"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, outubro 04, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 02/10/07

Turismo responde por 5% de emissões de gás-estufa

Se o turismo fosse um país, figuraria como o quarto maior poluidor de CO2 do mundo, à frente do Japão e da Alemanha. Dados publicados ontem pela Organização das Nações Unidas (ONU) estimam que o setor gere 5% de todas as emissões no mundo (1,3 milhão de toneladas) e que, em 2035, os valores irão dobrar. A reportagem é de Jamil Chade e publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 2-10-2007.

“No futuro, o maior desafio para o turismo será o clima”, diz o texto. Desde ontem, em Davos, ministros de todo o mundo, especialistas e organizações internacionais tentam elaborar uma estratégia que torne o setor compatível com as preocupações climáticas. Só o transporte corresponde a 75% das emissões do turismo.

Hoje, o turismo internacional gera US$ 800 bilhões, US$ 205 bilhões nos mercados de países em desenvolvimento. Para 45 governos do Caribe e outras regiões menos favorecidas, responde por 40% do PIB. O Fórum Econômico Mundial estima que o setor é o que mais cresce no mundo. Segundo a Organização Mundial do Turismo, o número de passageiros internacionais dobrará até 2020, chegando a US$ 1,6 bilhão/ano.

O que preocupa os especialistas é que, em 30 anos, as emissões vão dobrar se nada for feito. Nesse cenário, o setor aéreo representará 52% das emissões, algo que não seria compatível com as metas mundiais. Mas, se todas as novas tecnologias disponíveis forem adotadas, a possibilidade é que as emissões sejam reduzidas.

TETOS

Os europeus sugerem que o setor aéreo estabeleça limites e pague altas taxas se passar de um teto a ser criado, mas encontra a resistência de países emergentes, como o Brasil. Assim como em outras áreas, o governo quer evitar que turismo e companhias aéreas adotem, por enquanto, tetos para a emissão de gases-estufa.

“Nem sequer sabemos quanto é exatamente gerado e quem é o responsável”, afirma Norton Lenhart, presidente da Federação Nacional de Hotéis, Restaurantes e Bares. Segundo o secretário de Turismo, José Evaldo Gonçalo, poucos setores são tão dependentes do clima como o turismo. “Somos responsáveis, mas também somos vítimas”, alertou.
70% dos brasileiros não se sentem seguros, diz estudo

A sensação de insegurança atinge 70% dos brasileiros e é a maior do mundo, segundo relatório divulgado ontem pela Organização das Nações Unidas (ONU). A estatística faz parte do Relatório Global sobre Assentamentos Humanos, do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Urbanos (UN-Habitat), que este ano aborda o tema da segurança em várias cidades do mundo. O relatório mostra que São Paulo responde por 1% de todos os homicídios do planeta - apesar de ter apenas 0,17% da população mundial. A notícia é do jornal Valor, 2-10-2007.

Segundo o relatório, no Rio de Janeiro, os índices de homicídios triplicaram desde a década de 70, enquanto que em São Paulo o número quadruplicou. No Brasil, mais de 100 pessoas são mortas por armas de fogo todos os dias, e na América Latina, onde 80% das pessoas moram em áreas urbanas, cidades como Rio de Janeiro, Lima, Cidade do México, São Paulo e Caracas são responsáveis por mais da metade de crimes em seus respectivos países. A estatística confirma que a cultura do medo do crime e da violência está enraizada na maioria dos países.

A pesquisa foi feita em cidades de 35 países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os entrevistados responderam à pergunta: sentem-se seguros quando voltam para casa à noite? Os índices mais elevados de percepção de medo vieram do Brasil (70%) e o menor índice foi da Índia (13%).

Instituto Humanitas Unisinos - 02/10/07

Mangabeira afirma que não haverá uma política industrial

Em um encontro fechado com empresários pesos pesados, ontem, em São Paulo, o filósofo Roberto Mangabeira Unger, ministro sem pasta do Governo Lula, voltou a exercitar sua capacidade de provocar polêmica ao afirmar que não era importante para o país ter grandes conglomerados nacionais. Para completar, disse que, por ele, não faria nenhuma política industrial. A notícia é de Guilherme Barros e publicada no jornal Folha de S. Paulo, 2-10-2007.

As declarações de Mangabeira, feitas durante almoço organizado pelo Iedi, deixaram os empresários um tanto quanto perplexos e motivaram discussões acaloradas. Os empresários não esconderam suas discordâncias com as teses defendidas por Mangabeira. O encontro se estendeu das 12h às 15h.

Na platéia, estavam nomes como Josué Gomes da Silva (presidente da Coteminas e do Iedi e filho do vice-presidente José Alencar), José Roberto Ermírio de Moraes (Votorantim), Benjamin Steinbruch (CSN), Roberto Vidigal (Confab), Miguel Etchenique (Brastemp), Paulo Francini (Fiesp), Eugênio Staub (Gradiente), Lírio Parisotto (Videolar), Ivoncy Ioschpe (Iochpe), Walter Fontana (Sadia) e Amarílio Macedo (grupo J. Macedo), entre outros.

Mangabeira foi acompanhado do economista Marcio Pochmann, presidente do Ipea.

Ele defendeu basicamente a tese de que o mais importante para o Brasil, hoje, é incentivar o empreendedorismo da classe média. Mangabeira afirmou que existe no país uma classe empreendedora que não possui condições de executar suas idéias e é essa parcela da sociedade que pretende apoiar.

O filósofo disse que seu plano compreende ações importantes na área de educação, mudanças na cobrança de impostos sobre a folha de pagamentos das empresas, a ocupação responsável da Amazônia e programas para a Defesa.

O que mais assustou os empresários foram as declarações de Mangabeira contrárias à formulação de uma política industrial. A defesa da política sempre foi uma das principais bandeiras do Iedi e está sendo costurada no governo pelo ministro Miguel Jorge (Desenvolvimento) e por Luciano Coutinho, presidente do BNDES. O governo pretende anunciar ainda neste ano a nova política industrial.

Os empresários tentaram convencer Mangabeira da necessidade de uma política industrial para o país e da importância das grandes empresas, mas a impressão foi de que o esforço foi em vão.

Sobre o fato de a sua pasta, a Secretaria de Longo Prazo, ter sido criada pelo governo e extinta pelo Senado na semana passada, Mangabeira não manifestou nenhuma preocupação. Disse que o presidente Lula irá recriá-la em breve.

Instituto Humanitas Unisinos - 02/10/07

Vale supera não só a Petrobras mas também a IBM

Na sexta-feira, a Vale do Rio Doce já havia surpreendido ao passar a Petrobras, em relação ao seu valor em bolsa. Ontem, fez mais. Ultrapassou a gigante IBM. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo, 2-10-2007.

Instituto Humanitas Unisinos - 02/10/07

A importância do Atlântico Sul para o clima global. Entrevista especial com Ana Luiza Spadano.

Muito se fala que é a ação do homem que tem causado os problemas no clima da Terra. Segundo a professora Ana Luiza Spadano, “é preciso ter mais atenção para os estudos de paleoclima integrados com os estudos de mudanças climáticas”, ou seja, não é apenas a ação do homem que altera o clima no nosso planeta, mas a própria Terra muda de tempos em tempos a sua condição climática. A doutora em Biologia estuda os oceanos para entender essas variabilidades. Sobre este assunto, ela falou, por telefone, à IHU On-Line.

Ana Luiza Spadano é graduada em Ciências Biológicas, pela Universidade Santa Úrsula, com mestrado em Ecologia e Recursos Naturais, pela Universidade Federal de São Carlos. Seu doutorado, em Geociências, foi feito na Universidade Federal Fluminense e o pós doutorado pelo Institut de Recherche pour le Developpement, na França.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o fenômeno da ressurgência (1) explica as constantes variações do clima nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, atualmente?

Ana Luiza – As maiores ressurgências do mundo acontecem na costa oeste dos oceanos. Na costa leste do continente, que é a nossa costa, existem pequenas ressurgências, e Cabo Frio - que é a região que eu pesquiso - não é a única delas. Uma ressurgência costeira é causada por alguns fatores. Os mais importantes são os ventos. No caso de Cabo Frio, essa ressurgência é controlada pela intensidade e pela freqüência dos ventos alísios (2), que são ventos muito importantes para essa região e estão relacionados com mecanismos climáticos que controlam o clima na América do Sul inteira. Esses ventos se deslocam do norte para o sul, próximo ao Equador, dependendo da estação do ano.

Uma outra zona que hoje em dia tem sido muito falada nos meios de comunicação é a Zona de Convergência do Atlântico Sul (3), que nada mais é do que um excesso de umidade que o calor da Amazônia desloca para a região Sudeste do Brasil e acaba atingindo Cabo Frio. Além desses dois fenômenos que condicionam a sazonalidade do clima no Brasil inteiro, há outro fenômeno que afeta o mundo todo: o El Niño (4). Por isso eu escolhi estudar a ressurgência de Cabo Frio, pois conforme a intensidade e a duração da ressurgência eu consigo “mexer” com esses três mecanismos climáticos, ou seja, com o deslocamento da zona de convergência intratropical, com a formação da zona de convergência do Atlântico Sul e com os fenômenos El Niño.

IHU On-Line – Quais são os déficits do Brasil, hoje, em relação às políticas públicas que podem diminuir as conseqüências do aquecimento global?

Ana Luiza – Consultando o site do Ministério da Ciência e Tecnologia, descobrimos que existe uma comissão em prol das políticas públicas relacionadas à mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Na minha área, eu trabalho com a ciência básica para o entendimento das mudanças climáticas. De fato, eu estudei o clima do passado para validar os modelos de clima. As pessoas que fazem o modelo de clima estão testando-os para prever o clima daqui a cinqüenta, cem e duzentos anos. No entanto, eles sabem que os modelos de clima têm incertezas e a única maneira de testar se um modelo está funcionando bem ou mal é aplicar esse modelo, que de fato servirá para simular o clima do futuro, “rodando” ele para o passado.

Dessa maneira, podemos verificar se o clima está sendo bem reconstituído, ou seja, eu sei que a zona de convergência intercontinental mudou com esse tipo de teste. São esses fatos que nós reconstituímos na nossa pesquisa. E aí os modelizadores do INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial - rodam os modelos para o passado, especificamente para seis mil anos atrás porque nessa época a insolação no hemisfério sul é peculiar, diferente. O grau de insolação é uma das modulações mais importantes que os pesquisadores utilizam. Rodando para o passado é possível verificar quais os mecanismos em que os modelos estão sendo eficientes ou não. Nesses mecanismos, nós verificamos que muitos modelos têm dificuldade de prever para o futuro os tipos de mecanismos de altas freqüências, como as chuvas que acontecem em dias de muito calor. Esses mecanismos de clima muito rápidos, de um dia para o outro os modelos têm dificuldade de reconstituir. Então, as validações de modelos servem para isso. Mas servem também para essas políticas que estão na página do Ministério da Ciência e Tecnologia, na qual se fala muito em energia limpa, na utilização e em fazer pesquisa para buscar energia limpa.

Eu concordo com isso. Uma das bases para se mitigar a mudança climática é a base da matriz energética. No entanto, nós sabemos que os modelos lidam com incertezas muito grandes, e a única forma de diminui-las é melhorar a qualidade dos modelos. Para isso, é preciso ter mais atenção para os estudos de paleoclima (5), integrados com os estudos de mudanças climáticas. Eu penso que é preciso dar mais atenção para a ciência básica na questão da melhoria dos modelos de previsão climática, tanto em relação às previsões globais, que não têm feitos do que os humanos fazem, quanto aos modelos regionais, que são recortes desses modelos globais e que o INPI agora tem capacidade de analisar com os novos materiais e recursos que adquiriu.

IHU On-Line – Qual é a importância do estudo da evolução dos ambientes costeiros e continentais para entendermos as mudanças climáticas que têm ocorrido no Brasil?

Ana Luiza – É fundamental. O clima é resultante do fato da integração de pelo menos quatro componentes terrestres: o oceano, a atmosfera, o continente e a biosfera, que são os efeitos positivos e negativos da ação do homem em relação ao clima. Mas também eu estou levando em consideração, ao estudar a biosfera, os efeitos naturais, por exemplo, a ocorrência dos vários biomas (6). Todos esses mecanismos juntos provocam o clima que a gente tem hoje. Qualquer grande modificação desses mecanismos vai provocar uma grande alteração no clima. Hoje em dia, a Terra tem uma configuração geográfica que contribui para que alguns sintam mais os efeitos das mudanças no clima do que outros porque a maior parte dos continentes está no hemisfério norte. No sul, temos, por conseqüência, muito mais oceano do que continente. Então, o balanço de energia faz com que o Atlântico Sul, atualmente, seja extremamente importante, pois é um doador de calor para o hemisfério norte. A água demora mais a se aquecer, mas também demora mais a se resfriar, diferente do continente. Então, porque nós temos muita água no hemisfério sul, possuímos um clima global, atualmente, controlado por uma doação de energia que vem do calor latente do hemisfério sul para o hemisfério norte através de uma circulação atmosférica e, principalmente, oceanográfica do hemisfério sul para o norte. Se a temperatura do Atlântico Sul mudar, vai causar conseqüências no clima do globo inteiro, especialmente no hemisfério norte. Por isso, é extremamente importante estudar o oceano, o continente e, obviamente, a biosfera.

IHU On-Line – Em seus estudos, como o Oceano Atlântico pode nos ajudar a compreender as variações do clima?

Ana Luiza – A base do meu estudo é a interconexão do oceano. Então, eu estudo, atualmente, o oceano em dois locais do Brasil: Rio de Janeiro e no Chuí. Estudo também as lagoas, o nível delas no Rio de Janeiro e no Nordeste do Brasil. Escolhi essas regiões porque a costa fluminense está respondendo a uma ressurgência na própria costa do Rio de Janeiro. E, em segundo lugar, é que o Nordeste do Brasil é o primeiro a sentir qualquer alteração de clima no país nos últimos 20 mil anos. A variabilidade entende que o clima tem alternâncias e que, de tempos em tempos, temos invernos nem tão frios e verões nem tão quentes. E isso nem sempre é sinal de mudança climática, e sim de uma variabilidade natural do clima. Antes da interferência humana sobre o clima, toda a variação do clima está ligada à variabilidade natural. Quando o homem está participando da modificação do clima, aí sim podemos pensar em políticas públicas, para entendermos como o clima se altera. Então, para entender as mudanças climáticas, é preciso saber de onde vem o fenômeno que a modificou.

IHU On-Line – Quais são os nossos desafios de planejamento e gestão das mudanças climáticas?

Ana Luiza – Claro que tenho um ponto de vista de quem olha o clima de outra forma. Por isso, acho que o desafio número um, e que ainda não tem tanta importância dada a ele, é a melhoria na qualidade dos modelos de previsão do clima, especialmente os estudos regionais. Os modelos de clima são globais. Obviamente, a América do Sul é influenciada por uma mudança climática que acontece em outro lugar, interferência atmosférica que acontece no globo inteiro. Existe a possibilidade de se fazer recortes nesses modelos globais e a gente entender melhor a variabilidade em escalas, tanto temporais quanto espaciais. Quer dizer, como é que o Brasil, estado por estado, região por região, em termos largos e curtos, sofreria com as mudanças climáticas? Isso precisa ser pesquisado.

Nós precisamos investir, sem dúvida alguma, em matrizes energéticas limpas. O ponto em que acredito que o governo esteja dando maior importância nós vemos mais na mídia, como o biocombustível como uma matriz energética capaz de, a longo prazo, mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Eu concordo com isso, mas só isso não resolve. Se a gente partir do princípio que o Brasil vai ser o país que vai plantar cana-de-açúcar para produzir biocombustível, se o país inteiro produzir cana e soja, economicamente vamos deixar de plantar outros tipos de alimentos para abastecimento interno e isso vai ter conseqüências, mas não pode partir do princípio de que a gente vai ser um exportador de biocombustível para o mundo inteiro em detrimento de não plantarmos para nossa própria população. Então, precisamos ter investimento em matriz limpa sim, mas não apenas biocombustível como o etanol. O governo está esquecendo, dando menos valor à melhoria dos modelos e às políticas de combate ao aquecimento global e utiliza um modelo simplista plantando cana-de-açúcar. Minha forma de ver esse problema é que se deve dar mais valor à ciência básica.

IHU On-Line – Quais são as suas perspectivas para o futuro da Terra?

Ana Luiza – Eu costumo dizer, nas minhas aulas, que o clima, de qualquer forma, altera, muda de uma forma ou de outra, e nós estamos alterando o clima também, mas de uma forma que estamos alterando uma variabilidade natural do clima. As minhas perspectivas são baseadas no que eu conheço das alterações do clima ao longo dos quatro bilhões e meio de anos que a Terra existe. O clima vai mudar de qualquer maneira, por causa do homem ou não. O que o homem está fazendo e o que estamos vivendo agora é uma mudança devido à atividade humana sobre a Terra, mas as minhas previsões são muitos naturalistas. O que nós estamos fazendo é apressar uma variabilidade negativa a nós mesmos e que infelizmente nós vamos causar e agravar crises sociais, econômicas. Já estamos pagando o preço por tudo isso. Há alguns anos, acreditávamos que quem pagaria o preço seriam as populações que viriam daqui a cinqüenta ou cem anos, e agora nós temos a certeza de quem pagará o preço das mudanças climáticas serão as gerações que já estão aí, ou seja, meus filhos, seus filhos. Quando eu dou palestra em ambiente universitário, eu digo que os alunos mesmos vão arcar com o preço das mudanças climáticas. Ou seja, contando de hoje até daqui duzentos anos, se a gente não fizer nada ou tudo para parar o clima, de qualquer forma ele já estará alterado e a pior conseqüência não é o clima propriamente dito, em minha opinião. A pior conseqüência da mudança climática é a social, no sentido da saúde humana, na alteração das oportunidades de trabalho, nos privilégios de alguns setores em detrimento de outros, nas crises sociais que vão acontecer como efeitos da escassez de determinados recursos, como a água.

Notas:

(1) O fenômeno da ressurgência é caracterizado pelo afloramento de águas profundas, geralmente frias e ricas em nutrientes, em determinadas regiões dos oceanos. Essas regiões têm, em geral, alta produtividade primária e importância comercial para a pesca. Na costa brasileira é bastante conhecida a ressurgência costeira de Cabo Frio, cujo núcleo principal tem sido observado a oeste dessa localidade. Essa ressurgência, entretanto, é marcadamente sazonal, ocorrendo com maior freqüência no verão do que no inverno. A massa de água que aflora nas proximidades da costa na chamada ressurgência de Cabo Frio é a Água Central do Atlântico Sul.

(2) Os Ventos Alísios são ventos que ocorrem durante todo o ano nas regiões tropicais, sendo muito comuns na América Central. São o resultado da ascensão de massas de ar que convergem de zonas de alta pressão nos trópicos, para zonas de baixa pressão no Equador, formando um ciclo. São ventos úmidos, provocando chuvas nos locais onde convergem.

(3) A Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) consiste numa banda de nebulosidade semi-estacionária, que se estende desde o sul da Amazônia, passando pela Região Centro-Oeste e prolongando-se para o Oceano Atlântico, acarretando chuvas que podem ser intensas.

(4) El Niño é um fenômeno atmosférico-oceânico caracterizado por um aquecimento anormal das águas superficiais no oceano Pacífico Tropical, e que pode afetar o clima regional e global, mudando os padrões de vento a nível mundial, afetando, assim, os regimes de chuva em regiões tropicais e de latitudes médias.

(5) Clima de antiga era geológica.

(6) Biomas são as grandes formações vegetais encontradas nos diferentes continentes e devidas, principalmente, aos fatores climáticos (temperatura e umidade) relacionados à latitude.

Instituto Humanitas Unisinos - 01/10/07

Fusão de Santander e ABN mudará mapa do mercado

Termina nesta semana a batalha pelo controle do banco ABN AMRO. A disputa começou em março, na Europa, e terá profundas repercussões no mercado brasileiro. É praticamente certa a vitória do consórcio formado pelo espanhol Santander, o britânico Royal Bank Scotland (RBS) e pelo belga-holandês Fortis. A reportagem é de Maria Christina Carvalho e publicada pelo jornal Valor, 1-10-2007.

A proposta do consórcio de 71,1 bilhões de euros é superior à de 68 bilhões de euros do outro interessado, o britânico Barclays. Na sexta-feira, os acionistas do banco holandês vão definir sua opção.

Caso o consórcio saia vencedor, a idéia é dividir o ABN AMRO conforme os interesses geográficos de cada membro do grupo. Como se antecipa amplamente, as operações brasileiras vão ficar com o Santander, mais do que dobrando sua plataforma no país. A soma dos músculos do ABN AMRO e do Santander vai criar um dos líderes do mercado brasileiro, com reverberação em todos os outros bancos, que já estão se mexendo.

A soma do ABN com o Santander criará o maior banco privado mercado e o segundo depois do Banco do Brasil (BB), de acordo com o ranking dos 50 maiores bancos, feito pelo Banco Central (BC) com base nos ativos excluída a intermediação financeira.

Pelo critério mais amplamente aceito pelos analistas, que leva em conta os ativos totais incluindo seguros e outros produtos, o novo banco só perderá do Bradesco e do BB. O incômodo não será só para o Bradesco, na dianteira por uma margem estreita, mas também - e principalmente - para o Itaú e Unibanco, que perderão os tradicionais primeiros lugares.

"Há sempre uma superposição de ativos de modo que não dá para somá-los simplesmente. Mas os outros bancos terão que olhar com respeito o competidor e crescer não só orgânicamente. Tamanho não é tudo, mas é importante", disse a analista da Standard & Poor's, Tamara Berenholc.

Não é por outro motivo que o mercado já fervilha com rumores de uma nova rodada de aquisições nem bem os acionistas do ABN AMRO batam o martelo. Quem não comprar, pode virar alvo.

Para complicar o posicionamento, novos gigantes internacionais como o Scotiabank, estão voltando a olhar o mercado brasileiro. E a alternativa de compra de bancos estaduais foi frustrada depois que o governo resolveu levar o BB a absorver o Besc, o Banco do Piauí e o Banco Regional de Brasília (BRB).

Instituto Humanitas Unisinos - 01/10/07

Costa Rica. Protesto contra acordo com os EUA atrai 100 mil

Mais de 100 mil costarriquenhos protestaram ontem contra o Tratado de Livre Comércio da América Central, a ser fechado entre os EUA e os países da região -Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana. A notícia é do jornal Valor, 1-10-2007.

A Costa Rica foi o único a não ratificar o acordo, que dividiu a população. Cantando "Não ao pacto de livre comércio" e "Costa Rica não está à venda", manifestantes ocuparam as ruas de San José, afirmando que o acordo inundará o país com produtos da agroindústria mais baratos, causando desemprego. Em 7 de outubro haverá referendo sobre a questão. Segundo o jornal "La Nación", o sim tem 50,6%, o não, 44.7%, e a margem de erro é de 3,8 pontos percentuais.

terça-feira, outubro 02, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 30/09/07

'A América Latina permaneceu às margens da história ocidental e aí continua'. Entrevista com Eric Hobsbawm

Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, Eric Hobsbawm tem sido questionado por continuar a defender uma utopia transformada em ruínas. A longa vida do pensador marxista, que completou 90 anos em junho, foi, até aqui, suficiente para que acompanhasse o nascimento de um sonho e sua gradativa revelação como pesadelo.

Mas nem só de desilusões ideológicas vive o calejado historiador, certamente o mais importante ainda em atuação. Agora, Hobsbawm parece mesmo satisfeito ao vaticinar, em seu novo livro de ensaios sobre temas contemporâneos, "Globalisation, Democracy and Terrorism", que a experiência do imperialismo norte-americano também está com seus dias contados. "O mundo hoje é muito complicado para que apenas um país o domine", diz. "A única certeza que podemos ter sobre a atual superioridade norte-americana é que ela será, para a história, apenas um fenômeno temporário, como foram todos os impérios." A reportagem e a entrevista é de Sylvia Colombo e publicada no jornal Folha de S. Paulo, 30-09-2007.

Foi para falar de suas convicções 'indestrutíveis' que o aparentemente frágil Hobsbawm recebeu a reportagem da Folha em sua casa, em Hampstead, bairro nobre no norte de Londres, na última quarta-feira. Ele e a mulher, Marlene, tinham acabado de voltar de uma temporada no País de Gales, onde têm uma casa. Viajante inveterado toda a vida, Hobsbawm diz que tem saído menos. "Hoje em dia pedem para que a gente vá falar em todo lugar, é muita palestra, muito festival de livros. Gosto de viajar, mas tenho me cansado", diz o historiador, que contou também estar se tratando de uma "leve leucemia".

Na sala onde recebe as visitas, aponta para sua poltrona favorita, "eu costumo me sentar aqui", e acomoda-se, esperando aplicadamente as perguntas. Fala devagar, mas com firmeza. Gesticula, e procura os olhos do interlocutor ao final de cada afirmação, como que buscando saber se foi compreendido mesmo.

Momentos depois de iniciada a entrevista, entra Marlene com um pedaço de papel nas mãos. "Estão ligando do Times, querem saber se você pode comentar a fala do Miliband sobre Gaza." Hobsbawm diz que agora não pode, talvez depois. David Miliband, novo ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, é um jovem político tido como talentoso e agressivo, que está cobrando uma nova posição do país com relação à ocupação do Iraque.

"Toda hora estou fazendo pequenas coisas, falando ou escrevendo para jornais sobre assuntos do momento. Eles vivem me pedindo comentários disso ou daquilo." Cotidiano de trabalho? "Não tenho. Depende do que há ou aparece para fazer, sem rotina."

Eis a entrevista.

Na introdução de 'A Era das Revoluções', o sr. fez uma descrição de como era o mundo na década de 1780 --como as pessoas viviam, quanto demoravam para viajar, quanto tempo uma mensagem levava para chegar de um canto da Europa para outro, que tipo de idéia do mundo as pessoas comuns podiam ter. Se o sr. fosse fazer a mesma análise do mundo hoje, que aspectos seriam mais relevantes?

Eu tentaria começar a descrevê-lo a partir do que se pode ver dele do espaço. No começo de era das revoluções, o único resultado da ação do homem na Terra que podia ser visto do alto era a Grande Muralha da China. Agora podemos ver muito mais. A partir dos foguetes, se percebe o declínio das florestas, o tamanho e a luz das grandes metrópoles, certas instalações gigantes como os grandes aeroportos, o reflexo das guerras e das catástrofes. Isso diz muito sobre o que é o mundo hoje porque, se no século 18 sequer podíamos ter uma visão global, agora podemos até mesmo estar no espaço para conferi-la.

Em segundo lugar eu diria que uma das grandes dificuldades do século 18, a de como ir de um lugar para o outro, passou por uma revolução sem precedentes. O tempo e a distância são valores diferentes. Não só porque podemos falar imediatamente com alguém do outro lado do mundo pelo celular ou por e-mail, mas porque se transportam coisas e pessoas como nunca. A quantidade de bilhetes aéreos emitidos, de pessoas voando neste momento, por exemplo, não tem precedentes.

Também chamaria a atenção para o que justamente não se pode ver do espaço, a revolução sem precedentes que é a internet. E outros temas como o fim do campesinato e o novo lugar das mulheres.

Mas estou muito velho pra um esforço desses...

Também em 'A Era das Revoluções', o sr. mostrou como a palavra 'liberdade', que até a Revolução Francesa significava apenas o oposto de 'servidão', ganhou uma conotação política e se tornou um valor que parecia valer a pena ser exportado. Em seu novo livro, ao criticar a ação dos EUA no Iraque, o sr. diz que a democracia e os valores ocidentais não podem ser simplesmente apresentados a outros países como 'importações tecnológicas cujos benefícios são imediatamente óbvios'. Em que momento o que era um sonho virou um pesadelo?

Sempre foi um pesadelo quando se fez uso de poder militar para exportar valores. As idéias podem viajar, mas não a bordo de tanques. Os ideais da Revolução Francesa se espalharam pela Espanha e pela América Latina e causaram grandes transformações políticas nesses lugares. Mas, no momento em que a França quis exportar também as suas instituições para outros países, usando a força, não teve sucesso. Quando uma intervenção não conta com certo consenso local, tende a fracassar. A idéia por trás de certo imperialismo dos direitos humanos era de que regimes tirânicos seriam tão imunes a influências externas que precisariam ser removidos pela força. Mas trata-se de uma concepção antiga, de um mundo pré-1989, pré-redemocratização de regiões como a América Latina. Essa premissa não faz mais sentido. Hoje só se pode pensar que idéias de fora influenciem efetivamente um certo país se este tiver, internamente, um contexto que as receba bem e permita adaptações locais. Mas nada disso pode acontecer por meio de imposições militares.

O sr. diz que, ao longo de sua vida, viu muito poucas vezes a história adiantar-se por meio de atalhos, e que estes costumam fracassar. Pode dar um exemplo?

Uma das mais importantes tentativas de se buscar um atalho para pular fases da história foi a Revolução Russa. E, como vimos, ela falhou. O modo como os americanos querem exportar a democracia, com a certeza de que as coisas podem mudar de hoje para amanhã, também está destinado ao fracasso.

O sr. diz que seu objetivo ao escrever 'Globalisation, Democracy and Terrorism' era ajudar os jovens a enfrentar o século 21 com o pessimismo necessário. Por quê?

Não gostaria que isso fosse tomado como apenas a impressão de um velho homem. O fato é que as perspectivas simplesmente não são boas. Não me refiro apenas à política internacional, mas também aos assuntos relacionados ao ambiente. Hoje já não se pode dizer tão seguramente, como se podia ao longo dos séculos 19 e 20, que estamos num caminho de progresso e que as coisas só vão melhorar. Questões como crise de energia e falta de água são reais. Outro processo que não vai parar é o da globalização, e talvez o preparo que se exija dos jovens é para que saibam como vão lidar com essa aceleração dramática. Como o otimismo é uma característica tão natural na juventude, é preciso que reflitam sobre como direcioná-lo a alvos certos.

O sr. disse que não é mais um comunista porque o comunismo já não está mais na agenda política do mundo. Mas que continuará se posicionando firmemente contra o que chama de 'tentativa sistemática' e internacional de transformá-lo numa 'patologia' ou num 'pecado'. Por que acha que o anticomunismo esteja tomando formas tão agressivas?

Não é exatamente assim. Na verdade, o comunismo como movimento que conglomera muita gente já não existe. Em número de militantes, é hoje nulo. Não se trata mais de uma alternativa no Ocidente. Tampouco é considerado mais como inimigo para os EUA.

Durante a Guerra Fria, sim, era uma ameaça ideológica contra o governo norte-americano. Por isso houve não só satanização das idéias e propostas comunistas como uma perseguição real aos que o defendiam.

A partir de 1989, passou a ser diferente. Com relação à China, por exemplo. O que quer que esteja acontecendo de errado lá não tem nada que ver com o comunismo. Também não acho que os trabalhadores que assinaram manifestos pelo comunismo no passado pensem que acreditaram num Deus que falhou. Apenas quiseram fazer uma opção, que não deu certo. E depois vieram outras.

Hoje, achar que o comunismo é um mal concreto é algo que está limitado ao meio intelectual, aos que escrevem história ou artigos para jornais. Mais especificamente, a intelectuais de países em que o comunismo foi muito influente no debate político. Então chegou um momento em que essas pessoas quiseram reagir contra, como se estivessem pedindo desculpas pelo próprio passado, estabelecendo uma linha. Foi como se dissessem: 'Eu costumava acreditar, mas agora...'. Por exemplo, François Furet [historiador francês, autor de 'Pensando a Revolução Francesa'], quando o conheci, ele não era apenas um comunista, mas um enfático militante stalinista. E depois virou-se completamente.

Apenas nos ex-países comunistas do Leste Europeu o anticomunismo assumiu a forma de uma revolta real contra um determinado sistema. O anticomunismo de hoje é forte apenas no plano da discussão intelectual, geralmente em países que tiveram muitos militantes comunistas no passado.

Fora desse círculo, já não se trata mais de um perigo real, não é sequer uma alternativa. Simplesmente deixou de ser um assunto importante.

No prefácio de 'Globalisation, Democracy and Terrorism', o sr. diz que suas convicções políticas são indestrutíveis.

Sim, minha convicção de ser de esquerda continua. Me posiciono fortemente contra o imperialismo. Contra as forças que acham que estão fazendo um bem para outros países ao invadi-los, e contra a tendência de pessoas que pelo fato de serem brancas acham que são superiores. Essas certezas eu não abandono. Mas algumas das minhas convicções mudaram. Não acredito mais que o comunismo como foi aplicado poderia ainda dar certo. E não sou mais um revolucionário. A revolução tampouco está hoje na agenda. Porém, não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei totalitarismos. A idade e a experiência me fizeram menos revolucionário. Mas não acho que foi ruim tê-lo sido. Ao contrário, foi essencial.

Ao longo vários de seus livros, como 'Mundos do Trabalho' e outros, esteve sempre presente a admiração que o sr. sentia pelas virtudes da classe trabalhadora. O sr. sempre elogiou aspectos como sua coragem, seu senso de camaradagem e como estes tiveram impacto na história. O que acha das classes trabalhadoras do século 21? Ainda carregam o mesmo papel histórico?

A situação é outra. A classe trabalhadora como se formou nos séculos 18, 19 e 20 já não existe, até porque o tipo de fábrica e de produção daqueles tempos também acabaram.

O movimento trabalhista teve força quando havia condições de desenvolvimento, quando sindicatos e partidos podiam levar suas reivindicações a Estados capazes de fazer concessões. Tudo isso terminou por conta da transformação nos modelos de produção. Como foram reduzidos em número, também passou a ser menor a sua ação política.

Há uma diferença também no tipo da população trabalhadora, por causa, especialmente, dos progressos da educação em massa. Uma das coisas que eram características do movimento operário no passado era a boa qualidade de seus líderes, que eram cultivados e mantidos pelos sindicatos. Hoje, os mais inteligentes vão para a universidade sem compromisso de voltar, e viram outras coisas. Podem continuar a ser de esquerda, mas já não são mais operários. Isso faz diferença.

Ainda assim, existe um papel, que era exercido pela classe operária e que precisa ser adaptado. Uma coisa importante que a esquerda deve ter em mente é manter o direito de organização dos sindicatos, que estão sendo destruídos pelo mercado livre global neoliberal.

O sr. diz no livro que uma chave para entender o que há de diferente no império norte-americano é que os outros grandes impérios do passado sabiam que não eram os únicos, no tempo em que exerceram o poder, e nenhum ambicionou uma dominação global. O que essa diferença revela, em termos de perspectivas?*

Não acho que exista hoje, como nunca existiu, espaço para um único império no planeta. Mesmo o Império Romano, à sua época, não era o único e sabia disso. Havia o persa, o chinês. Brevemente, no século 19, pode ter parecido possível, por razões tecnológicas, que parte do mundo respondesse a um país, como foi o caso do Reino Unido. Mas a Inglaterra nunca quis tentar exercer todo esse poder. A política do Império Britânico era apenas a de seguir a lógica e os interesses de sua própria economia. Por um breve momento, realmente controlou boa parte do planeta. Mas tampouco houve um grande inimigo, uma grande ameaça.

Acho que o mundo continuará a ser plural, com algumas unidades políticas que serão mais poderosas que as outras. Porém, não haverá um único império.

Mas o sr. acredita que a supremacia norte-americana esteja em vias de se dissolver?

A Guerra do Iraque está demonstrando que exercer influência no mundo todo não será possível. Ela está demonstrando que mesmo uma grande concentração de poder militar não pode controlar um Estado relativamente fraco sem certa aprovação ou consenso deste.

Há quem discuta a idéia de impérios informais, baseados nas corporações econômicas transnacionais. Mas esse é um tipo de poder frágil, fácil de explodir. O papel dos governos e Estados Nacionais diminuiu muito nos últimos 20, 30 anos. E o do capitalismo internacional aumentou. Mas não o suficiente para substituí-lo.

O mundo ainda se apóia muito numa simbiose entre Estados e infra-estruturas nacionais. Acredito que o que vai permanecer é um sistema internacional em que diferentes unidades vão operar juntas. A influência regional seguirá sendo possível e exercida por potências locais.

Quanto ao projeto norte-americano especificamente, defendo neste livro que está falindo. Isso que não significa que os EUA se tornarão um país mais fraco, ou que esteja em declínio ou colapso. Mesmo que perca todos os seus soldados, continuarão sendo uma nação populosa, importante econômica e politicamente.

Mas onde estão os indícios dessa falência, além do fracasso da intervenção militar no Iraque?

O império norte-americano não permanecerá, entre outras razões, por questões internas. A maior parte dos norte-americanos não quer saber de imperialismo e sim de sua economia interna, que tem demonstrado fragilidades. O capitalismo tem passado por uma crise desde o final dos anos 90. O governo norte-americano não tem lidado bem com isso. Logo os projetos de dominação mundial terão de dar lugar a preocupações econômicas. E os outros países, se não podem conter os EUA, têm de acreditar que é possível tentar reeducá-los.

O sr. tem defendido que a reação à Al Qaeda é mais perigosa do que os atentados promovidos pelo grupo. Por que?

O projeto político da Al Qaeda, até onde entendo, é o de recriar a área do califado muçulmano, da Pérsia até a Espanha. Isso é algo completamente fora de questão, uma utopia. Tão utópico quanto a idéia de que a Igreja Católica possa converter o mundo inteiro.

O modo como a Al Qaeda se desenvolveu, em pequenos grupos ativos, é muito mais eficiente do que os do terrorismo de outros tempos, muito por conta do elemento do homem-bomba. O homem-bomba não é apenas eficaz do ponto de vista objetivo, ele é também mais assustador, porque emocionalmente as pessoas acham difícil entendê-lo, justificá-lo.

Por outro lado, se olharmos para o número de pessoas mortas não só pela Al Qaeda, mas por todos os terroristas e homens-bomba até hoje, em termos absolutos, é algo muito pequeno. Em termos militares, então, é negativo.

É um erro achar que a Al Qaeda é uma ameaça ao mundo.

A reação a Al Qaeda, essa sim, tem sido muito mais perigosa. Não só porque está produzindo uma enorme intervenção militar em lugares em que não deveria haver nenhuma intervenção militar. Mas também porque está sendo responsável pela diminuição séria do respeito aos direitos humanos no Ocidente.

É claro que seria ridículo não levar Al Qaeda a sério. Mas bombardear países não é o modo de lidar com esse tipo de problema. Nunca foi. A questão deve ser resolvida pelos meios tradicionais aplicados no passado, contra o IRA (Exército Republicano Irlandês) e outros grupos terroristas. Por meio de estratégias de investigação policial, da infiltração, de ações localizadas. Trata-se de um problema policial, não militar.

Quando conversamos, em 2002, por ocasião do lançamento de sua biografia, 'Tempos Interessantes', o sr. disse que considerava a América Latina um 'fantástico laboratório de transformações históricas'. Ainda pensa assim? O que tem observado nele, recentemente?

Sim, ainda acho que se trata de um continente em que é possível acompanhar desde o momento em que a natureza foi dominada e as pessoas se estabeleceram até a rápida modernização, industrial e da sociedade, ao mesmo tempo. Algo que em outros lugares levariam gerações, na América Latina se passa de modo muito acelerado. Visitei o Brasil pela primeira vez há 40 anos. E hoje observo que o país mudou dramaticamente.

Para o bem?

Deixando de lado juízos de valor... O mais impressionante para mim hoje é perceber que antes eu considerava 40 anos um tempo muito longo na história, e agora sei que cabe numa vida humana. Para um historiador, a América Latina, o Brasil, são lugares onde você pode acompanhar um processo inteiro. Como foi importante para Darwin com relação à biologia, acontece da mesma forma para a história. É um continente incrível. Mas o que continua sendo um mistério para mim é por que, apesar de seu grande potencial, a América Latina tenha permanecido às margens da história ocidental e aí continua. E é desse modo, também, que está entrando no século 21.

Mas o sr. não vê perspectivas?

Não para a América Latina como um todo, possivelmente para o Brasil.

O sr. segue otimista com o governo Lula?

Não tenho acompanhado de forma pontual, mas no geral o Brasil está claramente melhor. A economia, o padrão de vida das pessoas. Em outros aspectos, segue uma bagunça. É interessante notar que, no que diz respeito às diferenças sociais, o país não está mais sozinho. O resto do mundo também ficou socialmente mais polarizado.

Creio que o Brasil tem uma chance hoje de, como a Argentina em certo momento do século 19, desenvolver-se economicamente muito rápido a partir da exportação de produtos primários. Há uma crise de produtos naturais no mundo e o Brasil tem um potencial ilimitado com relação à produção de alimentos. Está numa posição de exportar para países que estão se industrializando rapidamente, como a China. Os termos do comércio favorecem o Brasil. É claro que o país possui também uma boa indústria. Mas, no momento, pode se fortalecer apenas exportando matérias-primas.

O que o sr. acha de Hugo Chávez?

É uma figura simpática, tem senso humor, não é um intelectual, economista, teórico, mas se transformou em mais do que mais um militar latino-americano que tomou o poder. Ele teve sucesso ao se transformar num símbolo genuíno de liderança para a América Latina. Ele continua, mas supera o que simbolizou Fidel Castro. E tem muita sorte de ter tanto petróleo por trás.

E Fidel Castro? O que ficará da Revolução Cubana?

Cuba já vive a fase de transição pós-Castro. Castro será lembrado como uma lenda, uma tocha da emancipação da América Latina com relação aos EUA, uma expressão dramatizada de sua aspiração por independência, um símbolo antiimperialista. Vai ser lembrado por conquistas sociais que nenhum outro país latino-americano alcançou. Acho que não foi suficientemente dito ainda o quanto melhorou a qualidade e a expectativa de vida dos cubanos.

Porém, fundamentalmente, o projeto cubano não pode ser considerado um sucesso. Economicamente, foi um desastre até, assim como a tentativa de revolucionar o resto da América Latina não teve sucesso.

Fidel vai sobreviver como Che Guevara. Uma imagem, um símbolo.

O sr. acredita que a Rússia esteja tentando retomar seu papel político no cenário mundial?

Os russos estão certos de tentar restabelecer seu papel internacional. O que quer que aconteça com a Rússia é relevante. Trata-se de uma grande área, com intermináveis fontes, e a idéia de que poderia ser reduzida a zero politicamente é ridícula. Putin está restabelecendo a Rússia como Estado. Por isso está se transformando num dos políticos populares mais consistentes no mundo hoje. É um pensamento atrasado por parte dos EUA e da Europa acharem que devem olhar a Rússia como inimiga. Os russos têm limitada ambição quanto a se tornarem de novo uma potência. Não acho que queiram voltar a exercer o poder do passado. Mas seguem tendo um papel político internacional importante. O que o governo Putin deveria estar fazendo com mais ênfase é uma tentativa de democratizar mais o país, melhorar as leis e acabar com a corrupção. Ele tem potencial para fazer isso, mas não é algo que me parece que esteja acontecendo.

E a China?

A China sempre cresceu e nunca parou. Sabe que está num momento de crescimento acelerado, mas não tem pretensão de ser um poder único, nem de exportar seu modelo. Ainda que sempre tenha achado que tem uma importância central no mundo. Mas não acho que entrará em conflito com os EUA por outra questão que não seja Taiwan. É o único tema que pode levar a uma guerra entre os dois países. Deve-se, porém, prestar atenção ao que acontece no interior do país, pois essa rapidez de crescimento e de inserção no mundo capitalista pode trazer instabilidade, o grau de desigualdade social tende a aumentar. E não sei se o governo chinês sabe o que fazer com esse problema.

Em 'Tempos Interessantes', o sr. escreveu sobre o primeiro congresso sobre história após a Segunda Guerra Mundial, em 1950, em Paris, em que assistiu a uma de suas primeiras palestras sobre história social. De lá até aqui, a historiografia mudou muito, e a história social e cultural ganhou importância. Como vê os desdobramentos desse processo hoje?

Tem havido um revival da história política recentemente e isso é bom. Trabalhos como os de Ian Kershaw [autor da biografia 'Hitler'] sobre a Segunda Guerra, que trata das circunstâncias em que decisões cruciais do conflito foram tomadas, e outros de história cultural menos setorizada têm atraído a minha atenção.

O que acho que atingiu seu pico recentemente e que, ainda bem, tende agora a ser deixada um pouco de lado é uma certa tendência a reagir contra a idéia de se escrever qualquer tipo de história. Uma tendência pós-moderna de acreditar que não dá pra saber exatamente o que aconteceu, então devemos apenas discutir os conceitos que ficaram. Esse tipo de coisa não trouxe nenhum avanço para a história. Desse modo, investigava-se a história com menos questões, mas com a intenção de resgatar a experiência, os sentimentos. Tenho até certa simpatia por isso, porque uma das coisas fascinantes sobre estudar o passado é tentar saber quão diferente ele era, como agiam as pessoas, etc.

Só que uma história que não tenha questões não pode ser boa, cedo ou tarde é necessário perguntar de onde se veio e para onde se vai.

Sinto que está havendo um revival das análises socio-econômicas mais amplas. E seria proveitoso que esse revival deixasse de ver a história de modo eurocêntrico, que orientasse sua investigação para algo mais global.

Mas o sr. não acha que o sistema universitário esteja fazendo com que os historiadores sejam cada vez mais especialistas?

Sim, os historiadores, para passar pelo crivo da academia, têm de se especializar. Mas depois podem fazer análises mais amplas, e é bom que só o façam após. As universidades treinam pessoas para serem acadêmicas. Mas os historiadores deveriam ver nisso um ponto de partida. Depois de conseguir seu PhD, tentar entender melhor o mundo em que vivem.

No ensaio 'Nations and Nationalism in the New Century', o sr. lamenta o fato de que as seleções de futebol nacionais estejam perdendo força para os chamados superclubes internacionais. Seria o fim do 'último refúgio de emoções de um mundo antigo'. Mas o sr. não acha que o nível do esporte tenha, por conta disso, tenha melhorado?

O futebol hoje sintetiza muito bem a dialética entre identidade nacional, globalização e xenofobia dos dias de hoje. Os clubes viraram entidades transnacionais, empreendimentos globais. Mas, paradoxalmente, o que faz do futebol popular continua sendo, antes de tudo, a fidelidade local de um grupo de torcedores para com uma equipe. E, ainda, o que faz dos campeonatos mundiais algo interessante é o fato de que podemos ver países em competição. Por isso acho que o futebol carrega o conflito essencial da globalização.

Os clubes querem ter os jogadores em tempo integral, mas também precisam que eles joguem por suas seleções para legitimá-los como heróis nacionais. Enquanto isso, clubes de países da África ou da América Latina vão virando centros de recrutamento e perdendo o encanto local de seus encontros, como acontece com os times do Brasil e da Argentina. É um paradoxo interessante para pensar sobre a globalização.

O sr. tem escrito? Está trabalhando em algum novo livro?

Estou sempre trabalhando em pequenas coisas. Não tenho planos para um livro maior agora, mas quero revisitar algumas idéias antigas, minhas primeiras reflexões sobre história social, os ensaios sobre rebeldia. Também estou escrevendo um pequeno artigo sobre arte e Revolução Russa.

Instituto Humanitas Unisinos - 30/09/07

A doutrina do choque: uma contra-história do neoliberalismo

Com o tempo, amadureceu em Naomi Klein “a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade”, conta Benedetto Vecchi, crítico cultural italiano e que colabora regularmente com o jornal comunista italiano Il Manifesto. “A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais ‘frágeis’, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais (...) O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein”, escreve Vecchi.

Benedetto Vecchi faz uma resenha do último livro de Naomi Klein, Shock Doctrine (A Doutrina do Choque), ainda sem tradução para o português. Nele, diz o resenhista, Naomi Klein procura desvelar “um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra”. Esse é o nascimento daquilo que a autora chama de “Estado corporativista”, ou seja, uma elite restrita que passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social.

No livro, Klein faz uma reconstrução das carreiras políticas, dos vínculos de amizade, das relações de homens de negócios muito interessante. Naomi Klein é autora de Sem Logo. A tirania das marcas em um planeta vendido (2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002). A resenha de Benedetto Vecchi foi publicada no sítio La Haine, 26-09-2007. A tradução é do Cepat.

Segue a íntegra da resenha de Benedetto Vecchi.

Uma coisa é certa. Naomi Klein, depois do sucesso de Sem Logo, não ficou de braços cruzados. Pôs-se novamente na estrada, visitando ou vivendo por breves períodos na Argentina, Brasil, África do Sul, Chile, Bolívia, Iraque, Sri Lanka, Tailândia, Líbano, Rússia e, não custa dizê-lo, nos Estados Unidos. A partir desses países enviou reportagens e nesses países entrevistou economistas e ativistas para jornais como The Guardian, The Nation ou o The New York Times. Ao mesmo tempo, acumulou informações sobre as mudanças operadas no neoliberalismo depois do ataque ao World Trade Center nova-iorquino do 11 de setembro, seis anos atrás.

Com o passar do tempo, no entanto, amadureceu nela a convicção de que o capitalismo do século XX apresentava robustos elementos de continuidade, mas também de descontinuidade, sobre os elementos que a ensaísta contemporânea chama de os Trinta Gloriosos, ou seja, o período de desenvolvimento econômico e social que se seguiu à 2ª Guerra Mundial, que viu surgir em muitos países a presença reguladora do Estado na economia e na vida social.

A continuidade vinha do Estado de Bem-estar, em suas diversas traduções nacionais, e de uma relação de dominação de alguns países fortes sobre outros mais “frágeis”, usados precisamente como laboratórios de experimentação de políticas econômicas prejudiciais que no potente Norte teriam encontrado não poucas resistências por parte das forças sindicais e políticas do movimento operário e de outros movimentos sociais. O difícil, ao contrário, era perfilar as descontinuidades. E são precisamente as descontinuidades que centram a atenção de Naomi Klein.

A constelação neoliberal

O resultado é um livro que pode ser lido como uma contra-história do neoliberalismo contemporâneo. Seu título, Shock Doctrine (A doutrina do choque), introduz imediatamente na tese do volume: as crises – econômicas, sociais ou políticas – e as catástrofes ambientais são usadas para introduzir reformas neoliberais que levaram à demolição do Estado de Bem-estar.

O livro entra, para começar, no coração da Guerra Fria. Naqueles anos, o futuro prêmio Nobel de Economia Milton Friedman começa a urdir seu tecido para construir uma rede intelectual de pesquisadores favoráveis ao livre mercado. É um economista brilhante, mas suas propostas a favor da demolição da intervenção estatal na sociedade e na economia são muito “extremistas” em relação ao que as empresas e o governo de Washington fazem. Contudo e com isso, seu centro de pesquisa recebe financiamento de fundações privadas e do governo. Milton Friedman sustenta, já então, que as crises podem ser usadas para uma “terapia de choque” a favor do livre mercado.

Milton Friedman se converte no agit-prop do neoliberalismo, ao passo que seus discípulos são enviados pelo mundo inteiro em missão de proselitismo. Suas receitas acabarão se convertendo em programas de política econômica no Chile, Paraguai, Argentina, Brasil, Guatemala, Venezuela. Há um pequeno problema. São programas aplicados com carros blindados nas ruas e tortura sistemática nas prisões, enquanto o número de desaparecidos chega a ser tão alto que nem sequer os meios de comunicação norte-americanos podem ignorá-lo.

A parte do livro que fala dos anos 60 e 70 conta a história dos golpes de Estado e do uso sistemático da violência contra os opositores políticos, e pode parecer um dejà vu de histórias conhecidas há muito tempo. Mas Naomi Klein o apresenta como a primeira crise do neoliberalismo. Chile, Argentina e Paraguai são laboratórios em que se enriquecem muitas transnacionais norte-americanas, às quais se permite que se apropriem de muitas matérias-primas e abram novos mercados para seus produtos. Uma espécie de renovada acumulação primitiva deslocalizada fora das fronteiras nacionais. Por isso, vale a pena financiar, em consonância com Washington, o terrorismo de estado chileno, argentino, brasileiro e paraguaio. E é precisamente nesse período que a rede intelectual tecida por Friedman se consolida e se estende ao mesmo tempo.

Torna-se impressionante o trabalho feito por Naomi Klein de reconstrução das carreiras políticas, os vínculos de amizade, as relações de homens de negócios – de Dick Cheney a Donald Rumsfeld, de John Ashcroft a Domingo Cavallo, de Michel Camdessus a Paul Bremen, a Paul Wolfowitz e à família Bush – que passam de um conselho de administração de alguma transnacional à direção de um think thank neoliberal, de postos de responsabilidade em algum governo aos despachos do Banco Mundial ou do FMI.

A história contada até agora é conhecida fora dos Estados Unidos. Naomi Klein sabe disso, mas também está consciente de que nos Estados Unidos é história conhecida ou desvelada só para uma minoria de ativistas ou intelectuais radicais. Daí sua obra de sistematização das informações antes de passar a contar a segunda onda neoliberal, que tem, como a primeira, um apóstolo. É outro economista, chama-se Jeffrey Sachs e quer demonstrar que o livre mercado, diferentemente do que pareceu ser o caso na América Latina, não é incompatível com a democracia. É um autêntico “evangelista do capitalismo democrático” e vê na queda da União Soviética e do socialismo real a melhor oportunidade para conciliar a democracia com as “leis naturais” do mundo dos negócios. Aconselha – e é ouvido – a Polônia de Lech Walesa e a Rússia de Boris Yeltsin a procederem a uma desregulação radical de suas economias. Sua receita será um fracasso, mas nesse momento sua “terapia de choque” encontra um valioso aliado num FMI já definitivamente depurado de economistas vinculados ainda às teorias de Lord Maynard Keynes.

A dívida será a arma vencedora empregada pelos neoliberais, que concederão empréstimos só na condição de que se resregularize completamente a economia. É o chamado Consenso de Washington, são seu corolário de “programas de ajuste estrutural”. Como no passado, as transnacionais nadarão em ouro, mas Sachs, assim como os outros “evangelistas do livre mercado”, sustenta que o que agora convém fazer é colocar em leilão todas as atividades produtivas e os serviços sociais gestionados pelo Estado, ainda que às custas do sacrifício de centenas de milhares de postos de trabalho sobre o altar da competitividade internacional. A pobreza, não deixam de repetir, é um efeito colateral que, no entanto, acabará sendo esclarecido pela mão invisível do mercado.

A “terapia do choque” se nutre de estratégias de marketing, propaganda e falsificação de dados, tratando de demonstrar que o livre mercado é a única via para escapar da decadência econômica e da pobreza em massa. Mas o consenso tem que ser conquistado eleitoralmente, mesmo se isso pode chegar a diminuir o ritmo das “reformas”.

A política woodoo

Para remover esse obstáculo há uma estratégia bem provada durante a “guerra da dívida” na América Latina: criar o pânico, para em seguida pressionar a fim de que se adotem “terapias” econômicas neoliberais. O Banco Mundial e o FMI se convertem então em instituições supranacionais adaptadas ao objetivo de limitar a soberania popular e privar os governos nacionais de qualquer autonomia em termos de tomada de decisões. Os programas econômicos são, pois, confeccionados em Washington, mas sua aplicação in situ vem garantida por pessoal político “fiel à linha”. Naomi Klein mostra documentalmente como mesmo as crises asiáticas dos anos 90 tiveram como protagonistas o Banco Mundial e o FMI, que orquestraram conscientemente a crise financeira a fim de demolir qualquer presença estatal na economia. E quando a Tailândia, Filipinas, Malásia, Indochina e Coréia do Sul capitularam frente ao FMI, um “Chicago boy” escreveu uma coluna no Financial Times comparando a revolução do livre mercado na Ásia com uma “segunda queda do Muro de Berlim”.

Na América Latina a situação é diferente. As ditaduras começaram a cair uma após outra e subiram ao poder muitas coalizões de centro-esquerda. É a era, afirma Naomi Klein, da política woodoo, caracterizada por programas eleitorais keynesianos e sucessivas políticas econômicas rigidamente neoliberais.

O complicado novelo que Naomi Klein pacientemente desfia mostra não tanto um comitê de negócios da burguesia, quanto um trust de empresas cujo negócio consiste no esvaziamento do Estado de qualquer função, inclusive a da guerra. É o nascimento do “Estado corporativista”, como o define a autora, onde uma elite restrita passa de uma empresa a cargos públicos sem o menor respeito às normas liberais contra o conflito de interesses. O “capitalismo dos desastres” só pode continuar renovando a insegurança social. O 11 de setembro é, deste ponto de vista, um maná para os neoliberais. A “guerra do terror” se converte assim na retórica atrás da qual ocultar a venda da defesa nacional às empresas privadas e o pleno controle do petróleo.

Com a invasão do Afeganistão e do Iraque, o warfare, ou seja, o uso da guerra para relançar a economia, se elevou a sistema, porque a guerra ao terror é uma guerra total que implica não apenas o setor militar, mas a sociedade inteira. Iluminador a este respeito é o capítulo que a jornalista canadense dedica a Israel, fazendo do desenvolvimento da indústria high-tech da segurança e da chegada dos hebreus do leste europeu depois da queda do Muro de Berlim duas das chaves interpretativas – não as únicas – da passagem de uma hipótese de paz com os palestinos ao funesto passeio de Ariel Sharon pela esplanada das mesquitas que provocou a segunda Intifada. Os fugitivos do leste europeu puderam substituir a força de trabalho palestina de baixo custo, ao passo que as empresas high-tech puderam oferecer seus produtos ao mundo inteiro, visto que a guerra ao terror é a guerra da civilização ocidental contra seus inimigos.

A economia da catástrofe

Quando Naomi Klein começa a analisar os efeitos devastadores do furacão Katrina e do Tsunami descobre que as catástrofes são utilizadas pelo FMI como missão creep, isto é, expansão indevida de uma missão, neste caso da máquina pública. Os últimos baluartes do Estado como garante da convivência social são submetidos a ataque. Nova Orleans se converteu no laboratório dessa ulterior privatização do Estado. Analogamente, o Tsunami é utilizado para transformar algumas regiões ou mesmo nações (Sri Lanka, Tailândia e as Ilhas Maldivas) em clubes de férias para as elites globais.

Assim é narrado o capitalismo dos desastres. Naomi Klein, como já fizera em Sem Logo, não quer construir uma teoria do desenvolvimento capitalista. É uma excelente publicitária e jornalista de investigação que se faz sempre a pergunta correta: como organizar a resistência ao neoliberalismo. É verdade que sua defesa do Estado de Bem-estar poder parecer ingênua, mas quando começa a enumerar o que os movimentos sociais fazem e o que propõem, o seu torna-se um keynesianismo que abre portas de autogoverno por parte dos movimentos sociais e a uma democracia radical.

Shok Doctrine é, pois, um livro ambicioso, porque pretende oferecer um mapa do “capitalismo dos desastres”. É certamente um fresco da reorganização do capitalismo depois do 11 de setembro e começa a identificar seus pontos fortes, as empresas líderes que estão emergindo e sua vocação global. Mas também identifica seus pontos frágeis. É, pois, um mapa útil de ler, também para preparar-se para resistir à próxima onda de terapia de choque que se alimentará da próxima catástrofe ambiental e da próxima etapa da guerra preventiva. Ou do anunciado e italianíssimo corte dos gastos sociais para fazer frente à decadência econômica.

Instituto Humanitas Unisinos - 30/09/07

Os tempos modernos. Além da miséria do presente, em nome da riqueza possível.

Da colaboração com Jean-Paul Sartre à fundação de “Le nouvel Observateur”, ao encontro com a ecologia e à acusação da razão econômica das tecnologias digitais. A trajetória deAndré Gorz um intelectual militante que desenvolveu a crítica ao capitalismo a partir das transformações do trabalho. O artigo é de Benedetto Vecchi e publicado pelo jornal Il Manifesto, 26-09-2007.

Eis o artigo.

"A láurea em engenharia química forneceu aquelas competências técnicas e científicas que se tornaram úteis a André Gorz quando escrevia sobre automação do trabalho, crise ecológica, tecnologias digitais, ou seja, os temas que caracterizaram sua produção intelectual destes últimos trinta anos. Nos livros eles assomavam entre uma página e outra e forneciam sempre uma sólida base argumentativa às suas análises quando sustentava, por exemplo, que a redução do trabalho a 35 horas era apenas o primeiro passo, porque a produtividade individual e coletiva tinham crescido tanto que atualmente eram necessárias apenas 20 horas semanais para produzir os mesmos bens. Contanto, porém, que o trabalho fosse redistribuído.

“Les temps modernes”

Sua batalha em favor da redução do horário de trabalho o havia conduzida, no ápice entre os anos oitenta e noventa, a uma vivaz e fecunda relação com o sindicato francês da CFDT e os sindicatos dos metalmecânicos alemães e italianos. Vivaz, porque convidava as organizações sindicais a se darem conta que a fábrica estava mudando com a substituição dos homens e das mulheres pelas máquinas. Fecunda, porque André Gorz se colocava sempre à escuta das argumentações de quem era submetido à fábrica. Um intelectual militante, isto é o que foi André Gorz.

Nascido em 1923 em Viena, conseguirá, em 1943, a láurea em engenharia química em Losana, na Suíça, donde sua família se refugiara após o Anschluss da Áustria à Alemanha. Com a Áustria e a Alemanha André Gorz teve sempre uma relação trabalhosa, a ponto de mudar de nome (o nome de batismo era Gerard Horst) e decidir não se dirigir à Alemanha por causa da política de extermínio do regime nazista, até que, no final dos anos oitenta, será convidado pelo sindicato metal-mecânico alemão para um ciclo de conferências sobre como estava mudando o trabalho e sobre a proposta de sua redução. Escreveu, então, que mudar de nome fora um ato público de denúncia política daquela nazificação da Áustria e da Alemanha que não tinham feito as contas com o passado recente. E na França, o país para onde se transferira após o fim da Segunda Guerra mundial, tomou, então, o nome de Michel Bousquet, que depois abandonará pelo de André Gorz que será a assinatura dos seus primeiros escritos, até tornar-se uma assinatura conhecida da revista “Les temps modernes”, onde trabalhará com Jean-Paul Sartre.

São os anos em que, junto com tantos outros, põe as bases de uma renovação do marxismo, enveredando pela via da análise cheia de insídias do neocapitalismo que o conduz, junto com outros, a fundar “Le Nouvel Observateur”. Para quem escreve, o encontro com André Gorz ocorre no crepúsculo dos anos oitenta, com a publicação de Adeus ao proletariado. Gorz está convencido que a automação do trabalhão industrial (manufatureiro para Marx) levará a uma diminuição radical da ocupação industrial, mas tal ocorrência é uma chance que é acolhida pela esquerda marxista heterodoxa: a automação não é contestada, mas antes acelerada, acompanhando-a com uma redução radical do horário de trabalho: “Trabalhar menos, trabalharem todos” é o horizonte político em que Gorz se situa e ao qual sempre permanecerá fiel.

A zanga da ecologia

Há depois a ecologia, um tema que é enfrentado à luz do desejável encontro entre o movimento operário e o ambientalismo – Ecologia e política, O caminho do Paraíso, Capitalismo, socialismo, ecologia. Sua tentativa de conjugar marxismo e ambientalismo será, de fato, a outra zanga sobre a qual se concentrará sua produção durante todos os anos noventa. Gorz olha com interesse para aquele filão de pesquisa anti-utilitarista que tem seu núcleo na França. Provém daí o texto La strada del paradiso. Os trabalhos mais fecundos desta década são, no entanto, A miséria do presente, a riqueza do possível e Metamorfosi del lavoro (Bellati Boringhieri), uma crítica às culturas políticas da esquerda a partir daquela contra-revolução que talvez tenha sido chamada de pós-fordismo.

Quase na surdina, há alguns anos André Gorz enviou às editoras um outro livro – O imaterial – no qual o monstro a ser olhado na face e combatido era a vulgata neoliberal da tecnologia digital. Ali também há páginas que mereceriam ser lidas e discutidas a fundo. Gorz é por uma renda cidadã, mas convida a proteger as costas de um inimigo insidioso, coisa que seria uma proposta que, mais do que recompor o trabalho hetero-dirigido (noção que preferia àquela de trabalho dependente ou trabalho assalariado), podia ulteriormente fragmentá-lo. Vem depois o silêncio, embora as vozes de um novo trabalho seu ricocheteassem de um site da Internet a outro. A dura tarefa de viver deve, no entanto, ter-se tornado insuportável. Faltará aquele seu argumentar em que a riqueza do possível deve, em todo o caso, fazer as contas com as misérias do presente.

Instituto Humanitas Unisinos - 29/09/07

Vale do Rio Doce passa Petrobras e vira a maior empresa do País

A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a terceira mineradora do mundo, se tornou ontem a maior empresa brasileira em valor de mercado. A companhia, privatizada em 7 de maio de 1997, superou o valor de mercado da Petrobras, a ainda maior companhia do País em faturamento. A Vale fechou o dia com um valor de US$ 56,352 bilhões, enquanto a Petrobrás encerrou o pregão a US$ 155,385 bilhões. A reportagem é de Agnaldo Brito e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-09-2007.

Curiosamente, a ultrapassagem ocorreu num dia de queda das ações. Os papéis da mineradora (Vale5) fecharam com queda de 1,5%, a R$ 52,14. A Petrobras (Petro4) encerrou o dia com baixa de 2,14%, a R$ 59,06. “Foi um dia em que o mercado tirou para realizar os lucros das altas dos últimos dias”, explicou um analista de mercado.

O valor de mercado é o resultado da soma de todas as ações de uma companhia, de acordo com as cotações da Bolsa. Quer dizer também que para os investidores brasileiros e estrangeiros, neste momento, a CVRD vale mais do que a Petrobrás.

Lucro da Vale sobe 556,8% em quatro anos

A liderança da Vale neste quesito de valor de mercado tem importância mais simbólica e ocorre num momento de disputa política ferrenha no governo e nos partidos aliados por cargos na estatal. Especialistas avaliaram o fato como uma demonstração de que o mercado tende a valorizar companhias com menos ingerência política e bons resultados econômicos. O lucro da Vale subiu 556,8% de 2002 a 2006, alcançando R$ 13,4 bilhões. No mesmo período o lucro líquido da Petrobrás cresceu 220,1% e chegou a R$ 25,9 bilhões.

Instituto Humanitas Unisinos - 29/09/07

Homicídios entre guaranis e caiuás crescem 93% no MS

O número de assassinatos de índios guaranis e caiuás neste ano em Mato Grosso do Sul, registrados até agosto, chegou a 27. É quase o dobro do verificado durante todo o ano passado, quando ocorreram 14 homicídios nas aldeias. A reportagem é de Hudson Corrêa e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 29-09-2007.

Além dos casos de assassinatos, há suicídios por enforcamento entre os guaranis e os caiuás. Foram 21 casos neste ano até o mês de agosto.

De 2001 a 2006, 285 índios se enforcaram, sendo que 60 deles tinham entre 10 e 14 anos de idade, 103 tinham de 15 a 19 anos e dois eram crianças de nove anos.

Os dados da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), que dá assistência médica aos índios, mostram ainda que neste ano a desnutrição esteve entre as causas da morte de 12 crianças guaranis e caiuás menores de cinco anos.

Para evitar mortes por desnutrição, agentes da Funasa pesam semanalmente as crianças indígenas, distribuem leite e cestas básicas.

No pólo indígena de Amambaí (MS), por exemplo, onde vivem 2.125 crianças guaranis e caiuás menores de cinco anos, 26 estão com desnutrição severa (muito baixo do peso, no termo técnico), 290 com desnutrição moderada (baixo peso) e 401 em risco nutricional.

Violência

Os agentes da Funasa, no entanto, afirmam não ter como combater a violência nas aldeias.

O coordenador regional da Funasa, Flávio da Costa Britto Neto, disse que poderá suspender o atendimento aos índios durante a noite para não arriscar a vida de funcionários.

Na região sul do Estado vivem, segundo a Funasa, 36.843 guaranis e caiuás.

A Funai (Fundação Nacional do Índio) mantém apenas quatro seguranças nas aldeias de Dourados, que abrigam 11.198 índios e onde ocorreram pelo menos 12 homicídios neste ano.

O alcoolismo está diretamente relacionado com os assassinatos, de acordo com a Funasa. Facões geralmente são usados nos crimes.

Na maioria dos casos, os índios que matam ou são mortos estão bêbados.

A Funasa contratou quatro psicólogos, sendo dois deles indígenas, para atender os guaranis e caiuás em programas de combate ao alcoolismo.

Uma outra preocupação do órgão é o uso de drogas.

A falta de terra - em Dourados 10,6 mil índios vivem em apenas 3.500 hectares- e o alcoolismo são apontados por antropólogos como causas dos suicídios.

A bebida, segundo relato da Funasa, também leva pais indígenas a abandonar o cuidado com crianças desnutridas, levando à morte os indiozinhos. Lideranças indígenas atribuem a desnutrição ao atraso na entrega de cestas básicas do governo federal.

Instituto Humanitas Unisinos - 28/09/07

A invenção do casamento. Artigo de Franco La Cecla

A antropologia sempre “indagou da natureza dos laços primários. Criar parentesco é uma constante que se encontra em todos os grupos humanos, mas suas formas são as mais variadas”, escreve o antropólogo italiano Franco La Cecla. Constata que “o núcleo familiar, como ‘casa’, não é uma forma universal: há sociedades onde não existem casais fixos, há famílias poligâmicas no fundo da Amazônia ou no Senegal e há, obviamente, famílias ampliadas. Nós somos a exceção”. Franco La Cecla acredita que em torno da família se joga o sentido da nossa sociedade no sentido de que “aqui não se trata do direito individual, mas de transformar o direito para que seja capaz de proteger realmente os vínculos que as pessoas produzem durante a sua vida”, trazendo para o debate a questão dos homossexuais. O artigo foi publicado no Clarín, 22-09-2007. A tradução é do Cepat.

O que é o casamento? O que é a família? São formas sociais naturais, universais? A estas perguntas se pode responder apelando a certos princípios, apoiando-se em certas ideologias, ou recorrendo aos fatos empíricos.

A antropologia, desde as suas origens, que se afundam numa curiosidade comparativa, fundada numa paciente busca em lugares e culturas próximas e distantes, indagou da natureza dos laços primários. Criar parentesco é uma constante que se encontra em todos os grupos humanos, mas suas formas são as mais variadas. Em culturas diferentes da nossa, a filiação está freqüentemente separada do parentesco, isto é, não são os pais biológicos que criam os seus próprios filhos. Em muitas culturas são os tios – os irmãos da mãe – que cumprem com essa tarefa. Aqui também existia essa instituição e de tempos em tempos ressurge, como notava Claude Lévi-Strauss por ocasião da morte de Lady Diana. Naquele caso, no funeral, o irmão dela se apresentou como único possível tutor de seus filhos. Há culturas no sul da China onde o casal que convive está constituído por irmão e irmã, que fazem “fugazes” visitas noturnas a pessoas do sexo oposto com as quais podem gerar uma prole.

Em definitiva, o núcleo familiar, como “casa”, não é uma forma universal: há sociedades onde não existem casais fixos, há famílias poligâmicas no fundo da Amazônia ou no Senegal e há, obviamente, famílias ampliadas. Nós somos a exceção: a família mononuclear – a solidão de marido, mulher e filhos é uma invenção recente. Isso foi possível graças ao advento do capitalismo e do trabalho assalariado, que destruiu a família ampliada, que era também uma entidade econômica, e criou o casal assim como o conhecemos hoje. Isso está explicado num magnífico livro, Gênero e Sexo, de Ivan Illich. O novo é a idéia de um núcleo isolado que deveria se encarregar da formação da prole. Nas sociedades tradicionais européias e nas sociedades “indígenas” de outras culturas, o casal está inserido num complexo de redes de reciprocidade, num mundo no qual homens e mulheres constituem duas esferas com freqüência independentes, com língua, modos e obrigações diferentes. A prole é confiada ao grupo mais amplo. Isto permite uma elasticidade maior que a nossa na constituição ou no desenvolvimento do próprio casal. Uma sociedade aristocrática e complexa como a Tuareg ainda hoje consente uma freqüência extrema de divórcios – que são festejados como se fossem casamentos, isto é, novos começos – mesmo porque a prole nunca fica confiada unicamente ao casal. Illich dizia que o casal mononuclear é um monstro do qual nunca antes se havia ouvido falar.

Jaz, no fundo, uma pergunta importante: o que é que une as sociedades, que faz com que não se dividam? Nossa pobre resposta hoje é: o casal. A resposta de outras sociedades foi: a união que consente na passagem de substâncias, sejam estas líquidas – leite, água, lágrimas –, nutrientes, emoções, palavras, experiências, visões, heranças no sentido mais amplo e no mais específico. A substância que uma geração passa a outra é similar e diferente à que homens e mulheres trocam encontrando-se. Trata-se de afeto, de amor, de bens, mas, sobretudo, de kinship, ou seja, uma união de parentesco que é uma invenção cultural, que muda de lugar para lugar, mas que é importantíssima. Somos uma estranha sociedade que privilegia o amor-paixão em relação ao laço de parentesco. Em muitas sociedades modernas, como na Índia e no Japão, não corresponde ao amor-paixão, mesmo assim pode prevê-lo. Os casamentos são combinados para que a união seja estável e não flutue com as mudanças de emoções. Na Índia dizem que seu tipo de casamento é como colocar fogo debaixo de uma panela de água fria, ao passo que o nosso, o ocidental, seria como apagar o fogo que está debaixo de uma panela de água quente. É verdade que a nossa sociedade, não obstante a propaganda da Igreja e dos novos fundamentalismos, faz constantemente grandes esforços para não se dividir. Hoje, a palavra “casal” se esvaziou de grande parte do significado que ainda podia ter em nossa cultura até 20 anos atrás.

Na Europa, as formas de união civil e os pactos de convivência conhecidos como Pacs e Dico [Direitos e deveres das pessoas conviventes], assim como os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, enfrentam um problema jurídico, ligado à herança e à comunhão de bens, mas que não enfrentam a substância empobrecida do casal. Porque em qualquer sociedade, o vínculo entre duas pessoas cria uma circulação de substâncias para passar a outras gerações. De outra maneira, não nos “casamos” (e nas culturas primitivas e tradicionais o amor-paixão existe tanto e ainda mais que na nossa). Se nos “casamos” é para constituir um kinship, uma união que permita a passagem de substâncias.

Uma das substâncias principais em todas as culturas é o gênero. Não é casual que se diga “gerar”, quer dizer, instalar a descendência no gênero, num masculino ou feminino. Que tipo de substância de gênero passam os pais de um mesmo gênero à sua prole é uma pergunta embaraçosa para quem luta hoje pelos Pacs ou pelos Dico, mas é necessário respondê-la. Não basta justificar a criatividade de um transgender ou de um queer gender para evitá-la. Michel Foucault, que era um homossexual convencido e praticante, lutava ferozmente com aqueles que pensavam que inventar um novo gênero era como fazer um happening. Para ele, os homossexuais eram homens com gostos sexuais diferentes. Na França, esta questão está no interior mesmo do debate feminista. Foi Marcela Iacub, antropóloga argentina do direito, que observou que não se pode falar tanto de respeito pelas diferenças sexuais e em seguida ignorar sua importância numa coisa tão séria como a geração da descendência.

O fato é que aqui, em torno da família, se joga o destino de nossa sociedade, não no sentido de que esta seja hoje “degenerada”, como dizem alguns, mas no sentido mais específico de que aqui não se trata do direito individual, mas de transformar o direito para que seja capaz de proteger realmente os vínculos que as pessoas produzem durante a sua vida. Sabemos que somos monógamos no presente e polígamos no tempo (a altíssima taxa de separações demonstra isso). Por que não aceitar que somos uma sociedade de muitos amores, mas que assegura e protege as passagens de substância que estes produzem, filhos, parentes, compras, amigos, bens? É possível, basta dar um passo para além da política pura.