"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, abril 27, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 27/04/07

A 'vida', mas toda a vida. Artigo de Enrique Dussel

"Quando se fala da 'vida humana' como critério ético e princípio que fundamenta a pretensão de bondade de todo ato, não se deve reduzi-la a um aspecto da vida, mas usá-la em toda a sua universalidade como justificação da justiça", defende o filósofo argentino radicado no México Enrique Dussel. Expoente da Filosofia da Libertação, Dussel é autor de vasta obra, da qual destacamos Método para una filosofía de la liberación (Sígueme) e Ética Comunitária (Vozes). Segue o artigo publicado no jornal mexicano La Jornada, 21-04-2007. A tradução é do Cepat.

Temos escrito centenas de páginas provando - na minha Ética da Libertação - que a "vida humana" é o fundamento absoluto material (enquanto conteúdo) da pretensão de bondade de todo ato humano. Todo ato humano, máxima, instituição, sistema, pode ser considerado eticamente bom se afirma ou desenvolve algum aspecto da "vida humana". Mais, nenhum ato pode deixar de levar em conta esse princípio universal: ou, no longo prazo, afirma a vida ou mata de alguma maneira. Por ele criticamos os formalismos, os racionalismos, o cinismo da razão instrumental, por não incluírem entre as condições da moralidade a afirmação da "vida" e, fundamentalmente (sem antropocentrismos), a vida "humana".

Atualmente, há grupos que tomam também a vida como critério de moralidade, mas a tomam parcialmente, para solucionar um único caso (e de maneira igualmente unilateral). Chamarei a isso tecnicamente de "falácia reducionista": reduzem o tema a uma de suas possibilidades. Tomemos alguns exemplos para entender a questão.

Se uma honesta e exemplar - segundo temos lido em sua biografia - tecelã, pastora, mãe e avó de grande família, indígena, de sexo feminino, em sua idade de extrema dignidade por estar em sua senilidade - como diria Sêneca - é violentamente atacada, violada e morta por um grupo assassino, atacou-se a vida humana! O ato não poderá pretender ser bom; é perverso, injusto, reprovável.

Se os fundos de aposentadoria de milhões de trabalhadores ou empregados do Estado são postos em risco, que com milhares de horas de trabalho (de sua "vida" que se objetivaram em bens, incluindo contribuições mensais ao longo de anos) acumularam, deixando à discrição de um capital privado que poderia oportunamente declarar-se falido, é "matar" de alguma maneira todos esses homens e mulheres em sua "vida", porque a pobreza (toda pobreza é menos-vida, pior-vida, encurtar-vida) escurecerá sua morte antecipada, é atacar a vida humana!

Tentar privatizar um bem do povo - como o Pemex -, bem comum que permite usufruir uma riqueza que ajuda a melhorar a saúde, a educação, a felicidade e a longevidade do povo, é pôr em risco novamente a "vida" de milhões de homens e mulheres, e restringir que esses bens sejam usados por poucos mexicanos e, ou pior, por estrangeiros, é negar a vida humana!

Entregar a educação de nossos filhos no ensino público e os meios de comunicação (que são como uma segunda escola do povo) em mãos daqueles que tomam esses setores tão essenciais da "vida" humana para fins particulares espúrios ou de simples lucro econômico é, novamente, atacar a vida humana!

Obrigar uma jovem violada a dar à luz o filho, fruto de uma violação, não se ajudando na educação do filho nem se encarregando de tantos efeitos negativos que a jovem mãe sofre, atenta de muitas maneiras contra a "vida" e a dignidade da mãe.

Em primeiro lugar, porque o machismo de nosso meio não responsabiliza também pelo ato o "pai solteiro". Quem pensou, como acontece em países menos machistas e mais desenvolvidos, em impor pela lei a possibilidade de assinalar quem é o pai da criatura (mesmo que seja um jovem irresponsável), a fim de que não seja só a pobre moça a vítima de don Juan? O chamado "pai solteiro" (a expressão soa estranha, mas nos mostra a injustiça com que se acomete a "mãe solteira") deverá responsabilizar-se por todos os gastos e obrigações educativas de seu filho se sua mãe (mesmo que não fosse sua esposa) quer ter tal filho. Isto, pelo menos, responsabilizaria igualmente a parte masculina.

Em segundo lugar, porque toda pretensão de bondade de um ato exige um pleno e autônomo consenso, uma livre determinação do agente moral. Ninguém, nem o juiz nem instituição alguma, por mais sagrada que se pretenda (e menos a fundada por Jeshuá de Nazaré, que instituiu a inviolabilidade e última instância da consciência moral da pessoa), pode pretender suplantar ou decidir pelo ato ético.

A mulher e o varão (este último como co-responsável pela decisão que a mulher tomar, em cujo corpo se engendra o novo ser humano) que concebem um filho/a são, como dizemos, a última instância ética da decisão, e podem ser julgados por tê-la adotado, mas ninguém pode ocupar seu lugar. Pode aconselhá-los, pode-se pretender proclamar regras ou leis públicas, mas a instância subjetiva é a definitiva.

A vida da mãe vem em primeiro lugar; depois a do filho/a. É uma questão de vida ou morte, e encarar diretamente a morte de um dos dois estaria contra o princípio material (por seu conteúdo) da ética. Claro que, concretamente, os princípios podem entrar em conflito (a vida da mãe e do filho/a), e é preciso saber discernir entre eles, dar prioridade a um em detrimento do outro, na complexidade quase infinita dos casos empíricos. Não é possível aqui descrever a questão, mas apenas indicar os princípios. É um caso onde a "vida" novamente é critério de discernimento e fundamento de justificação dos atos.

Por isso, os movimentos que se dizem ser "pró-vida", o que em si mesmo é muito positivo, deveriam advertir que este princípio (a afirmação da vida humana) joga uma função fundamental em toda a ética, política, economia e em todos os campos práticos. Vejamos um exemplo econômico.

Karl Marx mostra que o trabalhador emprega muitas horas de sua "vida" para produzir mercadorias. O "valor de troca", para Marx, se expressava metaforicamente pelo sangue, como coágulo de sangue. O valor econômico das mercadorias, que aparece no mercado como preço, é objetivação de "vida" humana - para o pensamento semita, daquele Marx de família judaica, o "sangue" era a "vida", e por isso Feuerbach disse que a essência do cristianismo era "beber e comer": beber o sangue do Cordeiro e comer sua carne na Eucaristia, para escândalo de marxistas ortodoxos e cristãos conservadores.

O livro do Eclesiástico (Ben Sirac) da Bíblia (judaica e cristã): "Quem não paga o justo salário derrama sangue" (34, 27). Por exemplo, diante do recente aumento das tortilhas (alimento que reproduz a "vida"), ou seja, diante da necessidade de ter mais dinheiro (que é por sua vez objetivação de "vida", como todo valor de troca) para poder viver, o povo dos pobres "morre" de alguma maneira (quando não se sacia a "fome", como disse Ernst Bloch, o sujeito é atacado em sua sobrevivência pela injustiça). Espero que os movimentos "pró-vida" tenham colaborado com os que se manifestaram contra este aumento.

Concluindo, quando se fala da "vida humana" como critério ético e princípio que fundamenta a pretensão de bondade de todo ato, não se deve reduzi-la a um aspecto da vida, mas usá-la em toda a sua universalidade como justificação da justiça em economia, em política, em questões de gênero, e até no esporte: em todo ato humano.

Instituto Humanitas Unisinos - 27/04/07

País não precisa de nova usina, diz professor

O Brasil não tem necessidade de construir mais hidrelétricas para atingir a meta do PAC de aumentar a oferta de energia elétrica em 12.300 megawatts até 2010. A afirmação é do engenheiro Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e autor de um dos capítulos do "Dossiê Energia", lançado ontem pelo Instituto de Estudos Avançados da USP.

"Efetivamente não precisa construir uma nova usina", disse o pesquisador: "O Brasil tem hoje aproximadamente 70 usinas com mais de 20 anos que poderiam sofrer uma repotenciação [troca das turbinas]", explica. A reportagem é de Eduardo Geraque e publicada no jornal Folha de S. Paulo, 27-04-2007.

Se isso fosse feito, mais ou menos 60% da meta do Programa de Aceleração do Crescimento já seria contemplada: "O custo é bem menor comparado à construção de novas usinas, que absorvem 60% dos investimentos somente em obras civis", lembra.

Os 40% restantes da meta do PAC poderiam ser obtidos sem nenhuma nova obra civil: "O próprio governo assume que as perdas do setor elétrico nacional hoje, desde a transmissão até chegar ao domicílio ou ao eventual consumidor industrial, são da ordem de 15%."

Para Bermann, se houvesse um esforço para que o desperdício fosse reduzido para 10%, isso já seria suficiente para fechar a conta: "Esses 5% de ganho, que não é muito, permitem atingir a meta do PAC. O sistema brasileiro todo hoje tem 97 mil megawatts aproximadamente".

Os processos de repotenciação renderiam quase 8.000 megawatts, e a redução do desperdício, mais 4.850 megawatts. Mas "isso tem de ser bem planejado, porque implica desligar as usinas para que as máquinas mais potentes possam ser instaladas".

Segundo Bermann, esse processo de repotenciação não ocorreu até hoje no país por causa da cultura das megaobras: "Parece que o governo prefere construir grandes usinas, porque elas acabam dando mais visibilidade", diz.

No debate, alguns especialistas defenderam que se vá devagar com o andor da infra-estrutura. "Se eu tiver que escolher algum lado em toda essa discussão, escolho por ela. Eu defendo a ministra Marina Silva", disse Luiz Pinguelli Rosa, da UFRJ, ex-presidente da Eletrobrás.

Apesar disso, Pinguelli defendeu o investimento em hidrelétricas. "O Brasil tem o maior potencial hidrelétrico do mundo, que deve ser considerado. Apenas 25% dele é usado hoje, enquanto os Estados Unidos usam 80%."

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/07

Brics podem ser alternativa ao modelo liberal

Um modelo de desenvolvimento para os países mais pobres do planeta baseado não na experiência dos Estados Unidos, Japão ou Alemanha, mas nas do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics). Acrescido da África do Sul, o grupo dos países que, segundo previsão do Goldman Sachs, vai estar no topo do crescimento econômico mundial em 2050, seriam uma alternativa a um modelo liberal que prega a abertura dos mercados, mas pratica o protecionismo, uma espécie de "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". A reportagem é de Chico Santos e publicada no jornal Valor, 26-04-2007.

O economista K J Joseph, professor do Centro de Estudos para o Desenvolvimento de Trivandrum, Índia, autor da proposição acima, questiona o modelo econômico liderado pelos atuais países mais ricos do mundo. Ele e outros cientistas dos cinco países estão empenhados em estudar elos entre as economias dos Brics em busca de caminhos alternativos para a superação do atraso econômico.

O grupo está reunido até amanhã no hotel Glória, na zona sul do Rio, no 2º Workshop Internacional do Projeto Brics, realizando um "Estudo Comparativo dos Sistemas Nacionais de Inovação do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul". Segundo o brasileiro José Eduardo Cassiolato, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a África do Sul já fazia parte do grupo mesmo antes de o Goldman Sachs cunhar o termo em referência aos outros quatro países.

Cassiolato disse que o objetivo perseguido é, a partir de uma abordagem que coloca a inovação no centro da análise, compreender, primeiro, as transformações ocorridas em nações ricas como o Japão, os países nórdicos e os Estados Unidos, e, a partir de 2003, o que ocorre nos cinco países em desenvolvimento mais avançados do mundo. "São grandes países, têm imensas diferenças em relação aos países mais avançados e são importantes para a compreensão de questões importantes como a inovação, a inovatividade."

Os Brics são caracterizados por grandes desníveis de renda, mas com nichos de inovação em padrões dos mais avançados, como a indústria aeronáutica no Brasil, a de software na Índia e a de hardware na China, ressalta o economista da UFRJ. Ele destaca ainda que são países marcados por fortes concentrações regionais da inovação e que sintetizam um momento de transformação da economia global, ainda que em alguns deles haja piora nos indicadores sociais, como é o caso do Índice de Gini, que mede o grau de desigualdade, na China.

O indiano Joseph avalia que o crescimento econômico vai reduzir as diferenças sociais nos Brics, mas ressalta que elas nunca serão totalmente resolvidas. Para ele, investimentos em recursos humanos e em capacidade de inovar, ainda que elevados, trazem resultados indiscutíveis.

Segundo o economista, quando a Índia realizou pesados investimentos em centros de formação em engenharia, o esforço foi considerado um luxo para um país em desenvolvimento. Agora, a ousadia está, segundo ele, gerando lucros com a formação anual de 250 mil engenheiros e 300 mil cientistas, um capital humano que seria responsável pelo crescimento em ritmo acelerado do seu país, um dos que mais crescem no mundo, superado apenas pela China.

O sul-africano Jo Lorentzen, pesquisador do Conselho de Pesquisa em Ciências Humanas da Cidade do Cabo, destacou aspectos do conhecimento nos Brics que ainda estão longe da importância desses países no contexto sócio-econômico mundial. A produção de artigos científicos dos cinco em conjunto, por exemplo, ainda é quase 10% do que se produz nos Estados Unidos. Lorentzen pergunta: "Por que faz mais sentido estudar esses países do que outros?" E responde: "Não temos muitos dados para responder a isso", destacando que essa carência tem o mérito de significar muito espaço para pesquisas. Mas para ele, as comparações entre os Brics só se justificam se forem encontrados elos entre eles.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/07

Se eu fosse candidato... Pautas de Edgar Morin para um mundo diferente

Se fosse candidato... Morin proporia uma grande reforma: "O elã para a grande reforma surgiria das profundezas de nosso país quando perceber que ela se encarregará das suas necessidades e das suas aspirações. Porque, esclerosado em todas as suas estruturas, o país está vivo na base. A mudança individual e a mudança social seriam inseparáveis, sendo cada uma separadamente insuficiente. A reforma da política, a reforma do pensamento, a reforma da sociedade, a reforma da vida se conjugariam para conduzir a uma metamorfose da sociedade". Edgar Morin é sociólogo, diretor de pesquisa emérito no CNRS e presidente da Agência Européia para a Cultura (Unesco). O artigo é do Le Monde, 24-04-2007, e foi traduzido pelo Cepat.

"Caras concidadãs e caros concidadãos, eu devo primeiramente lembrar que a França não vive nem numa redoma de vidro nem num mundo imóvel. Nós devemos tomar consciência de que vivemos uma comunidade de destino planetário face às ameaças globais que representam a proliferação das armas nucleares, o desencadeamento de conflitos ético-religiosos, a degradação da bioesfera, o rumo ambivalente de uma economia mundial incontrolável, a tirania do dinheiro, a união de uma barbárie vinda do fundo das eras e da barbárie glacial do cálculo técnico e econômico.

O sistema planetário está condenado à morte ou à transformação. Nossa época de mudanças tornou-se uma mudança de época.

Eu não lhes prometo a salvação, mas indicaria a longa e difícil viagem rumo a uma Terra-Pátria e uma Sociedade Mundo, o que implica primeiramente a reforma da ONU para ultrapassar as soberanias absolutas dos Estados nacionais sempre reconhecendo sua autoridade para os problemas que não são de vida/morte para o planeta.

Farei o possível para dar à Europa consistência e vontade para instituir uma autonomia política e militar. Eu lhe apresentaria um grande desenho: reformar sua própria civilização, incorporando a contribuição moral e espiritual de outras civilizações; contribuir para um novo tipo de desenvolvimento nas nações africanas; instituir uma regulação dos preços para os produtos fabricados a um custo mínimo na exploração dos trabalhadores asiáticos; elaborar uma política comum de inserção dos imigrantes; enfim e sobretudo, fazer um lar exemplar de paz, compreensão e tolerância; nesse sentido, intervir em Darfur, na Tchetchênia, no Oriente Médio e prevenir a guerra de civilizações.

No que diz respeito à França, eu não formularia um programa, inoperante em situações de mudança; eu definiria uma estratégia que leve em conta os acontecimentos e os acidentes. De imediato, eu suscitaria dois encontros entre parceiros sociais, um sobre o emprego e os salários e o outro sobre os aposentados.

Eu constituiria dois comitês permanentes visando à redução das rupturas sociais:

1) um comitê permanente de luta contra as desigualdades, que atacaria em primeiro lugar os excessos (benefícios e remunerações na cúpula) e as carências (de nível e qualidade de vida na base);

2) um comitê permanente encarregado de reverter o desequilíbrio crescente desde 1990 na relação capital-trabalho.

Sendo dada a integração vital de uma política ecológica, constituiria um terceiro comitê permanente que trataria das transformações sociais e humanas que se impõem.

Eu indicaria o caminho de uma política de civilização que ressuscitaria as solidariedades, faria retroceder o egoísmo, e mais profundamente reformaria a sociedade e as nossas vidas. De fato, nossa civilização está em crise. Ali onde chegou, o bem-estar material não necessariamente trouxe o bem-estar mental. Prova disso são os consumos desenfreados de drogas, ansiolíticos, antidepressivos e remédios para dormir. O desenvolvimento econômico não trouxe o desenvolvimento moral. A aplicação do cálculo, da cronometria, da hiper-especialização, da compartimentalização do trabalho, às empresas, às repartições públicas e finalmente às nossas vidas, trouxe muitas vezes a degradação das solidariedades, a burocratização generalizada, a perda de iniciativa e o medo da responsabilidade.

Também reformaria as administrações públicas e provocaria a reforma das administrações privadas. A reforma visa desburocratizar, desesclerosar, descompartimentalizar e dar iniciativa e maleabilidade aos funcionários ou empregados, para atender de maneira benévola todos aqueles que necessitam freqüentar as repartições. A reforma do Estado se faria não pelo aumento ou supressão de empregos, mas modificando a lógica que considera os humanos objetos submetidos à quantificação e não como seres dotados de autonomia, de inteligência e de afetividade.

Eu proporia revitalizar a fraternidade, subdesenvolvida na trilogia republicana Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Primeiramente, eu suscitaria a criação de Casas da Fraternidade nas diversas cidades e nos bairros das metrópoles como Paris.

Essas casas reagrupariam todas as instituições de caráter solidário já existentes (Secours Popular, Secours Catholique, SOS Amizade, etc.) e comportariam novos serviços dedicados a intervir com urgência a favor das misérias, morais ou materiais, para salvar do naufrágio as vítimas de overdose de drogas ou de tristeza. Seriam lugares de iniciativas, de mediações, de seguros, de informação, de benevolência e de mobilização permanente.

Ao mesmo tempo, seria preciso instituir um Serviço Cívico da Fraternidade, presente nas Casas da Fraternidade, que se consagraria mais aos desastres coletivos, inundações, secas, etc., não somente na França, mas também na Europa e no Mediterrâneo. Assim, a fraternidade seria profundamente inscrita e viva na sociedade reformada que queremos.

Na nossa concepção de fraternidade, os delinqüentes juvenis são não indivíduos abstratos a serem reprimidos como os adultos, mas adolescentes em idade plástica onde é preciso favorecer as possibilidades de redenção. Consideraríamos os imigrantes não como intrusos a serem rejeitados, mas como irmãos procedentes da pior miséria, aquela que foi criada ao mesmo tempo por nossa colonização passada e por aquela que preparou em seus países a introdução da nossa economia, que destruiu as policulturas de subsistência e que jogou as populações agrárias na miséria das favelas urbanas.

Como o rumo atual da nossa civilização privilegia a quantidade, o cálculo, o ter, eu me dedicaria a uma vasta política da qualidade da vida. Nesse sentido, favoreceria tudo o que combate as múltiplas degradações da atmosfera, da alimentação, da água, da saúde. Toda a economia de energia deve constituir um ganho de saúde e qualidade de vida. Assim, a desintoxicação automobilística dos centros das cidades se traduziria em diminuição de bronquites, asmas e doenças psicossomáticas. A desintoxicação dos lençóis freáticos reduziria a agricultura e a criação industrial de animais a favor de uma ruralidade sólida, que restauraria a qualidade dos alimentos e a saúde do consumidor.

A redução das intoxicações da civilização - entre elas a intoxicação publicitária, que pretende oferecer sedução e satisfação em e pelos produtos supérfluos -, do desperdício de objetos descartáveis, dos modos acelerados que tornam obsoletos os produtos no prazo de um ano, tudo isso nos deve levar a mudar o rumo a favor de uma marcha para o melhor, e se inscreve numa ação contínua a favor de duas correntes que é preciso desenvolver: a reumanização das cidades e a revitalização dos campos. Esta última comporta a necessidade de reanimar as vilas para a instalação do teletrabalho e a volta das padarias e dos pequenos restaurantes.

Em matéria de emprego, instituiria auxílios para a criação e o desenvolvimento de toda atividade que contribua para a qualidade de vida. A política dos grandes trabalhos que eu proporia para desenvolver o transporte combinado, alargar e arrumar os canais e criar parques periferias das cidades e também em seus centros permitiria ao mesmo tempo criar empregos e aumentar a qualidade de vida. Os recursos necessários para essas obras seriam compensados em poucos anos pela diminuição das doenças sócio-psicossomáticas provocadas pelo estresse, poluição e intoxicação.

No campo da economia, trabalharia por uma economia plural, que está em gestação no planeta de maneira dispersa, e cujos desenvolvimentos permitiram ultrapassar a ditadura do mercado mundial. Na França, a economia plural, que comportaria as grandes empresas mundializadas, desenvolveria as pequenas e médias empresas, as cooperativas e mutuários de produção e/ou consumo, as profissões de solidariedade, o comércio justo, a ética econômica, o micro-crédito, a economia solidária que financia projetos de proximidade, criadores de empregos. O desenvolvimento de uma alimentação de proximidade que não depende mais dos grandes circuitos intercontinentais nos forneceria produtos de comprovada qualidade e nos prepararia para enfrentar as eventuais crises planetárias.

No que se refere à educação, a primeira missão foi formulada por Jean-Jacques Rousseau em Emílio: "Vou ensiná-lo a viver". Trata-se de fornecer os meios para enfrentar os problemas fundamentais e globais que são os de cada indivíduo, de cada sociedade e de toda a humanidade.

Esses problemas são desintegrados nas e pelas disciplinas compartimentadas. Assim, para começar, instituiria um ano propedêutico para todas as universidades sobre: os riscos de errar e da ilusão no conhecimento; as condições de um conhecimento pertinente; a identidade humana; a era planetária que vivemos; o enfrentamento das incertezas; a compreensão do outro e, enfim, os problemas de civilização contemporânea.

O elã para a grande reforma surgiria das profundezas de nosso país quando perceber que ela se encarregará de suas necessidades e de suas aspirações. Porque, esclerosado em todas as suas estruturas, o país está vivo na base. A mudança individual e a mudança social seriam inseparáveis, sendo cada uma separadamente insuficiente. A reforma da política, a reforma do pensamento, a reforma da sociedade, a reforma da vida se conjugariam para conduzir a uma metamorfose da sociedade. Os futuros radiantes estão mortos, mas nós abriríamos um caminho para um futuro possível.

Este caminho, nós podemos avançá-lo na França e esperar fazê-lo na Europa. E, fazendo de novo da França um exemplo, ela traria a esperança de uma salvação planetária."

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/07

Há mais do que bagres em jogo. Artigo de Cláudio Angelo

"Marina agora está numa sinuca: ou fica do lado dos técnicos que ela mesma contratou (e que darão subsídios às decisões do novo xerife ambiental, Paulo Lacerda), ou resolve que a área técnica do Ibama é incompetente", escreve Cláudio Angelo, editor de ciência do jornal Folha de S. Paulo, 26-04-207. Segundo ele, "neste caso, abre-se a porteira para uma nova sigla na administração Lula, o PAD (Plano de Aceleração da Devastação). E sedimenta-se a figura de uma ministra que mantém o verniz ambiental do governo, mas não interfere nos assuntos "de interesse nacional".

Eis o artigo.

"Se o estofo de uma figura pública se mede pelo tamanho do Rubicão que ela precisa cruzar, Marina Silva está muito bem servida: seu Rubicão particular é um colosso de 3.352 quilômetros de extensão por 1 quilômetro de largura média, que lança a cada segundo cerca de 29 mil metros cúbicos de água barrenta no rio Amazonas.

A travessia da polêmica do rio Madeira significa mais do que a sobrevivência da ministra ou a saúde dos bagres que seu chefe tanto despreza. Significa que o processo de licenciamento ambiental do país (regulamentado por lei, a propósito) não será afogado no turbilhão lamacento da pressão política.

Num parecer pouco lido e muito comentado, oito técnicos do Ibama concluíram em 256 páginas o que qualquer pessoa que tivesse lido o Rima (Relatório de Impacto Ambiental) das usinas de Santo Antônio e Jirau já sabia: as análises de impacto feitas pelos empreendedores são insuficientes. Não é possível conceder a licença prévia com base nelas.

Sem novidades aqui. Os estudos de impacto ambiental no Brasil via de regra são feitos para cumprir tabela, depois que a decisão de fazer o empreendimento já está tomada. São montados para que tanto empreendedor quanto governo digam o que o governo espera ouvir. Alguns, como os das hidrelétricas de Barra Grande (SC) e Dardanelos (MT), ambas leiloadas pela Aneel no ano passado, beiram o surreal.

O parecer sobre o Madeira culminou uma novela que se arrasta desde 2003. Nesse meio-tempo, audiências públicas foram realizadas, estudos complementares foram pedidos e fatos "novos" apareceram, como a descoberta de que os empreendedores ignoraram o fato de que o Madeira é um rio binacional e que as usinas poderiam alagar parte da Bolívia.

O documento do Ibama deveria ser, portanto, a palavra final sobre o assunto, independentemente de ataques "ad hominem" desferidos pela Odebrecht (para quem os técnicos que o elaboraram são "jovens" e, portanto, desqualificados) ou agradar ou não ao presidente. "Não há nenhuma pressão por respostas positivas do Ibama", disse ao jornal Folha de S. Paulo ontem o novo secretário-executivo do ministério, João Paulo Capobianco.

Não mesmo?

Marina agora está numa sinuca: ou fica do lado dos técnicos que ela mesma contratou (e que darão subsídios às decisões do novo xerife ambiental, Paulo Lacerda), ou resolve que a área técnica do Ibama é incompetente. Neste caso, abre-se a porteira para uma nova sigla na administração Lula, o PAD (Plano de Aceleração da Devastação). E sedimenta-se a figura de uma ministra que mantém o verniz ambiental do governo, mas não interfere nos assuntos "de interesse nacional".

quarta-feira, abril 25, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 25/04/07

Nietzsche, ainda um extemporâneo

Nietzsche (1844-1900) tinha consciência da incompreensão que o cercava. O silêncio que pairava em torno de suas obras não retumbava por acaso: até hoje o filósofo nascido na pequena aldeia de Röcken, perto de Leipzig, Alemanha, causa desconforto em função de seu estilo hiperbólico e da ousadia de suas proposições, a maioria delas certeiras e antecipatórias da crise civilizacional da modernidade. Assim, ainda hoje, em pleno século XXI, Nietzsche continua um extemporâneo.

Scarlett Marton, filósofa brasileira, uma das maiores especialistas nietzschianas em nosso país, concorda: “em certa medida, Nietzsche ainda permanece um extemporâneo”. Nesse sentido, sua filosofia a golpes de martelo foi premonitória: “Vivemos numa época de notáveis transformações no modo de pensar, agir e sentir. Modelos teóricos e quadros referenciais, que norteavam nossa maneira de pensar, estão em descrédito; sistemas de valores e conjuntos de normas, que orientavam nossa maneira de agir, caem em desuso; discursos e práticas, que pautavam nossa maneira de sentir, tornam-se obsoletos. Rebaixadas ao nível de opiniões, as idéias tornam-se descartáveis; frutos de atitudes descomprometidas, elas prescindem de todo lastro teórico ou vivencial”.

Essas e outras declarações de Marton podem ser conferidas no recém-publicado Cadernos IHU Em Formação edição 15, O pensamento de Friedrich Nietzsche, publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A entrevista com Marton foi originalmente publicada na edição 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, Nietzsche, filósofo do martelo e do crepúsculo.

Graduada em Filosofia pela USP, Marton é mestre em Filosofia pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), da França. Sua dissertação intitula-se Pour une généalogie de la vérité - Essai sur la notion de vérite chez Friedrich Nietzsche. Marton fez doutorado em Filosofia na USP, escrevendo a tese Nietzsche, cosmologia e genealogia. Cursou ainda livre docência na mesma instituição e pós-doutorado na École Normale Superieure de Fon Tenay-Saint Cloud, da França, e na Université de Paris X (Paris-Nanterre), também da França. É autora de diversos livros, entre os quais citamos O pensamento vivo de Nietzsche. São Paulo: Martin Claret, 1985 (org.); e Nietzsche hoje? Colóquio de Cerisy. São Paulo: Brasiliense, 1985 (org.); Nietzsche - uma filosofia a marteladas. São Paulo: Brasiliense, 1991; Nietzsche, a transvaloração dos valores. São Paulo: Editora Moderna, 1996; Nietzsche - das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000; Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Unijuí, 2001; e A irrecusável busca de sentido. Cotia: Ateliê Editorial; Ijuí: Editora Unijuí. 2004.

Nesse mesmo número dos Cadernos IHU Em Formação contribuem para o debate nietzschiano os filósofos Kathia Hanza, da Universidade Católica do Peru, Vânia Dutra de Azeredo, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Alberto Marcos Onate, da Universidade Oeste do Paraná (Unioeste) e Márcia Rosane Junges, do Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Os Cadernos IHU Em Formação podem ser adquiridos na Livraria Cultural, no Campus da Unisinos ou pelo e-mail livrariaculturalsle@terra.com.br. Um mês após seu lançamento, o arquivo em pdf é disponibilizado aos internautas para download.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/04/07

Contribuições ao debate sobre o etanol. Um artigo de Carlos Walter Porto Gonçalves.

Recebemos e publicamos o artigo "Implicações Ecológicas e Políticas do Etanol - uma contribuição ao debate" de Carlos Walter Porto Gonçalves, doutor em geografia e professor do PPG em Geografia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Porto Gonçalves é autor de “Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad” (ed. Siglo XXI, México, 2001) e “Amazônia, Amazônias” (ed. Contexto, São Paulo, 2001), entre outros títulos.

Eis o artigo.

Implicações Ecológicas e Políticas do Etanol - uma contribuição ao debate

por Dr. Carlos Walter Porto Gonçalves

O complexo de poder industrial-tecnológico-científico-midiático que se estrutura em torno da matriz energética fossilista que nos ameaça a todos com o aquecimento global parece ter descoberto uma nova panacéia – o etanol. Para além do simplismo de achar que existe uma única solução para um problema de tamanha complexidade, o debate em torno do aquecimento global está nos metendo numa armadilha maniqueísta Etanol versus não-etanol. A questão, todavia, parece ser bem outra. Ainda que seja discutível o benefício ambiental efetivo da mudança de fonte de energia para algo diferente das fontes fósseis, são gravíssimas as implicações políticas do que está sendo urdido. A recente visita do ex-governador do Texas, Jeb Bush, não só por razões familiares ligado ao complexo político-industrial-tecnológico-científico-midiático do petróleo, põe a nu as razões bem longe do hommo ecologicus com que estão procurando se recobrir os que defendem o etanol como solução para o aquecimento global.

Jeb Bush faz parte de um bloco de poder que sabendo do significado estratégico da energia é capaz de fazer qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, para estabelecer o controle da fonte de energia que o possa sustentar. Na atual configuração geopolítica não há país do mundo que tendo petróleo nas suas entranhas geológicas em proporções capazes de sustentar a matriz industrial hegemônica que não seja um país com instabilidade política ou sob permanente ameaça - o Oriente Médio, a Ásia Central, a Nigéria, a Colômbia, a Venezuela, a Bolívia. É esse mesmo setor constituído pelos Senhores da Guerra que hoje se apresenta como guardião da vida - os combustíveis sendo abençoados pelo prefixo Bio. Os exemplos invocados para dizer que o Brasil vai se tornar importante na nova configuração geopolítica em curso no mundo a partir dessa nova fonte de energia - como dizer que o Brasil vai ser a nova Arábia Saudita - só faz reforçar nossas análises e preocupações.

A Arábia Saudita é o país de Osama Bin Laden que também já foi aliado desse mesmo bloco de poder político-industrial-tecnológico-científico-midiático do petróleo e sabe que ele não tem amigos e, sim, interesses. A visita de Jeb Bush explicita uma aliança política de caráter estratégico das oligarquias dos agronegociantes brasileiros por meio da Associação Interamericana de Etanol, que tem, além do irmão do Presidente Bush, entre seus dirigentes, o Sr. Roberto Rodrigues, ex-ministro da agricultura e presidente da Abag – Associação Brasileira de Agrobusiness. Mesmo tendo os modernos latifundiários das monoculturas experimentado, em 2004 e 2005, o lado amargo do complexo financeiro-tecnológico-industrial-midiático do agronegócio, quando os preços das commoditties caíram no mercado internacional, mas não as suas dívidas contraídas na compra de insumos e equipamentos, cujos credores eram basicamente a Monsanto, a Syngenta, a Bunge, uma nova e perigosa cartada vem sendo jogada não só aliando-se politicamente a um setor tão estratégico para o capitalismo global, mas, o que é mais grave, atando a vida dos brasileiros a esse setor político que, historicamente, já deu mostras suficientes do que é capaz.

De um ponto de vista estritamente nacional, é preciso ter em conta que a principal contribuição o Brasil ao efeito estufa não é a queima de combustíveis fósseis e na medida em que o etanol já faz parte de nossa matriz energética, sobretudo no transporte individual, a onda atual em torno do tema em nada alterará a situação do país para o aquecimento climático. Assim, o Brasil considerado isoladamente não vai diminuir a sua contribuição ao aquecimento global. Entretanto, a ampliação de áreas destinadas ao cultivo de cana desencadeia processos que haveremos de levar em consideração como o aumento do preço da terra com conseqüências não só econômicas, como sociais, geográficas e ecológicas. Afinal, o aumento do preço da terra não se restringirá à terra destinada à lavoura da cana, ao contrário, se espraiará pelo mercado de terras em geral. Com certeza haverá implicações nos custos de produção, inclusive, nos preços dos alimentos. Além disso, o preço da terra tende a ser maior nas áreas próximas aos grandes mercados ou de mais fácil acesso às vias de transporte e, assim, as atividades que tendem a exigir maiores extensões de terra tendem a buscar as regiões mais afastadas onde os preços são menores (lei de Von Thünen).

No caso do México, em que o etanol é obtido a partir do milho, o resultado foi danoso para a população haja vista que a tortilla, base alimentar do povo mexicano, também é produzida a partir do milho. O mercado destinou o milho para a exportação para os Estados Unidos onde podia obter maiores lucros, como é da sua lógica, o que fez do país, historicamente auto-suficiente em milho, agora tenha que o importar e, assim, tenha visto os preços das tortillas dispararem até 40%, o que ensejou manifestações populares, inclusive com saques a supermercados. No Brasil tentam nos tranqüilizar dizendo que a cana não se destina exclusivamente à alimentação e que o país dispõe de amplas extensões de terra o que faria ser perfeitamente compatível a expansão do seu cultivo sem maiores danos.

Afora a permanência do mito fundador do “em se plantando tudo dá” e que temos terras em abundância, é preciso considerar o que já vem se desenhando na geografia social brasileira recentemente com o avanço da cana, sobretudo sobre áreas antes destinadas à pecuária, como já vem ocorrendo no estado de São Paulo nos últimos três anos, e que nos coloca diante do problema de para onde levar milhares e até milhões de cabeças de gado que haverão de ser deslocados. Nos cerrados, área para onde vêm se expandindo nas últimas duas décadas os modernos latifúndios monocultores de exportação, as únicas áreas disponíveis são as unidades de conservação ambiental, as áreas indígenas, além das áreas de comunidades remanescentes de quilombolas e camponesas.

Com certeza essas áreas e as populações que as ocupam vão viver nos próximos anos o impacto dessa nova onda moderno-colonizadora. Tudo indica que a Amazônia vai continuar cumprindo o papel de válvula de escape de um modelo de desenvolvimento que se reproduz ampliadamente há 500 anos trazendo riqueza para alguns, pobreza para muitos e devastação ambiental para todos! Não nos esqueçamos que o Brasil, nos séculos XVI e XVII, não exportava matéria prima, como se costuma dizer, mas exportava o produto manufaturado de maior circulação no mercado mundial de então, o açúcar. Os nossos engenhos de açúcar eram o que havia de mais moderno no mundo. Nós já somos modernos há 500 anos! Dados recentes revelam que o próprio governo, entre 2003 e 2005, realizou na Amazônia, a título de “reforma agrária”, 66,5% dos assentamentos rurais do país reproduzindo, assim, com políticas públicas a mesma lógica “espontânea” dos grileiros, madeireiros, pecuaristas e agronegociantes de avançar sobre a fronteira agrícola. A produção de etanol tende, assim, a pressionar os processos que já vêm causando a devastação da Amazônia que, paradoxalmente, tem sido a maior contribuição do Brasil para o aquecimento global, para não falar da perda de diversidade biológica e cultural. O resultado da contribuição do Brasil com a expansão do etanol pode, assim, ser bem o contrário do que vem sendo propagado.

É preciso se levar em conta que a produção de cana de açúcar e de etanol consome combustíveis fósseis e, apesar de o balanço energético da cana ser melhor via a vis o milho, a soja, o girassol e outros, não devemos esquecer que o aumento de sua produção também aumenta o consumo de combustíveis fósseis, sobretudo quando avança sobre áreas antes destinadas à pecuária ou de florestas ou de cerrados ou savanas. A mistura de etanol à gasolina que poderia diminuir, por outro lado, a demanda de combustíveis fósseis e, assim, compensar o aumento que haveria com a expansão do cultivo da cana e do próprio etanol, pode simplesmente ser anulada com um aumento correspondente da frota de automóveis, o que está no horizonte dos que continuam a confundir a melhoria do bem estar da população com o aumento do PIB.

Se se quer fazer um debate sério sobre alternativas eficazes para combater o aquecimento global estamos mirando, com o etanol, na direção errada, ou seja, continuamos buscando respostas para uma demanda que em si mesma não é questionada. A pergunta é bem outra, qual seja, por que continuamos a associar progresso humano com aumento do consumo per capita de energia? Por que continuamos a buscar maior produção de energia e não melhor eficiência energética com aparelhos e máquinas que consumam menos energia, como as lâmpadas fluorescentes, o que por si só geraria melhor renda para as famílias pobres, mesmo que elas continuassem com a mesma renda, simplesmente com a diminuição do consumo com equipamentos mais eficientes! É o que podemos ler no estudo realizado sob coordenação de pesquisadores da Universidade de Campinas e do International Energy Initiative intitulado “Agenda Elétrica Sustentável 2020” que, baseado em políticas ambiciosas de conservação (economia) de eletricidade e de expansão nas novas fontes renováveis de energia (dos ventos, solar, da biomassa e das pequenas hidrelétricas), revela ser possível, até 2020, uma economia de R$ 33 bilhões para os consumidores com a diminuição de até 38% na demanda de eletricidade do país, o que equivaleria a seis hidrelétricas de Itaipu, criando ainda oito milhões de empregos.

Além disso, por que não apoiar com incentivos e isenções fiscais os produtos que tenham uma longevidade maior do que os já existentes, o que implicaria menos consumo de matérias primas e energia? Aliás, a durabilidade deveria ser a condição sine qua non para que qualquer produto pudesse ter o selo de ecológico.

Enfim, o insucesso das políticas estadunidenses para controlar as fontes fósseis de energia no mundo é que está levando a que estes mesmos setores busquem uma alternativa que lhes dê maior segurança energética. Toda a questão passa a ser se essa segurança energética significa segurança e bem estar para a população dos países que voluntária ou involuntariamente se vêem envolvidos nesse complexo de poder. Que Bagdá ou Kabul não seja o nosso destino.

Jean Baudrillard

"Brasil é o império das ilusões"

Em entrevista inédita feita durante a Eco 92, filósofo diz que o país não é hiper-real

O filósofo francês Jean Baudrillard durante palestra na Bienal Internacional do Livro de 2002

KATIA MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

E m 1992, se realizou na cidade do Rio de Janeiro a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco 92. Jean Baudrillard havia sido convidado para uma conferência, e a enorme mobilização da cidade em torno do evento provocou esta entrevista, que aconteceu no Jardim Botânico. Esta não foi a nossa primeira conversa e nem seria a última.
Durante muitos anos foram muitas conversas, mas só tenho o registro desta, que trata da relação entre a natureza e a alteridade, o ciclo da metamorfose, da vida e da morte. As idéias de hiper-realidade e de simulacro são experimentadas no cenário brasileiro a partir de uma análise que considera os processos comunicacionais como aceleradores do consenso. A forma de confrontação escolhida pelo autor é a da teoria fatal, a teoria no meio das coisas, uma teoria que não considera mais a separação entre sujeito e objeto e que acolhe em seu centro os gestos da indiferença como estratégia. Para o Brasil as palavras são de encantamento.
Baudrillard sempre acreditou neste país confuso e generoso e nunca pensou no Brasil como o país do futuro; ele sempre preferiu o presente.

PERGUNTA - Você acredita que esta conferência terá resultados mesmo sendo um tipo de simulacro?
JEAN BAUDRILLARD
- Parece-me que tudo isso faz parte de uma nova ordem mundial. No sentido político, a ecologia faz parte de um novo establishment mundial, fundado sobre uma extensão formal da democracia, dos direitos humanos, fundado sobre um consenso. É mais um pacto simbólico com a natureza. Não é exatamente um contrato natural, não é um contrato em termos racionais. [...]

PERGUNTA - Não há mudança de toda forma.
BAUDRILLARD
- Neste momento de consenso, só há mudanças mecânicas ou eletrônicas. A rede funciona, o processo é de rede, de circuito. Estabelecemos o consenso pela circulação acelerada das coisas. Se você está dentro de uma rede, você está em consenso. Não é uma questão de ideologia.

PERGUNTA - A aceleração é produzida pela mídia, por exemplo? O que promove toda a aceleração?
BAUDRILLARD
- Na verdade, parece uma espécie de imensa maquinaria em forma de circularidade indefinida. Tudo comunica e tudo se torna comunicação. Nada muda verdadeiramente, não há uma forma de alteridade, de antagonismo, de relação dual. Não. Tudo circula. Tudo se torna comunicação, seja a sexualidade, as imagens ou até mesmo os processos científicos. Temos a impressão de que somos reconhecidos no mercado da pesquisa científica por descobertas e hipóteses que possam comunicar.
O universo da comunicação é monofuncional. Existe uma mobilidade e é preciso que tudo seja dito. É preciso que tudo circule. De onde vem esse imperativo? Eu não sei... um mecanismo de dissuasão, de desqualificação. Tudo que é substancial, que tem valor, é perigoso. Então é preciso reduzi-lo, é preciso consensualizar fazendo circular.

PERGUNTA - Você vê a questão da hiper-realidade no Brasil?
BAUDRILLARD
- Eu não vejo o Brasil como um país hiper-real. Não é como a Califórnia, a América do Norte. Talvez porque o Brasil ainda não tenha passado pelo princípio de realidade, não pode se tornar hiper-real, porque o hiper-real é mais que o real, um tipo de confusão entre o real e o imaginário. Tem-se a impressão de que não existe um princípio de definição da realidade. É bem uma espécie de país de ficção, mas não de ficção de transparência.
Não é o país da semiologia ou da semiótica. Tenho a impressão de que o Brasil está mais próximo do jogo da ilusão, da sedução, dessa relação dual, mas confusa, e que não há essa forma de abstração que é a hiper-realidade... Enfim, essa forma de transmutação no vazio, de perda de substância, de referência. Aqui, é claro, há televisão por todo lado, há imagens, isso tudo. Temos a impressão de que é uma matéria muito mais bruta, imediata, primitiva, é uma matéria da relação coletiva.
Não é a mesma definição que podemos ter na Europa entre o meio e a mensagem. Toda a teoria da comunicação não funciona assim porque são as funções de um modelo abstrato, uma realidade abstrata. Justamente por meio das novas imagens há uma espécie de confusão entre o emissor e o receptor. A hiper-realidade é uma espécie de roteiro transparente da modernidade, mesmo na Europa. Aqui eu tenho a impressão de que é uma confusão não primitiva -porque seria uma expressão pejorativa-, mas original.
Uma confusão que é ainda uma forma anterior à da discriminação das coisas, da distinção das coisas. A hiper-realidade é quase tardia porque veio depois da divisão das coisas.

PERGUNTA - Mas nos EUA também não houve uma realidade anterior.
BAUDRILLARD
- Sim, certamente. Não exatamente um princípio de realidade, na medida em que não houve uma acumulação primitiva de realidade por dois séculos, como na Europa. Não há um histórico de realidade, mas um princípio tecnológico, operacional, pragmático. Isso é um problema de infra-estrutura própria, não é uma infra-estrutura de princípios metafísicos, de princípios do sujeito. Há um princípio de operacionalidade muito forte nos EUA .
Aqui eu não tenho a impressão de que ele funcione realmente, e não é ele que governa as formas simbólicas da relação. Portanto, é uma situação original, mas, evidentemente, quando fazemos a análise da hiper-realidade, ela é universal. Todo mundo é submetido a esse regime de potencialização de signos. Mas talvez o Brasil escape do universal.
É preciso saber se a cultura brasileira passou pela modernidade, se os elementos de modernização, de abstração, de mediatização se tornaram os mais fortes. Se foi engolida e absolvida por isso, não estou muito certo.
Não há julgamento estatístico ou metafísico. Talvez no Brasil haja uma certa tradição, talvez haja muito mais de surrealismo que de hiper-realismo.

PERGUNTA - Então seriam principalmente efeitos do inconsciente ?
BAUDRILLARD
- O hiper-realismo é, na verdade, uma zona da desencarnação dos corpos. Não é o caso, aqui os corpos não são de forma alguma desencarnados. Os gestos, o movimento aqui são verdadeiramente sensuais. A hiper-realidade é um tipo de desencarnação, de desilusão, um pragmatismo das coisas. Aqui ainda é o império das ilusões, mas no sentido positivo do termo, ou seja, o jogo de aparências, incluídos no gestual, na dança, na música, no jogo, no culto.
Esse tipo de coisa não demonstra absolutamente uma alternativa política, apenas mostra que ainda existe uma forma de ilusão, isto é, de gestão simbólica das coisas.


KATIA MACIEL é professora de comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O homem que inspirou Matrix

Em entrevista à Folha, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que está lançando no Brasil "Vida Líqüida", diz que Jean Baudrillard foi fundamental para a crítica dos fetiches contemporâneos

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Crítico da sociedade de consumo e da massificação das relações humanas, o sociólogo francês Jean Baudrillard, que morreu na terça-feira passada aos 77 anos, foi um dos pensadores mais presentes -e contestados- no debate público desde o fim dos anos 1960.
Noções como simulacro e hiper-realidade ganharam o mundo por meio de seus escritos e de suas intervenções, como na série "Matrix" -embora afirmasse que esta foi "uma interpretação incorreta de sua obra" (leia seus conceitos-chave na pág. ao lado). Germanista de formação, iniciou a carreira na Universidade de Paris, em Nanterre, que vivia a ebulição do pré-Maio de 68. Afinado com as posições do situacionismo de Guy Debord e da semiótica de Roland Barthes, Baudrillard aliou a contundente crítica à "sociedade de espetáculo" do primeiro à análise dos signos sociais presente na obra do segundo.
Embora dono de vasta bibliografia -como "O Sistema dos Objetos" (1968) e "A Sociedade de Consumo" (1970)-, foi coerente com seu modo de pensar e não constituiu escola nem seguidores. Por isso, chegou a ser visto como o "anti-Bourdieu", referência ao mestre da sociologia que dominou o pensamento -e a burocracia- do meio universitário francês nas últimas décadas do século passado. Essa foi uma das razões porque sempre foi mais ouvido fora da França -sobretudo nos Estados Unidos.

Na linha de frente
Suas posições sempre o colocaram na linha de frente do debate público -ainda que suas avaliações errassem o alvo em várias ocasiões. Nos anos 1970, previu que a Guerra do Vietnã seria um "álibi" para os EUA incorporarem a China e a Rússia. Já ao afirmar que a Guerra do Golfo (1991) "não existiu", procurou diagnosticar o caráter "cirúrgico" de uma guerra "virtual", em que "o inimigo não é mais do que um número no computador".
Após o 11 de Setembro, previu o fim das "mitologias do futuro" -"o progresso, a tecnociência e a história". Em 1996, foi alvo, assim como Deleuze, Guattari e Lyotard, da paródia criada por Alan Sokal na revista "Social Text", em que o físico da Universidade de Nova York atacou o estilo "difícil" e "vazio" dos pós-modernos (leia entrevista com Sokal na pág. seguinte). Contudo permanece inatacável a importância de Baudrillard como destruidor de fetiches contemporâneos, como defende o sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman. Autor de "Vida Líqüida" (Jorge Zahar, trad. Carlos Alberto Medeiros, 210 págs., R$ 36), que está saindo no Brasil, Bauman afirma que o pensador francês foi "o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches".
Ele "fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens", diz na entrevista abaixo, concedida à Folha. Mas, lembra Bauman, ao levar ao limite a sua iconoclastia, Baudrillard encontrou -escondido atrás das máscaras- apenas o "vazio".

FOLHA - Qual é a importância das idéias de Baudrillard hoje?
ZYGMUNT BAUMAN
- Jean Baudrillard foi o maior iconoclasta de nossa época, o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches... Diferentemente de outros, ele se recusou a proclamar o "fim" de qualquer coisa (da ideologia, utopia, filosofia, história ou o que seja), tentando, em vez disso, demonstrar a impossibilidade de resolver as questões de sua validade.
Ele empurrou a arte da iconoclastia a extremos que outros não desejaram ou não puderam alcançar. Fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens, em que a condição preliminar para qualquer tentativa de melhorar a situação é resistir ao poder sedutor das imagens e escapar de seu encantamento. Realizou à perfeição essa tarefa de "limpar o terreno".
Mas parou nesse ponto. Ao levar as iniciativas iconoclastas além de seus limites anteriores, aproximou-se perigosamente do niilismo...
Como o herói de Ibsen, Peer Gynt, pensando em seu "eu autêntico" como uma espécie de cebola, não encontrou um núcleo duro quando descascou a última camada, apenas o nada. Assim, Baudrillard, depois de arrancar todas as máscaras que o mundo supostamente usava, se deparou com o vazio.
Ele limpou o terreno potencial da construção, mas um cemitério de máscaras e fetiches se mostrou inadequado para sustentar qualquer edifício...

FOLHA - Quais obras e conceitos de Baudrillard permanecerão?
BAUMAN
- Não sou profeta nem vidente, e em nosso mundo veloz as obras tendem a ser rapidamente esquecidas, enquanto o destino dos conceitos tende a ser caprichoso. Mas certamente optaria pela idéia de "simulacro" e sua aplicação à percepção de tudo o que parece "realidade", mas da qual não podemos dizer onde está a diferença entre "representação" e "o que é representado".
Simulacro não é simulação -neste caso, ninguém apenas mente ou age sob falsas pretensões. De maneira semelhante aos problemas psicossomáticos, as dores do paciente são genuínas, e todos os sintomas do sofrimento estão presentes - mesmo que não seja possível descobrir as "causas orgânicas" da doença.
Então, o paciente está doente ou não? Mente ou fala a verdade? Bem, Baudrillard apenas repetiria, como Pôncio Pilatos: "O que é a verdade?". Pergunta que, como você se lembra, nem ele respondeu...

FOLHA - O sr. é um crítico dos "muros universitários", como um obstáculo ao livre pensamento. Baudrillard, como um dos últimos intelectuais envolvidos no debate público, foi o último livre-pensador? Nesse caso, sua morte representa o fim de uma era?
BAUMAN
- Não ouse proclamar o fim dos intelectuais, do debate público ou do livre pensamento! Sua morte foi anunciada muitas vezes, mas, como uma fênix, sempre se reergueu das cinzas, mesmo que sob uma forma diferente. E lembre-se também de que Baudrillard passou a maior parte da vida dentro dos "muros universitários" e foi um professor zeloso, que viajou ao redor do mundo dando seminários em universidades.
É verdade que as pressões das rotinas universitárias em nossa sociedade de mercado não encorajam o livre pensamento e afastam a grande maioria dos acadêmicos das responsabilidades intelectuais. Mas o papel do intelectual sempre foi uma vocação da minoria, enquanto alguns conseguiram permanecer livres até em campos de concentração...

FOLHA - Qual será o futuro da sociologia?
BAUMAN
- Creio que em nenhum outro momento a sociologia foi tão necessária quanto hoje, embora os tipos de serviços que foi preparada para oferecer na fase "sólida" da modernidade não sejam mais muito solicitados (alguns sociólogos americanos, por exemplo, temem "perder o contato com a agenda pública"). Em nossa época, diversas "funções públicas" foram abandonadas pelas instituições públicas e "terceirizadas" para iniciativas de mercado ou "subsidiarizadas" para a "política de vida" individual.
Como afirmou [o sociólogo] Ulrich Beck, hoje espera-se que os indivíduos construam individualmente, usando recursos individuais, soluções individuais para problemas comuns e produzidos socialmente. Diante dessa tarefa, todos precisamos ter conhecimento confiável sobre os modos como os "fatos da vida" são produzidos e nos confrontam como realidade imutável.
Essas fontes e raízes não podem ser apreendidas dentro da experiência individual e permaneceriam invisíveis sem a ajuda da sociologia.

FOLHA - Por que o sr. prefere o termo "modernidade líqüida" a "pós-modernidade"?
BAUMAN
- "Pós-modernidade" foi temporariamente útil para mim como uma espécie de conceito "improvisado". Sugeria, corretamente, que as condições de vida já são um tanto diferentes do que pensamos que seriam as condições modernas, mas era descomprometido sobre a natureza dessa diferença. Também sugeria, erradamente, que a modernidade "terminou" e já estamos em outra era... O conceito de "modernidade líqüida" evita esse último erro e enfatiza que somos tão, senão mais, modernos quanto nossos pais e avós.
Sugere que, no fundo de todas as outras (numerosas) diferenças, está a nova "liquidez" -a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo.

FOLHA - Em "Amor Líqüido", o sr. afirma que o amor é hoje identificado pela "racionalidade do consumidor". O consumo, como em Baudrillard, é a "bête noire" da sociedade contemporânea?
BAUMAN
- Não tanto o consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano), mas o consumismo: a tendência a perceber o mundo como basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme o padrão de consumo.
Assim, o outro (parceiro, amigo, vizinho, parente) é "bom" desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis -como os bens de consumo são ou deveriam ser.
Afinal, não fazemos juramento de eterna fidelidade a celulares, televisores, computadores, carros, geladeiras e outros bens de consumo. Quando eles param de funcionar ou são superados por ofertas novas e mais atraentes, nos separamos deles com pouca tristeza e sem escrúpulos... Na verdade, tendemos a comemorar a substituição! Mas esse "padrão consumista" é contrário aos princípios que conduzem nossos relacionamentos amorosos.
Se for aplicado, torna impossível a relação amorosa realmente satisfatória. Ele envenena a parceria com desconfiança mútua e a enche de constante incerteza quanto às intenções do parceiro. Amplia qualquer desavença mínima a uma proporção gigantesca, dando motivos suficientes para terminar e recomeçar em outro lugar. Assim como devolvemos uma mercadoria imperfeita à loja, exigindo nosso dinheiro de volta...
Sob a pressão do consumismo, as relações amorosas se transformam em episódios amorosos: tornam-se frágeis, quebradiças, não-confiáveis -antes uma fonte de medo, ao invés de alegria.

FOLHA - Em "Vida Líqüida", o sr. diz que vivemos sob condições de constante incerteza. Como essas novas condições modificam nossa percepção do mundo político?
BAUMAN
- A incerteza, o medo do desconhecido, das ameaças imprevisíveis e inomináveis ao corpo humano, à propriedade, ao esquema de vida são uma matéria-prima facilmente reciclada em capital político.
A promessa de "ser duro" com criminosos, estranhos, imigrantes, mendigos e todas as outras pessoas vistas como incômodos e potenciais perigos se torna uma arma preferida em disputas políticas.
Os governos são capazes de aparecer como guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos, enquanto os partidos de oposição desenvolvem um "benefício próprio" ao convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do que os governos deixam perceber.
Jogar com os sentimentos de insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de dominação política.

Entenda os conceitos-chave

Sociedade de consumo
Preocupação principal das primeiras obras de Baudrillard: necessidades, forças e técnicas naturais são substituídas por um sistema em que os objetos de consumo dão forma e significado à vida cotidiana.

Pós-modernidade
É definida como o vazio deixado pelo desaparecimento das ideologias e dos limites da modernidade, embora Baudrillard recusasse o rótulo de "pós-moderno".

Simulacro
Enquanto o mundo moderno era organizado em torno da produção, o mundo pós-moderno é regulado pela reprodução, pela simulação. Diferentemente da imitação ou do fingimento -casos em que a diferença entre produto e realidade se mantém-, o simulacro (a TV, a realidade virtual) confunde realidade e ilusão.

Hiper-realidade
É o mundo dos simulacros em que as pessoas vivem, a sociedade de imagens -idealizadas pela TV, rotuladas pelos meios de comunicação de massa e distantes do cotidiano do trabalho- que substitui a sociedade de classes e do trabalho.

Fim do trabalho
Nos anos 1970, Baudrillard rompe com o marxismo, que, segundo ele, perde sentido no mundo pós-moderno: o trabalho deixa de ter valor em si, aparecendo apenas como mais "um signo entre outros", um sinal de status ou modo de vida.

Sedução
Com seus rituais ambíguos, opõe-se ao conceito de "sexual" -este está associado à produção. A sociedade burguesa teria subvertido a ordem original, em que a sedução viria primeiro. Ao tentar resgatar o conceito de sedução, no final dos anos 1970, Baudrillard o associou ao feminino, criticando, porém, o feminismo -o que gerou mal-estar no círculo dos estudos de gênero.

Orgia e pós-orgia
A expansão cultural moderna aparece como "orgia". Baudrillard ressalva não se tratar de liberação, mas de "metáfora da liberação" manifesta na sociedade moderna. A sociedade contemporânea, portanto, viveria a pós-orgia, a reação a essa explosão -uma implosão.

Implosão
Conceito emprestado do canadense Marshall McLuhan (1911-80), nomeia o colapso da diferenciação entre os planos econômico, político, artístico etc. Na sociedade da simulação, a economia e a vida "reais" não se diferenciam mais dos simulacros; a sexualidade permeia tudo.

Transestética
Situação conseqüente da implosão: ao mesmo tempo em que a arte tudo permeia, ela deixa de ser entendida como fenômeno próprio; seu poder de oposição à realidade desaparece, juntamente com suas normas.

Obras no Brasil

O Sistema dos Objetos
(Perspectiva)

A Troca Simbólica e a Morte
(Loyola)

À Sombra das Maiorias Silenciosas - O Fim do Social e o Surgimento das Massas
(Brasiliense)

O Anjo de Estuque
(Sulina)

Da Sedução
(Papirus)

Cool Memories - 1980-1985
(Espaço e Tempo)

As Estratégias Fatais
(Rocco)

Partidos Comunistas
(Rocco)

Cool Memories 2 - Crônicas 1987-1990
(Estação Liberdade)

A Transparência do Mal - Ensaio sobre os Fenômenos Extremos
(Papirus)

Cool Memories 3
- Fragmentos 1991-1995 (Estação Liberdade)

América
(Rocco)

Tela Total - Mito e Ironias da Era do Virtual e da Imagem
(Sulina)

A Ilusão Vital
(Civilização Brasileira)

A Arte da Desaparição
' (UFRJ)

A Troca Impossível
(Nova Fronteira)

Cool Memories 4 - Crônicas, 1996-2000
(Estação Liberdade)

De um Fragmento ao Outro
(Zouk)

Senhas
(Difel Brasil)

Power Inferno
(Sulina)

Telemorfose
(Mauad)

terça-feira, abril 24, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil - Jan 2003

Preocupar para controlar

A profusão de programas de TV sobre violência (filmes, noticiários etc.) desenvolve um sentimento de perigo e de vulnerabilidade que leva – especialmente, as categorias mais desfavorecidas – a aceitar a exploração e a repressão crescentes e até a desejá-las

Serge Tisseron

A decisão do ministro da Cultura da França, Jean Aillagon, de não adotar a maioria das propostas do relatório sobre a violência na televisão, apresentado em 14 de novembro pela filósofa belga Blandine Kriegel, não torna desnecessária a análise da estratégia e dos argumentos ali desenvolvidos. Efetivamente, em nome de reflexões e referências científicas, o relatório Kriegel - apesar de algumas propostas concretas interessantes, como uma dupla codificação para os filmes pornográficos ou a adoção de uma antropometria positiva, e não apenas negativa - seleciona algumas pesquisa em detrimento de outras, impõe uma leitura unívoca e desenvolve uma concepção da educação por imagens relacionada à segurança.

As pesquisas “indiscutíveis” sobre as quais este relatório pretende se apoiar são apresentadas nas 20 primeiras páginas. As imagens violentas são vistas de um único ponto de vista: o perigo que possam fazer, levando as crianças a comportamentos violentos. Estas pesquisas são realmente rigorosas. No entanto, foram praticamente todas realizadas nos Estados Unidos, isto é, em um país com um ambiente muito diferente do francês. O gosto que os norte-americanos têm pelas armas é conhecido e lá há uma distância menor do que em outros lugares entre o desejo de matar e a realização do ato. Acima de tudo, as pesquisas só dão conta de apenas um desses dois aspectos das descobertas feitas nos últimos vinte anos.

Como reduzir a violência na TV?

As conseqüências da violência na televisão não dizem respeito apenas aos jovens, mas a todas as categorias da população, de qualquer idade

Outros pesquisadores efetivamente desenvolveram sobre esse tema um ponto de vista bem diferente. O mais conhecido, George Gerbner, trabalhou a pedido do Ministério da Saúde dos Estados Unidos desde 1967 e, depois de 1984, a pedido da Unesco1. Ele mesmo resume suas conclusões: “A violência na tela contribui, na proporção de 5%, talvez, para a violência real: quer dizer que sua contribuição é relativamente insignificante2.” Significaria isso que, para Gerbner, a violência das imagens não teria conseqüências? Claro que não! Mas, para ele, as conseqüências não dizem respeito apenas aos jovens, mas a todas as categorias da população, de qualquer idade. Elas consistem, principalmente, no desenvolvimento de um sentimento de perigo e de vulnerabilidade que leva – especialmente, as categorias mais desfavorecidas – a aceitar a exploração e uma repressão crescentes e, mesmo, a desejá-las. Esse problema foi observado na França. Muitos estudos mostram que a importância dada à incivilidade e à pequena delinqüência nos pequenos noticiários televisivos, ao longo das semanas que precederam a eleição presidencial da primavera de 2002, mobilizaram uma parte considerável dos eleitores para o voto “por segurança”, ainda que nada, no meio em que vivem, pudesse fazê-los temer os acontecimentos que viam representados na televisão.

Enquanto teóricos raciocinam em termos de redução da violência dos programas, Gerbner defende a criação de obras televisivas que dêem a palavra às pessoas em situação precária ou desfavorecida. Para ele, a melhor maneira de combater a violência na mídia consiste em incentivar programas destinados a reduzir o isolamento psicológico das categorias marginalizadas das quais também fazem parte... os jovens!

Fantasias pseudo-científicas

Muitos estudos mostram que a importância dada à pequena delinqüência nas semanas que precederam a eleição presidencial induziu ao voto “por segurança”

Ora, ainda que Blandine Kriegel cite em duas passagens George Gerbner, o faz de forma muito lacônica parecendo concordar com seu ponto de vista, quando, ao contrário, a ele se opõe. Ao invés de interrogar-se sobre os meios de relaxar as formas do controle social, do qual as imagens violentas acentuam a eficácia fomentando o medo, ela quer reforçá-las. Não é surpreendente, na medida em que as palavras “pobreza”, “precariedade” ou “camadas desfavorecidas” jamais são pronunciadas em seu relatório...

O texto da comissão Kriegel privilegia deliberadamente tudo o que possa justificar um aumento do controle às custas do incentivo de iniciativas que contribuiriam para fazer da televisão um melhor espelho da vida social. Preocupar para controlar é uma velha receita e, para ter mais sucesso, este relatório não hesita em acrescentar às citadas pesquisas norte-americanas, aprovadas pela comunidade científica, algumas fantasias pseudo-científicas. Lê-se, por exemplo, que “quando uma pessoa é exposta a uma situação de violência televisiva, os efeitos psicológicos imediatos são de natureza semelhante aos que teria essa pessoa se fosse exposta a uma situação de violência real, como, por exemplo, um aumento do ritmo cardíaco e da pressão sanguínea”. Que seja, mas a emoção amorosa, a vergonha, ou até uma simples porta que bate também produzem esses efeitos, então porque não se interessar, preferencialmente, pelas diferenças entre essas diversas situações? No mesmo gênero de raciocínio que nos remete a cinqüenta anos atrás, em pleno período da confusão entre a representação e a realidade, acha-se esta pérola que não se baseia em nenhuma descrição rigorosa em toda a literatura psiquiátrica e que é um insulto a todas as vítimas de sevícias: “a recepção de uma imagem crua e brutal pelo cérebro de uma criança (...) tem o mesmo efeito que um abuso sexual!”

Adaptação ao sistema competitivo?

A melhor maneira de combater a violência na mídia consiste em incentivar programas que reduzam o isolamento psicológico das categorias marginalizadas

Retornemos às pesquisas norte-americanas mencionadas. Elas concluem que as crianças que vêem televisão por muito tempo correm mais riscos do que as outras de se tornarem adultos violentos. Tais resultados apontam muitos problemas que a censura dos programas não parece resolver. Pois, por que alguns jovens vêem mais televisão do que outros? Uma criança que tem a opção de ver televisão, ir ao cinema com colegas ou ainda à piscina ou a uma quadra de esporte não vai, evidentemente, manter com a tela doméstica a mesma relação exclusiva que uma criança que não tem qualquer dessas possibilidades. Mas toca-se, então, em problemas da sociedade que atrapalham...

Uma segunda questão seria de saber por que, entre as crianças que vêem mais televisão, algumas - uma minoria expressiva - não se tornaram mais violentos enquanto que uma pequena maioria assim o fez. Isso permitiria estabelecer as bases de uma política de prevenção realista e eficaz. Pois não será amanhã que as imagens violentas desaparecerão!

Admitamos que este tipo de cena torne efetivamente alguns jovens “violentos”. Indagou-se, entre aqueles que não se tornaram, sobre a maneira pela qual sua vida psíquica se organizou em relação às imagens violentas que viram? Talvez alguns tenham ganhado combatividade, tornando-se melhor adaptados ao sistema ultra-competitivo norte-americano? Porque se nosso ambiente comporta cada vez mais imagens violentas, também comporta uma reivindicação cada vez mais forte de individualidade. Não seria possível uma relação entre essas duas constatações?

“Produtos perigosos e reativos”

Se nosso ambiente comporta cada vez mais imagens violentas, também comporta uma reivindicação cada vez mais forte de individualidade e competitividade

Finalmente, o relatório Kriegel propõe “um amplo espaço educacional, abrangendo programas de promoção de uma cultura de respeito ao outro e de superação da violência”. Em outras palavras, trata-se de convidar os jovens a deixarem de ser vítimas das supostas conseqüências de imagens violentas, e não de prepará-los para viver em paz com todas as imagens à sua volta. Repetimos: a educação pelas imagens deveria permitir tornar as crianças mais inteligentes, mais felizes e mais responsáveis, vivendo em paz com todo o ambiente audiovisual. Para o conseguir, deve dar a palavras às crianças, colocá-las na escuta, convidá-las a conferir sentido às imagens que elas vêem, incitando-as a criar as suas. Também precisa considerar todas as imagens como construções e renunciar totalmente à idéia de que algumas delas possam ser simples reflexos, como este relatório qualifica o noticiário da televisão: “reflexo inevitável da violência do mundo”.

Quanto à ação em relação aos pais, ela é lembrada por uma única frase que (com erro de ortografia e itálico incluídos!) resume sozinha toda a filosofia que propõe o relatório: “Uma ação em direção aos pais deveriam (sic), em primeiro lugar, ter o objetivo de levá-los a vigiar e disciplinar o consumo audiovisual de seus filhos. Deveria também convencê-los a proceder com tato, sem o que sua ação criaria mais conflitos do que solucionaria”. Resumindo, as crianças nos são apresentadas como espécies de produtos perigosos e reativos que necessitariam de precauções no uso, mesmo como animais selvagens, sempre prontos a agredir seu domador, nunca como seres humanos movidos pelo desejo de conferir um sentido próprio a suas experiências com imagens.

Sonhando com o autoritarismo

Os médicos de família são recrutados para a mesma tarefa: “Anúncios afixados nas salas de espera poderiam advertir sobre a necessidade de refletir sobre os riscos que as imagens violentas ou pornográficas apresentam para as crianças.” Nada se diz sobre a necessidade de estabelecer entre pais e filhos um diálogo que, na realidade, nunca ocorreu: o antigo autoritarismo da década de 50 cedeu o lugar a uma forma de permissividade em que as crianças recebem, muitas vezes, a liberdade de levar a vida como bem entendem. Sonhando explicitamente em restaurar a antiga autoridade sem tirar lição alguma de seu fracasso, Blandine Kriegel critica, com veemência, os heróis fora-da-lei - esquecendo-se que os Robin Hood, Peter Pan e Zorro já pertenciam a esse grupo e que os combatentes da Resistência de 1939-1945 também estavam nessa situação - e convida os pais a “vigiar e disciplinar”, nunca a abrir o diálogo.

É verdade que essa opção implicaria preocupar-se um pouco mais com as imagens e com as pessoas que as vêem e, um pouco menos com a força do Estado e com o reforço de seu poder.

(Trad.: Teresa Van Acker)

1 - Seu estudo sobre a violência na mídia deu lugar a um relatório publicado em 1989 com o subtítulo “Violência e terror na mídia” que analisa e resume o conjunto das pesquisas realizadas até essa data no mundo inteiro.
2 - Le Débat, n° 94, Paris, março-abril de 1997.

Ser um lixo. Um artigo de Federico Kukso

O lixo é um lugar por excelência para inquirir sobre culturas passadas. No entanto, "não é preciso jogar-se em lixeiros para dar de cara com essas antigas mensagens. O passado está escrito no próprio corpo e pode ser lido não só nos cabelos e nas rugas, mas muito mais interiormente: no próprio genoma", conta Federico Kukso em artigo para o Página/12, 31-03-2007.

O genoma constitui "um arquivo quase inesgotável de histórias e lembranças de épocas" passadas, continua. Mas esconde também surpresas. Dos 100% do genoma, apenas 3% tem função aparente e codifica - fabrica - proteínas. E os 97% restantes? O que se esconde por trás do aparente "lixo de DNA"? Kukso relata que "o paradigma sistemático que vai ganhando força está associado à idéia de que o DNA lixo - os "textos absurdos" do livro da vida - na realidade não é tão imprestável mas que tem de fato uma função mecânica de acoplamento, para chamá-la assim, num funcionamento orquestral de todos os genes ao uníssono."

Segue a íntegra do artigo traduzido pelo Cepat.

As culturas mortas têm muitas maneiras de falar e fazer perdurar sua mensagem. Fazem-no através de pirâmides, monoblocos, estátuas, totens, papiros ou pedras crípticas decifradas com suor e lágrimas. Mas, acima de tudo, seu principal canal de transmissão é o lixo. Pode ser que seja um diálogo silencioso e até desagradável, mas é aí, no coração mesmo do consumido e do descartado, onde revelam sua mais autêntica forma de ser; não como se mostraram, mas mais como eram na realidade. Hábitos alimentares, formas de se vestir, estilos de caça, tudo está aí, aguardando aquele que não se deixa dominar pela sensação de asco, usa as luvas e se mergulha com gosto nas camadas geológicas de lixo e desperdícios.

Mesmo assim não é preciso preocupar-se muito com a limpeza. Ao fim e ao cabo, segundo se sabe há algumas décadas, não é preciso jogar-se em lixeiros para dar de cara com essas antigas mensagens. O passado está escrito no próprio corpo e pode ser lido não só nos cabelos e nas rugas, mas muito mais interiormente: no próprio genoma. Livro da vida, manual de instruções para construir e fazer funcionar o corpo humano, o conjunto de todos os genes humanos (pequenos segmentos de DNA que controlam uma função celular específica e que estão organizados linearmente em 23 pares de cromossomos) constitui um arquivo quase inesgotável de histórias e lembranças de épocas talvez não melhores, mas diferentes, de quando, por exemplo, os atuais 6,5 bilhões de indivíduos que circulam e envernizam o planeta Terra eram apenas criaturas unicelulares, vermes ou peixes que em algum momento tomaram o ímpeto e decidiram emigrar para terra firme.

Diz-se que a geração atual é afortunada, a única em toda a história da humanidade que terá o luxo de ler seu próprio roteiro, seu plano de construção (talvez o otimismo seja desmedido, afinal de contas também é a primeira vez que a espécie é tecnologicamente capaz de decidir sua autodestruição). O certo é que naquelas receitas químicas e codificadas das quais sai como resultado o ser humano - os genes, até pouco tempo atrás inacessíveis e misteriosos - ficaram guardadas o registro evolutivo do caminho percorrido pelas máquinas de sobrevivência que somos.

As surpresas e os golpes ao ego não demoraram a chegar, mal a caixa de Pandora - o próprio genoma humano - começou a se abrir. Não apenas expulsou do vocabulário científico a palavra "raça", mas reafirmou o parentesco íntimo e próximo com os chimpanzés (é correto dizer que o ser humano é chimpanzé em aproximadamente 98%). O sequenciamento do genoma humano tinha guardado outras surpresas: também revelou, por exemplo, que estamos mais próximos dos ratos do que dos gatos.

O segundo tombo ao amor próprio veio, ao contrário, não do lado da qualidade, mas da quantidade. Uma simples (mas drástica) redução fez tremer a auto-estima da humanidade: dos especulados 150 mil genes que constituíam um ser humano se caiu a um número muito mais modesto, mas nem por isso menos importante, 30 mil, em comparação com os seis mil da fermentação da cerveja Saccharomyces cerevisae, os 19.100 do nematóide [verme] Caenorhabditis elegans e os 26 mil da planta Arabidopsis thaliana. "Do ponto de vista bioquímico, não existem grandes diferenças entre uma couve e um rei", dizia o biólogo francês Jacques Monod.

Entretanto, as estocadas ao antropocentrismo não pararam aí. Quase sem muita pompa midiática, o Projeto Genoma Humano chegou também à conclusão de que cada indivíduo é, literalmente, um lixo. Assim é (quando seguimos ao pé da letra as definições conceituais da biologia molecar): dos 100% do genoma, apenas 3% tem função aparente e codifica - fabrica - proteínas. E os 97% restantes? A esse resto, cuja existência já se sabia há décadas ainda que não a sua proporção, o japonês Susumu Ohno o batizou em 1972 de "junk DNA" (ou "DNA lixo") ao passo que o sempre polêmico Richard Dawkins o etiquetou como "DNA egoísta", uma confusão de seqüências repetitivas e aleatórias que nadam em todos os cromossomos e até há pouco tempo consideradas imprestáveis, uma espécie de cenografia de fundo que cobiçava os genes protagonistas.

Há, inclusive, cientistas que se referem ao DNA lixo como "pseudogenes", "genes satélites" ou como resíduos de vírus ancestrais que invadiram o genoma humano há milhões de anos e, seja por comodidade, seja por conveniência, ali ficaram acampados; uma hipótese que encaixa perfeitamente com os diálogos da trilogia Matrix em que, em meio ao pastiche filosófico e pós-modernista, se afirma que o ser humano não é mais que um vírus informático que deve ser aniquilado. Em 1999 se conheceu, por exemplo, que um destes invasores é o retrovírus HERV-K (Human Endogenous Retrovirus-K) [Retrovírus endógenos humanos-K], do qual há 30 a 50 cópias distribuídas nos cromossomos.

A questão é que estas seqüências repetitivas (chamadas endonucleases), que até bem pouco tempo eram consideradas recheio ou meras atrizes de distribuição, estão atraindo cada vez mais a atenção. Presume-se inclusive que é ali que se deve enfocar o olhar para advertir os motores da evolução: de fato, há endonucleases especiais e diminutas chamadas "Alu" (os membros dessa família têm um comprimento de cerca de 300 pares de bases) que, segundo cientistas do Centro Sidney Kimmel de San Diego (Estados Unidos), ao brincar com o genoma põem muitos genes dispersos sob um novo controle que os ative um pouco mais, um pouco menos, segundo sua trajetória de vida. Nessa capacidade de saltar de um lado para o outro do genoma talvez more a resposta à questão de por que a espécie humana não é como era há três milhões de anos e talvez não o seja daqui a três milhões de anos.

Uma vez enterrada a idéia causal e determinista de que a cada gene (e sua modificação) correspondia uma doença, o paradigma sistemático que vai ganhando força está associado à idéia de que o DNA lixo - os "textos absurdos" do livro da vida - na realidade não é tão imprestável mas que tem de fato uma função mecânica de acoplamento, para chamá-la assim, num funcionamento orquestral de todos os genes ao uníssono.

Sem ter muita certeza sobre quais caminhos tomar em relação ao DNA lixo nos últimos anos, é objeto de estudo de mais de 700 pesquisas, unificando o conhecimento de biólogos, criptoanalistas e lingüistas, para talvez decifrar uma nova linguagem dentro da já caótica, mas maravilhosamente transcendental linguagem genética.