"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, abril 20, 2007

Le Monde Diplomatique Brasil

ÁFRICA

Dura batalha pela seguridade social

Num continente assolado pela pobreza, espalham-se as campanhas para transformar a Previdência em direito de todos. As políticas “de mercado” do FMI e Banco Mundial são o obstáculo

Assane Diop

Em 15 de novembro de 2005, a República Democrática do Congo (RDC) inscreveu “a garantia da saúde e da segurança alimentar” na sua nova Constituição, após o primeiro referendo democrático organizado no país, depois de quase quarenta anos. Inicialmente, o presidente Laurent Gbagbo tinha conseguido que o Parlamento da Costa do Marfim aprovasse a criação de um Sistema de Segurança Universal contra Doenças (AMU – Assurance Maladie Universelle). Entretanto, um ano mais tarde, quando a Costa do Marfim se desestabilizou, num conflito de longa duração [1], a entrada em vigor da AMU foi adiada para uma data desconhecida.

Ruanda foi o segundo país africano a seguer essa direção. A AMU ruandesa, votada pelo Parlamento, ainda não foi realizada, porque as autoridades locais estão engajadas em conselhos com parceiros exteriores, particularmente, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização Mundial de Saúde (OMS). O artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que consagra o “direito de todo ser humano à segurança social”, indica que as obrigações dos Estados, em termos sociais, requerem não só o “esforço nacional”, mas também “a cooperação internacional”.

Sob a marca da informalidade

Na África, “somente 5 a 10% da população ativa é beneficiada por cobertura social”, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que nota a degradação da situação nos últimos vinte anos [2]. A OIT destaca que “aproximadamente 80% da população não tem acesso aos cuidados básicos de saúde”. Em média, as despesas de saúde representam 4,3% do produto interno bruto (PIB) dos Estados do continente — contra 6,4% na Ásia, 8,8% na América Latina, 24,8 % na Europa e 16,6% na América do Norte. “Embora certos países destinem até 9% de seu orçamento nacional à saúde, como prescreve a Organização Mundial de Saúde (OMS), sempre se coloca o problema da utilização adequada dos recursos [3]”, aponta o Doutor Charles Raymond Dotou. Na maior parte dos países africanos, a economia apóia-se sobre um setor informal hipertrofiado, incluindo negociações ilícitas e mercado negro, o que entrava a criação de um sistema geral de proteção social. Somente os assalariados e os funcionários – que representam apenas 10% da população ativa, em média – são beneficiados. Nos anos 70, a maioria dos economistas e dos financiadores pensava que o desenvolvimento acarretaria, automaticamente, o progresso do setor formal (assalariado) e a generalização da segurança sanitária. tais prognósticos revelaram-se falsos. A derrota das políticas de ajuste estrutural aumentou o lado informal da economia nos anos 1980 e 1990 [4]. “Com a crise econômica, após o reajuste estrutural” — nota um estudo do ministério francês das relações exteriores — problemas administrativos, financeiros e econômicos graves apareceram e fragilizaram a situação da proteção social. Seu custo aumentou, enquanto o nível de rendimento (como também, às vezes, o número de trabalhadores do setor público) estagnou, e o número de assalariados baixou, em proveito dos setores tradicionais e informais [5] .”

... e do estrangulamento dos Estados

Além disso, os Estados têm sua capacidade de intervenção financeira reduzida pela crise da dívida, pela ruína dos preços das matérias-primas, pela fraqueza das receitas fiscais, pela má gestão e pelas políticas de rigor recomendadas pelos financiadores internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional a Comunidade Européia). As infra-estruturas de saúde (hospitais, ambulatórios, médicos formados, etc.) degradaram-se, prejudicando a confiança que das populações no poder público [6]. Freqüentemente, os esforços relativos à saúde restringem-se à solidariedade internacional através de grandes organizações humanitárias, de organizações não governamentais (ONGs) e das principais agências especializadas das Nações Unidas, principalmente, a OMS. As classes urbanas mais abastadas recorrem à assistência privada, mas os pobres só consomem lançam mão de tais recursos quando a necessidade é urgente. Em tais casos, recorre-se à solidariedade tradicional (assistência dita comunitária): economia, quotização, doações, ajuda familiar, etc. Entretanto, “os sistemas ’tradicionais’ de proteção social oferecidos pelas comunidades são ameaçados pela ’modernização’ das economias (urbanização, mobilidade geográfica, aumento do individualismo), pelo crescimento demográfico e pela persistência de crises econômicas e políticas (diminuição do nível de vida e insegurança) [7] ”. O Gabão está entre os raros países da África que vivem uma situação relativamente satisfatória, em matéria de cobertura social. Esse privilégio se explica pela existência de indústrias mineradoras (petróleo) e carboníferas de grande rentabilidade. Os dois setores figuram entre as principais fontes de emprego do país. Segundo o ministério dos Negócios Sociais, 61,48% da população é favorecida pela cobertura social. Três ramos são referentes à área de saúde: a distribuição gratuita de medicamentos, a cobertura das despesas de hospitalização e o acesso a um fundo (Evasan) que permite transferências para os hospitais estrangeiros melhor equipados, sobretudo os franceses. A degradação da proteção social contrasta com as ambições dos jovens Estados africanos, nos primeiros anos de independência. Os novos poderes haviam colocado o Estado do Bem-estar Social no centro de seu programa. Essa reivindicação tinha alimentado o combate contra a administração colonial. As lutas sindicais, na África francófona, reivindicavam a extensão de direitos sociais exclusivos dos cidadãos europeus que viviam no continente. Algumas conquistas tinham sido obtidas, principalmente, a favor dos trabalhadores urbanos “autóctones” [8]. O sociólogo Olayiwola Erinosho mostra que a derrota dos governos africanos, em termos de proteção social, enfraqueceu seu crédito e sua legitimidade aos olhos das populações locais [9].

A frustrada “iniciativa de Bamako”

Em 1987, os ministros da saúde do continente negro tentaram reagir adotando a “Iniciativa de Bamako” (Mali), com o patrocínio da OMS e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) [10]. Até então, a OMS defendia a idéia de sistemas de saúde financiados pelos Estados e gratuitos para os pacientes. Porém, o enfraquecimento dos Estados e a má gestão levaram-na a renunciar a essa estratégia. A “Iniciativa de Bamako” é marcada, sobretudo, pelo objetivo de assegurar ao conjunto da população o acesso aos cuidados de saúde primária a preços acessíveis; de minimizar os custos e de restaurar a confiança dos usuários nos serviços públicos de saúde. Este plano era visto como capaz de melhorar a qualidade dos serviços e decentralizar as decisões – principalmente em favor das comunidades locais.

Os resultados não estiveram à altura das esperanças. Segundo a OIT, a “iniciativa” padece por ser “isolada no interior do sistema atual, raramente tendo tentado integrar-se à política global [11]”. Falta uma visão de conjunto que leve em conta a extensão da pobreza geral e a do setor informal. A ausência de diálogo social e de escuta das propostas associativas prejudica os esforços. A falta de controle dos governos sobre as políticas macroeconômicas, decididas sob a influência dos financiadores, limita suas ações e os encarcera numa filosofia liberal que reprime o poder público. Por outro lado, as sociedades e as economias ficam muito vulneráveis aos choques desestabilizadores como a insegurança alimentar ou os efeitos de certas pandemias, como a Aids.

Segundo Charles Raymond Dotou, médico consultor junto das Nações Unidas, a ausência de dados confiáveis e de avaliações suficientes impede a elaboração de uma reforma eficaz de proteção social. “A maioria [das instituições internacionais] financia às cegas”, estima ele, destacando a falta de coordenação. Assim, onde o Banco Mundial procura desenvolver a assistência privada, a OMS ou a OIT tentam sustentar as fundações sem fins lucrativos [12]. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) instalou, por exemplo, um programa chamado de Estratégias e Técnicas contra a Exclusão Social e a Pobreza (STEP). Com a proposta de ser “um instrumento para combater a exclusão social e para estender a proteção social aos grupos excluídos no mundo”, o STEP coopera, sobretudo, pela criação de micro-projetos de fundações de saúde em quase toda África. Um grande número dessas estruturas veio à luz em setores tão diversos como o transporte rodoviário, a pesca artesanal, as cooperativas agrícolas ou ainda a construção civil.

No meio do caminho, o FMI

A maioria dos observadores estima que a promoção da segurança social na África passa pela busca de uma complementaridade entre os diferentes sistemas públicos e comunitários, as seguradoras e as fundações. Assim quando o governo de Gbagbo conseguiu que se adotasse a Lei sobre a Segurança Universal contra Doenças (AMU) em outubro de 2001, a OIT manifestou reservas. “A principal inquietação emitida pelo BIT a propósito da AMU era de ver esse novo sistema de proteção social, por mais abundante que seja, destruir as estruturas existentes, sem ter sido testado”, como relata um dos especialistas que estudou o tema. Segundo os especialistas internacionais, a AMU da Costa do Marfim necessitaria anualmente de 400 bilhões de francos CFA (600 milhões de euros) repartidos entre os principais agentes sociais — em primeiro lugar, o Estado. Um orçamento desse tipo implicaria, obrigatoriamente, uma importante contribuição direta e constante dos poderes públicos. Principalmente, para compensar a ausência de contribuições financeiras reduzidas das populações rurais sem rendimentos fixos e dos grupos urbanos que sofrem com o desemprego, ou sobrevivem graças à economia informal. Todavia, tais despesas são incompatíveis com a doutrina imposta pelo FMI aos países submetidos às prioridades neoliberais (planos de reajuste estrutural e outros), como é o caso da Costa do Marfim. Esse círculo vicioso é destacado por Lambert Gbossa, diretor da agência da OIT em Kinshasa (República Democrática do Congo). O debate sobre a proteção social na África “deveria sair do estreito quadro original no qual ele sempre esteve inscrito, para permitir que se trate, de forma mais geral, dos problemas novos: o avanço da pobreza, a extensão do setor informal, a relação entre a proteção social e o emprego, e a capacidade de organização das populações [13]”.

(Trad.: Leonardo Teixeira da Rocha), leorocha2003@yahoo.com.br

[1] Ler Colette Braeckman, “Grande fatigue des Ivoiriens”, Manière de voir 79 « Résistences africaines », fevereiro-março de 2005.

[2] Organização Internacional do Trabalho, La Protection sociale, vers un nouveau consensus, Genebra, 2001.

[3] Charles Raymond Dotou, « La Carence sanitaire des Etats africains », Géopolitique africaine, nº21, Paris, janeiro 2006.

[4] La protection sociale, vers un nouveau consensus, op. cit., p.45.

[5] Ministério dos Negócios Estrangeiros, Le Risque maladie dans les assurances sociales, bilan et perspectives, estudo realizado por Sylvie Boyer, Caroline Delesvaux, Jean-Pierre Foirry e Christian Prieur, Paris, setembro de 2000, p.83.

[6] Para uma análise da experiência de gratuidade dos cuidados na África do Sul a partir de 1994, ler Ministério dos Negócios Estrangeiros, Le Risque maladie dans les assurances sociales, bilan et perspectives, op. cit., p.70 e seguintes.

[7] Le Risque maladie dans les assurances sociales, bilan et perspectives, op. cit., p.81.

[8] Ler Olayiwola Erinosho, « African welfare systems in perspective », Revue internationale des sciences sociales, Paris, junho de 1994.

[9] « African welfare systems in perspective », op. cit.

[10] Ler Valérie Ridde, L’iniciative de Bamako, 15 anos après, Banque mondial, Health, nutrition and population (HNP) discussion paper, Washington, outubro de 2004.

[11] La protection sociale, vers un nouveau consensus, op. cit.

[12] Ler Maria-Pia Waelkens e Bart Criel, Les mutuelles de santé en Afrique subsaharienne, Banque mondiale, Health, nutition and population (HNP) discussion paper, Washington, março de 2004.

[13] La protection sociale, vers un nouveau consensus, op. cit., p.5.

Le Monde Diplomatique Brasil

A nova fronteira liberal

Propor a substituição das políticas públicas por caridade plutocrática, e sugerir a dissolução definitiva do Estado Social, pode ser a quimera radical dos neoliberais

Frédéric Lordon

A mensagem essencial do anúncio é: o Estado está renunciando a suas responsabilidades, ou tornou-se financeiramente incapaz. As empresas são cidadãs, têm no lucro seu meio de agir

Um anúncio recente, entre vários outros, dizia: a restauração da primeira parte da Galeria dos Espelhos, em Versalhes, foi concluída. Devemos o feito à generosidade da empresa Vinci, da área de construção civil. Com tocante ingenuidade, o diretor de comunicação da empresa explicou ao canal de televisão France 2 [1] que a Vinci não só está muito orgulhosa de ter "oferecido" à nação a manutenção de seu patrimônio, como também de ter mobilizado "todo o conhecimento" de suas próprias equipes através das filiais do grupo especializadas em restauração. Entende-se por isso que a Vinci, a título de mecenato desinteressado, financiou uma operação da própria Vinci; graças a ela, a obra cultural generosa foi decididamente uma boa operação - monetária e simbólica.

Na verdade, a mensagem essencial é outra. Nada foi dito mas todo mundo compreende: o Estado está renunciando a suas responsabilidades, ou tornou-se financeiramente incapaz. As empresas são cidadãs, têm no lucro seu meio de agir; os capitalistas não são movidos apenas por dividendos, mas também pela cultura.

Há muitas maneiras de se enxergar esta tendência generosa do capital - que não é tão recente assim, mas está crescendo em amplitude. Podemos perceber nela as competições de filantropia ostentatórias ou as manobras de legitimação de fortunas feitas em condições mais ou menos lícitas. Estas operações, ainda que eventuais na França, desenham um horizonte bem mais geral, uma nova fronteira liberal cuja coerência se anuncia ainda mais radical do que tudo o que o liberalismo pode mostrar até agora. Como sempre, basta voltarmo-nos para o outro lado do Atlântico para vermos uma configuração mais expressiva, tão recente que, mesmo lá, o modelo ainda está no estado prático e será preciso ainda passar ao "estado doutrinal" para ganhar o impulso necessário para sua completa realização. É possível que haja uma vantagem em anteciparmo-nos aos doutrinários liberais. Diremos antes deles o que eles próprios não tardarão em formular menos para lhes prestar assistência, mais para diluir por antecipação o efeito de sua "surpresa" intelectual.

A intenção deste esforço doutrinário é fazer pensar a ordem pública da ação coletiva segundo o mesmo modelo da ordem econômica do mercado - ou seja, como ordem descentralizada

Dos múltiplos pontinhos, surge a imagem

As disciplinas da universidade levam o nome dos industriais que as financiam. O banco patrocina as exposições. As fortunas privadas apoiam a pesquisa médica... É preciso compreender a coerência do desenho que surge a partir do conjunto de pontinhos que são estas múltiplas iniciativas isoladas. Todos os espaços da ação pública são potencialmente candidatos à invasão da caridade privada. Mas se é assim, qual razão de ser resta ao Estado? Formular a questão, diante deste cenário de caridade generalizada, é o mesmo que respondê-la. É o que dirão os liberais: o Estado não é apenas importuno e ineficaz: é inútil.

É aqui que começará o esforço doutrinário. Sua intenção é fazer pensar a ordem pública da ação coletiva segundo o mesmo modelo da ordem econômica do mercado - ou seja, como ordem descentralizada. A derrota histórico do socialismo difundiu a idéia de que uma economia não pode ser organizada a partir de um centro único. A força do mercado, repete há muito tempo o dogma neoclássico, consiste em não requerer nenhuma instância de coordenação central e em deixar os agentes responsáveis por suas próprias ações, sem por isso ter como resultado o caos. O mecanismo impessoal dos preços se encarrega de ajustar a miríade de ofertas e demandas individuais. A ignorância dos liberais em relação a todas as construções sociais que coordenam de fato os agentes econômicos - o direito, a moeda, as regras, as convenções... o Estado - e sem as quais o capitalismo não saberia funcionar, não os impede em nenhum momento de acreditar no mercado como a um relógio auto-regulado, pura coleção de indivíduos propensos à harmonia mercantil espontânea, contanto que ninguém se intrometa "do alto" em seus pequenos negócios.

Mas se a ordem descentralizada foi testada no domínio econômico sob a figura do "mercado", já dizem alguns liberais, porque não acabar com o Estado, "centro" necessariamente inoportuno numa filosofia social que só quer reconhecer os indivíduos isolados e suas livres interações? Porque a vida coletiva, as transferências financeiras deveriam passar por um executivo central, um imposto autoritário e espoliador? O Gosplan fracassou como operador econômico; o Estado estaria a caminho de fracassar como operador político, o que a sua "falência" econômica já atestaria.

Mas uma vez que o Estado tiver desaparecido e a ordem política for igual ao mercado, que motivo levará os agentes privados a se engajar no finaciamento das necessidades coletivas? A resposta norte-americana já está pronta: é a moral. A unidade totalitária do circuito financeiro do Estado fiscal será substituida pela proliferação de transferências caridosas privadas, cada uma bem melhor situada que o poder público para saber a quem e em favor de que causa ela deve mobilizar recursos - do mesmo modo que estaria melhor colocada para saber o que oferecer e demandar ao mercado. O gesto caridoso se encarregará daquilo que a coerção dos impostos obrigava a fazer de má vontade.

Mas, nesta nova configuração, quem pode assegurar que a variedade das necessidades coletivas estará satisfeita? A doutrina liberal responde que as escolhas de doação são freqüentemente o reflexo de uma sensibilidade particular do doador, contraída por ocasião de uma experiência pessoal: aqueles que sofreram acidentes rodoviários ajudariam na prevenção de acidentes; aquele que sofre de uma doença, dará recursos à pesquisa médica especializada, etc. Será então, prosseguirá a doutrina, a diversidade das experiências que garantirá a repartição harmoniosa do esforço caritativo global. A "diversidade de experiências" de quem, exatamente? Os doadores potenciais significativos - os mais afortunados. "Diversidade" bastante restrita, a bem dizer, esta de um setor social isolada que saberá sem dúvida se entusiasmar pela alta cultura ou deplorar os estragos de aparência anti-pessoais, mas que, tendo passado pelas grandes universidades, lembrará talvez com mais dificuldade de financiar as escolas de bairro, isso para não falar da assistência aos desempregados - responsáveis pelo seu destino.

Depois de aliança de séculos, o pensamento individualista do mercado desbancaria a filosofia política das Luzes. Ela tornou-se obstáculo, por se apegar à idéia da autodeterminação coletiva. O mercado só quer indivíduos

Fim de um longo casamento

É preciso estar atento: repassar assim aos agentes privados a responsabilidade das operações de ação coletiva é muito mais radical do que uma simples estratégia de privatizações e de concessões de serviços públicos. É a extinção pura e simples da idéia da ação pública, e talvez até da categoria do político, inteiramente dissolvido na moral da transferência caridosa. Deste ponto de vista, há qualquer coisa como uma fratura na unidade do projeto moderno entendido como visão simultânea da autonomia individual e da autonomia coletiva. Se a dinâmica histórica da modernidade trouxe um ideal de emancipação dos indivíduos em relação a seus laços com a tradição e implicações habituais, ela também formulou um projeto de domínio, pelos homens, de seu destino coletivo, o qual supõe um ponto central da deliberação política.

Ora, a idéia de uma ordem política descentralizada é a própria negação disto. A coletividade passa a existir apenas sob a forma inferior de agregação. O destino "coletivo" não é nem desejado nem discutido por ninguém. Ninguém previu o resultado do conjunto, ninguém pressionou por ele. É exatamente desta falta de intencionalidade que se felicitam os apóstolos do mercado puro e perfeito, sem perceber que sua extensão à ordem política destruiria ipso facto a idéia moderna de governo, não dos homens, mas do corpo político em si. Depois de uma aliança eficaz de muitos séculos, o pensamento econômico individualista do mercado desbancaria a filosofia política das Luzes, com a qual desfrutou de um longo tempo de companheirismo, mas que terminou por se tornar um obstáculo pela necessidade de se apegar à idéia da autodeterminação coletiva - e o mercado só quer indivíduos.

Tudo se sustenta: o desaparecimento da política como prática coletiva, que supõe a construção de um grau mínimo de centralização, abandona o terreno à moral individual, única forma de regulação social tolerada pelo liberalismo. Nenhuma lei, ética para todos! Podemos sem dúvida medir os progressos do liberalismo pelo progresso do moralismo generalizado, substituindo em proporções cada vez maiores a ação do Estado social julgado como totalitário, mesmo se por um paradoxo típico do liberalismo apenas o Estado policial-carcerário escapa desse deslize do terreno. Não há por que se inquietar; o núcleo duro do Estado, uma vez eliminado todo o resto, será este: se há uma coisa que os mais ricos aceitarão continuar financiando, esta coisa é a manutanção da ordem. Para o resto, a moral fará o trabalho. Fazer da política pública um moralismo plutocrático e pronunciar assim a dissolução definitiva do Estado social, será, talvez, a nova - e última - fronteira liberal.

(Trad. : Patrícia Andrade)

[1] Jornal das 13hs, de 19 de dezembro de 2005.

Le Monde Diplomatique Brasil

À BEIRA DO COLAPSO?

A Nova (Des)Ordem Financeira

Fortalecidos por 25 anos de desregulação dos mercados, fundos globais gigantescos tornaram-se capazes de dobrar os Estados, o FMI e os grandes bancos. Por que eles se envolvem em operações cada vez mais arriscadas, a ponto de até defensores do capitalismo temerem seu poder

Gabriel Kolko

Jamais o sistema financeiro mundial foi tão opaco. O montante diário das transações de câmbio, há algumas décadas aproximadamente igual ao capital de um grande banco dos Estados Unidos, equivale hoje ao capital acumulado dos cem primeiros bancos norte-americanos.

Os aventureiros das finanças inventam, constantemente, novos "produtos" que desafiam, ao mesmo tempo, os Estados-Nações e os bancos internacionais. Em maio de 2006, o diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo de Rato, lamentou esses novos riscos, fortemente agravados pela fraqueza do dólar e pelo déficit comercial dos Estados Unidos. Seus temores refletem a desorganização, tanto estrutural quanto intelectual, que abala atualmente o FMI.

Do ponto de vista estrutural, o volume dos créditos do Fundo e de seus empréstimos baixou espetacularmente, caindo de mais de 70 bilhões, em 2003, a US$ 20 bilhões, no final de julho de 2006. Isso reduziu de forma sensível a influência do FMI sobre a política econômica dos países em desenvolvimento e fez a renda da instituição cair abaixo do limite requisitado por seus custos de funcionamento elevados. O FMI reconhece estar "quantitativamente marginalizado" [1]. Suas dificuldades devem-se, muito amplamente à duplicação, desde 2003, dos preços mundiais das matérias-primas (petróleo, cobre, prata, zinco, níquel, etc.), das quais os países em desenvolvimento são tradicionais exportadores, o que lhes permitiu quitar dívidas por antecipação, reduzindo dessa forma o papel do Fundo.

Essas altas vão continuar, porque o rápido crescimento econômico da China, da India e de outros países acarreta um aumento brutal da demanda — o que não existia, quando a balança comercial externa era sistematicamente favorável aos países ricos. Além disso, a posição relativa dos Estados Unidos em termos de ativos líquidos no exterior deteriorou-se a favor do Japão, dos países emergentes da Ásia e dos países exportadores de petróleo, que afirmam seu poder e tornam-se, cada dia mais, credores de Washington. O aprofundamento dos déficits norte-americanos empurra o dólar para baixo: queda de 28% em relação ao euro, somente no período de 2001-2005.

Intelectualmente, o FMI e o Banco Mundial encontram-se igualmente na defensiva, após a série de crises financeiras na Ásia, na Rússia e na América Latina, entre 1997 e 2000. Inúmeros de seus dirigentes mais famosos afirmam não mais acreditar nas premissas do pensamento econômico clássico do laissez-faire, que até este momento inspiraram suas políticas. Vários deles admitem, no entanto, que seu "conhecimento do crescimento econômico é extremamente limitado" e que é necessário dar provas de "mais humildade". Com o propósito de advertência, Stephen Roach, economista chefe do banco Morgan Stanley, afirmou que o mundo "não fez grande coisa para se preparar para aquilo que bem poderia ser a próxima crise" [2].

A nova natureza da sistema financeiro

A própria natureza do sistema financeiro mundial não tem estritamente mais nada a ver com as políticas econômicas nacionais "virtuosas" recomendadas pelo FMI. Os gestores das carteiras de fundos de investimento e os grandes bancos marginalizaram os bancos nacionais e os organismos internacionais. Os arrojados operadores da Bolsa (traders) levaram a melhor sobre os banqueiros tradicionais mais prudentes, pois a compra e a venda de ações, de obrigações e outros produtos "derivativos" [3] permitem obter os lucros mais importantes e a regra, agora, é assumir riscos mais elevados.

Esses operadores são remunerados com base dos lucros obtidos – quer sejam fictícios ou reais. Habitualmente, colocam em jogo os fundos depositados em sua instituição. Baixas taxas de juros e bancos interessados em emprestar dinheiro apenas a "hedge funds" (fundos especulativos de altos riscos) e a firmas especializadas em operações de fusão-aquisição deram aos fundos toda a margem de manobra necessária para jogar no cassino das finanças — tanto nos Estados Unidos como no Japão e em outros pontos do mundo. Eles conceberam uma série de fusões mais que duvidosas, que antigamente teriam sido julgadas temerárias. Em certos casos, as recapitalizações financiadas por empréstimos (leveraged recapitalisations) [4] lhes permitem obter enormes honorários e dividendos que aumentam na mesma proporção o endividamento da empresa. Quanto ao que acontecerá a seguir — bem, isso não será mais problema deles...

Desde o início de 2006, os bancos de investimentos multiplicaram seus empréstimos destinados a compras de empresas, afastando os bancos comerciais que até então dominavam esta atividade. Para conquistar fatias importantes do mercado, os bancos de investimento "vivem perigosamente", segundo os termos do responsável pela representação dos empréstimos bancários da Standard & Poor. Eles se lançam em operações cada vez mais arriscadas. Esse é o motivo pelo qual "os observadores prevêem uma sensível alta do número de empresas fortemente endividadas que se encontrarão impossibilitadas de efetuar os pagamentos", como o assinalava o Financial Times em julho último [5].

Quando o próprio FMI sente-se alarmado

Mas como as cláusulas jurídicas destinadas a proteger os investidores foram reduzidas, os credores têm menos possibilidades de obrigar as empresas mal gerenciadas a se declarar em impossibilidade de pagar suas dívidas. Conscientes de que suas apostas são a cada dia mais arriscadas, os hedge funds arranjam-se para que seja muito mais difícil retirar o dinheiro com o qual eles especulam. Os operadores reposicionaram-se como intermediários entre os devedores tradicionais – nacionais e privados – e os mercados. Isso contribui para desregulamentar um pouco mais ainda a estrutura financeira mundial e aumentar sua vulnerabilidade às crises. Eles buscam retornos para os investimentos elevados e assumem, em nome disso, riscos cada vez maiores.

A situação é tão inquietante que, no início de 2006, o FMI fez uma publicidade não habitual a uma obra publicada por Garry J. Schinasi: Safeguarding Financial Stability [6]. Este livro, alarmista, revela as angústias do Fundo com abundância de detalhes perturbadores. Em essência, a "desregulamentação e a liberalização" que o Fundo e os partidários do "Consenso de Washington" [7] preconizam há décadas tornaram-se um pesadelo. Certamente, assegura o autor, esta política produziu "benefícios sociais e privados fenomenais" [8], mas ela encobre também "um potencial (…) de fragilidade, de instabilidade, de risco sistêmico e de conseqüências econômicas desfavoráveis."

Soberbamente documentada, a obra de Schinasi conclui que o desenvolvimento irracional da economia globalizada, conjugada à desregulamentação, "ampliou o perímetro da inovação em matéria de finanças e aumentou a mobilidade dos riscos". Garry J. Schinasi e o FMI preconizam um quadro radicalmente novo para acompanhar de perto e prevenir os problemas que podem aparecer. Mas, para que a opração seja bem sucedida, será necessário tanto "contar com a sorte" quanto com as políticas adaptadas e com o controle dos mercados… Houve um tempo em que a economia não se entregava à sorte para prever o futuro.

Surgido na mesma época e também recomendado pelo FMI, um estudo ainda mais alarmista, redigido por especialistas do establishment financeiro, analisa a miríade de problemas criados pela liberalização do sistema financeiro mundial. Os autores chegam à conclusão de que "os sistemas financeiros nacionais [são] cada vez mais vulneráveis a um risco sistêmico, também recrudescido, e a um número crescente de crises financeiras" [9]. Os especialistas bancários da antiga escola dividem cada vez mais com o FMI a convicção de que esta precariedade é muito mais forte do que antes.

Bancos e Fundo: menos poder, muito mais riscos

A moratória soberana da Argentina (2004) mostrou que os governos que resistiam às pressões do FMI e dos bancos poderiam tirar proveito das divisões entre os Estados-membros da instituição para ignorar a maior parte das suas exigências, se não todas elas. Aproximadamente 140 bilhões de obrigações do Estado, nas mãos de credores privados e do FMI, estavam então em jogo. Os bancos que haviam multiplicado os empréstimos ao país, nos anos 1990, terminaram por pagar o preço.

Com a alta das cotações das matérias-primas, os países emergentes (China, países do Sudeste da Ásia e da América Latina) conheceram, em 2004 e 2005, taxas de crescimento duas vezes mais elevadas que as dos países ricos. Desde 2003, os emergentes detinham 37% dos investimentos diretos estrangeiros (IDE) nos outros países em desenvolvimento. A China conta muito nesse crescimento, o que significa igualmente que o FMI e os ricos banqueiros de Nova York, Tóquio e Londres têm muito menos influência que antigamente. A postura dos bancos em relação ao futuro tornou-se muito mais prudente, após as crises financeiras do final dos anos 1990, nos países emergentes. No entanto, sua exposição aos riscos representados por ações e obrigações destes mercados nunca foi tão forte, em virtude dos rendimentos que buscavam em certos países (como Filipinas ou Zâmbia) e do excesso de liquidez. Como disse um trader, "recomeça uma história de amor" [10].

A crescente complexidade da economia mundial e as negociações que se eternizam na Organização Mundial do Comércio (OMC) não conseguiram superar os subsídios e medidas protecionistas, que são um obstáculo a um acordo global de livre-comércio e ao fim das ameaças de guerras comerciais. O planeta econômico vive agora sob a ameaça de uma instabilidade bem maior – e de perigos mais importantes para os ricos.

O problema financeiro global que se anuncia torna-se inextricável em razão do rápido agravamento dos déficits comercial e orçamentário dos Estados Unidos. Desde que tomou posse em 2001, o presidente George W. Bush elevou em mais de 3 trilhões de dólares a dívida federal, que beira agora os 9 trilhões de dólares. Enquanto a cédula verde continuar a se desvalorizar, os bancos e as operadoras procurarão proteger seus ativos e as aventuras financeiras de altos riscos parecerão cada vez mais atraentes. Antes de sua moeda enfraquecer, Washington preconizava uma maior desregulamentação financeira...

O mundo fantásticos dos hedge funds

Existem, pelo menos 10 mil hedge funds. Quatro, em cada cinco, estão localizados nas Ilhas Caiman. Apesar disso, 400 dentre eles — que administram, cada um, pelo menos um bilhão de dólares — realizam sozinhos 80% das operações. No estado atual, não existe qualquer meio de regulamentá-los. Esses fundos especulativos detêm mais de 1,5 trilhão de dólares em ativos, e o montante de negócios diários realizados com derivativos globais aproxima-se dos 6 trilhões de dólares – a metade do Produto Nacional Bruto dos Estados Unidos. No clima de euforia dos últimos cinco anos, a maioria ganhou, mas outros perderam. Em um ano (de agosto de 2005 a agosto de 2006), perto de 1.900 hedge funds apareceram, mas 575 outros foram liquidados. A agência de rating Standard & Poor gostaria de avaliar sua solvabilidade, mas ela nem sempre o fez. Os mais importantes deles afirmam utilizar modelos informáticos para efetuar suas transações.

No outono de 1998, a economia mundial esteve perto de uma das mais graves crises do pós-guerra, quando Long-Term Capital Management (LTCM), hedge fund célebre pela utilização de técnicas matemáticas concebidas por dois ganhadores do prêmio Nobel (Myron Scholes e Robert Merton) foi à falência [11]. Os esforços conjugados de Washington e de Wall Street impediram o desastre, mas os fundos especulativos estão tornando-se cada vez maiores, o que dificulta eventuais operaçõ es de salvamento.

Em concorrência selvagem entre si mesmos e com investidores propensos por natureza a assumir grandes riscos, esses fundos são atraídos pelos derivativos de crédito [12] e outros procedimentos imaginados para ganhar dinheiro. O mercado desses produtos, praticamente inexistente em 2001, desenvolveu-se bem lentamente até 2004 (tratava-se, então, de 5 trilhões de dólares). Porém, chegou à altura estratosférica de 17,3 trilhões de dólares no final de 2005. Os instrumentos financeiros multiplicam-se: já despontam no horizonte mercados de contratos a termo de derivativos de crédito, de credit default swaps (trocas de créditos não pagos) [13] e outros..

Ninguém pode dizer exatamente o que são os derivativos de crédito. Nem mesmo Gillian Tett, principal responsável pelos mercados de capitais no Financial Times, apesar de sua extensa pesquisa. O produto nasceu há uma dezena de anos, durante uma reunião de dirigentes do banco J.P. Morgan, em Boca Raton, na Flórida. Entre dois coquetéis, e antes de se jogarem uns aos outros na piscina, eles tiveram a idéia de um novo instrumento financeiro, que deveria proporcionar grandes lucros e ser suficientemente complexo para dificultar imitações (o copyright não é aplicado para as idéias no campo das finanças).

Tett é extremamente crítica em relação aos mecanismos que, segundo ela, ameçam provocar uma reação em cadeia de perdas capaz de engolfar os fundos especulativos que se aventuraram nesse mercado. "Nestes tempos de liquidez fácil", os banqueiros tornaram-se "ultra-criativos [...] em seus esforços para redistribuir o risco após tê-lo cortado em fatias e em cubos", conclui ela no Financial Times. O influente cotidiano financeiro, por sinal, divulgou, nestes últimos meses, uma série de artigos sobre essa "magia financeira", não escondendo seu ceticismo quanto aos meios e fins dessas inovações [14].

As "armas financeiras de destruição em massa"

As baixas taxas de juros conduziram os investidores a jogar nos mercados com dinheiro emprestado, estima Avinash Persaud, um guru das finanças, e "uma redução dolorosa da taxa de endividamento é tão inevitável como à noite sobrevir o dia[...]. A única questão é saber em que momento ela acontecerá". No que diz respeito aos hedge funds, que rapidamente tornaram-se mais complexos para garantir sua segurança, a hora da verdade não tardará e eles serão "forçados a vender seus investimentos mais líquidos." "Eu não apostaria um centavo em uma saída assim tão feliz", nota Gillian Tett, após ter examinado certas tentativas tardias para salvar esses fundos de seus próprios desvarios [15].

Aos olhos do investidor norte-americano Warren Buffet, bem colocado para conhecer todos os subterrâneos das finanças, os derivativos de crédito são "armas financeiras de destruição em massa". Ao mesmo tempo em que representam teoricamente uma segurança contra os riscos de falta de pagamento, eles encorajam apostas ainda mais audaciosas e uma nova expansão de empréstimos. A Enron [16] usou-os amplamente, o que foi um dos segredos de seu sucesso – e de sua bancarrota final, que se traduz por um rombo de 100 bilhões de dólares. Totalmente opacos, os derivativos de crédito não estão sujeitos a qualquer controle real. Vários desses "produtos" inovadores, segundo um diretor financeiro, "só existem no ciberespaço e são somente meios que permitem aos ultra-ricos de escapar do fisco" [17].

Na realidade, nem os altos dirigentes dos bancos e da regulamentação financeira compreendem como funciona a cadeia de exposição aos riscos, e não sabem "quem possui o que". Esses fundos pretendem ser honestos. Contudo, também é verdade que aqueles que os controlam recebem remunerações ligadas aos lucros realizados, e que implicam em assumir riscos. Muitos coletam informações confidenciais – prática tecnicamente ilegal mas, no entanto, corrente.

Existe um consenso sobre o aumento constante dos perigos. Se podemos colocar de lado a persistência dos déficits orçamentários nacionais, devidos a um crescimento das despesas e a reduções de impostos para os mais ricos, não se pode fazer o mesmo para a instabilidade dos mercados financeiros e de matérias-primas. Esta já provocou uma queda nos rendimentos dos fundos especulativos em maio último, a mais importante em um ano. Os hedge funds conseguem ainda consideráveis lucros, mas de maneira cada vez mais perigosa.

Os problemas são estruturais, como testemunha a relação entre o endividamento das empresas e seus lucros sobre fundos próprios — que passou de quatro a seis desde o último ano. Enquanto as taxas de juros estavam baixas, os empréstimos com efeito de alavanca [18] eram apresentados como a solução. Devido aos hedge funds e os outros instrumentos financeiros, existe hoje um mercado para as empresas mal administradas e atoladas em dívidas. No início de setembro de 2006, a Ford Motor Company anunciou que estava perdendo 7 bilhões de dólares por ano: o valor de suas ações saltou 20%. Mesmo as regras que alguns associavam antigamente ao capitalismo, como o lucro, não são mais válidas.

Transações bilionárias "registradas" num pedaço de papel

Os problemas, quase surreais, são também inerentes à rapidez e à complexidade destas operações financeiras. No final de maio, a International Swaps and Derivatives Association revelou que uma entre cinco transações relacionadas aos derivados de crédito (muitas delas envolvendo bilhões de dólares) corria o risco de grandes erros, que aumentaram com o volume das transações. Mais de 90% de todos os contratos fechados nos Estados Unidos eram consignados em papel, freqüentemente em pedaços de papel, e não eram corretamente registrados. Em 2004, Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve (O Banco Central norte-americano), declarou-se "francamente chocado" com esta situação. As primeiras medidas para remediar esta negligência somente foram tomadas em junho de 2006, e estão longe de resolver um fenômeno de tal amplitude, que coloca em jogo valores colossais. Pior ainda: devido à desregulamentação e à multiplicação dos instrumentos financeiros, não é mais possível coletar nem quantificar dados essenciais. A realidade escapa tanto aos banqueiros quanto aos governos. Talvez estejamos vivendo uma "nova era das finanças", mas não há qualquer dúvida de que avançamos com os olhos vendados.

Stephen Roach escreveu, em 24 de abril de 2006, que uma crise financeira maior se aproximava e que as instituições mundiais (FMI, Banco Mundial e outros mecanismos da arquitetura financeira internacional) estavam totalmente desarmadas para enfrentá-la [19]. Por seu lado, o chefe do Executivo de Hong Kong lamentou, no início de junho, os perigos que representavam os hedge funds. Na mesma época o economista-chefe do FMI, o iconoclasta Raghuram Rajan, advertiu contra a própria estrutura de compensação desses fundos, que força a assumir riscos cada vez maiores e a colocar em perigo o conjunto do sistema financeiro. No final de junho, Stephen Roach mostrou-se ainda mais pessimista: "Um certo senso de anarquia" domina as comunidades universitária e política que se mostram "incapazes de explicar como funciona o novo mundo" [20]. Reina o mistério. Recentemente, o próprio FMI estimava que o risco de uma desaceleração séria da economia mundial jamais havia sido tão grande desde 2001, essencialmente em virtude da queda do mercado imobiliário nos Estados Unidos e na maior parte dos países da Europa Ocidental. Roach ainda acrescenta a diminuição das rendas reais dos assalariados e a insuficiência do poder de compra nos Estados-Unidos [21]. Mas mesmo que o atual nível de prosperidade se mantenha no próximo ano, e que se prove que todos esses especialistas tenham se enganado, a transformação do sistema financeiro mundial é um fato que terá, cedo ou tarde, conseqüências desastrosas.

A realidade escapa de qualquer controle. A "extensão e o campo de operação dos mercados financeiros internacionais", a "arquitetura" do sistema "evoluíram como por acaso", e sua regulação, praticamente inexistente, é "ineficaz", segundo especialistas do establishment [22]. As leis econômicas de antigamente deveriam operar, desde que o sistema financeiro mundial abandonasse todas as restrições. Não foi esse o caso.

O BIS teme "um big bang"

A liberalização financeira gerou um monstro, e aqueles que lastimam os controles sobre a realização dos lucros não estão em situação de resolver os múltiplos problemas que apareceram. O relatório anual do Banco de Compensações Internacionais (BIS), publicado no final de junho de 2006, evoca o triunfo dos comportamentos econômicos predadores e suas orientações, às quais é "difícil encontrar uma explicação lógica". Os tubarões das finanças mostraram-se mais espertos que os banqueiros tradicionais. "Tendo em vista a complexidade da situação e os limites de nossos conhecimentos, é extremamente difícil prever como tudo isso vai acabar" [23], explica o BIS, que não deseja que seus temores provoquem pânico e que permanece, portanto, ao lado dos não-alarmistas. Porém ele admite que um big bang poderia abalar os mercados, e considera que existem "vários motivos para se inquietar por um certo nível de desordem".

Não estamos, atualmente, na situação de forte probabilidade de um desabamento, diz o relatório, mas seria prudente "esperar o melhor, preparando-se para o pior". E deixa claro que: tendo em vista que durante uma década as tendências econômicas globais e os "desequilíbrios financeiros" criaram perigos crescentes, "é, portanto, essencial compreendemos como chegamos até aqui, para podermos escolher as políticas capazes de reduzir os riscos atuais" [24]. O BRI está inquieto, muito inquieto.

Mas esse pessimismo incita os abutres das empresas e dos bancos de investimento a imaginar novos instrumentos para tirar proveito da eminente catástrofe econômica – de uma crise que, a seus olhos, é uma questão de tempo e não de princípios. Ainda mais sabendo que os especialistas estão de acordo, ao pensar que o não-pagamento de dívidas vai aumentar substancialmente em um futuro muito próximo. Há, portanto, dinheiro para se ganhar. Repentinamente, os especialistas em dívidas impagáveis e em reestruturações de empresas em falência são cada dia mais solicitados em Wall Street.

O sistema financeiro mundial está atormentado pelas contradições; um consenso crescente existe entre quem o apóia e quem julga que o status quo é, ao mesmo tempo, imoral e causador de crises. A crer nas instituições e personalidades que estiveram nos postos avançados de defesa do capitalismo, o sistema pode estar às vésperas de profundas perturbações.

Tradução: Marci Helaine
marci.helaine@terra.com.br


[1] IMF Survey, Nova Iorque, 29 de maio de 2006, p. 147 ;IMF in Focus, Nova York, setembro 2006, p. 11.

[2] Roberto Zagha e outros, "Rethinking Growth", Finance & Development, Washington D.C., março de 2006, p. 11; Stephen Roach, Global Economic Forum, Morgan Stanley, Nova Iorque, 16 de junho de 2006.

[3] Os "derivativos" servem, em princípio, para prevenir seus possuidores contra riscos provocados por mudanças de preços, de quotações de moedas e também respeito de matérias-primas, ações, títulos de dívida... São uma aposta sobre o futuro que pode render muito. Ler Ibrahim Warde, "o desvio de rumo dos novos produtos financeiros", Le Monde Diplomatique, edição francesa, julho de 1994.

[4] Tais aumentos de capital permitem divulgar balanços com altos lucros, sobre os quais são calculados honorários e dividendos.

[5] The Financial Times, Londres, 17 de julho, 14 de agosto de 2006.

[6] Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability: Theory and Practice, FMI, Nova Iorque, 2006.

[7] A expressão vem do economista John Williamson, em 1989, e resume as "recomendações" feitas aos Estados, entre as quais a baixa de impostos, a liberalização do comércio, as privatizações e a desregulamentação financeira. O FMI condiciona seus empréstimos à adoção dessas medidas. Ler Moisés Naim, "Ordem do FMI, ’Consenso de Washington’", Manière de Voir, n°72, dezembro de 2003/janeiro de 2004.

[8] Esta citação e as seguintes foram extraídas de Garry J. Schinasi, Safeguarding Financial Stability, op.cit. pp. 8, 14 e 17.

[9] Kern Alexander, Rahul Dhumale e John Eatwell, Global Governance of Financial Systems :The International Regulation of Systemic Risk, Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 22 e passim.

[10] The Financial Times, 27 de julho de 2006.

[11] O LTCM assumiu, nos mercados, compromissos de 100 bilhões de dólares, embora gerisse fundos de… US$ 5 bilhões. Para evitar um desabamento do sistema, o banco central norte-americano forçou outros fundos a desembolsar US$ 3,6 bilhões e assumir seus prejuízos.

[12] Como em outros derivativos, os invetidores apostam em riscos previsíveis, mas neste caso, os créditos (obrigações, dívidas) são a base das apostas.

[13] O vendedor compromete-se, contra o depósito de um prêmio, a indenizar o cliente, em caso de falta de pagamento ou simplesmente degradação da qualidade de seus devedores.

[14] Gillian Tett, "The dream machine," The Financial Times magazine, Londres, 24-25 de março de 2006 ;The Financial Times, 10 e 19 de julho de 2006, 14, 24 e 29 de agosto de 2006.

[15] Financial Times, 23, 24-25 de junho de 2006.

[16] Conglomerado do setor energético célebre no mundo das finanças, a Enron afundou quando foram reveladas suas práticas de fraude contábil, delito de iniciados… Ler Tom Franck, "Mil e uma trapaças", Le Monde Diplomatique-Brasil, fevereiro de 2002.

[17] Financial Times, 17 de julho de 2006. Ler também os números de 31 de maio e 8 de junho de 2006.

[18] Esses empréstimos permitem comprar uma empresa com um aporte em capital muito fraco e empréstimos a taxas inferiores à rentabilidade esperada.

[19] Global Economic Forum, Morgan Stanley, 24 de abril de 2006.

[20] Global Economic Forum, Morgan Stanley, 23 de junho e 5 de setembro de 2006.

[21] Financial Times, 6 de setembro de 2006.

[22] K. Alexander, R. Dhumale e J. Eatwell, op. cit., p. 251.

[23] "76th Annual Report", BIS, Bâle, 26 de junho de 2006.

[24] "76th Annual Report", op.cit.

Instituto Humanitas Unisinos - 20/04/07

As eleições francesas e a ‘crise da democracia representativa’, segundo Alain Touraine

“Tanto na França como em outros países, a oposição direita-esquerda, que não desapareceu, absolutamente, encontra-se debilitada pelo que se tem chamado de “creise da democracia representativa”, isto é, pela ausência de uma correspondência direta entre as alternativas políticas e as diferentes opções históricas, políticas e culturais”, afirma Alain Touraine, sociólogo francês, no artigo “A recomposição da vida política francesa”, publicado no jornal El País, 20-04-2007.

Segundo ele, “a campanha presidencial na França tem um único tema: a recomposição da esquerda e suas conseqüências no centro e na direita”.

“Nenhum candidato, constata Alain Touraine, apresentou idéias importantes sobre nenhum dos problemas essenciais da economia, a redistribuição da renda, a educação ou a política internacional. Mas o caráter irreal da tendência dominante na esquerda francesa lhe obriga a dar prioridade, nos anos atuais, à transformação da esquerda organizada antes que aos problemas econômicos, sociais e culturais, por mais importantes ou urgentes que sejam".

Instituto Humanitas Unisinos - 20/04/07

Nietzsche e a crítica da modernidade, o desafio de um sim redentor

Para o filósofo francês Paulo Valadier, sacerdote jesuíta, “não há dúvida nenhuma de que o pensamento de Nietzsche constitui uma referência sumamente importante em nossos dias”. Isso porque “após a perda de credibilidade do marxismo, ele oferece um recurso espantosamente atual para uma crítica impiedosa da modernidade: sobre o individualismo igualitarista nivelador; sobre a multiplicação das insatisfações (ressentimento do homem moderno); sobre uma liberdade sem limites, que, na realidade, é uma concepção servil, e não nobre, por ter perdido o sentido da distância; sobre os Estados, monstros frios e impotentes; sobre a permanência das “vontades de crença” por meio das seitas e dos ersatz de religiões, para não falar dos fundamentalismos que dão a impressão de que se “sabe a que se ater”.

Nietzsche via no esmagamento das diferenças um dos maiores perigos da modernidade. Conforme Valadier, a impossibilidade de reconhecer que se tem inimigos parecia a Nietzsche um sintoma típico da mentalidade de escravo, “incapaz de suportar a alteridade, sempre tentando trazê-la para si”. Sobre a crítica nietzschiana à moral, o pesquisador afirma que ela “vai muito mais no sentido da dureza para consigo mesmo, da disciplina das pulsões, da dominação de si, do que no sentido do abandono às pulsões e à fantasia do arbitrário”. E complementa: “O ‘super-homem’ nietzschiano não é o atleta da perfeita soberania de si, mas aquele que chega a um domínio suficiente para ser criador; assim é o artista na posse de seus meios, ou a criança, referência essencial em Assim falou Zaratustra”.

A respeito da crítica contundente que o filósofo alemão endereçou ao cristianismo, Valadier avalia que, “longe de anunciar a morte da religião, Nietzsche anuncia a possibilidade de dizer um sim redentor, uma vez que a sombra do Deus moral obsessivo se tenha encoberto”. Essas idéias foram desenvolvidas na entrevista concedida por Valadier à edição 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulada Nietzsche, filósofo do martelo e do crepúsculo. O material foi republicado no recém-lançado Cadernos IHU em Formação edição 15, O pensamento de Friedrich Nietzsche, coletânea que reúne entrevistas com diversos estudiosos desse pensador.

Valadier, docente no Centre Sèvres, em Paris, fará duas conferências dentro da programação do Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos? A primeira conferência intitula-se A moral após o individualismo e está marcada para 23-05-2007. A segunda trata sobre O futuro da autonomia do indivíduo, política e niilismo, em 24-05-2007. Professor de filosofia moral e política nas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres), Valadier é doutor em Teologia e em Filosofia e antigo redator da revista Études. É autor de, entre outros, Nietzsche et la critique du christianisme. Paris: Cerf. 1974; Essais sur la modernité, Nietzsche et Marx. Paris: Cerf. 1974; Nietzsche, l’athée de rigueur. Paris: DDB, 1989 e Nietzsche l'intempestif, Beauchesne, coll. "Le grenier à sel", Paris, 2000. Entre seus outros livros citamos La condition chrétienne, être du monde sans en être. Paris: Le Seuil, 2003, L’anarchie des valeurs. Paris: Albin Michel, 1997.

quarta-feira, abril 18, 2007

Hidrografia Brasileira

Links com mapas sobre hidrografia brasileira:

http://www.portalbrasil.eti.br/brasil_hidrografia.htm

http://www.geografiaparatodos.com.br/img/infograficos/brasil_hidrografia.jpg

Instituto Humanitas Unisinos - 18/04/07

ONGs fiscalizarão cultivo de soja e cana em MT

Pela primeira vez, organizações não-governamentais ligadas ao meio ambiente vão fiscalizar a produção de soja e cana-de-açúcar em Mato Grosso em parceira com o governo estadual e produtores rurais. É o que prevê documento assinado ontem em Cuiabá, segundo o qual serão executadas ações que vão efetivar o processo de regularização ambiental de propriedades e atividades do setor agrícola. Além disso, o objetivo é ampliar o diálogo com o setor produtivo para manter a conservação de Áreas de Preservação Permanente (APP), matas ciliares e nascentes de córregos e rios no Estado. A reporttagem é de Nelson Francisco e está publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 18-04-2007.
Entre as ONGs que participam da iniciativa estão Instituto Socioambiental (ISA), The Nature Conservancy (TNC), Instituto Centro Vida (ICV) e o Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon). 'Um desafio grande nosso é olhar no olho e falar a verdade e continuarmos parceiros. Estamos na metade do caminho', disse André Lima, advogado do ISA.
Segundo ele, a gestão ambiental em Mato Grosso melhorou significativamente, porém ainda 'há muito a ser feito'. 'Esse protocolo significa que setores estão se organizando e buscando solução para os problemas. O desafio agora é transformar isso em ações, planos e metas de trabalho a serem cumpridas', avalia Lima.
Uma das principais propostas do documento assinado pelas ONGs é garantir que até o final da safra de 2008 para a soja e de 2007 para a cana-de-açúcar todas as áreas de preservação permanente não estejam sendo cultivadas com a cultura da soja e cana. A partir daí, em eventuais áreas de matas ciliares em rios e mananciais passíveis de reposição será iniciado o processo de reflorestamento.
Outra meta é estabelecer um cronograma factível de regularização de reservas legais até 2010. 'É uma iniciativa cujo compromisso de todos vai mudar a gestão ambiental em Mato Grosso', disse o diretor da TNC para programas de Conservação das Savanas Centrais da América do Sul, João Campari. Atualmente, Mato Grosso cultiva 15 milhões de toneladas de soja, numa área de 5,8 milhões de hectares.
A cana-de-açúcar ocupa uma área de 200 mil hectares para produzir 12 milhões de toneladas do produto. Apesar dos números altos do agronegócio, o Estado ocupa apenas 36% do seu território no conjunto de todas as atividades econômicas.
'A situação que nós encontramos neste momento nos obriga a encontrarmos soluções conjuntas. Os mercados são globais, e os problemas também. Mato Grosso avançou muito na questão ambiental', disse o coordenador do ICV, Sérgio Guimarães.
Para o presidente da Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja) e vice-presidente da Federação Mato-Grossense da Agricultura e Pecuária (Famato), Rui Prado, o acordo é um marco e demonstra a vontade política em buscar o ajuste e a sintonia entre desenvolvimento econômico e responsabilidade social e ambiental.
'Os produtores de cana vão perder economicamente, porém é um compromisso social da entidade realizar este plano', disse o presidente do Sindicato das Indústrias de Álcool e Açúcar (Sindalcool), Piero Vicenzo Parini.
IMAGEM
Campeão em desmatamento nos últimos cinco anos e governado pelo maior produtor individual de soja do mundo, Blairo Maggi, o Estado de Mato Grosso, avaliam ambientalistas, quer mudar a imagem de líder no ranking de desflorestamento para a produção de grãos e fibras.
'Foi 'vendida' uma imagem do Estado que não condiz com a realidade. Agora, todo mundo está disposto a encontrar uma solução', disse o governador Blairo Maggi (Partido da República). E completou: 'O lucro final que queremos é um Estado que seja grande produtor, economicamente forte, socialmente justo e ambientalmente correto'.
A LEGISLAÇÃO
Enquanto a legislação federal exige preservação de 30 metros às margens dos rios, no Estado a exigência mínima é de 50 metros, podendo chegar a 500 metros nos grandes rios. Nas nascentes, a área de proteção é de 100 metros. O protocolo assinado ontem prevê ainda apresentação de plano de adequação ambiental das propriedades rurais, considerando os aspectos territoriais, bioma, bacias hidrográficas e municípios. Foram estabelecidas dez metas.
NÚMEROS
15 milhõesde toneladas de soja são cultivadas em Mato Grosso
5,8 milhõesde hectares são usados para o plantio da soja
200 mil hectaresé a área ocupada pela plantação de 12 milhões de toneladas de cana-de-açúcar no Estado

Instituto Humanitas Unisinos - 18/04/07

Adolescentes gays. Um terço dos jovens suicidas é homossexual, segundo a OMS
São histórias de silêncio. Filhos que não o dizem e pais que não querem saber, companheiros de escola hostis e professores distraídos. São histórias de amor jamais confessadas, impulsos negados, identidades confusas, rapazinhos em busca de uma identidade que a sociedade, no entanto, recusa. Como Matteo, estudante modelo, que os amigos ridicularizavam dizendo-lhe “és gay”. E ele, faz nove dias, se matou. A reportagem é do jornal La Repubblica, 11-04-2007.
Em 2005 a Organização Mundial da Saúde difundiu dados assustadores: entre todos os suicídios de adolescentes (na Itália, no ano passado, foram 375), pelo menos um terço é “caracterizado pela descoberta da própria diversidade”. Verdadeira, presumida ou simplesmente atribuída. Conta Giorgio, que hoje tem 19 anos e vive sua homossexualidade sem sombras: “Eu era uma criança quieta, estudiosa, detestava jogar futebol e fazer lutas. Resultado: os meus colegas me chamavam de Giorgia, diziam que eu era uma feminina, e a professora aconselhou minha mãe a induzir-me a fazer esportes masculinos para me ajudar a curar...”.
Histórias de hoje e de pouco tempo atrás. Denuncia Franco Grillini, presidente honorário da Arcigay: “Assistimos a uma das mais violentas campanhas dos últimos 50 anos contra a homossexualidae. Como pode sentir- se, neste clima, um adolescente, quando descobre experimentar atração tanto por uma pessoa masculina como por uma feminina, e o “bando” dos seus pares começa a chama-lo de gay e a marginaliza-lo?”
Experimenta uma dor tremenda. Como aquela de Matteo. De um estudo da Agedo, a Associação dos Genitores de Homossexuais, que elaborou os dados de diversas pesquisas, emerge que num padrão de rapazes e meninas gay dos 14 aos 25 anos, apenas 20% aceitam a própria condição de homossexual, contra 60% que a refutam, 22% que pensam em atos de suicídio, e destes 5% cconcretizam efetivamente algumas tentativas de tirar-se a vida.
Chiara Saraceno, socióloga, explica que aos 14, 15, 16 anos, “os rapazinhos se perguntam seguidamente se são normais, se são como os outros, e descobrir que são diversos pode ser deflagrador, não como fato em si, mas porque “normal” é considerada somente a heterossexualidade”. E acrescenta: “Parece-me que hoje haja mais machismo do que antes e Mateus, o jovem que se matou, era carimbado como “gay” somente porque era mais sensível, talvez introvertido.
A adolescência é um período de confrontos cruéis entre coetâneos, é normal, se, no entanto, a identidade sexual é estigmatizada como certa ou errada pela sociedade, eis que descobrir-se diferente do grupo, pode resultar insuportável. Tanto que os adolescentes procuram primeiro negar consigo mesmos a própria descoberta, e depois negam-na com todos os outros: amigos, genitores, professores. Viver depois esta sexualidade é empresa árdua e para os moços é depois ainda mais difícil do que para as moças. Enquanto entre duas moças as manifestações de afeto, a intimidade, as amizades exclusivas são comportamentos aceitos, entre os moços são banidas, ou carimbadas como atos de mulheres”.
É um mundo submerso aquele dos teen-ager gays. Difícil e hostil. Confessa Marzia, 17 anos, através de um e-mail com nome fictício: “Há seis meses tenho uma história com uma senhora de mais idade que eu. Ninguém o sabe, escondo-o de todos. Sou feliz, mas me envergonho. Meus colegas de classe dizem que sou graciosa mas antipática porque não aceito os seus convites, minha mãe se admira porque ainda não tive um noivo. Meu pai sustenta que os gays são criminosos, meu irmão que são repulsivos...”
Uma condição de silêncio que a Associação Genitores de Homossexuais conhece bem. Porque explica Alessandro Galvani, ex-rapazinho gay “massacrado” como diz ele mesmo e hoje secretário da associação, “se a escola e os coetâneos são hostis aos teen-ager gays, a família pode ser um muro intransponível, onde os filhos fingem e os pais o condenam ou desesperam, e são quase sempre de todo despreparados para acolher a notícia”. A história de Patrizia M, que habita numa cidadezinha da Emilia e é mãe de um jovem gay, é todavia um pouco diversa. “Meu filho – conta Patrizia – foi discriminado desde pequeníssimo. Na escola elementar chamavam-no de menininha, na média o discriminavam e o insultavam chamando-o de “bicha”. Ele tinha tal pavor dos buliçosos que por anos não foi ao banheiro da escola... Sofria por certo, mas os seus sofrimentos eram também os meus e me recordo de sua tristeza, de sua raiva. Meu marido e eu na verdade havíamos descoberto há tempo quais fossem suas inclinações e, precisamente para pôr fim a equívocos e para ajudá-lo, enfrentei eu o discurso e o impeli a abrir-se... Não foi fácil aceitar. Não. É como se todos os sonhos que fizera sobre o seu futuro “normal” tivessem sido cancelados, jogados fora. Mas, o amor foi mais forte. Por ele comecei a ler, a procurar entender, fui à Agedo, encontrei outros pais de rapazes homossexuais. Foi uma experiência fundamental, porque hoje meu filho vive à luz do sol o seu ser gay e nós estamos serenos. E quando nos apresentar um companheiro, o acolheremos na família”.

Instituto Humanitas Unisinos - 18/04/07

Relatório sobre o futuro “provável”: tecnologia no poder, cidade nas mãos das gangues, guerras de religião
O cenário é terrível: diretamente no cérebro das pessoas poderão ser implantados micro-chips; novas armas, principalmente químicas, poderão ser usadas simplesmente apertando um botão e não se saberá nem sequer por quem; a classe média tomará o lugar do proletariado marxista e quererá fazer a revolução; a população do Oriente Médio aumentará em 132 por cento, enquanto a queda da fertilidade dizimará a Europa; “grupos de ação”, movidos por gangues criminosas ou por grupos terroristas, estarão prontos para intervir a qualquer momento em todos os cenários; o Islã continuará sua guerra aos “infiéis” e o novo berço será a China. No giro de trinta anos o mundo que conhecemos até agora é destinado a desaparecer e tudo mudará. Nada de fato para melhor. Esta, pelo menos, é a previsão dos analistas do Ministério da Defesa britânico, que analisaram o futuro em favor das forças armadas. Somente para saber para que coisa deveremos preparar-nos. A reportagem é do jornal La Repubblica, 11-04-2007,
É o jornal The Guardian que publica o relatório e anuncia que nos espera um futuro realmente cinzento , diverso do mundo mais próspero e igual que todos desejariam. O almirante Chris Parry, chefe do MoD’s Development, Concept & Doctrine Center, descreve essas mudanças como “baseadas sobre o cálculo das probabilidades”. Em 90 páginas, o relatório explora muitos aspectos do mundo que virá, dividindo-o em dez capítulos, a partir daqueles que já são campo de amplo debate, como a mudança climática e o crescimento econômico de potências como a Índia e a China, a outros menos explorados como a militarização do espaço e o declínio da informação destinada a terminar nas mãos de ”cidadãos-jornalistas” que têm acesso à Internet e que, no entanto, contarão histórias e não mais fatos. O irrefreável progresso da tecnologia não estará a serviço de um mundo melhor, se vale a hipótese que em 2035 um impulso eletromagnético poderá estar em condições de destruir os sistemas informativos de uma área selecionada e novas armas químicas possam atingir órgãos vitais das pessoas sem contaminar os edifícios onde estes se encontram. Os micro-chips implantados diretamente no cérebro tornarão possível a Estados, terroristas ou grupos criminais, terem informações em tempo real e moverem ataques escapando aos controles.
No terreno social, a distância sempre crescente entre os poucos super-ricos e o resto da população, destinada a se tornar sempre mais pobre e a viver em periferias urbanas sempre mais desesperadoras, levará a classe média que tem acesso ao conhecimento e à tecnologia, a lutar para afirmar os próprios interesses e a combater as desigualdades numa espécie de reedição da luta de classe marxista, com a burguesia no lugar do proletariado. As cidades serão, por conseguinte, o teatro de ásperos conflitos: entre classes e entre etnias. A marcha que conduz os pobres do mundo a alcançar os países mais ricos significará que daqui a trinta anos 60 por cento da população mundial, ou seja, oito bilhões e meio de pessoas de diversos países, viverão nas favelas às margens das áreas urbanas. O ressentimento dos jovens dos países muçulmanos os impelirá a um ódio mais forte contra o Ocidente e a um radicalismo ainda mais marcado, enquanto o relatório vê com bons olhos o futuro do Irã: o acesso à globalização transformará o país em “uma vibrante democracia”.
Nesta quinta-feira, no IHU Idéias, o tema é A filosofia e a nanotecnologia, com o professor Ricardo Timm de Souza, professor de Filosofia e Ciências Criminais na PUC- RS. A IHU On-Line desta semana publica uma entrevista com ele que pode ser acessada na página do IHU

Instituto Humanitas Unisinos - 18/04/07

Robô, a grande invasão. Das fábricas às casas. “São sempre mais semelhantes ao homem”. As questões éticas em discussão

Em casa, no escritório, no automóvel. Os robôs estão agora por toda parte. Mais de um milhão aqueles da “velha” geração, que trabalham nas indústrias do planeta: 350 mil somente no Japão, 326.000 na Europa. Na Itália, para cada 10.000 pessoas ocupadas na indústria, mais de 100 são robôs, um número que faz do nosso país um dos primeiros do mundo neste setor. E seus preços continuam a baixar: um robô comprado em 2007 pode custar um quarto com respeito ao mesmo robô vendido em 1990. Sobre os robôs se discutiu num encontro organizado em Roma, de 11 a 14 de abril – Icra 2007 – do qual participaram centenas de cientistas provenientes de todas as partes do mundo. A reportagem é do jornal La Repubblica, 11-04-2007.
São mais de 1 milhão os robôs da “velha” geração, aqueles que trabalham nas indústrias do planeta: 350 mil somente no Japão, 326.000 na Europa. Na Itália, para cada 10.000 pessoas ocupadas na indústria, mais de 100 são robôs, um número que faz do nosso país um dos primeiros do mundo neste setor. São empregados sobretudo no processamento mecânico, na soldagem e no processamento do plástico. E os seus preços continuam a baixar: um robô comprado em 2007 pode custar um quarto com respeito ao mesmo robô vendido em 1990. E seu custo anual, se em 1990 valia 100, hoje não supera 25. Também entre as paredes de casa a sua presença cresce, a uma taxa de 7-8 por cento ao ano, e “se prevê que dos 66 bilhões de dólares que representará o faturamento da robótica em 1025, 35% caberão aos robôs pessoais ou de serviço”, observa Bruno Siciliano, presidente da Sociedade Internacional de Robótica e Automação.
Os robôs, portanto, estão hoje por toda parte. Nas nossas casas, nos nossos escritórios, nos nossos automóveis. São os assistentes dos anciãos: na Coréia do Sul foi fabricado aquele que controla os eletrodomésticos e avisa o ancião quando é hora do remédio. Fazem de enfermeiros para os doentes (nos Estados Unidos protótipos medem até a temperatura) ou se transformam em cachorrinhos que balançam a cauda (é o caso, entre os outros, de “Aibo”) e em breve assumi-los-ão como baby-sitter, se é verdade que algumas empresas estão estudando o modo de “ensinar” o autômato como se faz para embalar um neonato. De tudo isto, de 11 a 14 de abril, discutiram centenas de cientistas vindos a Roma com os seus autômatos de todas as partes do mundo. A ocasião foi o Icra 2007, conferência internacional que se desenvolveu junto à Universidade Angélica. O encontro girou em torno do título “Ubiquitous Robótica”, e o objetivo é explorar “a capilar presença dos autômatos na nossa sociedade e a grande possibilidade de aplicações nos mais diversos campos”. Como? Um tempo atrás se dizia que os robôs jamais poderiam imitar o homem até o fundo.
Hoje, ao invés, nos encontramos com robôs capazes de trabalhar com a mesma habilidade de um artesão. Acontece na Itália: “Estão trabalhando na zona compreendida entre Vietri e Cava dei Tirreni, onde imitam os mestres ceramistas”, conta Siciliano. “Isto é possível porque um sistema ótico registrou as pinceladas dos artesãos, que são naturalmente uma diversa da outra, e foi produzido sobre esta base um programa que capacita os robôs a realizarem azulejos um diverso do outro”.
Mas, a expansão da robótica também conduz a problemas de ética, e, não por acaso também se falará de “Roboética” na convenção do Icra. Explica Antonio Monopoli, colaborador da Universidade de Bari: “É verossímil que, com o tempo, se gerarão robôs com capacidades de auto-aprendizagem sempre maiores. Teremos, em suma, robôs capazes de “decidir”, condição compartilhada com o ser humano”. Um problema que poderia surgir é a eventual inadequação da resposta do robô diante de um evento. Em caso de danos, de quem seria a responsabilidade? Responde Monopoli: “Se o robô é considerado pelo critério de uma máquina, a responsabilidade recai sobre o seu proprietário. Mas, se o robô tem uma grande capacidade de auto-aprendizagem e interação com o mundo externo, e, de um ponto de vista social é agora compartilhada a idéia de uma condição de autonomia operativa dos robôs, poder-se-ia invocar a perfeita boa fé de quem projetou e comercializou o robô”.
Para aprofundar a discussão desta reportagem consulte a revista IHU On-Line, no. 200, 16-10-2006, que tem como título de capa O Pós-humano. A edição pode ser consultada nesta página.

Instituto Humanitas Unisinos - 18/04/07

Por que eles matam
"A chacina de segunda-feira pode ter sido a pior, mas foi apenas um dos cerca de 20 massacres a tiros que ocorrem a cada ano nos EUA (um subgrupo das duas dúzias de assassinatos em massa). Um assassinato em massa é definido quando quatro ou mais pessoas são mortas no mesmo episódio. Os assassinatos em série, por sua vez, ocorrem num longo período de tempo", escreve James Alan Fox, professor de Justiça Criminal na Northeastern University em artigo para o Los Angeles Times e traduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, 18-04-2007.
E ele pergunta:
"Qual a causa do aumento?"
Segundo ele, "ocorreram várias mudanças que tornaram esses incidentes mais comuns. Uma delas é a mudança da potência dos armamentos. Antes de 1966, as melhores armas disponíveis eram pistolas, carabinas e talvez uma espingarda. Hoje, é bem fácil o acesso a armas semi-automáticas".
E continua:
"Mas também ocorreram mudanças sociais que aumentaram a incidência do assassinato em massa. Estudando o tema ao longo de 25 anos, meu colega Jack Levin e eu identificamos cinco fatores presentes em praticamente todos os casos.
Primeiro, os perpetradores têm um longo histórico de frustração e fracasso e uma capacidade reduzida de enfrentar as decepções da vida.
Segundo, eles culpam fatores externos, freqüentemente reclamando que os outros não lhes deram uma chance. Às vezes eles argumentam que seu grupo étnico, racial ou de gênero não está recebendo as mesmas oportunidades que outros .
Em terceiro lugar, esses assassinos geralmente carecem de apoio emocional de amigos ou parentes. Vocês já leram a frase 'ele sempre pareceu um pouco solitário'? Isso tem algum fundamento real.
O quarto fator é que eles geralmente sofrem um evento desencadeador que consideram catastrófico: a perda do emprego ou o rompimento de uma relação, por exemplo. Em massacres em universidades, muitas vezes o atirador acha que não mereceu uma nota recebida.
Em quinto lugar, eles precisam ter acesso a uma arma poderosa o bastante para atender a sua necessidade de vingança."
E conclui:
"Assim, o que mudou? Em primeiro lugar, a competição cruel cresceu nos últimos anos nos EUA. Admiramos quem vence a qualquer custo. E parecemos ter menos compaixão pelos que fracassam. Isso certamente aumenta a frustração dos perdedores.
E há o eclipse da comunidade tradicional: índices de divórcio mais altos, o declínio das práticas religiosas e o fato de que mais pessoas vivem em áreas urbanas, onde talvez nem conheçam seus vizinhos. Se os assassinos em massa são pessoas isoladas que carecem de apoio, essas tendências só exacerbam a situação".

Instituto Humanitas Unisinos - 18/04/07

Aquecimento global. 'A solução é amenizar as mudanças de clima e os seus impactos a níveis em que a população possa se adaptar'. Entrevista especial com José Marengo
A grande preocupação do momento é com o meio ambiente. O alerta dos cientistas sobre o aquecimento global e suas conseqüências tornou-se hoje onipresente o que há alguns anos mobilizava apenas órgãos do governo e ambientalistas. O que gerou tanta pauta em relação ao clima do Planeta? Os estudos das Nações Unidas resultaram no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, o IPCC. Em todo o mundo, a possibilidade de ocorrerem catástrofes devastadoras por causa da elevação da temperatura do planeta é tema obrigatório desde os principais eventos até as mais simples rodas de conversa. Na semana em que a revista IHU On-Line discute o assunto, o entrevistamos por e-mail o professor José Marengo Ele fala sobre o relatório do IPCC e as causas do aquecimento global.
José Marengo trabalha no Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – e foi o responsável pelos dados e cenários climáticos no estudo do Ministério do Meio Ambiente. Ele também participou da elaboração do quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, divulgado no início deste mês. O relatório é o primeiro documento oficial da ONU que admite, com alto grau de certeza, a influência das atividades econômicas no aquecimento do planeta.
José Marengo é graduado em Física e Metereologia pela Universidad Nacional Agrária do Peru, no Chile, onde concluiu também o mestrado. O doutorado em meteorologia foi feito na University of Wisconsin, em Madison, nos Estados Unidos, e intitulado “Extreme Climatic events in the Amazon basin and their associations with the circulation of the global tropics”. Na Nasa, finalizou, no ano de 1992, seu pós-doutorado em Ciências Exatas e da Terra. Atualmente, Marengo é pesquisador nível 1 do INPE, trabalhando no Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os indícios mais preocupantes em relação ao aquecimento global, mas que já estão presentes no nosso cotidiano?
José Marengo – Atualmente, os resultados do problema do aquecimento global podem ser visualizados a partir das mudanças nos extremos climáticos, ou seja, no Brasil percebemos isso com a maior freqüência de chuvas intensas no verão nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste do Brasil, assim como o aumento na freqüência de noites quentes – que é um indicador de invernos mais quentes. A temperatura está aumentando em todo país, tanto nas áreas urbanas como rurais. O aumento da temperatura é mais perceptível durante o inverno, quando vemos que, nos últimos 50 anos, 0,7°C aumentaram anualmente.
IHU On-Line - Se a temperatura do planeta continuar aumentando, quais serão as conseqüências para o povo brasileiro?
José Marengo - Os impactos seriam graves. O recém-divulgado relatório do IPCC sobre a base científica das mudanças climáticas conclui, com acima de 90% de confiança, que o aquecimento global dos últimos 50 anos é causado pelas atividades humanas. O Brasil é vulnerável às mudanças climáticas atuais e mais ainda às que se projetam para o futuro. Porém, espero que todos entendam que NÃO É O FIM DO MUNDO. Não podemos considerar que o aquecimento seja o apocalipse.
Veja a imagem a seguir:
Imagem enviada pelo Professor José Marengo para ilustrar a entrevista.
IHU On-Line - O senhor considera o problema do aquecimento global algo que pode ser "consertado" ou é um problema sem solução, ou seja, só poderemos amenizar os danos?
José Marengo - De certa forma, o aquecimento global é um processo natural, mas o aumento na concentração de gases de efeito estufa, por conseqüência da ação do homem, tem acelerado o aquecimento. As mudanças, que poderiam ter acontecido ao longo dos próximos 500 anos poderão vir a acontecer nos próximos 50 anos. Seria como acelerar na descida. As causas não podem ser consertadas e não seria possível reverter a tendência e esfriar o planeta, pois, mesmo que as emissões de gases de efeito estufa sejam zeradas, ainda existe o suficiente no ar para continuar aquecendo o planeta, embora com uma taxa e impactos menores. A solução é esta: amenizar as mudanças de clima e os seus impactos a níveis em que a população possa se adaptar.
IHU On-Line - O que podemos fazer para mudar a situação atual do Planeta Terra?
José Marengo - O ideal seria reduzir as emissões de gases que causam o efeito estufa no presente. Isso seria possível com indústrias mais ecológicas, utilização de energias mais limpas, redução ao máximo do desmatamento e queimadas etc. As medidas de mitigação incluem projetos de reflorestamento para tentar tirar o carbono da atmosfera, mas isso pode ajudar a longo prazo.
IHU On-Line - Para o senhor, como foi participar dos estudos que revelaram as conseqüências do aquecimento global?
José Marengo - Foi uma grande experiência, profissional e pessoal. Eu já estou envolvido no IPCC desde o segundo relatório, que foi divulgado em 1996, e isso ajuda a me atualizar continuamente sobre estudos e pesquisas sobre clima em todo o mundo. O relatório também tem me ajudado a manter contatos com pesquisadores de todo o mundo e a manter colaboração com alguns deles, como, por exemplo, com o pessoal do Hadley Centre de UK. Isso tem contribuído para que eu possa obter um financiamento do governo inglês para desenvolver cenários futuros de clima no Brasil. Além disso, certamente, é muito bom saber, também, como os outros países enfrentam o assunto das mudanças de clima e os seus impactos.
IHU On-Line - Para o senhor, quais são os principais pontos do IPCC?
José Marengo - Os principais pontos do IPCC, e agora já existem evidências estatísticas, mostram que o aquecimento global observado é conseqüência de atividades humanas, não só da variabilidade natural e do clima. O relatório divulga também que a mudança de clima vai acontecer, especialmente, na forma de extremos climáticos: mais ondas de calor, frio, secas, enchentes, mais furacões nas categoria quatro e cinco, entre outros extremos. Isso não foi destacado no terceiro relatório do IPCC, publicado em 2001.
IHU On-Line - Como o IPCC pode afetar as políticas públicas? Que medidas devem ser tomadas pelos governantes? José Marengo - Na verdade, o IPCC não foi criado para gerar políticas públicas. Os cientistas que participaram nos relatórios podem ajudar e interagir com pessoas do governo e contribuir para que se tenha um ponto de vista climático e científico nas elaborações da política nacional de mudanças de clima. Atualmente, o Ministério do Meio Ambiente está trabalhando nesta tarefa.