Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 23 de setembro de 2014.
Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado.
(Emília Viotti da Costa)
Os vivos são sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos mortos.
(Isidore Auguste Marie François Xavier Comte)
A história do mundo nada mais é que a biografia dos grandes homens.
(Thomas Carlyle)
Pena que as autoridades tupiniquins não tenham tido a capacidade de aquilatar a relevância da Descida pelo antigo Rio da Dúvida, hoje Rio Roosevelt, desde Rondônia, atravessando o Noroeste do Mato Grosso até o Amazonas, e da homenagem que seus expedicionários se propõem a prestar à memória de Cândido Mariano da Silva Rondon – o Marechal da Paz e de Theodore Roosevelt – o ex-Presidente dos EUA. Há exatos cem anos estes dois grandes nomes da historiografia universal gravaram, para sempre, seus nomes no “pantheon” dos heróis da humanidade ao realizar a épica descida por um Rio totalmente desconhecido, permeado de diversos saltos, cachoeiras e corredeiras, desafiando a turbulência de suas águas e enfrentando as agruras de um ambiente hostil, sem poder contar com qualquer tipo de socorro externo.
– Ontem como Hoje...
Os séculos correm celeremente pela nossa querida e malfadada “Terra Brasilis” e continuamos eternamente, marcando o passo, estagnados moralmente, sendo citados como “o país do futuro”, um futuro que cada vez parece mais e mais distante. Um povo incapaz de cultuar seus valores mais caros não conseguirá, jamais, almejar um futuro pródigo para seus filhos. O Hino do Rio Grande do Sul traz na sua bela letra uma insofismável verdade: Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo.
O Coronel Amílcar A. Botelho de MAGALHÃES, há mais de setenta anos, já apontava esse equivoco, na época, em relação ao próprio Rondon:
O lado moral, o lado heroico, o prisma sob o qual pudesse a nação aquilatar das dificuldades vencidas e dos sacrifícios empregados para chegar a essa quilometragem aritmeticamente contada e reduzida a mapas e a esquemas, são faces da questão votadas ao silêncio, ao desprezo e quiçá mesmo ao ridículo dos homens de gabinete, incapazes de aguentar alguns meses de sertão...
Dos vastos e admiráveis relatórios, que andam por cinquenta volumes, apresentados pelo General Rondon ao Governo da República, vede o que transcrevem, sem cor e sem entusiasmo, quase todos os Excelentíssimos Srs. Ministros da Guerra e da Viação e Obras Públicas em seus relatórios anuais. Através dos Relatórios Ministeriais a obra de Rondon é quase uma obra de anão! (MAGALHÃES)
– Heróis Anônimos
Da vontade fizeram renúncia como da vida... Seu nome é sacrifício.
POR OFÍCIO DESPREZAM A MORTE E O SOFRIMENTO FÍSICO...
A gente conhece-os por militares... por definição, o homem da guerra é nobre.
E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai CORAGEM, e à sua direita a disciplina.
(Guilherme Joaquim de Moniz Barreto – Carta a El-Rei de Portugal, 1893).
Evidentemente a modelar conduta de Rondon cooptou o coração e as mentes de seus Oficiais de Engenharia que tão galhardamente seguiram seu exemplo e, não raros, imolaram-se anonimamente ao serviço da Pátria. Não atacaram o inimigo nem tomaram de assalto suas instalações – seu foco era a Missão, estendendo linhas telegráficas ou demarcando os sertões de “brasis ainda sem Brasil”; por vezes sacaram suas armas atirando para o alto – morreriam, e alguns morreram, se fosse preciso mas não matariam nunca nossos aborígenes; foram arrojados e indômitos – enfrentaram as vicissitudes da selva e de seus habitantes hostis; cumpriram bravamente o que lhes foi determinado sem jamais titubear ou contestar as ordens recebidas. Novamente recorremos às palavras do Coronel Amílcar A. Botelho de MAGALHÃES, para apresentar dois destes desconhecidos heróis Capitão Cândido Cardoso e do 2° Tenente Francisco Marques de Souza. Ao reverenciá-los estamos homenageando a todos os heróis anônimos que tombaram nos “ermos sem fim” dos sertões inóspitos lançando linhas telegráficas ou demarcando nossas fronteiras.
CAPITÃO CÂNDIDO CARDOSO
Com a sua energia máscula e a sua habilidade na direção das Praças, o espírito geral reanimou-se e o serviço prosseguiu, embora com sacrifícios inauditos. Pode-se dizer, sem medo de errar, que o trabalho aí foi executado por enfermos; os que pioravam eram substituídos pelos que melhoravam, para que aqueles baixassem à enfermaria do acampamento e aí readquirissem as novas e fraquísimas forças que lhes permitiriam render os companheiros naquele insano labor quotidiano. Não obstante o gigantesco esforço que deles exigia, Cândido Cardoso despertava nos Soldados o desejo de bem servir e muitas vezes, com demonstrações de alegria, prestavam-se eles a prolongar o penoso expediente além das doze (!) horas habituais de serviço! Era um forte, um corajoso soldado, que nunca temera perigos e jamais recuara diante das perspectivas mais assombrosas da fome e da epidemia. O seu vulto enérgico e decidido inspirava confiança. Vitimou-o a sua dedicação pelo serviço e o estoicismo a que se habituara de prosseguir nas tarefas que lhe eram cometidas, embora com a saúde comprometida.
PARA MIM, ESTE HEROÍSMO É BEM MAIS NOBRE E BEM MAIS DIFÍCIL, DEMANDA MUITO MAIS ENERGIA E TENACIDADE, DO QUE O HEROÍSMO DO MOMENTO, DE DURAÇÃO EFÊMERA, COMO O QUE REQUER O ATAQUE DE UMA TRINCHEIRA INIMIGA: A PRIMEIRA É UMA TEMERIDADE REFLETIDA, A SEGUNDA, UMA TEMERIDADE QUE SE INCENDEIA COMO A PÓLVORA NEGRA, AO CALOR REPENTINO DO ENTUSIASMO CONTAGIOSO DAS MASSAS, QUE ARRASTAM O HOMEM ÀS MAIORES LOUCURAS. LÁ É O COMANDANTE QUE FASCINA A MASSA COM O SEU ENTUSIASMO VIRIL, AQUI A MASSA QUE ELETRIZA O COMANDANTE, ENVOLVENDO-O NA ONDA MAGNÉTICA DOS HURRAS COMUNICATIVOS...
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SEGUNDO-TENENTE FRANCISCO MARQUES DE SOUZA
Súbito corta o ar a primeira seta, outra, mais outra... Quer da Ilha, quer da margem, sentem-se os homens acossados pelas taquaras selvagens. Lançando mão da única arma de fogo que ficara no acampamento, Marques de Souza, corajosa e abnegadamente, atira para o ar. Há um grande pânico e a onda silvícola retrocede indecisa. A um segundo disparo, a arma falha, os Índios recuperam a coragem e avançam novamente, desferindo flechadas a torto e a direito. Traído pela carabina, o oficial tenta ainda um supremo recurso: abre os braços, em atitude de amizade, e exclama:
Não me flechem!
A sua figura, porém, o seu gesto generoso não logram convencer nem comover os aborígenes, que ali encontravam oportunidade de vingar as perseguições com que eram vitimados, há longos anos, pelos seringueiros sem escrúpulo. Marques de Souza é atingido por duas flechas em pleno peito e por uma outra no abdômen. Vendo já morto, ao seu lado, o canoeiro Tertuliano Ribeiro de Carvalho e um outro também bastante flechado, o oficial atira-se na água e tenta nadar, com os seus homens, para as bandas em que se achava a canoa. Graves eram, porém, os ferimentos recebidos e Marques de Souza submerge e é arrastado pela forte correnteza do Rio. E assim acabou a vida do valoroso e digno oficial, que era um dos mais belos ornamentos da Comissão Rondon. (MAGALHÃES)
‒ Fonte: MAGALHÃES, Amílcar Armando Botelho de. Pelos Sertões do Brasil (1928) – Brasil – Rio de Janeiro – Companhia Editora Nacional, 1941.
(*) Hiram Reis e Silva é Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).