de crescimento de investimentos de diversos setores da indústria de transformação e da indústria extrativa", afirmou.

Entre junho do ano passado e maio deste ano, o BNDES desembolsou R$ 57,7 bilhões em financiamentos, com elevação de 26% em relação aos 12 meses anteriores. As aprovações para futuros empréstimos chegaram a R$ 88,3 bilhões, com acréscimo de 67%. O desempenho dos enquadramentos e das consultas também foi positivo no intervalo, avaliou o banco de fomento, com expansão respectiva de 33% (R$ 106,6 bilhões) e 27% (R$ 118,4 bilhões).

Todos os principais segmentos registraram alta de desembolsos e das aprovações nos últimos 12 meses em relação ao período anterior.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/06/07

Justiça proíbe liberação de milho transgênico

A Justiça Federal do Paraná proibiu anteontem em decisão liminar a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) de liberar qualquer variedade de milho transgênico para fins comerciais. A União tem 72 horas para se manifestar sobre a ação, movida por ONGs, que também pedem a anulação da liberação do milho Liberty Link , produzido pela Bayer, concedida pela CTNBio em maio. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo, 20-06-2007.

As entidades alegam que os riscos à saúde e ao meio ambiente associados ao milho Liberty Link foram ignorados pela CTNBio. A ação civil pública é movida pelas ONGs Terra de Direitos, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA) e Associação Nacional dos Pequenos Agricultores (ANPA).

Instituto Humanitas Unisinos - 20/06/07

Economia para pagar juros bate recorde. Déficit nominal zero

Um aumento na arrecadação permitiu que o aperto fiscal promovido pelo setor público batesse recorde em abril. Governo federal, Estados, municípios e estatais economizaram R$ 23,5 bilhões para pagar juros de suas dívidas, maior valor já registrado desde 1991, início da série estatística do Banco Central. A reportagem é de Ney Hayashi da Cruz e publicada no jornal Folha de S. Paulo, 20-06-2007.

Essa economia, chamada de superávit primário, foi recorde e equivale a quase todo o investimento em obras estimado pelo governo federal para este ano, que deve ficar próximo de R$ 25 bilhões. Dos R$ 23,5 bilhões economizados em abril, R$ 14,9 bilhões -ou 63%- vieram do governo federal.

Também contribuíram para o recorde as empresas estatais, que obtiveram um superávit primário de R$ 4,727 bilhões, o maior já registrado por essas companhias num mês de abril.

De acordo com o chefe do Departamento Econômico do BC, Altamir Lopes, os resultados de abril costumam ficar acima da média devido à arrecadação de alguns tributos que comumente ocorrem nesse mês, como é o caso do Imposto de Renda de pessoas físicas. "Abril é sempre muito maior, é natural. Esse número não deve se repetir em outros meses."

O superávit primário recorde serviu para mudar, pelo menos por enquanto, uma característica sempre presente aos indicadores fiscais do Brasil: o aperto fiscal promovido nos primeiros quatro meses do ano conseguiu cobrir quase toda a carga de juros que incidiu sobre a dívida pública no período.

Entre janeiro e abril, o total de juros pagos pelo setor público somou R$ 51,1 bilhões, ou 6,56% do PIB (Produto Interno Bruto). O valor é elevado - média diária de R$ 426 milhões -, mas foi quase todo coberto por um superávit primário de R$ 50,7 bilhões.

Com a combinação desses números, foi praticamente zerado o chamado déficit nominal (diferença entre todas as receitas e todas as despesas públicas, inclusive os gastos com juros). Entre janeiro e abril, esse déficit ficou em R$ 405 milhões, que corresponde a 0,05% do PIB. No mesmo período de 2006, o saldo negativo foi de R$ 16,6 bilhões.

De forma geral, os números mostram que a situação das contas públicas é mais ou menos a mesma observada recentemente: o setor público, puxado pelo governo federal, continua economizando bilhões de reais para pagar juros, e esse esforço ajuda a reduzir a dívida de União, Estados e municípios.

Ressalvas

Ainda assim, há algumas ressalvas em relação a esse cenário aparentemente tranqüilo. "Os números são bons, mas os problemas continuam os mesmos", diz Alexandre Cancherini, economista do Unibanco. "Continuamos vendo um ajuste fiscal feito com base no aumento da arrecadação, e não num maior controle de gastos, e isso não se sustenta no longo prazo."

Segundo Cancherini, um superávit primário equivalente a 2% do PIB já seria suficiente para conter o crescimento da dívida pública -a meta do governo é economizar 3,88% do PIB neste ano. Logo, o problema não estaria no tamanho do aperto fiscal, e sim na sua composição.

Para o economista, o ideal seria que o governo reduzisse suas despesas para, ao mesmo tempo, diminuir a carga tributária, abrindo espaço para maiores investimentos das empresas e gastos das famílias.
Além disso, diz ele, reduções em gastos como o pagamento de aposentadorias abriria espaço para um aumento nos investimentos públicos que possam estimular a economia.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/06/07

Vattimo e Rorty, filósofos do pensamento “fraco”. Entrevista exclusiva de Vattimo à IHU On-Line

Para o filósofo italiano Gianni Vattimo, “não se pode compreender a filosofia contemporânea sem passar através de Rorty”. Questionado sobre seu diálogo intelectual com o filósofo norte-americano recém-falecido, Vattimo afirmou que, no plano religioso, suas “idéias são semelhantes, porque ambos cremos no fim da metafísica, no fim daquela religião como fundamento último além do qual não se pode andar, quando, ao invés, ela é apenas uma das tantas formas para interpretar a nossa existência”. Além de um amigo, Rorty era companheiro de pensamento de Vattimo, haja visto que Rorty chegou mesmo a se definir como “pensador fraco”. As declarações podem ser lidas na íntegra na revista IHU On-Line 225, que circulará semana que vem, em 25-06-2007. A entrevista foi concedida por Vattimo com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail.

Vattimo afirma que os dois maiores legados filosóficos de Rorty são o fim da metafísica e “as conseqüências que comporta este fim: o desmantelamento dos conceitos de verdade, de razão e de representação”. Como era o ser humano Rorty? Vattimo recorda: “Rorty era uma pessoa muito cordial e sincera. Um amigo. Cada vez que nos víamos, falávamos de nossas vidas. Não tínhamos sequer necessidade de falar de filosofia. Foi gentilíssimo também com todos os meus alunos que estudaram com ele. Conhecemo-nos no longínquo 1979, numa conferência em Milwaukee. Após ter escutado minha conferência, presenteou-me uma cópia de Philosophy and the Mirror of Nature [Filosofia e o espelho da natureza] e nos demos conta que estávamos nas mesmas posições. Alguns anos mais tarde, numa conferência em Londres, ele se autodefiniu como “pensador fraco”. Além de ser um amigo, era também um companheiro de pensamento”.

Essa é a quinta entrevista exclusiva que Vattimo concede à IHU On-Line. A primeira foi publicada na 88ª edição, de 15-12-2003 sob o título O cristianismo é a religião do pós-moderno, a segunda na 128ª edição, de 20-12-2004 sob o título “Deus é projeto, e nós o encontramos quando temos a força para projetar...”, e a terceira saiu na edição 161, de 24-10-2005, quando recebeu pessoalmente a IHU On-Line, em Porto Alegre, no dia 18 de outubro daquele ano, às vésperas de proferir sua conferência no evento Metamorfoses da cultura contemporânea. Nessa oportunidade, ele falou sobre “O pós-moderno é uma reivindicação de multiplicidade de visão de mundo”. Sua contribuição mais recente foi à edição 187 da IHU On-Line, de 03-07-2006, com a entrevista O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger. Dele também publicamos uma entrevista na 121ª edição, de 1º-11-2004, sob o título Garzantina di filosofia, um artigo na edição 53, de 31-03-2003 sob o título A guerra pelos direitos humanos? e outro no número 80, de 20-10-2003, sob o título Democracia, killer da metafísica. A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1º-08-2005, abordou a obra The future of religion, escrita por Vattimo, Richard Rorty e Santiago Zabala.

Estudioso do pensamento de Nietzsche, Heidegger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o mentor do "pensamento fraco". De sua produção intelectual, destacamos, Credere di Credere (Milano: Garzanti, 1996), Dopo la cristianità. Per um cristianesimo non religioso (Milano:Garzanti, 2002) e O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1996).

Sobre Rorty, confira a editoria Memória, publicada na edição 223 da IHU On-Line, de 11-06-2007, e a entrevista exclusiva com o Prof. Dr. Paulo Ghiraldelli Jr., publicada na edição 224, de 18-06-2007, “O amor pela democracia é o legado de Rorty”.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/06/07

Estudante de Biologia obtém na Justiça direito de não sacrificar cobaias em aula

O aluno de Ciências Biológicas Róber Freitas Bachinski, 20 anos, obteve na Justiça Federal o direito de cursar as disciplinas de Bioquímica II e Fisiologia Animal B na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sem sacrificar ou dissecar animais.

A decisão liminar que beneficiou apenas o estudante do quarto semestre foi dada no dia 13 pelo juiz da Vara Ambiental Cândido Alfredo Silva Leal Júnior. Ela reconhece a "objeção de consciência", um direito previsto na Constituição, que garante ao aluno se manter fiel às suas crenças e convicções sem que isso signifique um prejuízo para a sua vida acadêmica. A reportagem é de Carlos Wagner e publicada no jornal Zero Hora, 20-06-2007.

Cabe à universidade oferecer métodos alternativos para ensinar e avaliar o aluno. Segundo o professor João Ito Bergonci, diretor em exercício do Instituto de Biociências, ainda não está definido se o aluno irá ficar na sala vendo os seus colegas manipularem os animais ou se terá um local especial para trabalhar. O estudante não se opõe a permanecer na sala de aula, desde que não manipule os bichos.

- A minha intenção é ser bacharel em Ciências Biológicas para ajudar os animais. Não para matá-los. É crueldade matar rãs e ratos para fins didáticos. Existem vários métodos alternativos de ensino no mundo e no Brasil - comenta Bachinski, lembrando programas de computação que simulam o procedimento.

Depois de concluir o curso técnico de Zootecnia em São Vicente do Sul, na Região Central, ele se mudou para Porto Alegre, onde fez vestibular na UFRGS. Diz que o curso técnico serviu para amadurecer o seu conhecimento a respeito do que considera crueldade com os animais em salas de aula.

- Entrei na UFRGS acreditando que encontraria pessoas esclarecidas, que iriam respeitar as minhas crenças. Estava enganado. Precisei recorrer à Justiça para fazer valer o meu direito - comenta o acadêmico.

ONGs apoiaram ação de estudante

Bachinski disse que antes de ir ao Judiciário tentou negociar com a universidade. Em novembro, entrou com um processo na Reitoria solicitando que fosse respeitado o seu desejo de não manipular animais. Foi informado de que a atividade era uma exigência do curso.

- O máximo que consegui foi a permissão de levar para casa quatro ratos que seriam sacrificados por não terem mais serventia - disse.

Em sua ação, Bachinski recebeu apoio das organizações não-governamentais Movimento Gaúcho de Defesa Animal (MGDA) e do Instituto Jusbrasil. A publicitária Maria Luiza Nunes, presidente do MGDA, disse que o aluno é um exemplo.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/06/07

A invenção do Brasil. Entrevista especial com Evaristo Eduardo de Miranda

Na edição de maio da Revista National Geographic Brasil, o pesquisador Evaristo Eduardo de Miranda publicou o artigo intitulado “A invenção do Brasil”. Em seu texto, Evaristo relata a transformação do nosso “país tropical” pelas mãos dos povoadores e dos povos primitivos, desmistifica a história oficial que conta que os portugueses, ao descobrirem nosso país, encontraram um verdadeiro paraíso na Terra. Evaristo descreve, ainda, que existem indícios de que os ecossistemas daqui já se encontravam muito alterados em 1500, quando chegaram os portugueses.

A IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o doutor em ecologia Evaristo Eduardo de Miranda. Na entrevista, Evaristo fala das ações que o ecossistema brasileiro vivia antes do descobrimento, da afirmação de que a Amazônia não era intocada até o ano 1500 e dos benefícios que os europeus trouxeram à fauna e flora brasileira.

Evaristo Eduardo de Miranda é graduado em Engenharia Agrícola pelo Institut Superieur d Agriculture Rhone Alpes Isara, França. Realizou mestrado e doutorado na área de ecologia na Université de Montpellier II, na França. Atualmente, é chefe geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, representante do Ministério da Agricultura na Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional brasileira e Diretor do Instituto Ciência e Fé.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que tipos de ações o ecossistema brasileiro já sofria antes do descobrimento, em 1500?

Evaristo Eduardo de Miranda - Os ecossistemas, pois são muitos e não um, estão sendo modificadas pelo homem (e por mudanças climáticas) há mais de 15 mil anos, no caso do Brasil. Os primeiros caçadores coletores contribuíram para a extinção de inúmeros animais, como as preguiças gigantes, e o desaparecimento dessa macrofauna levou a mudanças na vegetação em todo o Brasil, há cerca de 10 mil anos atrás. O uso do fogo, por esses mesmo caçadores, contribuiu para um aumento significativo dos cerrados. Se não houvesse homem na América do Sul, no momento da chegada dos europeus, as áreas de cerrado talvez fossem a metade do que são hoje. No meu livro “Quando o Amazonas corria para o Pacífico” (Rio de Janeiro: Vozes), eu tratei desses processos com bastante detalhe. Os imensos castanhais do Pará são frutos da atividade de coleta e plantio de castanheiras pelos caçadores coletores, e não florestas “naturais”. A própria extensão da floresta de araucária também tem uma história parecida, muito evidente no caso da maioria dos capões, que são, na realidade, uma relíquia das intervenções humanas (áreas de pouso, de abrigo, de acampamento mais permanente etc.). O mesmo ocorre com as florestas de bambu do Acre, associadas com o uso do fogo no Neolítico e muitas outras áreas tidas como naturais no Brasil. Elas são tão naturais quanto culturais.

IHU On-Line - Muitos julgam os portugueses como destruidores da Amazônia, pois deram início ao desmatamento e degradação da biodiversidade local. Porém, no seu artigo, o senhor afirma que a Amazônia não era intocada quando os descobridores chegaram. Quais são as conseqüências dessas afirmações para estudiosos desses problemas?

Evaristo Eduardo de Miranda - Associar os portugueses com o desmatamento da Amazônia é desconhecer o básico da história brasileira. O desmatamento da Amazônia é obra da segunda metade do século XX!!! É obra nossa, de nossos pais e avós. A ocupação dos europeus na Amazônia começou apenas, e de forma incipiente, nos finais do século XVIII e prolongou-se durante o século XIX, de forma extremamente discreta, ribeirinha, limitada ao extrativismo. A Amazônia é o lugar do território nacional onde os humanos estão há mais tempo, pelo menos 15 mil anos, e provavelmente mais. É o lugar onde o homem há mais tempo interage e altera a natureza no Brasil. O que nós devemos totalmente aos portugueses foi a incorporação da Amazônia ao território nacional. A Amazônia era espanhola, de direito e de fato. Esse legado colossal ao Brasil, de mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, foi fruto de mais de dois séculos de lutas, investimentos, cartadas geopolíticas, expedições exploradoras, trabalho de evangelização, ações militares e muita determinação da Coroa portuguesa.

IHU On-Line - Quais são os benefícios para a biodiversidade, fauna e flora brasileira que os europeus trouxeram?

Evaristo Eduardo de Miranda - Com o povoamento português do Brasil no século XVI, a Europa, a África e a Ásia passam a contribuir com a construção de uma nova paisagem brasileira, através das espécies animais e vegetais importadas. Um século e meio mais tarde, nos campos e jardins das aldeias e povoados, nas mais diversas descrições, encontram-se, lado a lado, algumas plantas indígenas e uma infinidade de hortaliças, flores, árvores frutíferas, cereais, legumes, fibras e plantas medicinais, trazidas de todo o Planeta. Esse processo de introdução de plantas exóticas começou na orla marítima com a introdução da cana de açúcar, do arroz, das laranjas etc. e com o plantio de coqueirais (Cocus nucifera), trazidos do Oceano Índico. Não existe, no Brasil, a ocorrência de povoamentos naturais de coqueiros. Eram novas terras, semeadas por novas espécies. Transportadas sem suas principais pragas e doenças, em geral na forma de frutas e sementes, essas novas culturas - em que pese sua baixa diversidade genética, devido ao pequeno número de indivíduos na origem - vão crescer melhor no Brasil do que em suas terras africanas, asiáticas ou européias. Os portugueses promoveram o aumento da biodiversidade das terras brasileiras e a mudança dos hábitos alimentares e de vestuário, com a introdução de um grande número de espécies vegetais, dentre as quais destacam-se: cana de açúcar, algodão, manga, bananas, carambola, melão, melancia, arroz, feijão, trigo, aveia, sorgo, uva, coco, figo, fruta-pão, jaca, laranjas, limão, limas, tangerinas, tamarindo, café, cravo, canela, pimenta do reino, caqui, biribá, gengibre, romã, inhame, amoras, nozes, maçãs, pêras, pêssegos, sapotis, pinhas, graviolas e uma infinidade de hortaliças, temperos, ervas medicinais e tubérculos. Os principais animais domésticos e de exploração pecuária dos brasileiros, até hoje, foram todos importados pelos portugueses: cães, gatos, galinhas, patos, gansos, bicho da seda, coelhos, bovinos, jumentos, burros, abelhas, cavalos, ovinos e caprinos.

IHU On-Line - Que tipo de "marcas" a diversidade étnica e cultural, que povoou a Amazônia no ano 1000, deixou no local?

Evaristo Eduardo de Miranda - Cerca de 2.500 anos antes da chegada dos portugueses, a maioria das terras da Amazônia e do Brasil ainda não estavam nas mãos dos índios, como os conhecemos. Seus ocupantes eram outros grupos humanos, diversificados e de diferentes culturas. Eles também tiveram ascendentes e antecessores numa cadeia que remonta a mais de uma dezena de milhares de anos. Os territórios amazônicos ainda não haviam sido conquistados pelos movimentos de expansão dos povos tupi-guaranis, aruaques e caribes, principalmente, iniciados sobretudo a partir da época da Cristo, do ano 0. No ano 1.000, a Amazônia provavelmente atingiu uma das maiores densidades demográficas do passado, com uma grande diversidade étnica e cultural. A antropofagia e o canibalismo integravam e marcavam as endêmicas guerras inter-étnicas, em que o valor simbólico de homens, territórios e recursos naturais contava tanto quanto sua materialidade e o seu interesse de uso e consumo. A maioria dos povos antecessores dos atuais indígenas desapareceram diante dessa expansão, há cerca de 2.500 anos, deixando muitos vestígios. Os sobreviventes foram absorvidos e adotaram a língua e a cultura das novas populações indígenas dominantes que nunca constituíram um estado-nação como ocorreu nos Andes, vivendo sempre no Neolítico. Hoje, os índios amazônicos situam-se em territórios distantes dessas áreas de grande densidade demográfica por volta do ano 1.000 (os grandes vales amazônicos) e também são muito diferentes de seus antepassados de apenas 500 anos atrás.

IHU On-Line - E que tipos de marcas os europeus deixaram e que foram incorporadas a nossa paisagem?

Evaristo Eduardo de Miranda - O dado mais fundamental e permanente são nossas cidades, extremamente bem planejadas pelos portugueses, como os estudos históricos têm demonstrado, no que pese seu crescimento desordenado do século XX e XXI. O outro é nossa agricultura. No meu livro "Natureza, conservação e cultura" (São Paulo: Metalivros), eu mostrei como esses processos ocorreram nos principais biomas brasileiros. Turistas em visita ao Brasil têm o sentimento de usufruírem da vegetação tropical brasileira, extasiados diante da “natureza”. Na realidade, eles desfrutam de uma paisagem artificial, humanizada, criada pelo homem, com plantas exóticas. Um exemplo antigo é a narrativa do príncipe Maximiano de Wied Neuwied. Ele esteve no Brasil de 1815 a 1817, encantou-se e fez a seguinte descrição: “O europeu, transplantado pela primeira vez para esse país equatorial, sente-se arrebatado pela beleza das produções naturais, e sobretudo pela abundância e riqueza da vegetação. As mais belas árvores crescem em todos os jardins; vêem-se aí mangueiras colossais (Mangifera indica), que dão uma sombra densa e um excelente fruto, os coqueiros de estipe alto e esguio, as bananeiras (Musa) em cerradas touceiras (...) e grande número de outras espalhadas por jardins pertencentes à cidade. Esses soberbos vegetais tornam os passeios extremamente agradáveis; os bosques, que formam, oferecem à admiração dos estrangeiros [...]”. Todos vegetais citados são exóticos. Estavam incorporados de tal forma à paisagem que pareciam compor, naturalmente, a identidade do Rio de Janeiro.

IHU On-Line - O que há de verdadeiramente brasileiro na nossa natureza hoje?

Evaristo Eduardo de Miranda - O que você quer dizer por “verdadeiramente brasileiro”? As árvores e plantas exóticas integram hoje a paisagem rural, os jardins, as cadeias produtivas, a culinária e os hábitos alimentares nacionais, inclusive dos povos indígenas. Para mim, tudo isso é brasileiro. Elas representam a base das maiores transformações espaciais dos ecossistemas originais. Muitas cidades e regiões econômicas brasileiras devem sua existência e opulência a essas culturas, introduzidas pelos portugueses. Poucos são os que se lembram ou conhecem sua origem. Essa migração genética ainda deverá ser mais estudada em pesquisas futuras, por seu significado econômico, social e cultural. As paisagens rurais e os ecossistemas brasileiros são cada vez mais dependentes das intervenções humanas, tanto para a preservação como para a exploração. Quando o Planeta está mudando, há séculos, sob o impacto da intervenção humana, como imaginar um “cantinho” intocado?

Instituto Humanitas Unisinos - 15/06/07

A peculiar ética dos senadores

O jornalista Clóvis Rossi comenta em sua coluna na Folha de S.Paulo, 16-06-2007, que se fosse a ética uma preocupação real dos senadores, teriam muitíssimo mais poderes do que meros jornalistas para apurar se a versão de Calheiros é ou não fictícia.

Eis o artigo

O senador Renan Calheiros pode até ser inocente. Ficou mais difícil ainda acreditar depois que a história de seu gado se revelou mais malcheirosa do que excremento bovino. Mas ainda pode ser inocente. Quem definitivamente não merece mais crédito são seus colegas Sibá Machado, presidente do Conselho de Ética do Senado, e Epitácio Cafeteira, relator do caso.

Os dois demitiram-se do dever elementar de funcionário público que é o de cumprir o papel para o qual foram designados. Recusaram-se liminarmente a investigar um acusado. Não importa que Calheiros seja um acusado de altíssimo calibre, o segundo na linha de sucessão presidencial.

Importa que Conselho de Ética deveria servir para apurar e punir desvios de conduta de membros do Senado, não para absolvê-los sem apuração.

A grave falha funcional de Cafeteira e Machado já era evidente, mas ficou ainda mais grave pelo fato de que o jornalista Fernando Rodrigues, nesta Folha, e a equipe do "Jornal Nacional", da Rede Globo, não precisaram de mais do que alguns dias e uma única arma (a curiosidade inerente ao ofício) para desmontar a peça principal de defesa de Calheiros.

Fosse a ética uma preocupação real dos senadores, teriam muitíssimo mais poderes do que meros jornalistas para apurar se a versão de Calheiros é ou não fictícia. Como a única real preocupação dos senadores, com meia dúzia, se tanto, de exceções, é com o corporativismo mais descarado, ofereceu-se ao público já farto de trambiques mais uma cena explícita de defesa de privilégios, mais uma prova de que o mundo político é um planeta à parte, que gira em torno dos próprios interesse, e que o bem público é para eles motivo de piada.

Fosse o Brasil um país minimamente sério, Machado e Cafeteira no mínimo demitir-se-iam de seus cargos. Como não é...