Considerada a relativa calmaria que parece configurar-se na Ucrânia, o momento parece propício para examinar o impacto que os dramáticos desenvolvimentos naquele país tiveram sobre o cenário político interno da Rússia e o que esse impacto, por sua vez, pode significar para a (des)ordem internacional. Para isso, gostaria de começar por um breve resumo de uma tese que já mencionei antes.[1]
Preparando a parte russa do palco
Primeiro, uma lista itemizada dos tópicos que já se discutiram nesse blog:
1. Não há real oposição parlamentar na Rússia. Mas, não, não, não porque “Putin é um ditador”, nem porque “a Rússia não é uma democracia”, mas, sim, simplesmente, porque Putin manobrou brilhantemente ou para cooptar ou para cortar as garras de qualquer oposição. Como? Usou bem sua autoridade pessoal e carisma para promover uma agenda à qual os demais partidos não se poderiam opor abertamente. Formalmente, continuam a existir os partidos de oposição, é claro. Mas absolutamente não têm qualquer credibilidade. É situação que pode mudar, com a nova Lei dos Partidos Políticos.
2. A única oposição “dura” a Putin, na Rússia moderna, são os vários indivíduos abertamente pró-EUA (Nemtov, Novodvorskaia, etc) e movimentos e partidos associados a eles. Representam (no máximo!) 5% da população.
3. Putin aplicou ‘movimento de judô’ nos reais opositores (adiante, mais sobre isso), usando a “Constituição (fortemente) presidencial” aprovada em 1993, para, basicamente, concentrar todos os poderes na presidência.
4. A “oposição” *real* a Putin e ao seu projeto só existe *dentro* do Kremlin, no partido “Rússia Unida” e em algumas figuras influentes. Chamo essa oposição real de “Atlanticistas Integracionistas” (AI), porque o objetivo-chave deles é integrar a Rússia à estrutura mundial anglo-sionista de poder.
5. A base *real* de poder de Putin está no povo russo que o apoia diretamente e pessoalmente, na Frente de Todos os Povos Russos,[2] e no grupo que chamo de “Eurasianos Soberanistas” (ES), cujo objetivo básico é desenvolver uma nova ordem mundial, multipolar, para livrar-se do atual sistema financeiro internacional anglo-sionista; reorientar a maior parte possível da antiga URSS na direção de integrar-se com o Ocidente; e desenvolver o norte da Rússia.
Se quisesse simplificar ainda mais as coisas, poderia dizer que em 1999 os Atlanticistas Integracionistas (AI) e os Eurasianos Soberanistas (ES) uniram-se para levar Putin ao poder, substituindo Ieltsin. Os AI (em termos genéricos, representam os interesses do big money & big business) queriam burocrata mais cinzento e obscuro, como Putin (era o que eles supunham), que assegurasse o continuísmo e não sacudisse demais o bote depois da partida de Ieltsin. Os Eurasianos Soberanistas (em termos gerais, representantes dos interesses de certa elite da antiga KGB, especialmente seu Primeiro Diretorado-Comando[3]) e o próprio Putin, usaram brilhantemente o poder dado a Putin pela Constituição de 1993 (aprovada no governo de Ieltsin e dos Atlanticistas Integracionistas!), para mudar, lenta mais firmemente, a rota da Rússia: de total submissão e colonização ao/pelos EUA, para um processo que Putin e seus apoiadores chamam de“soberanização”, i.e., de libertação nacional.
A partir disso, seguiu-se longa disputa de quebra-de-braço, sobretudo nos bastidores, mas com eclosões de tempos em tempos que se veem do lado de fora, como a trombada entre Putin e Medvedev no caso do Irã e da Líbia ou a demissão de Kudrin por Medvedev (os dois foram empurrados para uma mesma rota de colisão, por Putin, claro). Como derradeira super simplificação, posso dizer que Medvedev representa os Atlanticistas Integracionistas; e Putin, os Eurasianos Soberanistas.
Tudo aqui está muito supersimplificado, para não alongar demais o postado. Todos encontrarão informação um pouco mais detalhada em outros postados indicados nas notas, inclusive os comentários dos leitores do blog.
Preparando a parte ucraniana do palco
Antes desse inverno, a maior diferença entre Rússia e Ucrânia era que na Rússia Putin basicamente destruíra a velha oligarquia que EUA e Israel controlavam, e a substituiu por outra, que ou apoiava o Kremlin ou mantinha-se neutra. A mensagem de Putin para a oligarquia russa foi simples: “podem ser ricos, mas não comprometam o bem-estar da nação russa nem tentem intrometer-se na luta política.” Para os que não entendam por que Putin não eliminou a oligarquia russa como grupo, tenho de repetir que TUDO que Putin fez desde 1999 até agora, sempre foi numa relação de acordos e concessões entre os seus Eurasianos Soberanistas e os ainda muito poderosos Atlanticistas Integracionistas. Putin de modo algum poderia desafiar diretamente esse grupo muito poderoso, muito rico, muito bem relacionado; então, teve de andar devagar e com cuidado, passo a passo.
Na Ucrânia, bem diferente disso, os oligarcas consumaram o que eu chamaria de “Sonho de Khodorkovsky”: compraram basicamente tudo, toda a economia, toda a imprensa-empresa de massa, todo o Parlamento e, claro, também a presidência. Ao longo dos últimos 22 anos, a Ucrânia viveu basicamente escravizada por vários oligarcas que fecharam negócio bem simples com o ocidente: vocês nos apoiam e nós apoiamos vocês.
Resultado disso, os líderes ocidentais e a imprensa-empresa “não perceberam” que todos os políticos ucranianos são corruptos até a medula, inclusive Ianukovich e Tymoshenko; que – diferente da Rússia, e ao contrário do que diz a propaganda anglo-sionista – as desavenças políticas na Ucrânia foram muitas vezes decididas por assassinatos encomendados; que a plutocracia ucraniana estava, literalmente, saqueando toda a riqueza da Ucrânia (“toda”, aí, significa literalmente tudo). Até que a muitíssimo rica Ucrânia ficou miseravelmente pobre e sem recursos e riqueza para pilhar, e a crise tornou-se visível, e todos viram.
Além da pilhagem de recursos e riqueza, outra grande ‘realização’ dos oligarcas ucranianos foi a total subordinação do estado e de seus instrumentos às necessidades dos oligarcas: Para eles, o próprio estado tornou-se instrumento de poder e influência. Por exemplo, o serviço de segurança ucraniano SBU (ex-KGB) passou todo o tempo e consumiu todos os seus recursos, envolvidos nas lutas de poder entre vários oligarcas e suas bases de poder. Resultado disso, o SBU, em 22 anos, não capturou nenhum espião estrangeiro! Para piorar, o SBU foi comandado, de fato, a partir da base local da CIA-EUA. Essa total destruição do próprio aparelho do estado teve, ela mesma, papel chave nos eventos desse inverno e ainda é fator central na situação em campo: para todos os propósitos práticos, não existe “estado ucraniano”.
Os euroburocratas e o Tio Sam entram na dança
Foi nesse quadro de colapso total da Ucrânia como estado e como nação, que a União Europeia decidiu entrar com sua jogada: ofereceu à Ucrânia uma associação com a União Europeia. Tio Sam amou a ideia, especialmente porque incluía um capítulo político para conduzir a política externa e de segurança da Ucrânia pela pauta da União Europeia. Essa ideia de uma Ucrânia comandada pela União Europeia também tinha grande apelo aos olhos dos EUA, que acreditavam que a Ucrânia seria chave para as sempre pressupostas ambições imperiais da Rússia. Além do mais, a Casa Branca sabia que, se a Ucrânia fosse governada pela União Europeia, e a União Europeia governada pelos EUA (como sempre foi), então a Ucrânia seria governada pelos EUA. E o ocidente pôs-se a balançar uma grande cenoura no nariz do povo ucraniano: “façam uma escolha civilizacional”[4] e unam-se à União Europeia e fiquem ricos, saudáveis e felizes. Quanto à Rússia, nada tem a opinar: a Ucrânia é estado soberano”.
Para milhões de ucranianos empobrecidos e explorados, foi como sonho que se realiza: não apenas se tornariam milagrosamente ricos e felizes como supõe-se que os europeus sejam (só na propaganda, mas... xáprálá), como, além disso, afinal se livrariam da maldita gangue de corruptos que estavam no poder. E os oligarcas ucranianos também gostaram muito da ideia: poderiam continuar a explorar a Ucrânia e seu povo, desde que se posicionassem contra a Rússia; para eles nem foi difícil, porque os oligarcas ucranianos têm medo pânico de Putin e muito mais, sim, da ideia de um “Putin ucraniano”.
A grande explosão
Há um ditado que diz que se você está com a cabeça enterrada na areia, está com o traseiro ao vento e, de fato, a realidade voltou para morder o traseiro dos ucranianos numa estranha vingança: o país estava quebrado, arruinado, a apenas duas semanas de ter de declarar um calote, e o único lugar onde poderiam encontrar dinheiro que evitasse o colapso final era a Rússia. Mas os russos impuseram uma condição para ajudá-los: nada de associarem-se com a União Europeia, porque a Rússia não podia ter um livre mercado com a Ucrânia ao mesmo tempo em que a Ucrânia abrisse seu mercado aos bens e serviços da União Europeia (não foi nenhum ‘plano maquiavélico’ urdido por Putin, mas simples e óbvia necessidade, compreensível por qualquer um que tenha tido nota 5 em qualquer curso de “Economia 1”). Nesse ponto, Yanukovich fez seu giro repentino de 180º, que sinceramente confundiu muitos ucranianos e pediu socorro a Moscou. E abriram-se as portas do inferno: ucranianos ultrajados tomaram as ruas, querendo saber por que lhe fora negado seu sonho de prosperidade. Os EUA também entraram em pânico – se permitissem que a Rússia salvasse a Ucrânia, a Rússia fatalmente controlaria o país: “Se você paga, você manda” – ensina a lógica norte-americana.
Então, os EUA entraram com sua maior arma: os “Talibã ucranianos”, também conhecidos como “Setor Direita”, Partido Liberdade (Svoboda, ex-Partido Social-Nacionalista) e suas falanges de bandidos neonazistas. O surgimento repentino de Banderistas[5] e outros neonazistas assustaram tanto os falantes de russo que, enquanto os doidos do novo regime revolucionários estavam ocupadíssimos proibindo o idioma russo e descriminalizando a propaganda nazista, a Crimeia separou-se do restante da Ucrânia, no momento em que a Ucrânia entrou num período de completo caos e nenhuma lei.
Todos sabemos o que aconteceu a partir daí e não é preciso repetir. Podemos agora considerar os mesmos eventos do ponto de vista da política interna da Rússia e o seu provável impacto global.
A visão de Moscou
A primeira coisa a dizer aqui é que a popularidade de Putin alcançou novos píncaros: está hoje em 71,6%, e, isso, apesar de ter havido poucos progressos no front anticorrupção, progresso zero na muito necessária reforma do sistema judicial, e com a economia russa entrando em tempos difíceis. Mesmo assim, apesar dos muitos problemas ainda não resolvidos que a Rússia enfrenta – Putin é hoje homem impossível de atacar, dado que se posicionou como o presidente que salvou a Crimeia e, é possível, até a Rússia (adiante, mais sobre isso).
O segundo efeito dramático dos eventos na Ucrânia é que polarizaram ainda mais a sociedade russa. Não estou dizendo que seja justo, mas o fato é que hoje os políticos russos têm de escolher. Têm de se posicionar:
1) ou são verdadeiros patriotas russos que apoiam Putin, a reintegração da Crimeia, a política russa de defender o país contra o ocidente,
2) ou alinham-se com os “liberais” russos, que são russofóbicos, comprados e pagos pelos EUA, nada além de uma “5ª coluna”[6] (expressão que Putin já usou), pró-capitalistas, pró-OTAN e até pró-nazistas (lembrem que, agora, o ocidente já está declaradamente apoiando os nazistas na Ucrânia!).
Desnecessário dizer, todos os políticos russos estão se atropelando uns os outros para mostra que pertencem, firmemente, ao Grupo 1, acima. Até Sergei Mironov, presidente do Partido “Só Rússia” e último líder da oposição “real” que restava no Parlamente, já assumiu a liderança da ajuda à Crimeia (o que lhe valeu aparecer incluído na lista de sanções dos EUA e União Europeia). Os que não fizeram o mesmo são cachorro morto.
O mais confiável de todos, Alexei Navalnyi,[7] o único líder de oposição não associado ao regime de Ieltsin dos anos 1990s, escreveu artigo no NYT intitulado “Como castigar Putin”,[8] no qual chega a oferecer uma lista de nomes que os EUA devem punir. No atual clima político na Rússia é praticamente suicídio político e a carreira política de Navalnyi está acabada. É provável que emigre para Londres ou para os EUA.
Mas o maior resultado da crise na Ucrânia foi ter posto Rússia e EUA em rota aberta de colisão.
Vistos os eventos do ponto de vista da Rússia, eis o que o ocidente fez:
1) organizou um golpe armado ilegal; 2) derrubou um governo legítimo (embora corrupto) 3) apoiou neonazistas 4) pôs suas políticas anti-Rússia acima dos valores democráticos 5) pôs suas políticas anti-Rússia acima do direito à autodeterminação 6) recusou-se a reconhecer o desejo do povo russo na Crimeia 7) recusou-se a reconhecer o desejo dos falantes de russo na Ucrânia 8) puniu a Rússia com sanções (só simbólicas, porque não pôde fazer mais) 9) só não interveio militarmente porque se acovardou ante a força militar russa 10) ativou pesadamente o mundo, na ONU, contra a Rússia.
Nesse quadro – que chance têm os Atlanticistas Integracionistas de obter qualquer apoio para suas políticas? Claramente: nenhuma.
Não só isso, mas, mais que isso, as sanções usadas pelo ocidente permitiram a Putin fazer o que jamais antes conseguira: assustar os russos e espantá-los para bem longe dos bancos ocidentais (ou correm para as off-shores ou para os bancos russos); criar um sistema russo de tipo SWIFT,[9] de pagamento interbancário; facilitar os esforços para exportar mais gás para a China e o resto da Ásia; diminuir a participação dos russos em corpos nos quais os EUA mandam, como o G8 ou a OTAN; forçar a Rússia a deslocar mais capacidades militares, e mais poderosas, para as fronteiras ocidentais (pôr Iskanders[10] em Kaliningrad, Tu-22M3s [11] na Crimeia); reduzir o turismo russo para o exterior e direcioná-lo para dentro da própria Rússia. E afinal, mas não menos importante, reduzir ainda mais o uso do dólar norte-americano pelos russos.[12] Tudo isso é como sonho realizado para economistas como Glazyev[13] ou políticos como Rogozin,[14] que muito trabalharam a favor dessas medidas, há muitos anos, mas cujos conselhos Putin teve de ignorar, para não se expor ao contra-ataque dos Atlanticistas Integracionistas. Agora, há conversas ainda mais sérias que essas, na Rússia, sobre o país retirar-se de muitos tratados militares chaves (estratégicos nucleares, estratégicos convencionais, de supervisão nuclear, etc.) ou até da Organização Mundial do Comércio (pouco provável).
Agora se tornou extremamente fácil para Putin demitir qualquer um, sob o argumento de que alguém não esteja efetivamente implementando as decisões do presidente. Agora, todos sabem que todo e qualquer Atlanticista Integracionista está exposto ao risco de ser sumariamente descartado. Na verdade, é preciso dizer que Barak Obama ajudou Putin imensamente e que, graças à política absolutamente ensandecida dos EUA na Ucrânia, a posição dos Atlanticistas Integracionistas (em geral, pró-EUA) foi destruída e assim permanecerá por muitos e muitos anos.
Piadinha contada pela primeira vez na TV russa, pelo (é quase inacreditável, mas é verdade) porta-voz da Comissão Russa de Investigação (uma espécie de “FBI russo”, pode-se dizer), personagem não conhecido pelo senso de humor, está hoje, já, nas ruas. É a seguinte:
Barack Obama boicotou os Jogos de Sochi e não apareceu – e os russos saímos de lá cobertos de medalhas, nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. Obrigado, camarada Obama!
Obama depois apoiou muito os extremistas da Junta em Kiev – e a Crimeia voltou correndo para nós. Obrigado, Camarada Obama!
Obama impôs sanções contra os malditos oligarcas – e o dinheiro deles voltou, do Ocidente, onde estava, para a Rússia. Obrigado, Camarada Obama!
Agora, quer dizer... Se pudermos pedir mais uma coisinha... Camarada Obama! Consiga para nós a Copa do Mundo, aquela, a do Brasil, plízzz... [pano rápido]
Piadas à parte, há muita verdade nessa piada: quanto mais os EUA tentam maximizar as apostas para esmagar a Rússia, mais forte a Rússia fica, e mais forte fica Putin, na Rússia.
Quanto aos poucos fracos ativistas pró-EUA deixados na Rússia, a situação deles é desesperadora: ao longo de anos tiveram de reagir contra acusações de terem sido parceiros nos horrores do regime de Ieltsin nos anos 1990s, e agora, a esse legado terrível, têm de somar o peso das acusações de serem “pró-Banderastão”. Sinceramente: que tratem de fazer as malas e partir para o ocidente. Na Rússia, estão acabados.
O que significa isso, para o resto do mundo?
Várias vezes escrevi sobre a luta oculta entre os Atlanticistas Integracionistas e os Eurasianos Soberanistas como luta “interna” ou “por trás das cortinas”, o que era verdade, no geral, até agora.
Os eventos na Ucrânia mudaram isso, e o tipo de questões às quais os Eurasianos Soberanistas até agora só aludiam em termos mais ou menos oblíquos, já são abertamente discutidas pela TV russa: como coexistir com um ocidente histericamente anti-Rússia e abertamente pró-nazistas? Como reduzir a participação russa no – e a dependência russa do – sistema financeiro internacional controlado por anglo-sionistas? Que tipo de medidas tomas para assegurar que EUA e OTAN jamais tenham opção militar viável? Como lidar com a “5a. Coluna interna” dentro da Rússia, para evitar uma “Maidan em Moscou”? Como lidar com o tipo de organizações subversivas patrocinadas pelos EUA (como NED, Carnegie, etc.) que ainda operam na Rússia? Como garantir que nenhum governo pervertidamente anti-Rússia sobreviva economicamente e socialmente em Kiev? Etc.
Pessoalmente, acho que o “parecer Nuland”[15] deva ser aplicado, não à União Europeia, mas aos EUA. E isso significa uma nova Guerra Fria?
Ah, sim. Podem apostar que sim, significa!
Mas é preciso dizer já, imediatamente, que essa nova Guerra Fria é completamente, inteiramente, 100%, invenção dos EUA e o que a Rússia fez foi, apenas, aceitar a nova realidade e operar dentro dela. Nem Putin nem ninguém na Rússia jamais quis essa nova Guerra Fria. Ela lhes foi unilateralmente imposta pelos EUA e suas colônias na União Europeia já há 20 anos ou mais.
Pensem bem: a verdadeira principal razão pela qual EUA e União Europeia não estão impondo nenhuma sanção realmente significa tica à Rússia é que já fizeram isso no passado e, hoje, já não há o que impor além de sanções que ferirão o ocidente, tanto quanto e provavelmente mais, que a Rússia. O mesmo vale para a chamada “imagem internacional da Rússia”. Alguém esqueceu os ditos idiotas e canalhas sistematicamente repetidos e promovidos como mantras pela imprensa-empresa de propaganda ocidental sobre a Rússia antes da crise na Ucrânia? Listei algumas, de meu artigo anterior sobre o tema:
– Berezovsky apresentado como empresário “processado” – Politkovskaya “assassinada pelos assassinos da KGB” – Khodorkovsky na cadeia, por amar a “liberdade” – A “agressão” da Rússia contra a Georgia – As guerras “genocidas” dos russos contra o povo checheno – “Pussy Riot” [Agito das Bucetas] como “prisioneiras de consciência” – Litvinenko “assassinado por Putin” – Homossexuais russos “perseguidos” e “maltratados” pelo estado – Magnitsky e, na sequência, a “Lei Magnitsky” – Snowden como “traidor escondido na Rússia” – “Eleições roubadas” para a Duma e para a presidência – A “Revolução Branca” na praça Bolotnaya – O “novo Sakharov” (Alexei Navalnyi) – O “apoio da Rússia” a “Assad, o “açougueiro (químico) de Bagdá” – A constante “intervenção dos russos” em assuntos da Ucrânia – O “total controle”, pelo Kremlin, sobre a mídia russa
Diria que a lista já está longa que chegue, e que ninguém na Rússia precisa se preocupar, porque nada que o Kremlin venha a fazer doravante poderá ser pior que isso. E em vez de fazerem guerra à Rússia, fizeram guerra ao Iraque, ao Afeganistão, ao Paquistão, à Bósnia, à Croácia, ao Kosovo, à Líbia, à Síria – os EUA inflaram o mais que puderam suas políticas anti-Rússia, e fato é que não obtiveram grande coisa.
Como se diz de pequena porção de mal, insuficiente para realmente ferir você? Nietzsche diria que o que não me destrói me fortalece. A medicina moderna fala de imunização. As palavras não importam aqui, só o fenômeno: EUA e União Europeia infligiram dor considerável à Rússia, sim, mas não suficiente para quebrá-la, e por consequência direta disso, a Rússia recebeu poderosa dose de “imunização anti-anglo-sionista, que a fará mais forte do que antes.
E essa é boa notícia para todos.
Para melhor ou para pior, a Rússia é objetivamente líder incontestável da resistência mundial contra o Império Anglo-sionista. Sim, a economia chinesa é muito maior, mas o exército chinesa não é, e a China depende crucialmente da Rússia para energia, armas e alta tecnologia. Creio firmemente que, inevitavelmente, a China assumirá a liderança na luta contra o Império Anglo-sionista, mas não é para já: a China precisa de mais tempo.
O Irã é, definitivamente, o país que há mais tempo, foi o primeiro, a abertamente desafiar os anglo-sionistas (além de Cuba e da República Popular Democrática da Coreia, mas são países muito fracos), e as ambições do Irã são primariamente regionais (o que, sim, é sinal de sabedoria da liderança iraniana).
Quanto ao Hezbollah, é, na minha avaliação, o líder moral da Resistência mundial, não só por seus feitos militares realmente fenomenais, mas, principalmente, pela disposição para lutar completamente sozinhos, se necessário. Mas ser um farol moral não implica ser capaz de desafiar globalmente o Império. Rússia, China, Irã e o Hezbollah são o que eu chamaria, parafraseando Dábliu Bush, o “Eixo da Resistência ao Império”, e a Rússia tem o papel chave nessa forte, embora informal, aliança.
A outra parte do mundo onde “isso” está acontecendo é, é claro, a América Latina, mas a recente votação na Assembleia Geral da ONU mostrou que Bolívia, Venezuela, Nicarágua e Cuba são os únicos países latino-americanos que ousaram desafiar abertamente a hegemonia dos EUA (e, na Venezuela, hoje, o regime luta pela própria sobrevivência). Vê-se que, embora a América Latina tenha enorme potencial, ele está longe de realizar-se, pelo menos nesse ponto do tempo.
Conclusão
Uma Nova Guerra Fria começou a ser construída no minuto em que a Guerra Fria de antes foi oficialmente encerrada. Assim, só se pode receber como bem vinda a nova realidade introduzida pela crise na Ucrânia: agora, a Rússia aceitou abertamente o desafio dos EUA, e todas as encenações de alguma espécie de parceria estratégica EUA-Rússia são passado remoto.
Quanto à União Europeia, teve papel tão vergonhoso e desgraçado, que será tratada pela Rússia como merece ser tratada: como protetorado submisso dos EUA, sem políticas nem ideias próprias. Agora, aquela falsa “parceria” foi afinal desmascarada, e podemos esperar uma Rússia mais assertiva, se não confrontacional, no cenário internacional.
Evidentemente, não estou dizendo que Putin pôr-se-á a bater com o próprio sapato na bancada da ONU, como se diz que Krushchev teria feito, nem Putin ameaça “enterrar” o ocidente. Putin, Lavrov e Churkin são estadistas e diplomatas e manter-se-ão impecavelmente elegantes. Mas podem esperar muitos mais votos “não” na ONU e muitos mais “lamentamos, mas, não” em questões bilaterais.
O grande beneficiário dessa nova Guerra Fria será o Irã, é claro, mas também a China. Não apenas Irã e China provavelmente obterão as armas de que tanto precisam (S-300 e Su-35 respectivamente). A China também obterá excelentes bons negócios nos preços da energia russa (os chineses são suficientemente espertos para não tentar superexplorar essa nova situação; farão tudo “na medida certa”). Síria e Hezbollah terão mais dinheiro, mais armas e mais apoio político. Países que eventualmente aspirem a tornar-se membros do “Eixo da Resistência contra o Império” terão mais ajuda financeira e política (Cuba, Nicarágua, Bolívia e, especialmente, a Venezuela precisam de toda a ajuda que possam obter); e o mesmo se diga de países mais ou menos pragmáticos que não se venderam completamente aos EUA (os países BRICS, claro, mas também países menores como Argentina, Iraque, Afeganistão, Paquistão e todos os demais que se abstiveram naquela infame votação na ONU, recentemente). Ninguém tampouco deve subestimar a importância da assistência que a China pode dar a esses países ou todos os benefícios que esses países podem obter da cooperação com os demais países BRICS.
Quanto à União Europeia, terá o gás que comprar e pagar, e terá de lidar com as ondas de pós-choque econômico de seu envolvimento na crise ucraniana: terá de manter à tona a economia ucraniana, com o queixo acima d’água, pelo menos, e terá de lidar com o inevitável fluxo de refugiados econômicos; além de caber-lhe o duvidoso prazer de resolver o problema dos “Talibã ucranianos”, hoje soltos sem rédea no Banderastão lá deles. A União Europeia terá de lidar com tudo isso sob o alto patrocínio de EUA que mal consegue disfarçar o desprezo pela Europa, ou que, como no caso Nuland, já nem se dá ao trabalho de disfarçar coisa alguma.
O Tio Sam – que queima sempre tudo em que põe a mão, terá de fazer exatamente isso no seu Banderastão: convertê-lo num Kosovo maior – grande dor para seus vizinhos, e quintal que a máquina militar norte-americana poderá usar a seu bel prazer. Mas, diferente do Kosovo, a Ucrânia fatalmente se partirá em mil pedaços, de um modo ou de outro, embora a ficção de estado funcional possa ser mantida por longo tempo. Especialmente se houver consenso entre as plutocracias que governam o ocidente, de que a forma sempre conta mais que a substância, enquanto se mantiver a aparência de um estado ucraniano unitário, tudo bem.
Francamente, e sem intenção de ofender nenhum ucraniano nacionalista que me leia, o Tio Sam tem peixe muito maior na frigideira, e não se ocupará de problemas de um “Kosovo versão 2” na Europa Central.
As linhas que esbocei acima são, é claro, apenas tendências gerais. Haverá alguns "zigs" e alguns "zags" nesse processo, mas, exceto por algum grande evento imprevisível, esse é, me parece o rumo que as coisas tomarão. Sim, haverá uma eleição presidencial a ser disputada em condições grotescas, um oligarca completamente corrupto como Poroshenko comprará a própria vitória, enquanto os regime de Kiev apoiado pelos EUA e os “Talibã ucranianos” acertam as contas e matam-se entre eles. O mais provável é que a Rússia não intervenha militarmente, a menos que a situação vire loucura absolutamente total. Haverá, mais provavelmente, alguma espécie de acordo EUA-Rússia; e o leste da Ucrânia tentará achar meio de fazer mais dinheiro com a Rússia. A Crimeia viverá um boom econômico sem precedentes, que atrairá muita atenção na falida Ucrânia, que estará desesperada para obter qualquer pequena porção da catarata de financiamentos de que a Crimeia se beneficiará. Como se diz, “dinheiro conversa com dinheiro”.
Quanto a Obama, entrará para a história como o pior presidente dos EUA em todos os tempos. Exceto o seguinte, claro.
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