Instituto Humanitas Unisinos - 23/07/08
Uma investigação acerca de um ato de corrupção deflagrou um mal-estar entre a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal. O maior nome acusado deste ato ilícito é Daniel Dantas, banqueiro e fundador do Opportunity Asset Management. Junto com ele, outros dez diretores do banco foram presos no dia 08 de julho de 2008 pela Polícia Federal na Operação Satiagraha. A operação contém em seus autos inúmeras suspeitas contra Dantas, como o fato de este receber e trocar informações privilegiadas de contatos que mantinha no meio das telecomunicações. Assim como há suspeitas de que Dantas tenha enviado ilegalmente ao exterior recursos públicos provenientes das privatizações realizadas durante o governo FHC. Neste esquema, estariam envolvidos pessoas do alto escalão do governo, do Judiciário e da imprensa brasileira. Estas são apenas algumas suspeitas que constam na investigação. Um dia após as prisões, o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, considerou desnecessária a prisão e concedeu habeas corpus às pessoas ligadas ao Opportunity. No dia seguinte, Dantas foi novamente preso, desta vez de forma preventiva, mas Gilmar Mendes voltou a lhe conceder um novo habeas corpus. Em 16 de julho, a 6ª Vara Criminal da Justiça Federal, em São Paulo, aceitou a denúncia de que Dantas havia tentado corromper um delegado da Polícia Federal através de dois contatos e, atualmente, é considerado réu desta acusação. Ele também foi indiciado pelos crimes investigados durante a Operação Satiagraha.
A IHU On-Line conversou por telefone com o promotor Douglas Fischer, sobre o posicionamento do Judiciário brasileiro em relação a este caso, sobretudo em relação às decisões tomadas pelo ministro Gilmar Mendes. Para Fischer, não há conflito entre a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal, como estão discutindo. Quanto à concessão dos habeas corpus para Dantas por parte de Mendes, Fischer diz que ele não tinha competência para tanto.
Douglas Fischer é membro do Ministério Público Federal e Procurador Regional da República na 4ª Região. Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUCRS, é também professor da Escola Superior do Ministério Público da União, da Escola Superior da Magistratura Federal no Rio Grande do Sul, da Pós-Graduação em Direito Público do Jus Podivm – Salvador, do Curso de Especialização em Direito Penal e Processo Penal do Instituto de Desenvolvimento Cultural – IDC/Porto Alegre e do Curso Verbo Jurídico no Rio Grande do Sul e em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o "mercado" dos habeas corpus no Brasil?
Douglas Fischer – Para quem trabalha na área jurídica, é possível notar que há uma grande distorção. No entanto, quero deixar bem claro que eu não estou fazendo uma crítica às pessoas que proferem as decisões sobre os habeas corpus. O que estou fazendo é um paralelo das conclusões tiradas dos habeas corpus, sobretudo quando nós temos envolvido como réu preso alguém com poder econômico um pouco maior. Inclusive, hoje pela manhã, eu estava trabalhando e vi um caso concreto de um réu que está com habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça porque furtou dois litros de leite, um pacote de bolachas e dois pães. Ele está preso até hoje e não tem a liberdade considerada. E o caso, indiscutivelmente, seria de concessão do habeas corpus.
Se fizermos um comparativo com a situação bastante rumorosa vivida recentemente no Brasil, em que alguém teve duas vezes definida a sua liberdade provisória e era uma pessoa com alto poder econômico, nos perguntamos o motivo desse tratamento diferenciado. A questão única e exclusivamente é essa. E é importante deixar bem claro também que, ao citar esse caso rumoroso envolvendo o senhor Daniel Dantas, eu não estou criticando o mérito da decisão do ministro Gilmar Mendes. Ele tem autonomia para decidir e fez segundo sua convicção. A crítica que fiz em relação à decisão do ministro-presidente é a de que, em minha opinião, ele não tinha competência naquele momento para decidir este habeas corpus.
IHU On-Line – Por que o senhor acredita que ele não tem competência para tomar tal decisão?
Douglas Fischer – Em relação à Operação Satiagraha, o senhor Daniel Dantas havia ajuizado um habeas corpus para tomar conhecimento de uma investigação que estava existindo contra ele em São Paulo. Dantas tomou conhecimento de que existia alguma investigação pela imprensa, quis ter acesso aos autos, mas não conseguiu. Então, entrou com um habeas corpus. Como não lhe concederam no Tribunal Regional em São Paulo, ele entrou com um novo habeas corpus no STJ. Como não deram esse habeas corpus a ele também, o que nós chamamos de liminar, ele entrou com um novo no Supremo Tribunal Federal, onde o ministro Eros Grau foi o relator e não concedeu novamente esse pedido. Por que o ministro-presidente despachou? Porque, no período de férias, todos os habeas corpus são despachados pelo presidente do Supremo.
Pois bem, houve um fato novo: a prisão do senhor Dantas. Isso, em nenhum momento, era discutido naquele habeas corpus que já estava no STF. Ao invés de os advogados entrarem com um novo habeas corpus perante o Tribunal Regional Federal, eles comunicaram diretamente ao presidente do Supremo, que mandou soltar imediatamente o senhor Daniel Dantas. Em razão de um outro fato, houve uma nova decretação de prisão preventiva, aí não mais de prisão temporária, mas de preventiva, e novamente seria o caso de impetrar com um novo habeas corpus no Tribunal Regional Federal de São Paulo. Não fizeram isso e comunicaram novamente direto ao presidente do Supremo. Em minha opinião, o presidente do Supremo violou o artigo 108, I, ‘d’, da Constituição, que diz que habeas corpus contra ato de juiz de primeiro grau quem julga é o Tribunal Regional Federal em primeiro lugar.
O presidente do Supremo deu algumas entrevistas dizendo que corre o risco de acertar e errar por último. Eu não discuto o acerto ou o erro no mérito dele, mas discuto que ele deve errar ou acertar por último desde que esteja na sua vez de acertar ou errar. Isso deve ficar bem claro. Entretanto, e esta é uma crítica minha em relação ao mérito e ao uso de discordar da decisão do presidente do Supremo, os fatos revelam que, até o presente momento, quem foi o autor da corrupção ou responsável pelo envio da tentativa de corrupção em um milhão de dólares foi o senhor Daniel Dantas. A entrega e as propostas do dinheiro para o delegado naquela operação foram feitas por duas pessoas que ainda se encontram presas. Ou seja, o verdadeiro corruptor, até que o contrário seja provado, está solto, e as pessoas que fizeram apenas a entrega do dinheiro a mando deste corruptor ainda estão presas. Há uma certa inversão de valores na minha compreensão.
IHU On-Line – Para a área do Direito no Brasil, quais são os resultados, até então, dessa operação?
Douglas Fischer – Ainda está muito no início a apuração do processo das conseqüências desse caso. O que tem saltado aos olhos da comunidade, na minha visão, tem sido este tratamento díspar. Isso me gerou certa inconformidade de muitas pessoas. Eu preciso dizer aqui que foi cogitado, inclusive, impeachment do presidente do Supremo Tribunal Federal. Eu não ouso tanto, pois considero esse pedido um tanto demasiado. No entanto, tenho notado, e a comunidade jurídica também, que a celeridade e o tratamento dado para o habeas corpus tem gerado um tratamento diferenciado. Existe a súmula (que é o resultado da jurisprudência dos tribunais compilados num verbete) 691, na qual se afirma que não cabe ajuizar habeas corpus num tribunal superior contra o indeferimento de liminar num tribunal inferior. Isso significa que, se eu impetrei um habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 4º região de São Paulo e não ganhei a liminar, não tenho condições de impetrar diretamente um habeas corpus no STJ, e assim por diante. Pois bem, isso é o que está na súmula 691. O STF acabou relativizando esta súmula, dizendo que, nos casos de manifesta ilegalidade, é possível afastar a súmula 691 e conferir o habeas corpus contra o indeferimento de liminar. Vejamos o paradoxo de tudo isso. O caso decidido pelo Supremo que importou a relativização dessa súmula foi aquele envolvendo o senhor Flávio Maluf e depois esse habeas corpus foi estendido ao seu pai, Paulo Maluf. Para recordar: eles haviam sido presos em São Paulo, entraram com habeas corpus no TRF de São Paulo, não ganharam, foram ao STJ, não ganharam, e aí foram ao STF. Então, a matéria foi afetada no plenário do Supremo que, a partir dali, relativizou a súmula para dizer, no caso concreto, que havia ilegalidade no manifesto da prisão, portanto concederam a liberdade, primeiro, para o senhor Flávio Maluf e, depois, pelo menos motivo, para o senhor Paulo Maluf. O detalhe que poucas pessoas conhecem, e isso eu falei em alguns meios de comunicação, é que o primeiro habeas corpus que questionava o afastamento dessa súmula 691 foi por mim impetrado seis dias antes a favor de um réu pobre, coincidentemente. Ele estava preso por um pequeno tráfico de entorpecente e não tinha condições de chegar ao Supremo Tribunal Federal, mas estava preso há mais de dois anos. Eu me dirigi até o STF, porque tenho esse dever como membro do Ministério Público, e pedi que afastasse a súmula 691 e determinasse a liberdade desse paciente. Qual foi a minha surpresa, e repito, o habeas corpus que impetrei foi seis dias antes desse do senhor Maluf, que no meu caso a liminar foi indeferida e no outro caso ela foi deferida. Em suma, não conseguimos encontrar uma questão lógica para esse tratamento diferenciado.
IHU On-Line – Para o senhor, o que está por trás dessa disputa travada entre o STF e a Polícia Federal?
Douglas Fischer – Eu não diria que está sendo travada uma disputa entre esses órgãos. Eu acredito que houve, na verdade, um certo imbricamento de manifestações públicas que pode nos conduzir a pensar que está havendo uma disputa. Existe uma máxima dita por aí, ainda, de que a polícia prende e o Judiciário solta, o que não procede, porque se houve a prisão de alguém foi porque um juiz determinou, salvo prisões em flagrante. Ou seja, nos casos de prisão temporária e preventiva quem dá a ordem de prisão é um juiz e só outro juiz com uma competência superior pode revogar essa decisão. Então, essa celeuma estabelecida eu creio que na verdade decorreu de manifestações de parte a parte.
IHU On-Line – Como o senhor acha que o Judiciário estará após esta operação que deflagrou a prisão de Dantas e outros políticos importantes?
Douglas Fischer – O que aconteceu nesse caso é inédito, ou seja, houve certa discussão interna muito forte, especialmente no âmbito do Poder Judiciário e em relação ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Na minha visão, o presidente do STF, neste caso, se equivocou, não pelo mérito de sua decisão, haja vista sua capacidade de decidir, diferentemente do juiz de primeiro grau. O problema é que ele não decidiu num momento oportuno. Claro que, ao mesmo tempo em que percebemos essa possível compreensão de uma fragilização do Poder Judiciário, eu também posso dizer que não acredito que ela tenha havido. Creio que o Judiciário expôs ao povo problemas que existem e precisam ser enfrentados. Espero que a partir desse fato o Judiciário se torne mais maduro do que é, porque trata-se de uma constância no nosso aprendizado. Que ele possa, então, reduzir ao máximo essas desigualdades existentes, especialmente nas questões pertinentes aos habeas corpus. Eu não estou dizendo, portanto, que não se devesse conceder liberdade a uma pessoa que esteja presa indevidamente. Se a prisão dela é indevida, que tenha a liberdade provisória no momento adequado. Espero, de qualquer modo, que esse tratamento seja conferido a todas as pessoas que estejam em situações iguais, ou seja, vamos tratá-las da mesma forma.
IHU On-Line – O desenrolar desta operação mostra certa instabilidade institucional no Judiciário brasileiro?
Douglas Fischer – Não vejo dessa forma. Eu insisto, por mais paradoxal que possa parecer tudo isso, que é da natureza do Poder Judiciário haver divergência entre a posição de juízes. A meu ver, o Judiciário sairá fortalecido se souber assimilar bem as conseqüências dessa discussão travada. Há uma estabilidade institucional democrática e a população não precisa se preocupar quanto a isso.
IHU On-Line – O que tem de diferente neste caso em comparação a outros casos que a Polícia Federal investiga?
Douglas Fischer – A circunstância específica é de que se trata de um caso envolvendo pessoas do alto seio da sociedade brasileira e uma grande quantidade de dinheiro investigado e de desvio, supostamente, o que está demonstrado até o momento. Ou seja, o caso diz respeito a uma tentativa de corrupção, no valor de um milhão de reais, para barrar uma investigação criminal. Nós temos uma investigação bastante importante na medida em que estamos apurando os fatos que não são os do dia-a-dia, aos quais nos acostumamos a ver. Não que os crimes comuns não devam ser julgados, mas a lesividade trazida por esta investigação demonstra que estamos lidando com um caso extremamente relevante pelo prisma dos valores envolvidos, merecendo, por isso, uma atenção específica.