"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, setembro 06, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 06/09/07

Na rota dos meninos escravos. Um 'lote' de crianças é vendido a 50 euros

Em um paupérrimo e remoto povoado de Benin, o futuro não prometia nada de bom para Joaquim (10 anos), Emmanuelle (12anos) e Samuel (16 anos). Mas o pior estava ainda por chegar: vendidos por apenas 50 euros (o lote inteiro) para um traficante de crianças escravas que os levou para campos de trabalho na Costa do Marfim. O relato é do jornalista Xaquín López, do jornal El País, que acompanhou a rota da escravidão na África Ocidental. A reportagem foi publicada no jornal espanhol no dia 02-09-2007. A tradução é do Cepat.

Eis o relato.

O tráfico de crianças escravas continua acontecendo na África em pleno século XXI. As ricas plantações de cacau da Costa do Marfim são uma atração para os países mais pobres do oeste africano. É o que descreve esta história em dois capítulos: o primeiro, em maio e, o segundo, em agosto. E não é um história qualquer, mas a de um traficante que comprou dois meninos e um adolescente de seus pais no povoado de Dehounta, no Benin. O preço: apenas 50 euros. Atravessaram de ônibus três países do golfo da Guiné até chegar à Costa do Marfim. Agora as sua vidas estão nas mãos dos capatazes do cacau, como há dois séculos os negreiros eram donos da vida de milhões de pessoas no continente maldito.

"Chegou o ônibus para levar os meninos para a Costa do Marfim." A notícia correu como rastilho de pólvora por Bohicon, no Benin. Nos povoados mais distantes da cidade todos já sabiam. Nas cabanas às margens do rio Ueme e nas casas de pau a pique nos subúrbios, entre mosquitos e privadas, a notícia já tinha chegado. O ônibus estacionou discretamente em um bairro da cidade, do outro lado da linha do trem. Lassau, o motorista, esperava pacientemente há dois dias o momento de ligar o motor. Seria nessa mesma noite... mais tardar no dia seguinte. O trabalho agora era para Agustin, o traficante de crianças escravas.

Bohicon é uma cidade média, com cerca de 150 mil habitantes. É uma parada obrigatória na rota que liga Cotonou ao norte do Benin. Entre o rio Ueme, que desce pelo leste e a fronteira com Togo, a oeste, há centenas e talvez milhares de povoados abandonados à miséria mais absoluta.

Agustin estava nesse momento em um desses povoados, Dehounta, reunido com o conselho de anciãos e pais. À sombra de uma árvore, dizia a eles que precisava de meninos da aldeia "para trabalhar em um projeto de cooperação internacional na Costa do Marfim". Era uma maneira eufemística de dizer as coisas. Realmente estava comprando dois meninos e um rapaz para explorá-los nas plantações de cacau marfinenses. Pelos dois menores pagava 10 mil francos . Pelo maior, um pouco mais, 15 mil.

Benin é um dos países mais pobres do mundo, e à pobreza soma-se o estigma do tráfico de crianças. A poligamia está na origem do problema. Há homens mais velhos no povoado de Dehounta que têm até cinco mulheres, e com cada uma, em média, cinco filhos. Lucien Houmenou com mais de 20 filhos vivendo com quase nada, vendeu um deles. "Eu aceito em entregar meu filho, mas ele tem de voltar dentro de três anos e trazer dinheiro para casa", disse a Agustin na assembléia.

Emmanuelle Houmenou nunca foi para a escola. Nos dias de mercado em Kpokissa ajudava a sua mãe, e a seu pai no campo de milho. Justine não queria enviá-lo à Costa do Marfim, mas seu marido já tinha os 10 mil francos no bolso e a aprovação do conselho do povoado.

Agustin tinha deixado o carro em um lugar discreto a uns dois quilômetros de Dehounta, porque uma coisa era ser traficante e outra muito diferente passear com as crianças pelo povoado à vista de todos. Ao cair da tarde e sem despedir-se de ninguém, nem de seus pais, Emmanuelle, 12 anos, caminhava descalço por um caminho de areia avermelhada com uma sacola de plástico na mão. Atrás dela vinha Samuel Anedé, o maior, de 16 anos, e fechando o grupo ao lado de Agustin ia Joaquim Nadja, o menor, de 10 anos, também descalço. Eram acompanhados por dois jovens do povoado.

Até Bohicon há uma longa estrada de três horas por um caminho de terra, maltratado pelo temporal que caíra nessa tarde. No final de maio essas tormentas anunciavam a chegada da época das chuvas; em poucas semanas o rio Ueme transbordaria e alagaria tudo. Ao chegar a Bohicon já era noite e havia um controle da polícia na entrada da cidade. O carro de Agustin cruzou entre uma pilha de pneus velhos e uma vala, sem que ninguém reparasse. Todo mundo por ali sabe o que Agustin faz e se o descobrissem levando três meninos sem papéis dos povoados iria para a prisão.

O ônibus saiu de Bohicon à meia-noite. Viajavam 35 pessoas, a maioria jovens sem documentos, sem dinheiro e com pouca bagagem, que trabalhariam pelo menos três anos nas plantações de cacau e café da Costa do Marfim. Um desses jovens levava dois de seus filhos e mais um menino, que um vizinho lhe entregou.

Os três meninos de Agustin viajavam na parte da frente do ônibus, em silêncio, distante do futuro que os aguardava. A estrada para Togo estava cheia de controles policiais. Contei até nove em um trajeto de 200 km. Isidoro e Bertin, os ajudantes do motorista, se revezavam para descer e dar algum dinheiro para os policiais - 2 mil a 5 mil francos - para que lhes deixassem passar.

Às 5 da madrugada o ônibus estava na fronteira de Togo. Os ajudantes abriram as portas e todo mundo caminhou a pé os 100m que havia entre os dois controles policiais. Talvez por causa da hora, ou talvez porque o tráfico de crianças não incomode ninguém, a verdade é que nem a polícia de Benin nem a de Togo pediram documentos.

Em uma hora o ônibus estava novamente em marcha. Da fronteira até Lomé, capital do Togo, que fica na fronteira com Gana, são cerca de uns 50 km. Era preciso estar preparado para atravessá-la às 7 da manhã, que é quando se abre a passagem da fronteira e uma multidão de gente de Togo passa para o outro lado.

Uma vez em território ganense já não se tem pressa, podia-se descansar durante toda a manhã. Alguns viajantes tomavam café e pão com manteiga em um maquis, uma das famosas barracas de comida que há em qualquer esquina da África ocidental. Outros aproveitaram que o ônibus estava vazio para se esticar nos bancos e tirar um cochilo. Agustin levou as crianças para o mercado de Aflao para comprar sandálias de plástico para seus pés descalços, alguns abacaxis e mangas. O sonho de Samuel, o mais velho, era comprar um telefone celular como o de Agustin. "Você poderá comprar quando ganhar dinheiro na Costa do Marfim", disse.

Agustin tem 35 anos e muitas cicatrizes na pele e quem sabe na alma. Ele também foi um menino escravo na Costa do Marfim. Seu pai o vendeu aos 15 anos para o primeiro traficante que passou por seu povoado. Meu acordo com ele era que eu podia acompanhá-lo durante a viagem, mas sem fotos nem dados que os identificasse.

Quem já viajou em transporte público pelo golfo da Guiné sabe que um veículo não tem número limitado de passageiros. Viajam os que cabem. E no ônibus dos meninos escravos iam muitos mais que a lotação. Em cada dois assentos havia três passageiros; as sacolas no chão não deixavam espaço para se apoiar os pés e, além disso, os bancos no corredor que são para casos de emergência também estavam ocupados. Na parte da frente só se viam um monte de cabeças e sonolentas pelo cansaço e pelo calor. Não se ouviam conversas, apenas o ruído do motor e das rodas saltando buracos.

Emmanuelle cedeu ao cansaço e apoiou sua cabeça no ombro de Samuel. O maior dos meninos fazia o papel de protetor de seus dois companheiros. Dividia a comida com eles, procurava espaço para ocupar assentos nas paradas, chegou até a enfrentar uma vez Agustin porque estavam horas sem comer. "Quando voltarmos ao povoado vou dizer ao nosso povo que você não está nos tratando bem", disse ele ao passar a fronteira de Gana. Agustin não se deixava intimidar facilmente, mas talvez tenha sido nessa hora que decidiu comprar sandálias para os menores.

Ao passar por Acra, a capital de Gana, anoiteceu. O motorista, Lassau, estava cansado. Iam passar a segunda noite em um posto de combustível entre Acra e Elmina. Os que podiam jantavam alguma coisa. A maioria viajava com a roupa do corpo, sem nada no bolso. Agustin comprou pão e algumas latas de sardinha e preparou uns sanduíches. Em uma maquis próxima havia uma televisão e um grupo de 15 ou 20 pessoas se amontoava para ver a partida entre o Milan e Liverpool. As crianças já estavam dormindo no ônibus. A noite era escura e sufocante.

Cruzar a Costa do Marfim não seria fácil. O país estava mergulhado em uma guerra civil de cinco anos e as estradas estavam cheias de soldados com metralhadoras Kalashnikovs. Os ajudantes do ônibus tinham previsto tudo. Conseguiram em Abidjã, a capital econômica do país, uma licença para o ônibus: "comboio de ajuda humanitária". Mas havia um problema, a lista de passageiros que os policiais da fronteira tinham era de 25 pessoas e ônibus iam 37. Isidoro agrupou os 12 que não estavam na lista, incluindo Agustin, os meninos e eu. Entrou em contato com as máfias locais que se dedicam a passar indocumentados de Gana para a Costa do Marfim e, em troca de 20 mil francos nos atravessaram num furgão de noite, por trilhas na selva.

Enquanto isso, o outro ajudante e o motorista buscavam proteção no posto policial da fronteira marfinense. Estavam dispostos a pagar até 45 mil francos por uma viatura policial que escoltasse o ônibus até Meayi, o coração das plantações de cacau do país. Era muito dinheiro para que os policiais do posto deixassem passar essa oportunidade.

Ao meio-dia de quinta-feira, um 4x4 com dois policiais se pôs a caminho escoltando o ônibus. Em Aboisso, os 12 que havíamos feito outra rota por furgão subimos de novo no ônibus. Quando os policiais descobriram a manobra ficaram brabos, porém tudo fazia apenas parte do teatro de gestos da África, sabiam que ao chegar ao destino poderiam ganhar um dinheiro extra pelos 12 ilegais.

Era a última jornada da rota e a mais perigosa, porque até Meayi faltavam 800 km e dezenas de controles militares. Na entrada de cada cidade se encenava a mesma história. Desciam os dois policiais com a lista de passageiros na mão e o certificado que ‘intitulava’ o comboio de ajuda humanitária. Cumprimentavam seus colegas e pouco depois a barreira se abria e o ônibus continuava o seu caminho.

Às 6 da manhã do dia seguinte, 25 de maio, já quase amanhecendo, o comboio chegou ao final da viagem. Um homem de meia-idade e sorriso aberto aguardava os passageiros. Joseph Houpan se apresentou aos policiais como "o chefe dos beninenses de Meayi". Era a pessoa que enviou o ônibus a Benin para trazer os imigrantes sem documentos. Tinha muitos contatos entre os capatazes marfinenses e agora ia entregar a mão-de-obra de que precisavam para a próxima colheita.

Joseph estava feliz e não parava de dar instruções. Abriu as portas de algo parecido com um escritório ao lado da mesquita e disparava mensagens pelo telefone. "O ônibus do Benin já chegou", repetia em francês. Ao longo da manhã foram chegando capatazes a bordo de suas picapes. Os que vieram no ônibus aguardavam alquebrados em frente ao escritório. A cerimônia se repetiu até que não restou ninguém: o capataz escolhia dois, três... alguns, até cinco jovens. Para cada escolhido pagavam 35 mil francos para Joseph - o preço oficial da passagem de ônibus - e ia embora com as pessoas na caminhonete. Com o dinheiro arrecadado, Joseph acertaria com o motorista e os ajudantes as contas e daria a parte combinada aos policiais. O resto, cerca de 40 mil francos, era o que ele ganhava por seus serviços.

O acerto com os capatazes era simples: cada imigrante trabalharia o primeiro ano para pagar os gastos da passagem; no segundo ano poderia economizar um pouco, mas do salário seriam ainda descontados a comida e o alojamento, e no terceiro ano, teria de pagar a viagem de volta e retornar para casa com alguns francos no bolso.

Os meninos de Agustin não entravam no leilão dos capatazes porque ele já havia se ‘acertado’ sobre eles em Bohicon. No meio da manhã chegou um homem de meia-idade ao qual Agustin chamou de Senhor Essay. Ele cumprimentou Agustin e subiu no ônibus para ver os rapazes. Poucos minutos depois desceu e deu a Agustin seu dinheiro (120 mil francos em notas de 10 mil). O acerto era que se os meninos trabalhassem bem Agustin poderia voltar depois de um ano e ganhar um dinheiro extra.

Três meses depois, em meados de agosto, voltei à Costa do Marfim atrás da pista dos meninos de Agustin. Os encontrei no povoado de Lassina Bango, a uns 20 km da cidade de Gabeadji. Estavam organizando um acampamento de cabanas de barro no meio da selva. A grande colheita do cacau começa em outubro e é preciso construir as moradias para os trabalhadores. O capataz, Chalade Essay, um beninense que está há 17 anos na Costa do Marfim, me autorizou fotografar o maior, Samuel, em pleno trabalho e inclusive falar com ele, mas não aceitou que eu visse os outros meninos menores.

"Estou contente. Melhor trabalhando aqui do que passando fome em Dehounta", disse Samuel. Contou que este ano o capataz não ia lhe pagar nada porque tinha de devolver o dinheiro das passagens de ônibus e a ‘parte’ de Agustin. "Se eu continuar trabalhando como agora, me disse que dará 20 mil francos no final do ano que vem", afirmou.

- "E os meninos?", perguntei.

"Estão por aí. No início não se adaptaram ao trabalho duro, mas agora estão bem", disse Samuel, sem maiores explicações, próximo que estava do patrão. Antes da minha chegada, Senhor Essay deu ordens para esconder todos os meninos do acampamento para que o jornalista não os visse trabalhando no barro. Quando eu voltava para o carro, reconheci Joaquim, o menor dos três, sentado num muro de uma das casas recém-construídas no acampamento. Tirei uma foto dele e fui embora, consciente de que às minhas costas, assim que eu deixasse o povoado, esse menino de 10 anos e Emmanuelle, de 12 anos, pegariam novamente a enxada para cavar a terra, amassar o barro e levantar as paredes das casas.

Ainda faltam capítulos para se escrever no livro da escravidão infantil na África. Faz 200 anos que se começou a luta por sua abolição, mas no golfo da Guiné, em pleno século XXI, Agustin continua percorrendo os povoados do Benin para comprar crinaças que se tornarão escravos.

Instituto Humanitas Unisinos - 06/09/07

Nova soja transgênica será pesquisada no PR

A Monsanto volta a trabalhar com semente OGM no Estado do Paraná, considerado pelo Governo do Estado como livre de transgênicos. A empresa pretende investir no desenvolvimento de uma nova tecnologia aplicada à soja, que combina a resistência a insetos e a tolerância ao herbicida glifosato. A reportagem é de Giovani Ferreira e foi publicada na Gazeta do Povo, 6-09-2007.

A Monsanto anunciou ontem que vai retomar as pesquisas com transgênicos no Paraná. Nos próximos cinco anos, a multinacional pretende investir US$ 28 milhões no desenvolvimento de uma nova tecnologia aplicada à soja, que combina a resistência a insetos e a tolerância ao herbicida glifosafo. Os recursos serão aplicados na abertura de três novas estações de pesquisa, no Paraná, Tocantins e Rio Grande Sul, e na melhoria das unidades de Sorriso (MT) e Morrinhos (GO).

A empresa de biotecnologia e insumos agrícolas suspendeu as pesquisas com materiais geneticamente modificados no Paraná em 2003. No início daquele ano, uma estação mantida pela Monsanto em uma área arrendada no município de Ponta Grossa foi invadida e os campos experimentais destruídos por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

No mesmo ano foram encerrados os trabalhos com transgênicos na unidade de Rolândia (Norte do Paraná), hoje usada para pesquisa de melhoramento genético de milho (convencional) e como centro de treinamento. A multinacional ainda mantém estrutura em Andirá, também na região Norte do estado, utilizada como central logística de armazenamento e distribuição de sementes. A nova estação de pesquisa ainda não tem local definido e depende de análise que está sendo feita pela companhia.

André Franco, gerente de negócios da soja da Monsanto no Brasil, explica que a confiança num ambiente mais favorável à tecnologia dos transgênicos no país foi determinante para o investimento: “Frente a um cenário regulatório mais positivo, resolvemos voltar a investir.” Franco reconhece que apostar no Paraná ainda é um risco, mas ele diz acreditar num apoio maior, em especial pela necessidade do produtor por novas tecnologias. “Estar no Paraná é assegurar ao agricultor variedades adaptadas à região; não estar é deixar o estado à margem da tecnologia.”

Com foco exclusivo nos países da América do Sul, a tecnologia é a primeira a ser desenvolvida pela empresa para mercados externos aos Estados Unidos e será inédita no mundo. O diferencial está na soma do composto RR (tolerante ao herbicida) ao Bt (a insetos) em grãos de soja.

O executivo não antecipou quando os trabalhos começam no Paraná, mas garantiu que as pesquisas com os novos materiais têm início em 2008 nas estações de Mato Grosso e Goiás. A estimativa de André Franco é que a nova variedade de soja esteja disponível para utilização pelo produtor no prazo de 4 a 5 anos. A liberação para pesquisa depende de autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

Grão antilagarta - Empresa prevê ganho de produtividade

A pesquisa da Monsanto no Brasil é para um material que iniba a lagarta da soja (Anticarsia gemmatalis), praga que ataca predominantemente as lavouras do Brasil e Argentina e que, segundo a empresa, provoca prejuízos de US$ 300 milhões ao ano aos produtores brasileiros. A nova soja deve manter, no entanto, os benefícios da RR, que é resistente ao glifosato e facilita o controle de ervas daninhas. Essa combinação, segundo André Franco, gerente de soja, irá resultar em maior produtividade. Com base em experiências nos Estados Unidos, Franco diz que é possível ter um ganho de 7% a 11%.

A Monsanto estima que a soja transgênica RR deve ocupar 60% dos quase 4 milhões de hectares que serão destinados ao grão na safra 2007/08 no Paraná. No início da semana, o governo do estado admitiu que os transgênicos ocuparão 40% da área. Na safra passada, porém, o número apurado pelo projeto Rumos da Safra, da Gazeta do Povo, já apontava para uma cobertura de 47% com grãos geneticamente modificados.

A norte-americana Monsanto é a única empresa que detém autorização para vender a tecnologia de grãos geneticamente modificados no Brasil, com autorização comercial para a soja RR e o algodão Bollgard. Neste ano a CTNBio aprovou duas variedades de milho transgênico, um da Monsanto e outro da Bayer, que ainda aguardam o aval do Conselho Nacional de Biossegurança (CNB).

Instituto Humanitas Unisinos - 06/09/07

Vale paga até 80% a menos pela eletricidade do que um cidadão comum

A Vale, sozinha, consome 5% da energia produzida no país e paga barato por essa energia. A reportagem é dos jornalistas Daniel Merli e Stênio Ribeiro para o jornal Brasil de Fato, 05-09-2007.

Eis a reportagem.

Segunda maior siderúrgica do mundo, a Companhia Vale do Rio Doce teve seu valor de mercado multiplicado por oito desde que foi privatizada, em 1997. No primeiro semestre deste ano, a empresa obteve o maior lucro da América Latina, segundo levantamento da consultoria Economática. Um dos motivos da alta competitividade da Vale, segundo os movimentos sociais que defendem a reestatização da empresa, é a abundância e qualidade da bauxita encravada em solo brasileiro, usada como matéria-prima para o alumínio.

Outro ponto, segundo essas organizações, é o fato de a empresa pagar, em média, R$ 0,05 por kilowatt-hora, enquanto o preço em outros países é de R$ 0,72, segundo organizadores da campanha A Vale é Nossa. O baixo preço da tarifa é uma vantagem comparativa importante no mercado internacional de siderurgia, um setor chamado de eletrointensivo por consumir altos volumes de energia. A Vale, sozinha, consome 5% da energia produzida no país.

Além de obter energia mais barata que suas concorrentes no exterior, a Vale paga até 80% menos que o cidadão comum. Essa diferença é fruto do modelo energético brasileiro, segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), uma das organizações integrantes da campanha. E é modelo energético brasileiro que garante parte do poder de concorrência internacional da companhia.

“Sem dúvida, esse baixo preço da energia é um diferencial competitivo para a Vale”, avalia Gilberto Cervinski, do MAB. Para ele, o fato de os consumidores pagarem até 500% a mais pela energia representa uma espécie de subsídio indireto. "Todos nós pagamos a conta pela geração e distribuição de energia elétrica, enquanto alguns poucos tiram proveito".

O potencial hidrelétrico do país faz da energia brasileira uma das mais baratas do mundo, segundo Cervinski. E, junto com as reservas minerais, torna o país o ponto de partida ideal para a exportação de alumínio. “Essa empresa, que atualmente tem a maior parte de seu capital na mão de estrangeiros, aproveita o baixo custo da energia brasileira, enquanto o povo mais uma vez paga a conta”.

"Há um modelo de organização da indústria elétrica brasileira que cria as condições para que os grandes consumidores consigam energia a um preço bem menor que o consumidor comum", concorda Dorival Gonçalves Jr., professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

O modelo descrito por Dorival é dividido entre 700 empresas, que consomem 25% da energia brasileira, e o resto do país, que é responsável por 75% do consumo. “Essas grandes empresas não compram energia das distribuidoras. Pelo modelo energético brasileiro, vão ao mercado livre de energia, onde conseguem comprar praticamente a preço de custo”. As distribuidoras que entregam energia às residências não compram no mercado livre, mas em leilões organizados pelo governo.

Cervinski considera que as estatais de energia aceitam a barganha dos grandes consumidores no mercado livre, vendendo a energia quase a preço de custo. “O Estado acaba oferecendo, via estatais, um preço muito baixo”, afirma o militante do MAB, que vê ligação entre esse fato e as doações de campanha das empresas eletrointensivas.

Procurada pela Agência Brasil, a Vale não quis comentar seu consumo de energia. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que determina as tarifas, e o Ministério de Minas e Energia, que determina a política energética do país, também não quiseram comentar a crítica. O modelo energético brasileiro é regido pela lei 10.848, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2004.

O Plebiscito da Vale, que está sendo realizado entre os dias 1º e 7 de setembro, é a terceira consulta popular organizada por movimentos sociais no Brasil. Seis milhões de brasileiros votaram na consulta sobre dívida externa, em 2000, e 10 milhões votaram na consulta sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em 2002.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 05/09/07

Darfur, uma tragédia que pode se repetir

“A situação crítica que continua se verificando em Darfur está ocasionando um imenso sofrimento ao seu povo”, afirma artigo assinado por Václav Havel, Desmond Mpilo Tutu, príncipe Hasan Bin Talal, André Glucksmann, Vartan Gregorian, Mike Moore, Michael Novak, Mary Robinson, Yohei Sasakawa, Karel Schwarzenberg, George Soros e Richard von Weizsäcker.

No texto, os autores conclamam para que se crie um clima nacional e internacional favorável à solução do problema no Sudão. Além disso, chamam a atenção para as graves conseqüências humanitárias e ambientais de tal conflito.

Segue a íntegra do artigo publicado no El País, 25-08-2007, e traduzido pelo Cepat.

A situação crítica que continua se verificando em Darfur está ocasionando um imenso sofrimento ao seu povo. Os dois lados do conflito – o Governo do Sudão e suas forças armadas, assim como os grupos da oposição de Darfur – devem compreender que os civis não deveriam ser vítimas de suas disputas políticas.

O consentimento do Governo sudanês ao desdobramento da missão híbrida das Nações Unidas e da União Africana (UA), destinada a manter a paz na região, é, evidentemente, um acontecimento reconhecido. Mas o mandato desta missão deve ser firme o bastante para permitir uma proteção total da população civil. Assim mesmo, a força deve possuir dotação, capacidade e financiamento suficientes para alcançar eficazmente este objetivo vital. Os países e instituições que destinaram fundos adicionais para garantir o êxito desta missão – em particular a França, a Espanha e a Comissão Europa – são dignos de aplausos.

É importante que os atores internacionais garantam ao Governo do Sudão que a missão da ONU e da UA não empreenderá uma mudança de regime no país nem se desviará de nenhum outro modo de seu mandato de pacificação. O governo sudanês, por sua vez, deve estar plenamente consciente de que a comunidade internacional só se sentirá impulsionada a manter seu respaldo se tal Governo respeitar compromissos passados e cooperar na preparação, no desdobramento e na manutenção da missão.

Quanto à oposição de Darfur, os recentes esforços realizados por alguns de seus líderes para superar a fragmentação e reunificar seu movimento são uma evolução positiva. É essencial que os principais grupos da oposição cheguem a um consenso sobre suas metas e posições de negociação. Só então poderão agir como sócios fidedignos da comunidade internacional e do Governo sudanês. Todas as partes do conflito devem estar conscientes de que não há maneira de por fim à sua disputa salvo através de um acordo de paz eqüitativo e sustentável alcançado por todos os interessados. O retorno das pessoas deslocadas dentro do próprio país e a devida atenção às mesmas têm que ser um componente essencial de qualquer acordo dessa índole.

As pessoas responsáveis de todo o mundo, em especial políticos e jornalistas, devem centrar sua atenção em Darfur, já que as injustiças e o mal que sofrem diariamente milhões de vítimas e refugiados são tão espantosos como sempre, apesar do cansaço que alguns podem perceber derivado do prolongado conflito. Já que há indícios de uma possível estabilização nos próximos meses, é hora de começar a se preparar para volumes cada vez maiores de reconstrução e ajuda ao desenvolvimento, além da cooperação internacional.

Os países economicamente desenvolvidos, particularmente, deveriam cumprir sua responsabilidade global e ajudar Darfur a avançar na direção da renovação e da prosperidade. Este incremento da cooperação deveria provir de uma ampliação ou reorientação dos programas nacionais de ajuda ao desenvolvimento. Além disso, deveriam ser estudados minuciosamente acordos internacionais destinados a um uso efetivo das sinergias.

Ao facilitar as complexas relações que mantêm entre si a comunidade internacional e os atores locais de Darfur, a ONU desempenha atualmente um trabalho indispensável e é preciso apoiá-la ativamente. A China, particularmente, deveria aproveitar sua considerável influência no Sudão para que as autoridades do país alcancem uma resolução pacífica e definitiva da disputa.

Assim mesmo, dado que Darfur constitui um símbolo das dificuldades mais geralizadas no mundo, a comunidade internacional deve olhar para além das circunstâncias imediatas do conflito e multiplicar seus esforços para lutar contra as ameaças que intervieram no desastre, como a mudança climática e a degradação do meio ambiente. De fato, a acelerada expansão dos desertos provavelmente ocasionará uma redução da produção agrícola das zonas em conflito, uma marcada deterioração da disponibilidade de água, e possivelmente mais conflitos e deslocamentos de pessoas.

Em diversos lugares do mundo se dão – ou podem começar a se dar – situações similares. Portanto, devemos reconhecer e solucionar a natureza global deste problema em lugares onde a degradação ambiental já está provocando uma perigosa deterioração da vida das pessoas. Nos lugares em que se observa esse dano, faz-se necessário agir logo.

O verdadeiro sonho de Martin Luther King. O discurso de Washington há quarenta e quatro anos


Aos 28 de agosto de 1963 o líder dos afro-americanos pronunciou o seu célebre discurso “I have a dream” [Eu tenho um sonho]. Martin Luther King citou Lincoln, a Bíblia, Shakespeare. Mas também se referiu a Malcolm e às Panteras negras. “Não haverá repouso nem tranqüilidade na América enquanto não forem garantidos aos negros os seus direitos de cidadania”. O reverendo pacifista compartilhou também o “sonho” de John Brown, condenado à morte sob a acusação de haver tentado uma insurreição armada. A reportagem é de Gordon Poole e publicada pelo jornal italiano Il Manifesto, 28-08-2007.

Eis o artigo.

Aos 28 de agosto de 1963, Martin Luther King, durante um comício em Washington, de fronte do Lincoln Memorial, proclamou o próprio sonho de libertação para os afro-americanos: “Há cem anos um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, firmou a Proclamação da Emancipação”. Lugar e data tinham sido escolhidos cuidadosamente pelos organizadores, não só para dar o máximo realce ao discurso, mas também para sacralizar a luta de libertação dos negros, ligando-a à obra de emancipação de Lincoln. Em todo o discurso político há também uma questão de retórica: para indicar os “cem anos” passados desde a Emancipação, King usou uma expressão antes incomum: “five score” (cinco vintenas), que recordava aos ouvintes o breve, mas famoso discurso comemorativo de Lincoln, pronunciado em Gettisburgo aos 19 de novembro de 1863 e aprendido de cor por gerações de escolares, que inicia com: “Four score and seven years ago” [Há quatro vintenas e sete anos] “os nossos pais fundaram uma nova nação, dedicada ao princípio de que todos os homens foram criados iguais...”. O apelo de Lincoln recorria, por sua vez, a documentos fundamentais da República, como a Declaração da Independência, a Constituição, o Bill of Rights, inspirados no Iluminismo. Assim, a retórica de King enraizava a luta dos negros na melhor tradição libertária de seu país.

As referências à Bíblia

O seu discurso, além dos conteúdos, se enriquecia com embelezamentos retóricos, repetições, anáforas. King relacionava frases e conceitos à Bíblia, bem como ao cotidiano dos seus ouvintes. Assim, referências ao Antigo e ao Novo Testamento ou a Shakespeare se alternavam com referências ao presidente Abraham Lincoln e ao mundo das finanças. Expressões barrocas, como “queimado nas chamas de devastantes injustiças” e “a costumeira roca da fraternidade” são mescladas com outras mais coloquiais, como “blow off steam” (desabafar-se), “cooling off” (acalmar-se) ou”o fármaco tranqüilizante do gradualismo”. É de notar-se, no entanto, que, embora Lincoln fosse recordado por King como o grande Libertador dos escravos negros rebeldes, como Presidente ele jamais tivera sonhos de libertação como aquele de King, quando este auspiciava que “um dia precisamente ali, no Alabama, meninos e meninas negras poderão estar de mãos dadas com meninos e meninas brancas, como irmãs e irmãos”, podendo freqüentar as mesmas escolas.

Emancipar os escravos era uma coisa, integrá-los na sociedade americana era outra. Na verdade, Lincoln visara a Proclamação da Emancipação, promulgada no dia 1º de janeiro de 1863, em plena guerra, principalmente como uma arma para dar aos escravos um motivo, se não para rebelar-se, ao menos para confiar numa vitória do Norte e para agir de vários modos a fim de favorecê-la, bem como para encorajar negros livres do Norte e aqueles das zonas do Sul conquistadas pelo Norte a se alistarem no exército da União, que desesperadamente deles necessitava. A Proclamação servia também para suscitar preocupações entre os sulistas brancos, os quais, lembrados das sangrentas revoltas de escravos, como aquela do grupo comandado por Nat Turner em 1831, podiam temer que algo análogo sucedesse, enquanto todos os homens brancos válidos estavam empenhados no front. Todavia, Lincoln não podia não intuir que aquela Proclamação teria dado força a uma luta pela liberdade com conseqüências conturbadoras para a sociedade dos Estados Unidos, uma vez encerrada a guerra.

Os ideais do Iluminismo

Nem mesmo os Pais fundadores da República, que King cita junto a Lincoln em apoio ao seu programa de libertação, conceberam jamais uma sociedade na qual os negros estariam em condições de paridade com os brancos: para fazê-lo, deveriam ter aceitado até o fundo os idéias do Iluminismo aos quais se referiam. No entanto, a implicação que as palavras “All men are created equal” [Todos os homens foram criados iguais] não pudessem ser limitadas somente aos homens brancos, mas, potencialmente, devessem estender-se no sentido de abranger todos e todas era, a longo termo, inevitável. Esta possibilidade manifesta-se com força nas palavras de King, quando diz que “Todos os filhos de Deus” devem ser livres. A reinterpretação forçada dos documentos históricos da República, que King fez naquele dia, sob o sol de agosto, na capital e que tinha e teria perseguido resolutamente durante sua vida, não teria podido impor-se a não ser graças às lutas de massa dos negros, com a solidariedade militante de muitíssimos brancos.

King era, por religião e ideologia, rigorosamente avesso à violência, mas bem sabia que era requerida uma guerra civil para obter a emancipação dos escravos e as emendas XIII e XV da Constituição. Ele também sabia que as lutas corajosas e talvez violentas contra o racismo e a opressão policialesca, conduzida por grupos de libertação negros, como os islamitas de Malcolm X, os ativistas do Poder negro de Stokely Carmichael e as Panteras Negras, eram parte importante do movimento.

Um brusco despertar

A um certo ponto de seu discurso, Martin Luther King fá-lo entender, correndo o risco de contradizer-se: “Aqueles que esperavam que os negros tivessem apenas necessidade de desafogar-se um pouco, e que agora se teriam acalmado, terão um brusco despertar, se a nação devesse voltar à costumeira andança. Não haverá repouso nem tranqüilidade na América, enquanto não sejam garantidos aos negros os seus direitos de cidadania. As tempestades da revolta continuarão a sacudir os fundamentos da nossa nação, enquanto não surgir o luminoso dia da justiça”. No entanto, imediatamente após, ele se dirige aos seus: “Devemos sempre conduzir a nossa luta no plano da dignidade e da disciplina. Não devemos permitir que os nossos protestos criativos degenerem em violência física. De tempos em tempos devemos elevar-nos às majestosas alturas onde, à força física, se opõe a força de ânimo”. E, com São Paulo os convidava: “Continuai a trabalhar na crença de que o sofrimento presente é fonte de redenção” (2 Cor 12,10).

Na verdade, se jamais tivesse existido, na época de Lincoln, uma pessoa que compartilhasse do sonho do reverendo King, esta era John Brown (1800-1859). Antes de escutar a sentença de morte da corte de Virgínia, por haver tentado uma insurreição armada, Brown fez um breve discurso num estilo tipicamente puritano, o assim chamado ‘plain style’ (sermo humilis), distante da oratória altissonante e carismática de King. Em palavras simples, Brown afirmou, no entanto, substancialmente o mesmo ideal, extraído daquela mesma Bíblia que era tão importante para o idealismo político de King. Em sua breve peroração, Brown afirmou por duas vezes que seu objetivo fora somente o de libertar escravos e não o de incitá-los a uma rebelião geral.

A convicção de Brown de que os escravos tivessem o direito, que era claramente, para ele, um direito natural conferido por Deus, de libertar-se por qualquer meio, era coerente com os seus pressupostos ideológicos. As suas idéias antecipam aquelas de Malcolm X, expressas também elas num contexto religioso: “By any means necessary” (necessário por qualquer meio).

O sacrifício de John Brown

No discurso de Brown à Corte faltam as metáforas, há poucos adjetivos e jamais são usados para embelezar o discurso ou intensificar-lhe o efeito retórico. Também quando ele qualifica as leis escravagistas como “wicked, cruel, and injust” (malvadas, cruéis e injustas), não se trata de hipérboles: ele quer dizer precisamente que tais leis são contra a lei divina, o direito natural e – corretamente entendida – a lei humana. Em seu coração deve ter entendido que a escravidão estava destinada a desaparecer em breve. Entendia também que a própria morte teria podido acelerar aquele processo, embora talvez não previsse a terrível guerra civil que dali a pouco, entre 1861-1865, seria desencadeada em parte por causa da questão da escravidão, invocando o seu nome: “John Brown’s body lies a-mouldering in the greve, but his soul goes marching on. Glory, glory hallelujah!” (O corpo de John Brown se decompõe sob a terra, mas sua alma continua marchando. Glória, aleluia!). Depois daquele discurso ele não fez outras declarações e um mês mais tarde foi ao patíbulo.

O mesmo sonho

No discurso de Martin Luther King, morto aos 8 de abril de 1968 na idade de trinta e nove anos, não se faz naturalmente nenhuma referência a John Brown, embora King compartilhasse do sonho de libertação do sisudo pregador oitocentesco, e isto porque King não aceitava e não podia, por isso, apoiar os métodos com os quais Brown havia procurado realizar aquele objetivo. Porém o sonho de King, mais do que o de Lincoln ou dos Pais Fundadores, era o mesmo de Brown: “Quando fizermos ressoar a Liberdade – quando a fizermos reboar em toda aldeia e todo vilarejo, em cada Estado e em cada cidade, poderemos acelerar a vinda daquele dia, no qual todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e não judeus, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras do velho spiritual: ‘Finalmente livres, finalmente livres! Graças ao Deus onipotente, somos finalmente livres’ ”.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/09/07

20% dos jovens da América Latina não trabalham nem estudam, revela relatório da OIT

Segundo relatório divulgado ontem pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), 22 milhões de jovens da América Latina e do Caribe, entre 15 e 24 anos, o equivalente a 20% do total de 106 milhões de jovens, não trabalham nem estudam. O desemprego atinge 10 milhões de jovens na região, sendo que o índice entre adultos é de 6% e entre jovens, de 17%. Outros 31 milhões trabalham em empregos considerados precários ou informais. A notícia é do jornal Valor, 5-09-2007. A notícia também pode ser lida nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

O documento "Trabalho Decente e Juventude - América Latina", que utiliza dados de 2005, foi apresentado em Santiago do Chile pelo diretor-geral da OIT, Juan Somavia. Segundo o estudo, o índice de desemprego na região em 2005 era maior do que em 1990. "O que mais diferencia os jovens dos adultos é o tipo de emprego a que eles têm acesso. Dois de cada três jovens trabalham em atividades informais, onde freqüentemente a remuneração é menor que o salário mínimo e sem cobertura da previdência social. Em termos de renda, um jovem ganha, em média, 56% do que um adulto percebe", diz o texto da OIT.

No total da massa de trabalhadores da região, os jovens representam 46% dos desempregados. O relatório diz ainda que, se o desemprego dos jovens se reduzisse à metade, a produção da região cresceria entre 4,9 pontos percentuais e 7,8 pontos adicionais. O estudo cita o programa brasileiro ProUni (que financia o estudo universitário de jovens) como exemplo de programa que abre caminho para jovens pobres, mas não faz menção ao Primeiro Emprego, que será extinto em 2008, embora fale sobre programas semelhantes de países sul-americanos.

Além de trazer dados sobre emprego e desemprego, o estudo revisa diversas iniciativas adotadas por países da região para tentar combater o problema e faz uma série de propostas nesse sentido. O estudo ressalta que a larga parcela de desempregados entre os jovens tem relação com a demografia atual da região e pode mudar no futuro.

Segundo a OIT, na realidade latino-americana, nunca houve tantas pessoas com idade entre 15 e 24 anos. É provável que, no futuro, essa cifra pare de crescer, visto que as projeções indicam, a partir de 2015, uma taxa menor de crescimento da população. São 106 milhões de jovens na região: 48 milhões trabalham, outros 48 milhões são inativos (não trabalham e não estão procurando emprego), 10 milhões estão desempregados.

Entre os que trabalham, 31 milhões realizam atividades precárias (não contam com seguridade social em saúde e pensões), sendo que dois a cada três deles não estudam. Entre os que estão fora do mercado de trabalho, apenas 40% freqüentam a escola. Os que não estudam nem trabalham são 22 milhões. No conjunto, mais da metade da população de jovens não estuda: são 57 milhões, ou, 54% do geral.

A precariedade nos mercados de trabalho da região afeta um de cada dois trabalhadores e, entre os jovens, dois de cada três, sublinha o relatório que, no entanto, não especifica os dados por países. Foram criados programas com ótimos resultados, mas com coberturas reduzidas ou iniciativas de amplo alcance, mas sem o impacto esperado. O desafio consiste em articular ambas as dimensões e passar da execução de programas para a definição e realização de políticas de Estado com a participação dos jovens, afirma a OIT.

Segundo o estudo, para qualquer país, é importante que seus jovens tenham oportunidades para progredir e sejam capazes de aproveitá-las, exercendo responsavelmente suas liberdades

O relatório destaca que enquanto aqueles que estudam e trabalham concentram-se nos quintos mais altos de renda familiar per capita, os que não estudam nem trabalham concentram-se nos estratos médios e de renda baixa.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/09/07

Brasil será depósito de pneus usados do mundo?

A Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos - grande interessada no debate dos reflexos econômicos, trabalhistas e ambientais da importação de pneus usados - estranha. Informa que não foi convidada para uma reunião sobre o tema com o ministro do Trabalho, Carlos Luppi, ocorrida na semana passada. Mas lá estavam os representantes do setor de reforma de pneus e o deputado federal Nelson Marchezelli, ambos, segundo a Anip, favoráveis à importação desses pneus. Questionada, a assessoria do Ministério do Trabalho justificou que os convites ficaram a cargo da Comissão de Assuntos do Trabalho (CAT), da Câmara dos Deputados, presidida por Marchezelli. O que, segundo a Anip, é ainda mais estranho, uma vez que um dia antes da reunião entrou em contato com a CAT para checar a data do encontro. Resposta: não havia nada programado para aquela semana. A reportagem é de Sonia Racy e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 5-09-2007.

Embora estranhe, a Anip admite que o 'esquecimento' se justifica, já que desde sempre tem defendido que as empresas de reforma no Brasil utilizem apenas pneus usados nacionais nos seus processos.

Considera que aprovar a importação de pneus usados seria um retrocesso na política ambiental brasileira. Vilien Soares, diretor-geral da associação, lembra que, nos últimos três anos, entraram 25 milhões de carcaças de pneus usados no Brasil. 'Isso é mais que o dobro da capacidade de produção das empresas de remoldagem. Ou seja, mais da metade do que é importado ou é vendido como pneu meia-vida ou é lixo direto, constituindo crime por desvio de caminho', alerta, de olho em seu próprio mercado.

Não bastasse isso, destaca o executivo, a importação de pneus usados tem impacto direto no contencioso que o Brasil abriu contra a União Européia na OMC. 'Se a importação de pneus usados for autorizada, perderemos o Painel contra os europeus e teremos que liberar também a importação de pneus reformados.' O que seria um total despropósito, diz, uma vez que o Brasil teria de destruir também os pneus fabricados nos países desenvolvidos.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/09/07

Jornal inglês alerta para 'doença brasileira'

O jornal Financial Times afirmou ontem que a valorização do real traz riscos para a economia brasileira. O diário britânico observou que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) está a caminho de superar 5% ao ano, a demanda e o crédito doméstico estão se ampliando velozmente, e o Brasil está protegido da volatilidade externa graças às elevadas reservas e aos superávits em conta corrente. A reportagem é de João Caminoto e Ribamar Oliveira e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 4-09-2007.

'O País, ao que parece, nunca esteve com saúde tão robusta', disse. 'Por que, então, tem havido recentemente tanta conversa sobre 'doença brasileira'?'

O FT cita o exemplo da 'doença holandesa', que atingiu o país europeu na década de 70, quando as exportações de uma reserva de gás recém-descoberta elevaram o valor da moeda a talponto que destruiu a competitividade do resto da economia. 'O equivalente no Brasil ameaça tornar o país uma vítima de seu próprio sucesso.'

Segundo o diário, o real forte está tornando os bens brasileiros menos competitivos e tem produzido protestos em vários setores da indústria. 'O perigo, segundo eles (os críticos), é que empregos com salários mais altos nas indústrias de capital intensivo e de outros setores tradicionais serão substituídos por outros com salários menores no setor de commodities.'

O economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações, disse que 'a doença brasileira é boa para o setor primário e má para os de valor agregado'.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, reagiu à matéria publicada pelo Financial Times. 'Como se pode falar em desindustrialização se a indústria de transformação no Brasil está crescendo 5% este ano e cresceu 2,8% no ano passado?', questionou. 'A maioria dos setores industriais está crescendo. Por isso é um equívoco falar em doença holandesa', disse.

Instituto Humanitas Unisinos - 05/09/07

Fusão cria a 4ª maior empresa de energia

Depois de mais de um ano e meio de negociação, o grupo privado franco-belga Suez, que atua no Brasil, e a estatal Gaz de France (GDF) anunciaram oficialmente ontem a sua fusão. A nova companhia será a quarta maior do mundo no setor de energia em termos de valor de mercado: cerca de 70 bilhões. A notícia é dos jornais Folha de S. Paulo e El País, 4-09-2007.

A fusão é considerada uma tentativa de reduzir a dependência européia em relação ao gás natural importado da Rússia e deve gerar polêmica - sindicatos franceses já disseram ser contra o negócio, que envolve a privatização da GDF.

Pelo acordo, o Estado francês terá 35,6% das ações da nova empresa, garantindo o seu controle. Hoje, o governo tem 80,2% das ações da GDF. Em 2005, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, então ministro das Finanças, prometeu que o Estado não teria participação na GDF inferior a 70%.

"O importante é ter o controle. Se tivermos o controle, controlamos a estratégia", afirmou o premiê François Fillon.

Um dos maiores sindicatos da França, a CGT, disse que pretende lançar um abaixo-assinado nacional para impedir a privatização da GDF. Segundo a CGT, a fusão das duas empresas acarretará alta nas tarifas cobradas dos consumidores.

Rússia

Para Cirelli, a nova empresa terá um "papel essencial" na consolidação do mercado de energia europeu. Em nota, as duas empresas disseram que "recentes acontecimentos no mercado de energia reforçaram a lógica industrial" por trás da operação, que acontece no momento em que a Europa tenta reduzir sua dependência energética da Rússia.

No início de 2006, a Rússia cortou o fornecimento de gás natural para a Ucrânia, principal rota do produto em direção à União Européia, devido a um impasse nas negociações sobre o preço e por problemas políticos entre os dois países. A decisão prejudicou o abastecimento de vários países da UE.

Negociações

Sarkozy, deu o empurrão final necessário para a realização do negócio, ao dizer, na semana passada, que preferia que a estatal se fundisse apenas com a divisão de energia da Suez. Com isso, haverá o desmembramento da divisão de água e lixo da companhia privada.

O acordo original, formulado em fevereiro de 2006 no governo do então premiê, Dominique de Villepin, rival de Sarkozy, incluía uma fusão de todas as divisões das duas empresas. Ele surgiu como uma medida para impedir que o grupo italiano Enel, que tinha feito uma oferta hostil pela Suez, controlasse a empresa.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 03/09/07

Plantio de cana avança no Norte do país

A cana-de-açúcar chegou ao extremo norte do país. Empresas interessadas em produzir álcool tanto para o mercado local quanto para o exterior -a Venezuela é logo ali- já plantam suas mudas nas savanas do Estado de Roraima. A reportagem é de Eduardo Geraque e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 2-09-2007.

"Não está sendo plantado nada sobre a floresta amazônica, é bom que se diga. As áreas ocupadas são campos naturais, em um raio de 50 km de Boa Vista", explica Alvaro Callegari, secretário de Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Estado.

Ele confirma que dez empresas já estão instaladas na região. E todas foram bem recepcionadas pelo governo. "Alguns já plantam soja no Centro-Oeste e agora resolveram investir aqui", diz o político.

Apesar de os pesquisadores amazônicos considerarem os campos de Roraima áreas importantes para a preservação da biodiversidade, Callegari usa um exemplo secular para explicar o uso dessas regiões.

"As savanas de Roraima são usadas pela pecuária há mais de um século, assim como ocorreu nos pampas gaúchos com os jesuítas", explica o secretário, que é curitibano e está há mais de 20 anos em Boa Vista.

"A qualidade de vida aqui é excepcional. O clima é ideal para a cana-de-açúcar, temos muita luz, por exemplo. Parece que estamos na praia."

As impressões climáticas relatadas por Callegari condizem totalmente com a realidade, segundo Milton Steagall, diretor de Desenvolvimento de Novos Negócios da Biocapital, empresa paulista recém-instalada na região de Boa Vista. "A iniciativa partiu da empresa, mas fomos muito bem recebidos pelo governo", afirma Steagall. Um dos incentivos fiscais já concedidos é o desconto no ICMS.

As expectativas de produtividade são muito boas, segundo o executivo. Sem citar números, ele diz que o rendimento da cana-de-açúcar nas savanas amazônicas - a empresa já obteve todas as licenças ambientais, segundo ele- deve ser superior ao obtido em São Paulo.

"A questão da produtividade é o fator determinante para a escolha de Roraima. Nas usinas de álcool, 70% do custo é a matéria-prima. Se a produtividade não for boa, o investimento pode ser colocado em risco."

Por enquanto, a Biocapital está na fase de multiplicar as mudas de cana plantadas em seus viveiros. A variedade levada para a Amazônia não foi desenvolvida especialmente para a região, mas a expectativa dos empresários é que os tipos escolhidos se adaptem totalmente ao solo amazônico.

Moagem em 2009

Pelo cronograma da empresa, o início da moagem deve ocorrer em 2009. Inicialmente, o projeto deve suprir o consumo apenas da região. "O objetivo é chegar a 2014 com uma capacidade de moagem de 6 milhões de toneladas, o que deverá render uma produção de 530 mil litros de álcool", explica o diretor da Biocapital, que preferiu não revelar o investimento feito pelo grupo.

As contas da empresa também projetam a geração de 5.600 empregos diretos e de 12 mil indiretos.

Como a usina será instalada em uma região de savana, a questão ambiental está resolvida, segundo Steagall. "O projeto não tem riscos ambientais."

De acordo com ele, a empresa está muito consciente da sua responsabilidade nas questões ambientais. "A questão fundiária, por exemplo, não atinge a Biocapital, pois parte das terras será da nossa propriedade, e uma outra parte, de terceiros, com os quais teremos contratos de arrendamento."

Se o discurso empresarial é mais comedido, o governamental é repleto de esperanças.

"Temos como plantar cana-de-açúcar em até 65% do nosso cerrado. São quase 4 milhões de hectares. A Venezuela será um grande mercado para nós, porque ela terá que tirar o chumbo da gasolina e, provavelmente, terá que o usar o álcool para ter um combustível mais limpo", lembra o secretário Callegari.

Instituto Humanitas Unisinos - 03/09/07

FAO teme que a redução na diversidade genética coloque em risco fontes de alimentos

Uma de cada cinco raças de gado, frango e suínos no mundo pode desaparecer nos próximos anos. O alerta é da FAO, que hoje divulga seu primeiro relatório sobre recursos genéticos no mundo e reúne, na Suíça, mais de 160 países para montar uma estratégia para evitar a extinção das raças de animais. Segundo a FAO, uma raça de suínos, ovelhas, frango ou bovinos desaparece por mês desde 2000. O temor é que a diversidade genética fique limitada, colocando em risco a alimentação. A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo, 3-09-2007.

Com o incremento na população mundial de 6,3 bilhões de pessoas para 9 bilhões em 40 anos, a pressão sobre fontes de alimentos será cada vez maior.

'Um amplo portfolio de recursos genéticos é crucial para desenvolver a produção agrícola mundial e garantir nosso suprimento de alimentos', afirmou Jacques Diouf, diretor da FAO. O problema é que 60% dos países não têm estrutura de conservação de genes e a FAO espera contribuições de entidades internacionais e governos.

Para o especialista em recursos genéticos Carlos Sere, um dos afetados pode ser o Brasil. O País está fechando uma série de acordos com governos africanos para garantir pesquisas no desenvolvimento e manutenção de certas raças. Para o pesquisador, isso pode ser importante para desenvolver raças que melhor se adaptem a zonas semi-áridas ou tropicais. A Embrapa colabora com o governo de Gana para desenvolver genes que atendam a essas necessidades. 'Um gado que resista às condições do sertão pode ser fundamental para a economia do Nordeste', afirmou.

Hoje, a queda da diversidade ocorre por razões econômicas. Produtores africanos e asiáticos abandonam raças locais por animais mais produtivos, a maioria europeus. Mas a FAO alerta que pouco se sabe sobre resistência a condições às quais não estão adaptadas.

Instituto Humanitas Unisinos - 01/09/07

Livro de Richard Dawkins não passa de libelo político. Artigo de Luiz Felipe Pondé

"O darwinismo é, filosoficamente, o ateísmo mais elegante que existe, nada prova sobre Deus, mas pelo menos não incorre no elementar erro do marxismo, que confunde representações sociais com o problema da ordem cósmica. Diante desse ruído, ainda que me considerem cético demais, confesso: prefiro Fernando Pessoa e Deus", escreve Luiz Felipe Pondé, filósofo, professor da PUC-SP e da FAAP, e autor de, entre outros títulos, "Crítica e Profecia - Filosofia da Religião em Dostoiévski" (ed. 34) e "Do Pensamento no Deserto - Ensaios de Filosofia, Teologia e Literatura" (Edusp, no prelo), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 1-09-2007. Pondé comenta o livro "Deus, um delírio" de Richard Dawkins.

Eis o artigo.

"Falta nessas pessoas que teimam em ser profetas um pouco daquela sabedoria discreta que encontramos em gente como Fernando Pessoa: o improvável Deus nos protege da fé grosseira em ídolos com cabeça de bicho, como o culto da Humanidade, "mera idéia biológica".

Pouco céticas e muito dogmáticas, elas confundem coisas como a salutar disciplina cética com o ateísmo. Como diria Chesterton, quando deixamos de acreditar em Deus, acabamos crendo em qualquer bobagem. A humanidade é mais infeliz do que imagina nossa vã filosofia da emancipação.

O novo livro de Richard Dawkins (que parece ser aquele tipo de cara que ainda acha que o ateísmo mete medo em gente grande), "Deus, um Delírio", não é ciência, mas mero libelo político (ateísmo científico é um contra-senso, Deus é uma variável sem controle epistemológico), uma recaída na velha fúria jacobina, requentada com máximas evolucionistas.

Lembremos que não existem cosmologias de laboratório.

Afirmações como "tenha orgulho de ser ateu e olhe o futuro com confiança" soam bem num workshop para auto-estima.

Seu foco são as utopias modernas de salvação: não é por acaso que flerta com alguns dos totalitarismos mais sofisticados de nossa época, entre eles, aqueles, aliás, que "melhoraram muito" as relações entre homens e mulheres, esmagado-as sob a bota do ressentimento típico da desconstrução social genérica.

O livro vende o darwinismo como teoria "progressista" (grande intuição marqueteira), por isso suas alusões a "sair do armário", tentando convencer a sensibilidade de esquerda que o darwinismo não é mais perigoso. A alma desassossegada indaga: além da parada dos ateus, serei processado se disser em público que acredito em Deus? Quem é o bobo que acredita que, sem Deus, o ser humano mataria menos? Sem o fundamentalismo islâmico (supõe-se), as torres gêmeas estariam lá, mas e os milhões de mortos em nome da ciência, da humanidade e da história nos séculos 18, 19 e 20?

De Stálin a Fidel, de Robespierre a Mao Tse-tung, todos seduziram a "inteligência atéia". O ateísmo político domina a sensibilidade "pop-inteligente" há décadas, questões como a alegre legalização do aborto, a "revolta poético-científica do desejo", a metafísica materialista e a ignorância filosófico-religiosa provam isso.

Ateísmo mais elegante

Quase todos crêem no "produto emancipação". Deus não garante o "Bem" (nenhuma teologia séria pensa isso), nem o ateísmo a inteligência ou a ética.

Gostamos de matar e pronto.

Dawkins procura seduzir exatamente o tipo de pessoa covarde que não gosta de saber disso sobre si mesma e, com isso, minimiza uma grande qualidade do darwinismo filosófico: sua percepção trágica da vida na qual somos areia que um dia abriu os olhos e que balbucia sozinha diante da indiferença furiosa de um universo mudo e sonambúlico imerso no acúmulo de design cego (supremo conceito que descreve a emergência da "ordem" em meio à cegueira da matéria).

Todavia, reconheçamos que ele acerta ao dizer que a "religião inteligente" pouco tem feito diante da violência fundamentalista e do Mac-Jesus. Mas seria Deus que nos faz gostar de matar e sermos banais como qualquer animal que se arrasta no pó?

A inteligência se faz vítima do ruidoso mundo da democracia militante de massa. Este livro é a prova, ao tentar fazer do darwinismo uma teoria palatável à massa medrosa: se deixarmos de acreditar em Deus, seremos mais felizes... Quem disse que a beleza vencerá? O darwinismo é, filosoficamente, o ateísmo mais elegante que existe, nada prova sobre Deus, mas pelo menos não incorre no elementar erro do marxismo, que confunde representações sociais com o problema da ordem cósmica. Diante desse ruído, ainda que me considerem cético demais, confesso: prefiro Fernando Pessoa e Deus."

Instituto Humanitas Unisinos - 01/09/07

Neo-estatismo ou Estado pró-ativo? O capitalismo brasileiro em debate

Qual é a principal característica do capitalismo brasileiro? Especialistas e economistas comentam as opções do país nas últimas décadas. A reportagem é Roberto Machado para o jornal Valor Econômico, 31-08-2007 - Caderno Eu&Fim de semana.

Eis a reportagem.

Abril de 1992. Fernando Collor ainda não havia sido tragado pela tsunami de denúncias e evidências que levariam ao impeachment. Apesar da recessão na economia, mesmo impopular e já cambaleante, o governo teve forças para seguir com o Programa Nacional de Desestatização, que no dia 10 daquele mês cumpriria importante etapa: a privatização da Petroflex, subsidiária da Petrobras. Foi a primeira estatal do setor petroquímico a ser vendida no PND. Comprador: Grupo Suzano.

Agosto de 2007. Luiz Inácio Lula da Silva inicia o oitavo mês do segundo mandato. As críticas às privatizações e à política econômica dos governos anteriores são pouco mais do que lembranças de oposição. Como espasmos, reaparecem aqui e ali no calor dos palanques. Sucumbiram diante dos altos índices: nível de atividade, recuperação da renda, aprovação governamental nas pesquisas. Festejada, a Petrobras alcança a auto-suficiência em petróleo e diversifica negócios. Quinze anos depois, compra de volta não apenas a Petroflex, mas a Suzano Petroquímica inteira, na segunda aquisição bilionária em menos de seis meses (antes, houve a compra da Ipiranga, ao lado de Ultra e Braskem).

Antigas palavras de ordem dos partidos de esquerda que pareciam soterradas - como a nacionalização e a estatização dos meios de produção - renascem na América Latina. Eis a Revolução Bolivariana. Aqui, a trajetória do Partido Socialista chileno pode até ter sido a inspiração, mas foi o pânico financeiro de 2002 que impôs a agenda de Lula. Hoje, a agenda é outra. Tempos de PAC. E duas décadas de baixo desempenho econômico, aliadas à dificuldade crônica de crescer de forma sustentável, podem realimentar crenças antigas. Faltam investimentos em infra-estrutura, a privatização fracassou em áreas cruciais (como a de energia elétrica), a insegurança jurídica afasta o capital privado. O Estado ocupa espaço.

Especialista em temas relacionados à globalização econômica e professor da USP, Gilberto Dupas
identifica uma revisão - em escala mundial, com gradações diversas - de políticas executadas nas últimas duas décadas do século XX. "No início dos anos 1980, estabeleceu-se o pressuposto de que o Estado é mau gestor da produção. Houve a queda do Muro de Berlim e o colapso do chamado socialismo real, o que acelerou a convergência de processos distintos.

Na América Latina, veio o Consenso de Washington:
abertura comercial, estabilização monetária e privatizações. Só a estabilização monetária foi efetivamente bem-sucedida. As privatizações tiveram seus altos e baixos. Em muitos setores, a presença do Estado, como sócio ou financiador, permanece inevitável. Aqui e lá fora, é um período de revisão do que foi feito nas últimas décadas, com ajustes e conformações."

Se, na América Latina, diversos países têm adotado políticas intervencionistas, do congelamento de preços à reestatização de companhias de petróleo, na China, sob a mão forte do Partido Comunista, a bem-sucedida abertura a capitais privados continua em marcha acelerada. Já nos países desenvolvidos, há uma voraz concentração empresarial, com fusões e aquisições bilionárias. Para muitos analistas, ainda não é possível observar nada: nem mais liberalização, nem mais intervencionismo. "A França elegeu o Sarkozy contra uma socialista. O México, um político pró-mercado.

Na China e na Índia, com todas as particularidades desses países, existe redução da participação estatal. Só em alguns países da América do Sul há uma febre de estatizações. Aqui no Brasil, ainda é cedo para avaliações definitivas. Só é possível dizer uma coisa: há mais economistas pró-Estado chegando ao poder. Só isso", diz José Márcio Camargo, professor da PUC carioca e integrante da equipe de consultores Tendências.

Petroquímica

A nomeação do consultor privado e professor da Unicamp Luciano Coutinho para a presidência do BNDES é um exemplo da mudança de perfil de que fala Camargo. Identificado com o que se convencionou chamar de "desenvolvimentismo", Coutinho é entusiasta do modelo coreano, em que o Estado, por meio de políticas industriais, estimulou o surgimento de poderosos grupos nacionais, que viraram multinacionais. Entre nós, estudos do BNDES, anteriores a Coutinho, apontam que só haverá espaço para, no máximo, dois grandes grupos nacionais no setor petroquímico. Com as aquisições recentes, a Petrobras espera ter participação relevante na companhia que integrará os ativos da região Sudeste. O controle ficaria com o sócio privado, ressalte-se. Mesmo assim, há quem veja no horizonte sombras do passado: preços e expansões arbitradas pelo governo.

Telecomunicações

Temor que não se restringe à petroquímica. No sensível mercado de telecomunicações, o governo trabalha para a fusão das operadoras Telemar/Oi e Brasil Telecom. Resultaria na criação de uma poderosa companhia nacional, na qual os fundos de pensão de estatais teriam significativa participação acionária. A decisão implicaria em modificação na legislação que regulamenta o setor. Por isso, a polêmica não se restringe aos gabinetes ministeriais. No Rio, técnicos do BNDES e dirigentes dos fundos de pensão definem suas estratégias: o banco público de investimento tem forte presença na Oi/Telemar, mas está afastado da gestão. Já os fundos travaram batalhas sangrentas para chegar aonde estão hoje: no comando da Brasil Telecom. As operadoras estrangeiras assistem de longe, aguardando definições oficiais.

Setor elétrico

No setor elétrico, a Eletrobrás retomou planos de expansão e foi às compras. Obteve concessões para hidrelétricas de médio e pequeno portes, comprou participação acionária das que estavam com a iniciativa privada e terá papel fundamental na construção das usinas do rio Madeira - principal obra do PAC. Um contrato amarra Furnas, subsidiária da Eletrobrás, ao consórcio liderado pela construtora Odebrecht para a participação nos leilões. Estima-se que cada usina custe R$ 10 bilhões. Na antevéspera do primeiro leilão, o arranjo bateu mal para muita gente. Concorrentes chiaram e a ameaça de uma arrastada disputa judicial falou mais alto. Agora, as subsidiárias da Eletrobrás poderão tomar parte em outros consórcios.

O governo quer transformar a estatal numa espécie de Petrobras. Mas há obstáculos, como o fato de a empresa dever quase R$ 8 bilhões a acionistas minoritários. - e ainda não sabe como pagá-los. No entanto, só com antigas companhias estaduais de distribuição que foram federalizadas em 1998, a Eletrobrás já gastou R$ 8,6 bilhões. Quase dez anos atrás, essas empresas eram um manancial de problemas. Foram encampadas pelo governo federal como primeiro passo de uma futura privatização. Estão aí até hoje.

Velhos hábitos, novos desafios governamentais, diz Dupas. "Não vejo tendência estatizante, mas novos problemas, delicados. O tamanho da Petrobras, sua natureza mista [estatal que tem ações negociadas em bolsas e deve satisfações a acionistas]. No caso da telefonia, consolidou-se o conceito de que é área do mercado. No setor elétrico, o Estado é sempre um parceiro relevante e o apagão de 2001 indicou o potencial de problemas. O que está em jogo é a complexidade da gestão. A Vale foi privatizada, a Petrobras não. E ambas deram certo".

Também para Camargo, ainda não é possível afirmar que há uma tendência estatizante no segundo mandato. "No caso das telecomunicações, seria uma besteira, uma bobagem. Não há razão nem necessidade de se fomentar uma operadora nacional. O mercado está aí, o consumidor ganhou, há concorrência. No caso da Petrobras, é difícil avaliar. Ela sempre foi uma companhia agressiva. Por outro lado, uma parcela importante da petroquímica estava com o setor privado. Não está mais. Reestatização só aumenta a ineficiência e reduz a produtividade da economia".

Finalmente, há quem observe motivos muito prosaicos para preocupação. É o caso de Evaldo Alves, professor de Economia Internacional da FGV paulista: "Identifico o projeto de uma atuação mais ativa do Estado em diversos campos, mas não consigo identificar de onde virão os recursos. Não há orçamento, o governo não gera caixa nem para pagar custeio da máquina e juros. A conta de uma decisão voluntarista pode ser paga lá na frente, pela sociedade toda. No caso da Petrobras, ainda há recursos para financiar expansão. Mas na área de energia o quadro é outro. Estamos no limite da escassez, com ameaças consideráveis para os próximos anos. O país precisa de investimentos. Num cenário, o setor público tem posição monopolista. Em outro, atrai grandes empresas e investidores para projetos como os das usinas do rio Madeira, que têm potencial para atrair capital privado".

No surto estatizante da Venezuela, os dólares que jorram na Petróleos de Venezuela (PDVSA) financiam o discurso ideológico. No Brasil, em outros períodos da história, as incursões do Estado na atividade produtiva foram justificadas por ideologias nacionalistas, à direita e à esquerda. Também nisso, a distância entre Lula e Chávez aumenta. Se há de fato a intenção de estender a participação governamental na esfera da produção, como na petroquímica e nas telecomunicações, a gestão petista ainda não a transformou numa palavra de ordem.

"O discurso de Chávez é antigo, do pobre contra o rico. As políticas são conservadoras. Há inovações, mas são minoritárias. No caso brasileiro, há um reforço de uma visão mais ativista por parte das estatais, mas não chega nem perto do que tivemos nos anos 1970. É que a base de comparação são os anos FHC, estritamente liberais", diz Fernando Cardim, professor e integrante do grupo de estudos conjunturais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Cardim observa que, ao longo da história do capitalismo, o discurso ideológico é geralmente conseqüência de mudanças que ocorrem na base econômica da sociedade. Cita como exemplo o caso dos sindicatos de mineiros na Inglaterra. As greves ocorriam no inverno, irritavam a população e levantavam a bola para o discurso liberal de Margareth Thatcher: "Movimentos ideológicos surfam nessas ondas. As doutrinas sempre pegam carona, não tomam a dianteira dos processos. O que vejo hoje é o movimento pendular da economia, corrigindo o excesso liberal das últimas décadas, que por sua vez corrigiu o excesso de intervencionismos dos anos 1970 e 1980.

Nos Estados Unidos, por exemplo, provavelmente os democratas vencerão as eleições do ano que vem. E todos os pré-candidatos são mais intervencionistas, até por pressão dos sindicatos. Aqui, pode estar havendo o retorno de uma visão mais ativista por parte do Estado. Até em função do liberalismo do período FHC. Não há um projeto ideológico, mas um equilíbrio entre os excessos dos anos 1970 e dos anos 1990".

Entre a liberalização e o intervencionismo, o segundo mandato parece fadado ao conforto. Se não houver terremotos financeiros globais, o país já tem crescimento contratado para este ano e para o próximo. Mas as armadilhas para o sucessor de Lula serão muitas: colapso da infra-estrutura de transportes, risco de apagão energético, crescimento dos gastos públicos. É aí que mora o perigo: num cenário como esse, tanto o intervencionismo como a liberalização terão sido insuficientes.

Instituto Humanitas Unisinos - 31/08/07

Como fazer os Estados Unidos gozarem

A partir do caso do massacre de Virgínia Tech, em sua relação com a “insegurança, o desamparo e o disciplinamento” que caracterizariam a sociedade norte-americana, o autor deste ensaio adverte que “os jovens assassinos, com seu ‘reality’ violento, fazem gozar o grande Outro dos Estados Unidos”. Este texto de Alejandro del Carril foi extraído do trabalho “El Otro que sí existe”, publicado em julho na revista Psyché Navegante. A presente versão foi publicada no Página/12, 28-07-2007. A tradução é do Cepat.

A matança feita por um estudante na Universidade Virgínia Tech, em 16 de abril deste ano, pode servir para analisar algumas características do grande Outro da época que nos toca viver. Essa matança se inscreve numa série que vem se sucedendo nos últimos anos com epicentro nos Estados Unidos. Mas não só ali. De fato, uma aconteceu em nosso país. De qualquer modo, proponho analisar o que acontece nos Estados Unidos porque esse país é onde mais se multiplicou este fenômeno, que não carece de relação com o fato de que esse país representa o paradigma de sociedade em que se considera a civilização mais desenvolvida da cultura ocidental judaico-cristã; rege ali, como modelo socioeconômico, o que poderíamos chamar de democracia tecnocapitalista.

O homicida em questão era um jovem oriundo da Coréia do Sul, cuja família havia chegado aos Estados Unidos quando ele tinha oito anos de idade. Um mês antes do massacre havia comprado duas pistolas; havia filmado películas em que tentava dar conta de seus motivos para a matança e enviou o filme por correio a uma importante cadeia de televisão. Depois de matar 32 pessoas e ferir outras 19, suicidou-se.

O presidente George W. Bush se declarou “horrorizado” e disse: “As escolas deveriam ser lugares de segurança, refúgio e aprendizagem. Quando esse refúgio é violado, o impacto se sente em cada sala norte-americana e cada comunidade norte-americana”. O horror do presidente é produto da constatação de algo que a série de matanças colocou sobre o tapete: o sistema educativo norte-americano produz insegurança, desamparo e sérias dificuldades para a aprendizagem. O que Bush disse, sem saber que o disse, é que o sistema educativo norte-americano é perigoso para seus próprios alunos.

Tomemos como exemplo algumas declarações do pediatra Fernando Polack, que mora nos Estados Unidos (entrevistado por José Ioskyn na revista eletrônica Psyché Navegante, n. 70): “A experiência mais difícil para os argentinos nos Estados Unidos é ser pai. A diferença de valores e costumes coloca em xeque as convicções mais sólidas e, se algo é para mim um orgulho, é ter sustentado os meus filhos através de anos duríssimos em Maryland. Digo isto porque o mais fácil é ceder, ser ‘convertido’, e ver os resultados imediatos dessa manobra na aceitação social ou escolar. Passar de rebelde a bobo bom. Há muitos argentinos cujos filhos passaram anos em escolas de educação especial só por não se comportarem ‘tão bem’ como deviam nas escolas norte-americanas. E os vi agradecerem essa decisão, porque finalmente deixavam de suspender o filho no jardim de infância, de telefonar constantemente para o trabalho para que fossem imediatamente buscá-lo porque estava chorando, de colocar a ‘falta de adaptação’ de seus filhos ao sistema. Há um sorriso impessoal, terrível, na cultura norte-americana”.

Continua Polack: “Nos Estados Unidos, o menino deve transformar-se num adulto desde que entra no jardim de infância. Se pertence aos setores mais cultos e ainda ‘progres’, entrará desde os três anos numa carreira para chegar a Harvard; no resto da sociedade, a carreira será para ser um good citizen. Conheço gente que contratou ‘assessores’ para que seu filho de três anos esteja, aos 18, nas melhores condições para competir por um lugar em Harvard, Hopkins ou Yale. Conheço gente que contratou uma instrutora chinesa para suas filhas de seis, quatro e dois anos, além de mandá-las pela tarde a um programa de imersão em linguagem chinesa para prepará-las para comerciarem com a China no futuro. Todas estas coisas não são nenhuma brincadeira quando se vive ali. O menino é um receptáculo vazio que deve ser enchido de informações. Esse é o dever dos pais. Uma hora perdida em jogo é uma hora a menos de informação. Os ingressos no primário se dão com aplicação prévia de entrevistas em que o menino se ostenta nomeando as luas de Júpiter ou os vulcões da Ásia, e cartas de recomendação fechadas escritas pelas professoras do jardim. Logo a escola publica um ranking de crianças de seis anos: aquela que ganhar é um winner e aquela que perder, um loser. E o loser sabe que as coisas são assim, porque “este é o sistema que nos fez o melhor país do mundo”.

“De qualquer modo – assinala Polack –, essa carreira para o êxito durante os primeiros anos não se baseia no rendimento escolar, mas na observação das regras mais estritas de comportamento: a disciplina é tudo na primeira educação americana. Um absolutismo moral rege a educação americana desde os anos iniciais, e isto é particularmente difícil para os argentinos, que viemos de uma concepção muito cínica da moral concebida nesses termos. De fato, os meninos argentinos costumam receber um diagnóstico condutista de ‘sensórios’, ou seja, meninos que necessitam muito estímulo tátil, dado que abraçam os seus companheiros, os seus pais e até às vezes as professoras. Isso tem tratamento: é preciso comprar uma escova grossa e escovar as pernas da criança em sentido longitudinal. Não é fácil resistir à pressão escolar de escovar os teus meninos: quem se negar a fazê-lo com a estúpida desculpa de que ‘nós, na Argentina, nos abraçamos muito’, deverá enfrentar o subtexto que diz: “Aqui teu filho é um sensório e, se não queres problemas conosco na escola, compre a escova, inadaptado’”.

Como disse Bush, sem dar-se conta do que dizia, ali o importante não é dar segurança, refúgio ou ensino. O primordial é disciplinar a criança, torná-la adulta logo, tirar-lhe qualquer indício desejante para adaptá-la violentamente aos ideais de uma cultura que se pensa vitoriosa, sem falhas. O Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM IV), publicado pela Sociedade de Psiquiatras dos Estados Unidos, na escala que pontua a atividade global, assinala entre 91 e 100 pontos os que cumprem com o seguinte critério: “Atividade satisfatória numa ampla gama de atividades, nunca parece superado pelos problemas de sua vida, é valorizado pelos demais por causa de suas abundantes qualidades positivas. Sem sintomas”.

O critério do manual supõe uma pessoa perfeita, sem falhas, ainda que a falha apareça na letra do texto quando diz que a pessoa nunca parece superada pelos problemas de sua vida: o imperativo do manual é a aparência da perfeição, não a perfeição. A cultura tem falhas, mas o sujeito deve simular que não as têm. É preciso sacrificar os gozos singulares e o desejo a fim de sustentar uma cultura que parece não estar habitada, como toda cultura, pelo mal-estar. E isto é coerente com o critério “objetivo” que esse manual propõe para localizar o que denomina de “transtornos”: a margem de separação que tenham respeito pelo que se pode esperar na cultura a que o sujeito pertence.

O exercício da democracia liberal-capitalista, que garante os direitos individuais, é diretamente proporcional ao disciplinamento da sociedade. E esta disciplina não é implantada a partir da cúpula do poder, mas circula em múltiplas direções, sustentada pela maioria da população e transmitida às crianças que ingressam na escola.

Retomando a matança na Universidade de Virgínia: o autor era sul-coreano, ou seja, provinha de um país que se dividiu por ocasião de uma intervenção militar norte-americana que durou três anos; uma cultura alheia agredida militarmente pelos Estados Unidos. Os autores da matança de Columbine, em 1999, que foram acusados de serem nazistas porque costumavam ver documentários sobre a Alemanha nazista: também aqui aparece a referência a uma cultura alheia, que esteve em guerra com os Estados Unidos. Em ambos os casos se apresentam significantes estranhos à cultura norte-americana; que, para o senso comum, devedor do registro imaginário, se apresentam como totalmente opostos: totalitarismo nazista versos liberdade democrática; Oriente versos Ocidente. Acrescento que a família do estudante Cho Seung-Hui é descrita nos meios de comunicação como muito tranqüila e muito trabalhadora: perfeitamente adaptada. Ele, por sua vez, costumava assinar com um ponto de interrogação, talvez numa tímida tentativa de interrogar essa densidade cultural na qual, estando imerso, se sentia tão alheio; um puro enigma, incapaz de dar algum sentido à sua existência.

Arrisco a hipótese de que estes jovens assassinos costumam ser psicóticos mais ou menos compensados até o começo de algo: isto os converte nos elos mais frágeis da cadeia social; costumam ter sérias dificuldades para sustentar o laço social com seus pares. Não conseguem deixar de se sentir absolutamente estranhos à cultura em que estão imersos, e manifestam isto se identificando com significantes de outras culturas – não se trata de uma questão ideológica. A repetição das matanças nas instituições paradigmáticas da cultura norte-americana dá a pensar que estes sujeitos psicóticos, por isso mesmo muito mais sensíveis que outros ao que acontece ao seu redor, reagem tentando tocar no real a cultura que lhes é apresentada como consistente em termos absolutos. Matar os filhos diletos da cultura pode ser uma tentativa de deixar o grande Outro em falta.

Convém ter em conta aquele detalhe que implica outro dos elementos de máxima importância na cultura atual, como o são os meios de comunicação de massas: o jovem coreano se preocupou minuciosamente em se filmar e fazer chegar os filmes à televisão. Estava se dirigindo a um dos principais representantes do grande Outro. Sabia que podia fazer a televisão gozar com um reality violento. Matando e suicidando-se, podia fazer gozar o grande Outro com seus restos. “Sou uma merda”, foi uma das coisas que disse em suas filmagens. Fazendo e fazendo-se merda conseguiu inscrever sua marca na inconsistência do Outro. Suas imagens e palavras foram refletidas pelos meios de comunicação mais importantes de todo o globo, até conseguir dizer ao presidente da maior potência do mundo que em seu país, como em todos, a cultura está fracassada, que as escolas não são o que deveriam ser. Um país que sustenta a paz interior exportando a violência a todos os rincões do planeta, que sustenta a compacidade cultural atacando as culturas estranhas, recebe destes pequenos marginais superadaptados o retorno, no real, do que foi expulso no simbólico.