"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, janeiro 09, 2010

Maçarabi - Santa Isabel

Por Hiram Reis e Silva, Santa Isabel do Rio Negro, AM, 29 de dezembro de 2009

“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)

Parti às sete horas com a intenção de atingir a Comunidade Boa Vista que, também, segundo o mapa do ISA, possui telefone. Durante todo o trajeto, avistei apenas três outras pequenas embarcações cruzando o rio e pouco ou nenhum movimento nas raras comunidades. Grandes bancos de areia me fizeram desviar, por mais de uma vez, da rota planejada. Em cada parada eu me refrescava nas águas cor de chá do Negro, recuperando a energia.

Continuava comparando as fotografias aéreas do Google com o terreno, sem qualquer dificuldade, até chegar ao mapa de número doze. A fotografia aérea estava tomada por nuvens não permitindo avaliar o formato das ilhas ou furos. Marquei o rumo e segui remando. Devo ter entrado em um furo diferente e saí a montante do planejado, avistando algumas ilhas não previstas. Resolvi não arriscar, pois, se ultrapassasse a Comunidade Boa Vista, só chegaria, à noite, à próxima aldeia.

Avistei uma cabana numa prainha a montante do ponto em que me encontrava. Remei forte contra a correnteza e aportei, exausto, no sítio do senhor Manoel Menezes, da etnia Tuiuca. Menezes informou-me que Boa Vista ficava perto, mas eu não estava em condições de continuar.

- Manoel Menezes, um contador de estórias

Montei meu acampamento sob uma rala cobertura de palha e, depois de tomar um revigorante banho e ingerir uma porção de macarrão, crua, estava pronto para descansar. Fiquei conversando, ou melhor, diria, ouvindo meu novo amigo. Falou ininterruptamente sobre a língua geral, das dificuldades para manter seu roçado, de sua vida desde Pari da Cachoeira até as cercanias de Boa Vista, da preparação do caxiri ...

Deixei uns comprimidos para gripe com um dos quatro netos do Sr. Manoel e todo meu estoque de massa. A penúria daquela gente era muito grande. Tinham apenas farinha de mandioca para comer.

- Encontro com a equipe de apoio

Parti às sete horas, já que o trecho a percorrer era mais curto que os demais. Quando ia passando pelo largo da Comunidade Boa Vista, ouvi o Coronel Teixeira me chamando e apontei a proa para a origem dos gritos. Foi bom avistar, pela primeira vez, minha equipe de apoio. Já estava achando que desceria sozinho o Negro. A embarcação usada pela dupla de apoio, porém, era de assustar, feita de um único tronco, seu fundo arredondado não tinha qualquer estabilidade e somente, graças à destreza do piloto, é que se mantinha à flor d’água.

Pedi ao Teixeira que fosse buscar minha bússola, que esquecera na casa do Tuiuca Manoel. Parti antes do seu retorno, tendo em vista que o meu deslocamento era muito lento em relação ao barco da equipe.

A viagem transcorreu sem alterações, e, ao meio dia, numa pequena praia, degustei um peixe pescado e preparado pelo nosso piloto, acompanhado de arroz. A tranquilidade de ter por perto uma equipe de apoio para atender a essas necessidades básicas era confortante. Depois do almoço, seguimos para Santa Isabel.

- Santa Isabel do Rio Negro

A vista da cidade é a mais bela que tive a oportunidade de ver desde o Solimões. A Igreja, o novo Hospital, a Missão e um belo jardim compõem um agradável conjunto para quem chega pelo rio, vindo do norte. Transcrevo, abaixo, alguns dados da Biblioteca Virtual do Amazonas sobre o Município.

Aspectos Históricos

Após e expulsão dos jesuítas da Amazônia, em 1661, o povoamento do rio Negro é relativo, a partir de 1695, com a chegada de religiosos de outras congregações, que, com a finalidade de catequizar os índios, vieram fundando vários povoados ao longo do rio. Em 1728 é fundada a Missão de Nossa Senhora da Conceição de Mariuá, berço da atual cidade de Barcelos. Em 1760, estabelece-se um destacamento militar e, em seguida se constrói um forte no local onde hoje é a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Toda a região constitui, então, a capitania de São José do Rio Negro, com sede em Barcelos.

Aproximadamente meio caminho entre Barcelos e São Gabriel da Cachoeira, floresce a povoação da Ilha Grande, à margem direita do rio e defronte a essa incidência geográfica que lhe deu o nome. Em 1931, quando é definitivamente restaurado o município de Barcelos, a região do atual município de Santa Isabel do Rio Negro fazia parte de seu território. Em 29.12.1956 pelo desmembramento determinado pela Lei Estadual nº 117, é criado o Município de Santa Isabel do Rio Negro, com sede na vila, antigamente chamada Ilha Grande. Em 04.06.1968, pela Lei Federal nº 5.449, o município é enquadrado como Área de Segurança Nacional. Em 10.12.1981, pela Emenda Constitucional nº 12, Santa Isabel do Rio Negro perde parte de seu território em favor do novo município de Bittencourt.

- Agricultura: suporte econômico do setor absorve a maior parte da mão-de-obra local; com destaque para a mandioca, abacaxi, arroz, cana-de-açúcar, feijão e milho. E nas culturas permanentes destacam-se: abacate, laranja, coco, banana, limão, manga e tangerina, ao nível de subsistência.

- Pecuária: não tem representatividade para a formação econômica do setor, registrando-se pequenas criações de bovinos, suínos e bufalinos.

- Pesca e Avicultura: é praticada em moldes artesanais e sua produção é voltada para o consumo familiar. Não incrementa economicamente o setor primário.

- Extrativismo Vegetal: aparece em pequena escala, baseando-se na exploração de gomas não-elástica. Aparecendo num plano mais distanciado, estão a castanha, a piaçaba e borracha”.

Tapuracuara Mirim - Maçarabi

Por Hiram Reis e Silva, Santa Isabel do Rio negro, AM, 29 de dezembro de 2009

“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)

Acordei às 5h30min e comecei a desmontar o acampamento e arrumar os sacos de viagem. Encontrei a comunidade toda fazendo a higiene matinal. Despedimo-nos e deixei avisado que, se a equipe de apoio aparecesse por ali, eu pretendia pernoitar na comunidade de Maçarabi. Escolhi essa comunidade tendo em vista que o mapa que eu conseguira com o Instituto Sócio-Ambiental (ISA) anunciava que lá eu poderia fazer uso de um telefone, para me comunicar com meus familiares e equipe de apoio em Porto Alegre.

- Partida (26 de dezembro)

O deslocamento solitário nos remete à reflexão. Mergulhado, literalmente, na selva tropical, eu ouvia somente o ruído das pás dos remos golpeando as serenas águas do dolente Negro. As paisagens se sucediam como numa caprichosa exposição fotográfica em que entes celestiais procuravam expor suas mais belas imagens. Tinha arbitrado parar nas lindíssimas praias, e a escolha não estava sendo fácil. As festas de Natal, regadas a muita bebida, tinham deixado, apenas para mim, aquela imensidão aquática. As comunidades ainda se ressentiam das ressacas pagãs dos festejos natalinos.

- Comunidade Maçarabi

A comunidade Maçarabi está encravada em altos rochedos na margem meridional do Negro. A visão do alto das rochas é formidável. As diversas ilhas com suas rochas, vegetação e praias nos remetem a uma Amazônica Polinésia. O ruído das inúmeras corredeiras quebra a monotonia silenciosa que envolve o Negro. Contatei o Capitão, graças a Dona Isabel, e este autorizou que eu me estabelecesse na Casa de Apoio. A Casa de Apoio estava localizada atrás das caprichosas instalações da FUNASA. Infelizmente o telefone não funcionava e não consegui estabelecer contato com o meu pessoal.

- Lenda dos Bares

“A teia aracnídea das lendas amazônicas, vasta e complicada, cômica e trágica, tanto mais extraordinária quanto envolta no mistério, é originária de todos quadrantes do globo. (...) Em cada ponto da planície equinocial, no ocidente ou no oriente, nas colinas do sul ou nas serras do norte, inventadas pelo aborígene, trazidas pelo africano, espalhadas pelo português, divulgadas pelo forasteiro, ingênuas, inverossímeis, risonhas, tenebrosas – as histórias dos animais e das sereias, dos gnomos e dos pajés empolgam a imaginação fecunda, plástica da gente que erra no Vale”. (Raymundo Moraes)

Dona Isabel, da etnia Baré, apareceu, mais tarde, para conversar. Viúva, ela morava com a filha e estava desiludida com a maneira de se festajar o Natal nas comunidades. Provoquei-a, para que me narrasse a lenda da origem do povo Baré. As coincidências de relatos me levaram a eleger uma das lendas coletadas por mim, há algum tempo, cujo autor, Braz de Oliveira França, apresenta com certa coerência a origem do povo Baré.

Antigamente, ainda no início do mundo, entrou no rio Negro, vindo do rio maior, um grande navio, cheio de gentes no seu interior, e cada um com seu par. Apenas um homem viajava nesse mesmo navio, pelo lado de fora, pois ele não foi aceito na sua parte interna por não estar acompanhado. Ao passar pela foz do rio Negro, viajava tão próximo das suas margens que os passageiros viram que havia muitas pessoas na beira, inclusive o homem que viajava pelo lado de fora, que, não resistindo à tentação, logo se jogou para fora e nadou para aquele local. Ao alcançar o solo, ele foi agarrado por um grupo de mulheres guerreiras que tinham o costume de aceitar apenas mulheres em seu grupo. Quando tinham necessidade de ter filhos, aprisionavam machos de outras tribos e dessa relação, se nascesse filha mulher, elas criavam, e, se fosse homem, elas o matavam. Esse seria o destino do homem que nadou até a margem, para quem deram o nome de ’Mira-bóia’ (Gente-Cobra), se não fosse sua estrutura física ser um pouco diferente das que elas já conheciam. Por isso, resolveram poupar-lhe a vida depois de terem submetido ‘Mira-bóia’ a um rigoroso teste de masculinidade. As guerreiras, então, prepararam uma grande festa na primeira Lua Cheia. Enorme fogueira no centro do pátio foi feita, muitas frutas e mel silvestre foram coletados. A festa com os seus rituais rolaram durante oito dias. No seu final, o grupo tomou a seguinte decisão: ‘Mira-bóia’ ficaria morando com um grupo com a condição de gerar um filho com cada uma delas. Teria que dormir três noites com uma mulher que estivesse na época do seu período fértil. Terminada essa missão, ele seria executado, assim como todo filho que nascesse homem. ‘Mira-bóia’ então passou a conviver com o grupo por um longo período, nessas condições, até que gerasse filho com a última mulher, e essa última era a ‘Tipa’ (Rouxinol), uma jovem muito bela que estava no primeiro período de menstruação. Ela, por ser a mais nova, a mais bonita e muito querida pelo grupo, teve o privilégio de morar com Mira-bóia até que sua gestação aparecesse visualmente para o resto do grupo. Devido a isso, Tipa e Mira-bóia passaram a viver a dois e, quando ela se percebeu gestante, descobriu-se também perdidamente apaixonada pelo companheiro. O mesmo aconteceu com Mira-bóia. Como o destino do nosso herói seria a morte, ela conseguiu convencer o seu já considerado marido para uma dupla fuga. No primeiro período de Lua Nova, ele e ela fugiram, aproveitando o momento em que as guerreiras saíram para caçar e coletar mel e frutas que serviriam de consumo nos dias da festa de execução do homem, aquele que dera para o grupo muitas guerreiras de sua geração. Foram viver distante dos demais grupos. Acredita-se que esse local tenha sido nas proximidades de Muram, no baixo rio Negro. Depois de mais ou menos 30 anos, a família já estava grande. Tipa e ‘Mira-bóia’, todos os dias, pela tarde, curtiam sua felicidade juntos com os filhos e as filhas de sua geração. Com isso, eles viram que podiam ser uma família muito maior. Foi, assim, que Tupana ordenou que viesse até eles o seu mensageiro, Purnaminari, para lhes dizer o seguinte: ‘Aquilo que vocês estão pensando agrada a Tupana. Por isto, ela me enviou, para ensinar vocês a trabalhar e a garantir a comida de todos os dias’. Purnaminari, então, passou a morar com eles por um longo período, ensinando-os a fazer canoa, remo, roça, armadilha para pegar caça, peixe e treinar o novo grupo para guerra. Quando o pequeno grupo já sabia de tudo que lhe foi ensinado, ele organizou uma grande festa com Dabucury, Adaby e Curiamã, a fim de preparar o povo na sua caminhada, dizendo: ‘Agora que vocês já sabem de tudo que eu lhes ensinei para viver, voltem para a terra de Tipa e tomem todas as mulheres do seu antigo grupo, para serem mulheres de vocês. Dessa forma, vocês serão grandes, respeitados e conhecidos por Baré-mira (povo Baré)’. Purnaminari, o mensageiro de Tupana, voltou várias vezes para visitar e instruir seu povo. O grupo cresceu bastante a ponto de dominar totalmente a região do baixo e médio rio Negro. Ao chegarem a Cachoeira de Tawa (São Gabriel), permaneceram ali até que Purnaminari decidisse o novo destino do seu povo. No entanto, nessa cachoeira Kurukui e Bururi desentenderam-se e brigaram muito entre si. Por isso resolveram separar-se, ficando Kurukui de um lado e Buburi de outro lado do rio. Essa separação acabou provocando desobediência às regras de Purnaminari, que ordenou ao povo não se misturar com outros grupos, porém Kurukui e Baburi acharam que, para poder aumentar os seus grupos, eles tinham que ter muitas mulheres. Foi quando eles guerrearam com grupos menores, para tomar suas mulheres e se multiplicarem. Assim Tipa e ‘Mira-bóia’ fizeram e conseguiram serem pais de um grande povo que, até a chegada dos ‘brancos’, habitava o rio Negro, desde a foz até as cachoeiras. (Braz de Oliveira França)

SGC - Tapuracuara Mirim

Por Hiram Reis e Silva, Santa Isabel do Rio Negro, AM, 29 de dezembro de 2009

“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)

Um desencontro de informações e tivemos de remarcar a saída do dia 24 para 25 de dezembro. O positivo desse atraso é que consegui fazer o ‘upload’ das fotos tiradas em São Gabriel da Cachoeira (SGC), fotografar a Missão Salesiana e mergulhar nas águas do Rio Negro.

“Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.” (Quintino Cunha)

- Partida (25 de dezembro)

Às 4h45min, a viatura do Exército estacionou na porta do nosso apartamento no Círculo Militar do Alto Rio Negro. Como o material já estava perfeitamente embalado, o carregamento foi rápido. O Coronel Teixeira embarcou na boleia do caminhão com os militares, e eu preferi cuidar do meu caiaque, viajando na carroceria. O deslocamento foi rápido até o porto de Camanaus, pois a estrada, asfaltada pela 21ª Companhia de Engenharia de Construção, estava em boas condições. Descemos o caiaque, e carreguei, cuidadosamente, o material no mesmo.

Parti às 5h50min. O sol ainda não havia aparecido no horizonte, mas a tênue claridade era suficiente para que eu pudesse avistar as rochas e desviar delas em tempo. Minha equipe de apoio, capitaneada pelo Coronel Teixeira, partiria no dia seguinte e nos encontraríamos, se tudo desse certo, a jusante da Ilha de Aracabu.

O alvorecer no Negro era totalmente diferente do Solimões. Não havia a gloriosa sinfonia de pássaros acompanhada pelo soturno coral de guaribas (bugios) ao fundo. O sol não demorou a surgir e, como a popa apontava diretamente para o astro-rei, tive de colocar os óculos de sombra. O amanhecer no Negro lembrava o do Purus. As imagens perpassavam pela minha mente numa fantástica velocidade, e eu, ora mergulhando no passado, ora no presente, viajava ao sabor dos acontecimentos de outrora misturados às cenas de agora. Minha memória recolhia fragmentos das passagens de um Alexandre Rodrigues Ferreira.

- Alexandre Rodrigues Ferreira

Rodrigues Ferreira penetrou na embocadura do Rio Negro, em 13 de fevereiro de 1785, e rumou até a Vila de Barcelos, situada na margem direita do rio, 496 quilômetros a montante, aonde chegou no dia 2 de março. Ele montou ali a sua base de operações. Partiu de Barcelos em 20 de agosto de 1785 e continuou a subir o Rio Negro, alcançando, em 14 de novembro, a Fortaleza de São José de Marabitanas, limite extremo do domínio português. Durante o trajeto, explorou diversos afluentes e visitou inúmeras povoações, recolhendo farto material de estudo. Uma semana depois, retomou a Barcelos, em 7 de janeiro de 1786.

Empreendeu uma nova excursão, depois de refeito da viagem ao Alto Rio Negro. A 23 de abril de 1786, desceu o rio e atingiu a foz do Rio Branco; subiu-o, ultrapassando a Fortaleza de São Joaquim, onde permaneceu algum tempo, convalescendo. Explorou diversos afluentes do Branco e regressou à base de operações, chegando a esta em 3 de agosto de 1786.

Na expectativa de instruções da metrópole de além-mar, quanto à nova meta a ser atingida, permaneceu na base de Barcelos até 1788. Nesse período, realizou diversas jornadas no entorno da base, explorando as matas do Rio Negro, e determinou que o botânico Agostinho do Cabo explorasse o trecho do Solimões, até a altura do primeiro pesqueiro (290 quilômetros). Finalmente, após receber determinações expressas de Portugal, deixou a expedição a Vila de Barcelos em 27 de agosto de 1788, em direção ao Rio Madeira.

- Comunidade Tapuracuara Mirim

“Ferreira menciona mais de 60 grupos indígenas, a que faltava até mesmo a identidade lingüística, com os seus variados dialetos. E como as povoações nem sempre se constituíam de famílias da mesma origem, em cada uma delas se ouviam vozes poliglotas, interpretativas do linguajar de cada componente etnográfica. Depois, examina-lhes as superstições, os costumes, os ornatos, bailes, instrumentos de toda espécie”.
(José Pereira da Silva)

Ao sul da ilha de Aracabu, aportei na comunidade Tapuracuara Mirim. Os adultos me olhavam com certa desconfiança e logo descobri a razão, as garrafas de cachaça atiradas pela aldeia. As festividades de Natal, há muitos anos, eram regadas a caxiri e agora pelo produto manufaturado, pago regiamente aos regatões.

Caxiri - para preparar o caxiri deve-se descascar e lavar a macaxeira e cortá-la em pequenos cubos, que são colocados numa panela com água e cobertos com folhas de bananeira, para cozinhar. Após o cozimento, amassa-se bem a macaxeira com uma colher de madeira e deixa-se a massa esfriar. Depois, a macaxeira cozida é triturada até que adquira a consistência de uma pasta. Coa-se a pasta. Acrescenta-se um pouco de água, e a caxiri está pronta para ser consumida. O grau de fermentação depende do tempo destinado a isso; quanto mais tempo, maior o teor alcoólico.

Depois de convencer o vice-cacique, José Vicente Pena, que não era um fiscal da FUNAI e sim um pesquisador, a desconfiança se dissipou e ele ordenou que o caiaque fosse transportado até a sua casa onde fiquei hospedado em um anexo. Embora os líderes das diversas comunidades que encontrei ao longo do percurso fossem de origem tucana, cada uma delas guarda no seu seio diversas etnias, que acabam miscigenando entre si. Existe um certo ressentimento das demais etnias em relação aos tucanos já que, sendo maioria sempre, por votação, ocuparão cargos de liderança nas comunidades

Comprei um pedaço de carne de porco moqueada, e a esposa do professor Agostinho, irmão do vice-cacique, preparou o jantar com um pouco de arroz e dois pacotes de massa que forneci. Comprei do regatão*, estacionado na frente da comunidade, um refrigerante de dois litros a R$ 5,00.

* “(...) O bufarinheiro conhecido nas cidades por teque-teque chama-se, no interior, regatão; somente, em lugar de transportar nas costas – pitoresco atlas da quinquilharia – o mundo de miudezas, transporta-o no bojo de uma galeota que desloca duas, três, quatro toneladas, dividida em seções de secos e molhados e tiradas a remo de faia. (...) Ninguém labuta mais arriscadamente do que ele no vale, rodeado de inimigos, cercado de perigos. Nada o faz, entretanto, esmorecer ou recuar, e, afrontando a própria morte, sobe aos últimos manadeiros para extorquir uma bola de borracha e vender algumas garrafas de cachaça”. (Raymundo Moraes)

São Gabriel da Cachoeira

Por Hiram Reis e Silva – São Gabriel da Cachoeira, AM (23/Dez/2009


“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)


Hoje, 22 de dezembro, apresentamo-nos ao General Rosas, atual comandante da 2ª. Brigada de Infantaria de Selva, e já nomeado para a chefia do Estado Maior do Comando Militar da Amazônia. Depois de um longo e agradável bate-papo, fomos até a 21ª Companhia de Engenharia de Construção, comandada pelo Major Vidal, onde conversamos longamente com os irmãos de arma e fizemos questão de verificar o nosso caiaque, que estava no almoxarifado da Companhia.

Meu parceiro de jornada do Solimões aparentemente estava em condições de enfrentar as águas pretas do Rio Negro. Chequei o material de reparo, fibras de resina, comprado pelo Cel Ebling em Manaus.

Guiados pelo motorista do Comandante da Companhia, realizamos um tour pela cidade. Na delegacia, paramos para fazer contato com o Comandante do Destacamento da Polícia Militar, Capitão PM Lamonge. O Capitão encontrava-se em Manaus e o destacamento estava sobre o comando do Soldado PM Heleno. O Heleno encarregou-se de estabelecer os contatos necessários para conseguir uma ‘voadeira’ para o deslocamento do Cel Teixeira. Este então embarcou na viatura da PM com o Heleno e eu continuei com o motorista da Companhia.

Fomos até a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro ‘FOIRN’. A bela construção de madeira guarda no seu interior belas peças de artesanato de diversas etnias indígenas do Alto Rio Negro. Um conjunto em especial me chamou a atenção: a cestaria Daniwa, cuja harmonia de formas e cores se destacava dentre todos.

Cestaria Daniwa

As grandes cestas são, originalmente, usadas para armazenar alimentos e roupas. Para fins comerciais, são enfeitadas com grafismos coloridos.

A cestaria de arumã é realizada pelos homens. O arumã, de colmos lisos e retos tem sua superfície flexível e permite o corte de finas fibras que são trançadas para formar as cestas. As fibras, sem qualquer tratamento, são usadas na manufatura de cestas mais resistentes. As cestas coloridas exigem um processo trabalhoso que inclui o uso de fixadores extraídos da entrecasca do Ingá e de outras árvores, que é misturado aos pigmentos desejados.

Morro da Fortaleza

Após a visita à FOIRN, dirigimo-nos ao Morro da Fortaleza.

Reproduzimos o texto abaixo do então Capitão Boanerges, quando em missão de demarcação de fronteiras setembro/1928

“Fizemos uma excursão às ruínas do Forte São Gabriel, onde só vimos 8 canhões de ferro abandonados, do tempo de D. Maria I. Foi, com efeito, bem escolhida a posição em que existiu o Forte. Como se sabe, foi mandado construir pelo governador do Pará, Manuel Bernardo de Melo e Castro, em 1763, a fim de evitar incursão de espanhóis procedentes das Províncias da Venezuela e Nova Granada. O Forte, colocado à margem esquerda, a cavaleiro do ponto em que o rio se estrangula reduzido a 370 metros de largura, dominava os dois grandes estirões. Tinha a forma de uma luneta, de figura irregular, cuja gola – que é uma frente abaluartada, - defronte com o rio. Nada mais resta do forte, a não ser os 8 canhões citados”. (Sousa)

Três se encontram hoje na Segunda Brigada e outros três no Quinto Batalhão de Infantaria de Selva.

Nesse local tirei, mais tarde, várias fotos com o Cel Teixeira do alto da caixa d’água da Cosana.

23/12/2009

O major Vidal providenciou para que o caiaque fosse trazido até o Circulo Militar, onde eu e o Cel Teixeira iniciamos sua manutenção. O Teixeira notou um pequeno dano no compartimento de popa, que foi devidamente resolvido por mim com o material de reparo.

Para evitar os problemas que enfrentei no Solimões com o nome do caiaque, Opium, e suas cores azul e amarelo que lembram a bandeira colombiana, resolvi raspar o ‘O’ de Opium e agora navego com o modelo ‘pium’ mais adequado ao contexto amazônico.

Na hora do almoço, o Soldado PM Cavalheiro acertou com o Cel Teixeira o deslocamento da sua ‘voadeira’ pilotada pelo senhor Osmarino, de São Gabriel até Manaus.

Missão salesiana

Na Missão entrevistamos o bispo emérito Walter Ivan de Azevedo. Nascido em São Paulo, trabalhou durante oito anos em Santa Catarina e São Paulo em colégios, desenvolvendo trabalhos com a juventude.

“Sempre tive intenção e desejo de trabalhar como missionário.

Os superiores, então, me mandaram para a Europa fazer o curso de missionário que é antropologia cultural aplicada a envagelização. Permaneci dois anos e mais tarde, um ano me doutorando nessa matéria em Roma. Na Pontifícia Universidade Gregoriana e doutorado na Urbaniana. Fui então para as missões e foi bom porque além de ter um pouco de experiência em visitas com jovens junto às tribos no Mato Grosso, tinha também esse cabedal teórico ou digamos assim: fundamental e cientifico para abordar as missões.

Vim para cá, primeiro como simples missionário em Rondônia, por quatro anos. A partir de 1976. Depois desse período me fizeram inspetor provincial dos salesianos da Amazônia. Visitando as casas paroquiais do Pará, Amazonas e Rondônia, pude conhecer bem a Amazônia. Depois de seis anos de inspetor me fizeram bispo dessa região (SGC) que é uma região onde os habitantes são 90% indígenas e a maior parte dos outros caboclos, de modo que eu estava no meu ambiente mesmo. Trabalhei aqui como bispo diocesano e depois como emérito durante 20 anos. Nesses últimos três anos estou trabalhando com seminaristas em Manaus que são os futuros missionários, quando eu tenho tempo, uma vez por ano, eu fujo para cá para continuar minhas visitas a aldeias, principalmente a nação ianomâmi que é a mais primitiva ou seja, aquela que teve contato mais recente com os civilizados.”

O bispo editou diversos livros, dentre os quais ‘Pinceladas de Luz na Floresta Amazônica’ que reproduzirei, oportunamente, alguns trechos no meu livro sobre o Rio Negro. O livro não é uma narrativa de viagens, muito menos a biografia de um missionário; é tudo aquilo que Dom Walter conheceu de bom e de belo na natureza, mostrando, principalmente, o homem da Amazônia.

Fontes:

BOANERGES, Lopes de Sousa – Do Rio Negro ao Orenoco - Brasil, Rio de Janeiro, 1959 – Ministério da Agricultura – Conselho Nacional de Proteção aos Índios.

Projeto Sargento Agrário

Por Hiram Reis e Silva, Manaus, Amazonas, 20 de dezembro de 2009.

“Mais do que um simples plantador de hortaliças e criador de pequenos animais na área do quartel, ele tem de ser um técnico em assistência e extensão rural destinado a incentivar as comunidades no entorno dos Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs) a estabelecer uma produção rural continuada e permanente”. (General de Divisão Marco Aurélio Costa Vieira)

No dia 19 de dezembro, de manhã, eu e o Coronel Teixeira fomos até o Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) onde se realiza, de quinze em quinze dias, a Feira de Produtos Regionais, para encontrar o ‘16’, coronel da PM Leão, companheiro do Curso de Operações na Selva, em 1999.

- Feira de Produtos Regionais

Além da grata oportunidade de rever o velho amigo, pudemos, através do General Marco Aurélio e do coronel Lauro Pastor, conhecer de perto este projeto de iniciativa da Região Militar, que visa possibilitar a inclusão de produtos regionais no cardápio das Organizações Militares do Exército Brasileiro sediadas em Manaus e a comercialização desses produtos junto a população manauense, sem intermediários.

Desde fevereiro de 2008 a feira vem estimulando o consumo de produtos oriundos da agricultura regional, beneficiando os pequenos e médios produtores do Estado do Amazonas.

A parceria, inédita no País, conta com mais de sessenta expositores, que comercializam carnes, peixes, mel queijos, ovos, frutas, hortaliças e artesanato por preços bem mais acessíveis, beneficiando mais de três mil e quinhentas famílias ligadas à agricultura familiar.

Os Sargentos Agrários comparecem à feira com a missão de verificar a qualidade e o preço dos produtos.

- Amazônia! O eterno desafio!

“As hortas de Cucuí são todas suspensas em caixas feitas com paus roliços ou caixotes, algumas diretamente sobre o rio. Disseram-me que a pobreza do solo e o grande número de saúvas eram responsáveis por tal medida. Aliás já venho observando isso desde Barcelos acima. Nestas caixas, colocam apenas solo mais humoso, retirado do subosque da mata. Aqui em Cucuí até as bananeiras são cercadas, e no seu pé também é amontoada terra do subosque. (...) Assim é que um pé de feijão germina e cresce assustadoramente em poucos dias. Daí em diante, qualquer sol ou chuva mais forte, causa queima de suas folhas ou tombamento de sua haste. Chegado o momento de produzir, a planta já exauriu grande parte de suas reservas, sendo, dessa forma exígua a produção. Pensei também nessa lei natural tantas vezes observada na fazenda de meu pai, quando criança. Uma planta em solo muito favorável a seu cultivo, nem sempre era a que produzia mais. Assim é que nos arrozais plantados em terreno virgem cresciam assustadoramente e, na época do cacheamento, soltavam apenas uns poucos cachos raquíticos aqui e acolá, logo tostados pelo sol ou mantidos sem granar por efeito das chuvas. Acredito que, no Amazonas, o fenômeno seja o mesmo, não tanto em relação ao adubo, porém em se considerando, sobretudo, a umidade e o calor”.
(Dr. José Cândido de Melo Carvalho)

“O inusitado de servir e trabalhar na Amazônia é que, passados séculos, muitos dos desafios praticamente permanecem, a despeito de toda tecnologia, apesar dos novos conhecimentos que deveriam facilitar o dia a dia e em que pese o imenso esforço despendido pelos nossos antecessores.

Na verdade, a renovada vontade de conduzir esforços, projetos e programas, quase sempre tem sido vencida pela perversa solução de continuidade decorrente da democrática mudança de governos, em todos os níveis. Assim que inúmeras das iniciativas jamais saíram da fase embrionária, ou se perderam totalmente mesmo depois de concretizadas, pela falta de recursos dos planejamentos irreais, ou pelo desinteresse daqueles dirigentes que elegeram suas próprias prioridades, criando-se assim várias ruínas de belos empreendimentos, abandonados ao longo de sucessivas administrações.

No campo militar não foi diferente, e os valorosos militares que nos antecederam também tiveram de contabilizar muitas frustrações, ainda que em menor escala, também frutos dessa descontinuada gestão através dos tempos. Mesmo os Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs), cujas Comunidades do entorno sempre contaram com a organização, hierarquia e disciplina castrenses, a natural alternância periódica de pessoal ocasionou significativos hiatos administrativos, com profundos reflexos nas ações de subsistência e infra-estrutura, principalmente quanto aos sistemas de geração de energia, sistema viário e de saneamento básico!

Cientes do sofrimento dos nossos antecessores, louvando-se da experiência, do esforço e do exemplo incansável dos soldados que conquistaram e souberam manter a Amazônia, os militares da atualidade entendem que tem de mudar esse quadro.

Hoje, sabe-se que assegurar a permanência de recursos e a continuidade dos projetos são a certeza da garantia de uma qualidade de vida mínima para o militar e sua família, além de um desenvolvimento humano necessário à comunidade do entorno das Organizações Militares da Fronteira, aspectos fundamentais ao bom desempenho na missão constitucional do exército para a defesa da pátria.

Neste sentido, o exército vem implementando projetos empreendedores de longo prazo junto aos Grandes Comandos Operacionais da Amazônia Ocidental com responsabilidade sobre as Unidades na fronteira, observando como condição básica a característica de disporem de mecanismos de defesa contra a solução de continuidade.

Um deles, justamente o pioneiro, apesar das dificuldades iniciais, já começa a fincar as suas raízes. Trata-se do chamado ‘Projeto Sargento Agrário’, fruto de uma idéia simples de aproveitamento de profissionais egressos da Escola Agrotécnica Federal de Manaus para o trabalho junto aos PEFs.

(...) Estrategicamente, o Sargento Agrário vai cumprir a sua missão quando obtiver a sustentabilidade do Pelotão e da comunidade, que inclusive poderá passar, em curto espaço de tempo, a fornecer gêneros para os militares e suas famílias.

Este é o desafio do Sargento Agrário”. (General de Divisão Marco Aurélio Costa Vieira)

- VIDA, COMBATE E TRABALHO!

“O Pelotão Especial de Fronteira (PEF) é uma Organização Militar com características diferenciadas. A missão de um PEF não se limita ao campo da atividade militar (Combate), mas inclui, necessariamente, atividades ligadas à sobrevivência (Vida) e à prestação de serviços diversos (Trabalho) em favor da Organização Militar e da Comunidade Civil, indígena ou não, das imediações do aquartelamento.

Pela sua localização em plena área de floresta Amazônica, os PEFs buscam desenvolver seus trabalhos observando fielmente o chamado tripé da sustentabilidade, a fim de garantir a preservação da floresta, da biodiversidade e da cultura local, quer seja ele indígena ou ribeirinha.

Amparado no tripé da sustentabilidade, a missão do PEF pode ser expressa pelo seguinte viés: VIDA, COMBATE E TRABALHO!

A VIDA pode ser observada nos quesitos ligados às atividades de cultivo de hortaliças, da fruticultura, da piscicultura, na criação de pequenos animais, na preservação do meio ambiente e no bem-estar e lazer das famílias.

As atividades de COMBATE podem ser observadas na instrução militar, nos exercícios de adestramento da tropa, no patrulhamento e no reconhecimento da área de fronteira do estado do Amazonas, além da defesa do aquartelamento e de combate a incêndio.

No quesito TRABALHO são desenvolvidas atividades de manutenção das instalações, dos equipamentos, atividades de saúde e serviços diversos. Junto às Comunidades desenvolvem-se trabalhos de preservação da cultura, preservando as etnias indígenas, apoio em serviços de transporte e evacuação aeromédica.

Os PEFs desenvolvem um papel de relevância nas comunidades fronteiriças contribuindo não só para a defesa nacional, mas também no apoio àquelas populações distantes dos benefícios públicos. E é nesse ambiente que os Sargentos Agrários desenvolvem seu trabalho, servindo de importante elo de ligação entre o Pelotão e a Comunidade”. (Ten Cel R/1 Lauro Pastor)

Fonte: CARVALHO, José Cândido de Melo - Notas de viagem ao Rio Negro - Brasil, São Paulo, 1983 - Edições GRD