"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, junho 25, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 25/06/08

Por que o governo Lula perdeu a batalha da comunicação

E como a Globo definiu a narrativa dominante e única da crise do mensalão. A central de Brasília, dizem jornalistas que trabalharam no sistema Globo, formou uma espécie de “gabinete de crise" com líderes da oposição do qual faziam parte ACM Neto e Paes de Andrade. Fechar a Radiobrás foi o ato síntese de todos os grandes erros na política da comunicação do governo Lula. A análise é de Bernardo Kucinski e publicada pela Agência Carta Maior, 25-06-2008.

Eis o artigo.

A mídia na era Lula deixou de funcionar como mediadora da política, passando a atuar diretamente como um partido político de oposição. Apesar de disputarem agressivamente o mercado entre si, há mais unidade programática hoje entre os veículos da mídia oligárquica do que no interior de qualquer partido político brasileiro, até mesmo partidos ideológicos como o PT e o PSOL. Todos os grandes veículos, sem exceção, apóiam as privatizações, a contenção dos gastos públicos, a redução de impostos; a obtenção de um maior superávit primário, a adesão do Brasil à ALCA; todos são críticos à criação de um fundo soberano, ao controle na entrada de capitais, ao Bolsa Família, à política de cotas nas universidades para negros, índios e alunos oriundos da escola pública, à entrada de Venezuela no Mercosul e ao próprio Mercosul. Todos criticam o governo sistematicamente, em todas as frentes da administração, faça o governo o que fizer ou deixar de fazer.

Na campanha da grande imprensa que levou Vargas ao suicídio, o governo ainda contava como apoio da poderosa cadeia nacional de jornais Última Hora. Hoje, não há exceção entre os grandes jornais. Outra diferença desta vez é a adesão ampla de jornalistas à postura de oposição, e sua disseminação por todos os gêneros jornalísticos tornando-se uma sub-cultura profissional. Emulada por editores, prestigiada por jornalistas bem sucedidos e comandada pelos intelectuais orgânicos das redações, os colunistas, essa sub-cultura é dotada de um modo narrativo e jargão próprios.

Em contraste com o jornalismo clássico, que trabalha com assertivas verazes para esclarecer fatos concretos, sua narrativa não tem o objetivo de esclarecer e sim o de convencer o leitor de determinada acusação, usando como fio condutores seqüências de ilações. É ao mesmo tempo grosseira na omissão inescrupulosa de fatos que poderiam criar outras narrativas , e sofisticada na forma maliciosa como manipula falas, datas e números. O enunciador dessa narrativa conhece os bastidores do poder e não precisar provar suas assertivas. VEJA acusou o PT de receber dinheiro de Cuba, admitindo na própria narrativa não ter provas de que isso tenha acontecido. Em outra ocasião, justificou a acusação alegando não haver nenhuma prova de que aquilo não havia acontecido.

Trata-se de uma sub-cultura agressiva. Chegam a atacar colegas jornalistas que a ela se recusaram a aderir , criando nas redações um ambiente adverso a nuances de interpretação ou divergências de análise. O meta-sentido construído por essa narrativa é o de que o governo Lula é o mais corrupto da história do Brasil, é incompetente, trapalhão, só tem alto índice de aprovação porque o povo é ignorante ou se deixa levar pelo bolso, não pela cabeça.

Levantam como principal bandeira o repúdio à corrupção. Mas como quase todo o moralismo em política, trata-se de mais uma modalidade de falso moralismo: é o “moralismo dirigido” que denuncia os “ mensaleiros do PT” e deixa pra lá o valerioduto dos tucanos, onde tudo de fato começou, e mais recentemente o escândalo do Detran de Yeda Crusius, no Rio Grande do Sul onde tudo continua. É “ moralismo instrumental”, que visa menos o restabelecimento da ética e mais a destruição do PT e do petismo.

O que poucos sabem é que essa sub-cultura se tornou dominante graças a uma mãozinha da Globo. Quando foi revelada em fevereiro de 2004 a propina recebida dois anos antes por Waldomiro Diniz, sub-chefe da assessoria parlamentar da Casa Civil do governo Lula, a Globo vislumbrou a oportunidade de uma ofensiva de caráter estratégico: cortar o barato do petismo e de sua ameaça de governar o Brasil por 40 anos. Com esse objetivo, mudou o modus operandi do seu jornalismo político. Logo depois das denúncias de Roberto Jefferson, criou uma central de operações, em Brasília, unificando as coberturas de política da TV, CBN e jornal O Globo sob o comando de Ali Kamel, que para isso se deslocou para Brasília.

Em quase todas as campanhas eleitorais os grandes jornais criam uma instância adicional de decisão sob o comando de alguem de confiança da casa, que passa a centralizar toda a cobertura política. A central coordenada por Ali Kamel em Brasília reflete essa passagem de um jornalismo normal para um jornalismo de campanha, apesar de não estar em curso uma campanha eleitoral.

A central de Brasília, dizem jornalistas que trabalharam no sistema Globo, formou uma espécie de “gabinete de crise" com líderes da oposição do qual faziam parte ACM Neto e Paes de Andrade, pautando-os e por eles se pautando. Vários jornalistas faziam parte da operação, cada um encarregado de uma “fonte” da oposição. Tinham a ordem de repercutir junto àquela fonte, todos os dias, falas e acusações, matérias do dia anterior, entrevistando sempre os mesmos protagonistas: Heloísa Helena, ACM Neto, Gabeira , Onix Lorenzoni. No dia seguinte, os jornais davam essas falas em manchete, como se fosse fatos. Assim surgiu todo um processo de construção de um relato da crise destinado a se tornar a narrativa dominante e única.

A VEJA lançara sua própria operação de objetivos estratégicos muito antes. Entre 2003 e 2006, VEJA produziu 50 capas contra Lula , sendo 18 delas consecutivas.

Quando surgiu a fita de Waldomiro Diniz, a revista revelou esse objetivo em ato falho : “Os ares em torno do Palácio tinham na semana passada sabor de fim de governo.”

Na Globo, a operação encontrou resistências internas de jornalistas que ainda lambiam as feridas provocadas pelo falseamento do debate Collor-Lula, e da cobertura da campanha das Diretas Já. Deu-se então a marginalização de Franklin Martins da cobertura política. Esse afastamento teve grande importância porque institui no corpo de jornalistas a sensação de insegurança e o medo, necessários para a imposição da nova ordem. Sua saída foi um baque”, avaliou Luiz Nassif em entrevista a Forum.

Com o vazamento de informações sobre o clima interno de intolerância, em especial uma reportagem de Raimundo Pereira em Carta Capital, e matérias críticas em blogs e no site Carta Maior, a cúpula jornalística da empresa mandou circular um manifesto cobrando lealdade à casa. Três jornalistas que se recusam a assinar foram expurgados.

Da Globo o expurgo respingou a outros veículos da grande imprensa. O último capítulo desse processo foi a não renovação do mandato do Ombudsman da Folha, Mário Magalhães por criticar na internet a forma como a Folha reportou o vazamento dos gastos do governo FHC com cartões corporativos. Apontou falta de transparência por não indicarem as fontes da acusação de que Dilma Roussef foi a mandante, e a falha de não ouvir os causados. No caminho também perdeu seu espaço Paulo Henrique Amorim. Mino Carta, em solidariedade, desligou-se do IG.

Na campanha contra Getúlio a sobre-determinante era a guerra-fria, que desqualificava o nacionalismo e as demandas sindicais como meros instrumentos do comunismo. Hoje a sobre-determinante é o neoliberalismo que desqualifica opções de política econômica em nome de uma verdade única à qual é atribuído o monopólio da eficácia. A unanimidade anti-Lula da grande mídia só tem paralelo na unanimidade pró-neoliberal dessa mesma mídia.

Mas temos um paradoxo. O governo Lula tem mantido religiosamente seu acordo estratégico com o capital financeiro, que é o setor dominante hoje no capitalismo mundial e brasileiro. E apesar do vasto leque de políticas públicas de apoio aos pobres, não brigou com nenhum dos outros grupos de interesses do grande capital. Por que então tanta hostilidade da mídia? É como se a grande mídia agisse por conta própria, pouco ligando para a dupla capital financeiro-capital agrário e na qual se apóia.

É uma mídia governista, ou ”áulica”, na adjetivação de Nelson Werneck Sodré, quando o governo faz o jogo da dependência, como foram os governos de Dutra, Café Filho, Jânio Quadros e Fernando Henrique. E anti-governista, quando os governos são portadores de projetos de autonomia nacional, como foram os governos de Getúlio, Juscelino, que rompeu com o FMI, Jango e agora o de Lula.

Uma mídia que já nasceu neoliberal, muito antes do neoliberalismo se impor como ideologia dominante e organizativa das políticas públicas. Nunca aceitaram o Estado que chamam pejorativamente de “populista”. Em artigo recente na Folha, Bresser Pereira associou diretamente o discurso da mídia contra o populismo e sua inclinação pelo golpe à nossa extrema pobreza e polarização de renda. “Como a apropriação do excedente econômico não se realiza principalmente por meio do mercado mas do Estado, a probabilidade de que facções das elites recorram ao golpe de Estado quando se sentem ameaçadas é sempre grande.” Diz ainda que nossas elites “estão quase sempre associadas às potências externas e às suas elites.” Daí, diz ele ”O que vemos na imprensa, além de ameaças de golpe é o julgamento negativo dos seus governantes...”

A incompatibilidade entre governos populares portadores de projetos nacionais e a mídia oligárquica é de tal ordem que muitos desses governantes tiveram que jogar o mesmo jogo do autoritarismo, para dela se proteger. Getulio criou a Hora do Brasil como programa informativo de rádio para defender a revolução tenentista contra a oligarquia ainda em 1934, quando o regime era democrático, fundado na Constituição de 34. No Estado Novo foi ao extremo de instituir a censura previa através criando o Departamento de Imprensa e Propaganda. (DIP). No em seu retorno democrático, estimulou Samuel Wainer a criar sua cadeia Última Hora.

Estas reflexões, se tem algum fundamento, mostram como foi equivocada a política de comunicação do governo Lula, a começar por não atribuir à comunicação e às relações com a mídia o mesmo peso estratégico que atribuiu às suas relações com a banca internacional. Nem sequer havia um comando único para a comunicação, que sofreu um processo de feudalização. Só na presidência, três feudos disputavam espaço: a Secom, o Gabinete do Porta-Voz e Assessoria de Imprensa. Fora dela, dois ministérios definiam políticas públicas na esfera da comunicação: Ministério das Comunicações e Ministério da Cultura.

Propostas longamente discutidas ainda no âmbito dos grupos de jornalistas do PT, e pelos funcionários da Radiobrás, não foram sequer discutidas. Nesse vazio, o único grande aparelho de comunicação social do governo, o sistema Radiobrás acabou embarcando numa política editorial chamada de “comunicação cidadã”, que tinha como preocupação fundamental e explícita de dissociar-se do governo do dia. O que é pior: despojava a Radiobrás de sua atribuição formal de sistema estatal de comunicação. Isso num momento histórico que exigia, ao contrário, reforçar o sistema estatal de comunicação.

Pouco experiente em jornalismo político, a equipe não conseguiu resolver de forma criativa a contradição entre fazer um jornalismo veraz de qualidade e politicamente relevante, e ser ao mesmo tempo um serviço estatal de comunicação. Com definições opacas, que nada acrescentavam ao que se entende por jornalismo, acabaram desenvolvendo um jornalismo de tipo alternativo, parecido ao que fazem as ongs e movimentos sociais.

A importante mudança do papel da Radiobras nunca foi discutida no Conselho da Radiobrás. O corpo da Radiobrás chegou a se entusiasmar com a idéia sempre simpática a jornalistas, mas simplória, de deixar de ser “chapa-branca”, mas acabou não havendo muita harmonia entre a nova direção e as bases. Uma apregoada “gestão participativa”, ficou mais no papel do que na prática.

Em minucioso relatório sobre as conquistas da Radiobrás perto do final do primeiro mandato, o presidente do Conselho enumerou os muitos avanços técnicos, mas apontou que a Radiobrás havia criado uma outra missão e outro papel para si, sem discutir essas mudanças previamente com o próprio governo. Também apontou ser falso o debate que contrapõe comunicação de caráter oficial com o direito do cidadão á boa informação.

Mais equivocada ainda foi a proposta de acabar com a obrigatoriedade da Voz do Brasil, formulada pela direção da Radiobrás logo no primeiro ano do mandato de Lula, a partir dos conceitos neoliberais de que o Estado não faz parte da esfera pública e a liberdade de imprensa do baronato da mídia é a própria liberdade de imprensa. A Radiobrás chegou a co-patrocinar no anexo II da Câmara dos Deputados, junto com os Mesquitas um seminário para apoiar a flexibilização da Voz do Brasil.

Essa mesma visão ingênua levou a Radiobrás a adotar como sua e como se fosse a única possível, a narrativa da grande imprensa na grande crise do mensalão, que como vimos foi em grande parte articulada entre o sistema Globo e a oposição. Embora só hoje se saibam alguns detalhes dessa operação, as forçadas de barra no noticiário e nas manchetes eram discerníveis a qualquer jornalista experiente.

Naquele momento, a Radiobrás era o único sistema de comunicação social capaz de criar uma narrativa realmente independente da crise, que sem ser chapa branca também não fosse submissa à articulação comandada pela Globo. Mas quando veio a crise, seu projeto editorial entrou em parafuso. Mais do que isso: a crise traumatizou a direção da empresa que viu ruir a bandeira ética do PT, sob a qual muitos deles cresceram, formaram-se e criaram sua identidade pública. Só um estado catatônico poderia explicar o fato da Radiobrás dar ao vivo e na íntegra o depoimento de Roberto Jefferson de junho de 2005 como se quisesse se colocar à frente do sistema Globo. No momento crucial da crise cortou um discurso de Lula em Luziania, o que nem a Globo fez.

Foi a fase em que manchetes da Agência Brasil rivalizavam com as da grande imprensa na espetacularização da crise e na disseminação de noticias infundadas. Entre essas manchetes está a acusação nunca comprovada do dia de renuncia de Zé Dirceu (16/06/05) : “Ex-agente do SNI diz que Casa Civil está envolvida nas provas dos correios”. E a noticia falsa de que “Miro Teixeira confirmou as acusações de Jeffersson”, dada no mesmo dia 21/06;05 em que até a grande imprensa admitia que Miro Teixeira não havia confirmado essas acusações. Mesmo sem atentar para a dimensão política desse tipo de noticiário, sua fragilidade era incompatível com o padrão que se espera de uma comunicação de Estado.

Outras manchetes meramente reproduziam falas de líderes da oposição: ”Nada poderá restringir nosso trabalho na CPI”, diz líder do PFL (17/056/05) ou “PFL e PSDB alegam que PT violou legislação (22/06/05). A Radiobrás, sem perceber, havia entrado no esquema orquestrado por Ali Kamel. Naquele momento nascia o processo de colonização da comunicação de governo e do Estado pelo ideário liberal-conservador , que acabou levando ao fechamento intempestivo da própria Radiobrás.

Fechar a Radiobrás foi o ato síntese de todos os grandes erros na política da comunicação do governo Lula. Ademais, ao fechar a Radiobrás o governo violou a Constituição que manda coexistirem os três sistemas; púbico, privado e estatal E não é à toa que a Constituinte cidadã assim decidiu. Como sabemos, diversas vezes a grande mídia latino-americana apoiou golpes de Estado, algo inimaginável nas democracias dos países centrais. Ter um sistema estatal de comunicação minimamente funcional , com credibilidade e legitimidade junto à população é uma espécie de apólice de seguro contra golpes de Estado.

O governo lidou com a comunicação como se a nossa democracia fosse igualzinha a democracia americana. Mas o que vale para os Estados Unidos da América, pode não valer para o Brasil. O Estado americano não tem uma Radiobrás ou uma Voz do Brasil, porque nunca sofreu um golpe midiático, mas tem a Voice of America, para defender seus interesses imperiais. O Estado brasileiro não contempla interesses imperiais, mas precisa se defender do golpismo e das pressões externas sobre a Amazônia. Por isso precisa de uma Radiobrás e de uma Voz do Brasil.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/06/08


A União Européia sacrifica seu modelo social numa tentativa de ser competitiva. A prometida sociedade do ócio e a conciliação, ainda mais distantes. Segue o artigo de Ariadna Trillas, publicado no El País, 13-06-2008. A tradução é do Cepat.

O trabalhador europeu está desconcertado. À noite, vai dormir com o novo discurso dominante: as empresas devem levam a sério a necessidade de conciliar a vida profissional e a vida privada, os países mais produtivos não são aqueles em que se trabalha mais horas, as empresas modernas mimam ao máximo a saúde de seus trabalhadores, sociólogos e filósofos prometeram, para o século XXI, uma nova sociedade do ócio, com tempos de trabalho curtos graças à implantação das novas tecnologias... Pela manhã, o mesmo trabalhador toma seu café com a confirmação de que a conciliação era apenas uma casca verbal: o que realmente se dá é uma brecha, um enorme boquete aberto no teto de sua semana de trabalho e no da Europa, o berço do modelo social.

Devem os europeus trabalhar mais horas para serem mais competitivos no mundo, possibilidade que se abre com a decisão adotada esta semana pela maioria de países membros da União Européia, diante do desmaio de um Governo espanhol que promete não aplicá-la? Até que ponto a Velha Europa, onde sopram fortes ventos liberais, vai prejudicar suas próprias bases sociais nesse empenho?

Os defensores da polêmica decisão, que requer aprovação do Parlamento Europeu, que não está clara pela mobilização da esquerda que se aproxima, negam a maior: de que não há golpe social. Não em vão, o Reino Unido, depois de 15 anos de luta, conseguiu emplacar a expressão em moda, a free-choice ou livre escolha. Dizem: se um trabalhador quer trabalhar mais de 48 horas semanais, que é o marco legal europeu – na Espanha, quer se cumpram ou não, são 40 horas semanais contempladas no Estatuto dos Trabalhadores, salvo no caso de coletivos que têm seu próprio estatuto, como os médicos, os bombeiros ou a polícia, e salvo que se façam horas extras, até um máximo de 80 ao ano –, por que se deve impedi-lo sob certas condições?

A menos que um trabalhador renuncie a isso, supõe-se que de forma voluntária, a semana de trabalho européia se manteria nas atuais 48 horas, destaca a Comissão Européia. Esta lembra inclusive que se cuida daqueles que ultrapassarem esse limite, impondo-lhes um. Será de 60 horas, ou de 65 no caso das profissões com plantões, como os médicos. Na realidade, não é um limite, mas uma média de três meses. Assim, se os europarlamentares não o proibirem, alguém poderia trabalhar numa semana, por exemplo, 78 horas!

John Messenger, principal pesquisador do Programa sobre as Condições de Trabalho e do Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OI), destaca, de Genebra, “o provável impacto negativo para a saúde e a segurança dos trabalhadores, e também para o equilíbrio de sua vida profissional e privada”, que resultaria de uma semana generalizada de até 65 horas. Segundo a OIT, 600 milhões de pessoas trabalham “excessivamente”, isto é, “mais de 48 horas por semana”, o limite que esta organização estabeleceu há 90 anos. Diversos relatórios da OIT afirmam que trabalhar mais de 50 horas por semana eleva o estresse e a fadiga, causa desordens no sono, maus hábitos de vida e, no longo prazo, transtornos músculo-esqueléticos, doenças cardiovasculares e mentais, infecções crônicas.

Até que ponto ultrapassar as 48 horas será uma exceção? “A negociação individual entre a empresa e o trabalhador proposta pela diretriz não é de igual para igual. A situação do trabalhador é de debilidade total”, adverte Raúl Riesco, diretor-geral do Trabalho. O ex-secretário de Estado de Economias e professor do IESE Alfredo Pastor prefere colocá-los nestes termos: “O trabalhador com talento, o crack procuradíssimo pelas empresas, tem poder de mercado para negociar. Por isso, alguns sugerem que se está dando uma margem de liberdade. Mas para a maioria dos trabalhadores sem esse poder, falar de 60 horas é colocar um corte para a proteção social”.

O Governo espanhol adiantou que seguirá proibindo que se ultrapasse o limite das 40 horas. Mas Riesco admite “preocupação com a possibilidade de estar rodeado de países onde as longas jornadas se elevem à categoria de normal e que procurem captar empresas, é um golpe ao modelo europeu”.

“Ou abrir a porta à competição desleal, ou voltar às histórias de Charles Dickens”, reflete Toni Ferrer, secretário da Ação Sindical da UGT, que, junto com a CC OO [Comissões Operárias], prometeu fazer uma “dura campanha” para que o Europarlamento suste a norma. “Caso contrário, o desapego do cidadão europeu com a União Européia aumentará”, acrescenta. Os sindicatos parecem recobrar brios com esta luta na atual Europa liberal. Enfrentam um ataque ao seu próprio papel e ao da negociação coletiva. “Vai ser impossível ao trabalhador individual resistir à pressão de uma companhia que exige alongar o horário de trabalho”, prognostica Ignacio Fernández Toxo, secretário de Ação Sindical da CC OO. Prevê um outono quente.

Colocaram os médicos como alvo principal da manifestação. Não só porque são afetados particularmente pela possibilidade de alongar a semana de trabalho para 65 horas, mas porque a diretriz distingue, no caso de um plantão, entre período ativo e período inativo. Contempla a possibilidade de que o tempo que um médico passa de plantão num hospital, mas durante o qual não atende diretamente um paciente, não só não seja considerado tempo de trabalho, mas que seja interpretado como tempo de descanso.

“Vamos rumo ao desastre. A diretriz, se for aplicada, questionará o compromisso com a qualidade da assistência dos médicos e com sua saúde”, destaca Patricio Martínez, chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital da Esperança de Barcelona e secretário-geral da Confederação Estatal de Sindicatos de Médicos.

Diversas sentenças do Tribunal de Justiça de Luxemburgo – uma delas, em 2000, por conta de um litígio sobre o regime de trabalho dos médicos dependentes da assessoria de Saúde da Comunidade Valenciana – deixam bem claro que a jornada de trabalho máxima dos médicos deve ser de 48 horas semanais, incluídos os plantões. A diretriz as ignora.

“Por acaso, vão colocar um cronógrafo em nós? E se o médico não estiver com um paciente, mas estiver revisando um expediente ou estiver aguardando o resultado de uma análise? Está descansando?”, se pergunta Martínez, que adverte que na diretriz também não fica claro que se possa respeitar a atual obrigação de descansar um dia depois de ter feito um plantão.

“O motivo de toda esta cruzada é a falta de médicos”, explica o doutor Carlos Amaya, neurocirurgião de La Paz e vice-presidente da Federação Européia de Médicos Assalariados. O Reino Unido ampliou em 20% a oferta de lugares de estudantes em suas faculdades de Medicina e não as preencheu. “Assim que procuram esticar a jornada dos médicos que têm”, acrescenta Amaya.

“É impossível dar um atendimento de saúde de qualidade com uma jornada de trabalho de 65 horas semanais”, corrobora Loren Mármol, enfermeira de 42 anos que trabalha no serviço de Urgências e na área cirúrgica do Hospital Espírito Santo de Santa Coloma de Gramenet (Barcelona). Mármol entra no centro às 21 horas e permanece 10 horas depois. Há semanas em que aplica este horário na segunda-feira, quarta-feira, sexta-feira, sábado e domingo. Alterna-os com outros horários curtos, de dois dias, quinta-feira e terça-feira. “Na prática, se alguém fica doente e te pedem para não trabalhar, não te dão uma espingarda, mas, enfim...”, conta.

Os empresários espanhóis navegam com prudência por esse caloroso debate, e insistem, como o PP, em que as 60 horas semanais serão algo voluntário e a exceção, a regra. O responsável pelas Relações Trabalhistas da patronal CEOE, Fernando Moreno, aponta que “na Espanha não há demanda para mudar a jornada de trabalho de 40 horas semanais, e que já permite exceções pactuadas em acordos coletivos”. Moreno reclama “maior flexibilidade para distribuir as horas trabalhadas em períodos de cômputo mais longos, e que haja melhores adaptações aos picos de atividade das empresas”.

Alguns empresários se manifestam abertamente a favor da diretriz, sobretudo em setores com fama de ter longas jornadas de trabalho, e em especial em determinadas épocas do ano. Emilio Gallego, secretário-geral da Federação Espanhola de Hotelaria, opina a este respeito que “a economia européia necessita de uma flexibilização do mercado de trabalho quanto à distribuição do tempo de trabalho. Esta decisão, como qualquer mudança, gera incertezas, mas pode ser boa para a competitividade”.

“Num restaurante familiar, trabalhar menos de 10 horas por dia é impossível”, sentencia Jordi Vila, chef do Alkimia, de Barcelona. Com seus 34 anos, assegura que passou por 17 restaurantes e “nunca” trabalhou menos de 12 horas por dia. Agora, no seu próprio, disse: “Quando ouço falar das 35 horas penso que eu as faço em dois dias e pouco!”.

Os setores de manutenção, hotéis, comércio, medicina, assistência às pessoas, jornalismo, serviços profissionais são propícios a longas jornadas. Clara G., que se debate entre semanas de 45 horas e outras de 30 num hospital geriátrico, confessa que “tanto psicológica como fisicamente, trabalhar muitas horas seguidas é esgotante, já que o trabalho implica em mobilizar pessoas idosas sem muita força”.

As consultoras de Recursos Humanos não escondem sua surpresa. “Falar de 60 horas está na contra-mão”, disse Begoña Benito, diretora-geral na Espanha da Watson Wyatt. “Se falássemos de casos pontuais voluntários, me pareceria fabuloso, sou liberal. Mas segundo se aplique, corre-se um risco: que as empresas se aproveitem”, antecipa. Na Europa virou moda o conceito de flexisegurança. Conciliar a segurança no posto de trabalho com a flexibilidade requerida pela empresa. A especialista em Direito do Trabalho Esther Sánchez, do Esade, opina: “Talvez estejamos pondo muito acento na flexi, mais que na segurança. Isto é um retrocesso”.

Pior ainda na China

China. A lei do trabalho chinesa data de 1995 e fixa a jornada em oito horas diárias, cinco dias por semana, ainda que o modelo possa ser flexível com a autorização das autoridades. Em todo o caso, o tempo extra não deve superar uma hora diária em geral e nunca mais de três. Num mês, não se pode realizar mais de 36 horas extras (nove por semana), o que fixa o tempo de trabalho semanal máximo em 49 horas. Mas, muitos trabalhadores se vêem obrigados a fazer jornadas de mais de 11 horas, seis dias por semana, para elevar seus magros salários.

Estados Unidos. A semana de trabalho norte-americana é, normalmente, de 40 horas. A Lei de Boas Práticas de Trabalho de 1938 estabelece que o resto das horas seja compensado como “trabalho extraordinário”, com uma remuneração de 150% sobre o salário base. No entanto, em trabalhos que exigem uma elevada qualificação, como a advocacia ou o investimento bancário, raras vezes se cumpre este limite. Costuma-se conceder aos trabalhadores uma jornada diária que começa às 9h e termina às 17h, com pouco mais de 15 minutos para o almoço. Quanto às férias, não se concede mais de uma semana ao ano para os novos empregados.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/06/08

' O maior problema ambiental do mundo é o consumismo' diz antropólogo

Para resolver o problema ambiental nº 1 do mundo, a receita do antropólogo Emilio Moran, 61, nascido em Cuba, mas morador dos Estados Unidos desde os 14 anos, chega a ser prosaica. "Temos que aprender a desligar a televisão. Ela é a principal ferramenta do consumismo", afirma o especialista em América Latina, que há mais 30 anos investiga o desenvolvimento humano da Amazônia brasileira. A reportagem é de Eduardo Geraque e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 25-06-2008.

Apesar de a entrevista ter sido feita em um hotel a meio quarteirão da rua Oscar Freire (o palco das grandes grifes mundiais em São Paulo fora dos shoppings) o entrevistado, com orgulho, comenta: "Esta calça que estou usando eu comprei há 25 anos."

Moran é um acadêmico tradicional e assiste televisão. Na Universidade de Indiana, ele dirige um centro que une a antropologia às mudanças climáticas globais - o agricultor amazônico, por exemplo, segundo uma pesquisa feita pelo grupo, não sabe se proteger contra o El Niño, porque ele não registra essas oscilações naturais ao longo do tempo.

Pobreza amazônica

Se o modelo mundial de desenvolvimento, para o pesquisador, está errado, o da Amazônia idem. "Nos últimos 30 anos, o aumento do PIB da população amazônica subiu menos de 1%. Na região, quem ganha é quem já era rico em São Paulo e no Rio de Janeiro."

O antropólogo, que chegou à floresta no início das obras da rodovia Transamazônica, diz que pouco mudou na região. "Não existe infra-estrutura para o pequeno agricultor. A estrada, por exemplo, não mudou muito, continua ruim. Existe ausência de governo na Amazônia com toda a certeza."

Os grandes produtores, lembra o pesquisador, montam sua própria infra-estrutura e acabam fugindo do problema encontrado pelos menores.

"Falta compromisso com a indústria regional, que poderia valorizar os produtos amazônicos. Daria, por exemplo, para fazer uma fábrica de abacaxi enlatado, ou de suco". São várias opções disponíveis, diz Moran, que trabalha em áreas críticas, como Altamira (PA).

A experiência acumulada no campo, inclusive nos recantos amazônicos, é que leva o antropólogo a afirmar: "O maior problema ambiental do mundo é o consumismo. O mercado ensina egoísmo e o indivíduo cada vez mais está centrado em si mesmo", afirma.

Parte do caminho para sair dessa cilada ambiental, Moran apresenta no livro "Nós e a Natureza" (Editora Senac), lançado anteontem no Brasil. "É um livro mais apaixonado. Experimentei a sensação de ir além dos escritos acadêmicos", diz.

Para reforçar seu ponto de vista, de que o modelo mundial é insustentável, Moran usa exemplos da classe média brasileira e da sociedade americana. Ambas ele conhece bem.

No caso nacional, cita a história em que um filho de uma família de classe média do interior de São Paulo comentou com a mãe que eles eram pobres. O motivo era a ausência de uma televisão de plasma na sala, em comparação com a residência do vizinho.

"Subprime" ambiental

"No caso americano, a crise imobiliária é também um problema claro de consumismo", afirma Moran. "O americano, na média, está todo endividado. A maioria paga apenas os juros. Cada um tem uns US$ 20 mil em dívidas só no cartão de crédito". E isso, segundo ele, apenas para querer ter mais e mais. "No caso do mercado imobiliário, por exemplo, muitos fazem a segunda hipoteca [antes de quitar a primeira] para mudar para uma casa maior.

Segundo o antropólogo, enquanto nos anos 1950 a casa de uma família média americana tinha uma vaga na garagem e 140 metros quadrados para seis pessoas, hoje ela tem espaço para três carros e 300 metros quadrados para quatro pessoas.

E os carros, lembra Moran, queimam petróleo cada vez mais em maior quantidade, por causa do tamanho e da potência do motor. "Tenho feito o caminho inverso. Hoje, tenho um carro pequeno e de quatro cilindros", conta o cientista.

Apesar de o quadro ambiental mundial ser dramático, o antropólogo afirma ser otimista e retrata isso em seu novo livro também. "Se não existir esperança, o melhor é pendurar as chuteiras e ir embora."

Para Moran, é o consumidor individual o único que tem poder de ação de fato. "As pessoas podem chegar e dizer "não". Elas podem não consumir mais porque aquilo vai endividá-las e criar pressões [ambientais]".
Além de ensinar os filhos a lerem com um olhar crítico os comerciais, todos deveriam olhar suas gavetas, seus armários, diz ele. "O importante é saber que não se está sozinho. Existem milhões de pessoas no mundo que já não aceitam esse modelo [de desenvolvimento] que nos levará ao colapso."

Instituto Humanitas Unisinos - 25/06/08

União vai recadastrar terras de estrangeiro

O governo vai promover o recadastramento, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), dos imóveis rurais de estrangeiros e de entidades sem fins lucrativos financiadas por recursos internacionais na Amazônia Legal. Além disso, o ingresso em território indígena e em áreas de proteção ambiental, naquela região, ficará condicionado, até o fim deste ano, à apresentação de visto temporário ou registro de permanência por parte de visitantes do exterior. A reportagem é de Vera Rosa e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 25-06-2008.

O pacote de medidas consta de relatório preparado pela Secretaria Nacional de Justiça, Polícia Federal, Fundação Nacional do Índio (Funai) e Ministério da Defesa para controlar a atuação das organizações não-governamentais (ONGs) na Amazônia e impedir a biopirataria e a venda de terras na floresta. A PF já está investigando operações realizadas ali pelo empresário sueco Johan Eliasch - que comprou 160 mil hectares na Amazônia - e fechará o cerco às ONGs. A entrada em reservas indígenas e áreas estratégicas passará pelo crivo dos ministérios da Justiça e da Defesa assim que for editado decreto presidencial sobre o assunto, previsto para setembro. A multa para quem descumprir a ordem vai variar de R$ 5 mil a R$ 100 mil.

“Não é nosso objetivo criminalizar as ONGs, mas precisamos separar o joio do trigo”, afirmou o secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior. Embora o principal alvo do governo seja limitar a invasão estrangeira, o secretário nega que as medidas tenham esse intuito. “Isso seria discriminatório”, alegou. “O que nós queremos é controlar a entrada de entidades de fachada para comércio ilegal de terras, exploração de índios e biopirataria.”

O relatório sugere que a União condicione a compra de imóvel rural situado na Amazônia - tanto por parte de estrangeiros como de brasileiros - à aprovação do Conselho de Defesa Nacional. Mais: quer que a aquisição da propriedade seja vinculada a “finalidades sociais”, como projetos agropecuários.

“É imprescindível e legítimo regular e impor restrições a entidades que recebam recursos públicos, executem funções ou políticas públicas ou, ainda, que exerçam atividades em locais sensíveis à soberania e aos interesses nacionais (como é o caso da Amazônia Legal)”, destaca o documento.

A força-tarefa promovida pelo governo constatou que a União não tem controle sobre a entrada de ONGs na região e muito menos sabe o seu número. O relatório diz, por exemplo, que o cadastro do Ministério da Justiça abriga apenas 27 entidades autorizadas a funcionar nos Estados da Amazônia Legal e 163 em todo o País. Pelos cálculos dos militares, porém, há 100 mil ONGs que atuam somente na Amazônia.

A lista dos problemas encontrados pela equipe - chamados no relatório de “condutas desviantes” - é imensa. Vai de desvio de recursos repassados às ONGs até autorizações dadas pela Funai para que estrangeiros entrem em reservas indígenas sem visto, passando por entidades de fachada, ligações nebulosas com políticos, espionagem, superfaturamento e campanhas de internacionalização da Amazônia. O governo também descobriu uma triangulação para que as terras, registradas por empresas brasileiras, permaneçam sob controle de estrangeiros.

Josef Barat

PAC, infra-estruturas e crescimento

SEM REGATAR O PAPEL DAS INFRA-ESTRUTURAS COMO FATOR DE SUSTENTAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO, DIFICILMENTE CRESCEREMOS SEM A SUA RECUPERAÇÃO E AMPLIAÇÃO.

A recente edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) remete a uma pergunta recorrente: é possível crescer sem reconstruir as infra-estruturas do País? Dificilmente se alcançará o crescimento sem a recuperação, a modernização e a ampliação das infra-estruturas de telecomunicações, energia, transportes e saneamento. É imperioso resgatar o papel das infra-estruturas como fator de sustentação de um novo ciclo de desenvolvimento. Estudos recentes identificam graves estrangulamentos causados por gargalos nos portos, estradas, telecomunicações, bem como por desequilíbrios na matriz energética. Nos anos 80, o enfraquecimento do processo decisório governamental, a erosão na capacidade de financiamento com recursos fiscais e a degradação da gestão pública foram as causas primordiais da crise que atingiu os diversos segmentos das infra-estruturas.

O esgotamento do processo de substituição de importações e a estabilidade monetária geraram condições de transição para uma industrialização tecnologicamente mais avançada e com níveis mais elevados de produtividade. Este novo ciclo exige a ampliação do mercado interno e maior integração internacional, portanto, um grande esforço na busca da competitividade na indústria, na agricultura e nos serviços. Todavia, as deficiências das infra-estruturas atingem duramente esta transição, ao afetar os custos da produção e o poder de competição das exportações. Duas décadas de recessão e desorganização da economia causaram: 1) a deterioração das instalações fixas; 2) o declínio na qualidade dos serviços; 3) o colapso do suporte de financiamento público; e 4) a esgarçadura da base institucional, com a perda da capacidade de planejamento governamental e de formulação de políticas de longo prazo. Tornou-se necessário, assim, redefinir o papel do Estado e implementar novos mecanismos e parcerias para financiamento.

Uma questão decorre da primeira: até que ponto as infra-estruturas são função do Estado e co-responsabilidade do mercado? Apesar da queda drástica nos montantes de investimentos para restauração e expansão das infra-estruturas, houve, em meados dos anos 90, alguns importantes avanços institucionais. Foi criado um suporte legal que favoreceu os setores de energia elétrica, telecomunicações e modais de transportes, no que se refere às concessões de serviços públicos e disciplinamento das licitações. O referencial da União foi imediatamente seguido e adaptado por muitos Estados. Com esta base legal, abriu-se caminho para a implementação das concessões de longo prazo para exploração privada dos serviços públicos.

Um grande avanço institucional, em decorrência, foi a implantação das agências reguladoras para controle e fiscalização dos contratos de concessão. Avançou-se, também, com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitou as despesas com pessoal e impediu a transferência de parcelas do contrato para serem pagas no exercício seguinte, sem disponibilidade de caixa. As mudanças culminaram com a recém-promulgada Lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs), que favorece a retomada do desenvolvimento econômico com maior justiça social. No entanto, mesmo considerada a tendência de maior participação do setor privado nos investimentos e na operação das infra-estruturas, num país com vasta extensão territorial, os desequilíbrios interpessoais e inter-regionais da renda e as enormes carências acumuladas historicamente, será sempre importante a presença governamental. Mas é inegável que o avanço conseguido com o processo de concessões deteve, em parte, a deterioração das instalações fixas e equipamentos das infra-estruturas.

Todo esse arcabouço institucional representa, sem dúvida, uma importante base de sustentação no sentido de atrair o capital privado para empreendimentos que eram exclusivos do governo. Mas, dada a tradição brasileira de quebra de contratos e mudanças arbitrárias das regras estabelecidas, o avanço poderá ser pouco efetivo para atrair grandes volumes de capital privado para apoio ao PAC. As PPP´s, por exemplo, poderão vir a ser um mecanismo para pequenos investimentos, com curtos períodos de maturação e baixo risco. Se não houver garantias e um ambiente de estabilidade nas regras da regulação, poderão ficar de fora os grandes investimentos necessários para suprir as gigantescas carências nas infra-estruturas. PPP´s e concessões exigem uma firme ação reguladora por parte de organizações públicas independentes.

Publicado em O Estado de S. Paulo em 03 de Março de 2007.

terça-feira, junho 24, 2008

BBC Brasil - 24/06/08

'FT': América Latina lida com inflação melhor que a Ásia
Mercado financeiro em Taiwan. Foto: AP
Os asiáticos estão "se batendo" para lidar com inflação
Os governantes da América Latina têm mais prática em lidar com a inflação do que as autoridades dos países da Ásia, sugere uma coluna publicada na edição desta terça-feira do jornal britânico Financial Times.

"Os políticos nos mercados emergentes estão revirando suas caixas de ferramenta antiinflação. Algumas das escolhas que estão fazendo podem criar problemas a longo prazo", diz o jornal em sua coluna de análise diária de temas ligados ao mercado Lex Column.

Com o título "Latin practice" (Prática Latina, em tradução literal), a coluna compara as reações dos governos latinos e asiáticos no combate à inflação e afirma que muitos bancos da América Latina já aumentaram suas taxas de juros, enquanto as autoridades asiáticas estariam "se batendo".

"Não apenas a América Latina está sofrendo menos o choque inflacionário do que a Ásia, mas seus governantes, talvez por causa da história recente, parecem menos ambivalentes sobre a reação certa", afirma o FT.

Segundo o jornal, isso seria resultado de décadas que a região passou controlando preços "com políticas fiscais responsáveis e metas de inflação".

O FT destaca ainda o aumento das taxas de juros feito pelo Banco Central brasileiro no último mês como "uma demonstração da determinação em agir antecipadamente enquanto as pressões inflacionárias ainda estão relativamente controladas".

Ásia

O jornal afirma que algumas das escolhas feitas pelas autoridades asiáticas para lidar com a inflação são "perigosas", pois podem trazer problemas no futuro.

Entre elas estariam a opção de valorizar a moeda ao invés de aumentar as taxas de juros. A primeira opção é considerada pelo jornal como uma "faca de dois gumes", levando em conta a atual queda nas exportações.

O FT destaca ainda outras medidas "extraordinárias", como o controle de capital e os impostos sobre exportações, que se tornaram comuns na região.

Além disso, o jornal cita como potencialmente perigosas as políticas de alguns países como a Índia, as Filipinas e a Indonésia, que "se voltaram para o controle de preços e para os subsídios fiscais diretos ou indiretos".

"As balanças orçamentárias estão se deteriorando e os bancos centrais, perdendo a credibilidade. Em resposta, os investidores estão atribuindo um prêmio de risco maior aos mercados emergentes", afirma o FT.

O jornal cita o aumento do índice de risco dos países emergentes, calculado pela JPMorgan, que subiu de 160 para 250 pontos-base.

Segundo o FT, "os efeitos do uso precário das ferramentas de política monetária serão sentidos por anos".

Resistir Infor - 22/06/08

Para aquele que vive nas trevas

por Mark Twain [*]
Mark Twain. William McKinley, candidato republicano às eleições presidenciais de 1900, baseou grande parte de sua plataforma na idéia da responsabilidade dos Estados Unidos pelos territórios então tomados à Espanha. Alegando a necessidade da defesa desses novos territórios, McKinley alertava para a urgência de se acabar com as insurreições armadas nesses locais e, assim, conferir as "bênçãos" da civilização aos povos libertados.

Twain tratou do assunto neste que é um de seus mais importantes e controvertidos ensaios sobre o imperialismo. Ironizando a idéia da civilização como "bênção" oferecida aos que "vivem na escuridão", ele trata de questões diversas relacionadas ao tema do antiimperialismo: as agressões cometidas na cidade de Nova York sob os auspícios do chefe político de Tammany Hall, Richard Croker, as indenizações cobradas pelos missionários mortos logo após a Rebelião dos Boxers, a política repressora designada como "luva de aço" aplicada pelo kaiser alemão contra a China e as atrocidades cometidas pelos ingleses na África do Sul e pelo Exército dos Estados Unidos nas Filipinas.

A crítica dirigida por ele aos missionários era constante e cerrada; apesar disso, a estratégia dos missionários de responder apenas aos comentários que lhes diziam respeito contribuiu para que questões como a Guerra das Filipinas e as atividades missionárias na China fossem tratadas como aspectos totalmente diferenciados, o que evidentemente dificultava a percepção crítica do processo imperialista nelas implícito.

Para Twain tratava-se de problemas análogos. No artigo intitulado "A causa do reverendo doutor Ament, missionário", de 1901, ele afirma não haver diferença entre o missionário, que impõe multas 13 vezes superiores ao preço de uma propriedade danificada pelos boxers, e McKinley, autor de um projeto de "Assimilação benevolente dos filipinos".

Aqui, como em muitos outros de seus escritos antiimperialistas, a mordacidade e a veia satírica de Twain são responsáveis pela extraordinária eficácia crítica do documento. Para ler o documento na íntegra acesse o link abaixo.

http://resistir.info/

Instituto Humanitas Unisinos - 24/06/08

Acuado, candidato da oposição do Zimbábue pede abrigo à Embaixada da Holanda

Um dia depois de anunciar que não participará do segundo turno da eleição presidencial do Zimbábue, marcado para sexta-feira, o candidato e líder da oposição, Morgan Tsvangirai, buscou refúgio na Embaixada da Holanda em Harare, temendo por sua segurança. Tsvangirai abandonou a disputa alegando que seus correligionários estariam arriscando a vida ao irem às urnas por causa do clima de intimidação e violência que se instalou no país nessas eleições — a primeira em que o atual presidente, o ditador Robert Mugabe, perigava perder o cargo. Mugabe está no poder desde que o Zimbábue deixou de ser uma colônia britânica, em 1980. A notícia é do jornal O Globo, 24-06-2008.

Tsvangirai pediu ontem que os líderes regionais pressionem pelo adiamento da eleição ou pela renúncia de Mugabe. O líder da oposição disse estar pronto para negociar com o partido do ditador, o Zanu-PF, mas somente depois do fim da violência política.

Mugabe se nega a anular o segundo turno

O partido de oposição Movimento pela Mudança Democrática (MDC, na sigla em inglês) informou que a polícia invadiu a sede do partido em Harare e prendeu mais de 60 pessoas. O movimento afirma que cerca de 90 partidários de Tsvangirai foram mortos por milícias de Mugabe.

Entre os presos estão mulheres e crianças. Somente este mês, Tsvangirai foi detido pelo menos três vezes pelos homens de Mugabe.

— Estamos preparados para negociar com o Zanu-PF, mas é importante que certos princípios sejam aceitos antes de as negociações se iniciarem. Uma das pré-condições é que a violência contra o povo tenha fim mdash, disse Tsvangirai.

Tsvangirai venceu o primeiro turno, mas não recebeu votos suficientes para garantir a vitória direta. Quando oficializar sua desistência, Mugabe estará automaticamente reeleito. A vida do ditador ficaria mais difícil sem o respaldo de um segundo turno realizado dentro da normalidade e o país correria sério risco de enfrentar sanções internacionais, mas seus correligionários não manifestam disposição em abandonar o poder.

O governo afirmou que a desistência de Tsvangirai veio tarde demais e que a eleição não será cancelada.

O Ministério do Exterior da Holanda informou que o líder oposicionista não pediu asilo político, mas disse que ele era bem-vindo na embaixada.

A preocupação dentro e fora da África com a situação política e econômica do Zimbábue, que levou uma grande onda de refugiados aos países vizinhos, é crescente. Tanto a União Africana quanto a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral estão analisando a situação após a desistência de Tsvangirai. Muitos países defendem a criação de um governo de unidade nacional para pôr fim à crise.

Os dois lados rejeitam a proposta. Mugabe prometeu que não entregaria o governo à oposição mesmo derrotado nas urnas. Ele também nega responsabilidade pela violência, agravada depois do resultado do primeiro turno.

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, desaconselhou fortemente que o governo de Mugabe realize o segundo turno, alegando que o resultado não teria legitimidade. O Conselho de Segurança condenou a violência e declarou ser impossível uma eleição livre e justa. Os EUA condenaram o governo nos termos mais contundentes e declararam que o país não poderá realizar eleições “livres, justas, ou pacíficas”.

“O regime de Mugabe não pode ser considerado legítimo na ausência de um segundo turno,” disse, em nota, a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice.

O primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, disse que pressionará a comunidade internacional para que deixe de reconhecer a legitimidade do governo de Mugabe. Brown também disse que defenderá que a União Européia imponha novas sanções ao regime, que qualificou como “criminoso” e “cada vez mais desesperado”.

A desistência de Tsvangirai enterrou as esperanças de uma retomada do investimento estrangeiro ao país, o que poderia tirar o Zimbábue da ruína econômica. Considerada no passado como uma das nações mais prósperas da África, o Zimbábue hoje enfrenta problemas crônicos de abastecimento de alimentos e inflação oficial de 165.000% ao ano. Economistas independentes dizem que a taxa na verdade está em 14.000.000% ao ano: hoje, US$ 1 compra 8,2 bilhões de dólares do Zimbábue.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/06/08

Cai desigualdade de renda. 'Estamos longe de ser um país menos injusto', constata presidente do Ipea

Os aumentos do salário mínimo e os programas de transferência de renda foram os principais responsáveis por uma redução, nas seis maiores regiões metropolitanas, da desigualdade entre a renda dos trabalhadores assalariados nos últimos seis anos, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A queda foi de 7% entre o fim de 2002 e o primeiro trimestre de 2008, promovida por ganhos dos mais pobres 4,5 vezes maiores que os do topo da pirâmide no governo Lula. Se comparadas as médias de 2002 (último ano do governo Fernando Henrique Cardoso) e de 2007, a queda foi de 5,7%. A reportagem é de Martha Beck e publicada pelo jornal O Globo, 24-06-2008.

O Ipea calculou a variação com base no Índice de Gini. Ele varia de 0 a 1 — quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade.

Entre os assalariados das regiões metropolitanas de Porto Alegre, São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Recife e Salvador, o índice caiu de 0,540 em 2002 para 0,502 nos primeiros três meses de 2008.

Segundo o presidente do Ipea, Márcio Pochmann, o resultado até 2008 se deve principalmente aos ganhos dos trabalhadores com o reajuste do salário mínimo, que passou de R$ 200 para R$ 380 no período (hoje já está em R$ 415), e a programas de transferência de renda, como a Loas (Lei Orgânica de Assistência Social).

Pochmann afirmou ainda que, até o fim do governo Lula, em 2010, o Índice de Gini deve chegar a 0,49, o menor desde 1960.

O presidente do Ipea destacou que o Brasil ainda é um país muito desigual. Para ele, nações com índice acima de 0,45 têm uma distribuição de renda “selvagem e primitiva”.

— Estamos longe de ser um país menos injusto.

Pochmann lembrou que o Bolsa Família também contribui para a redução da desigualdade, mas que seus efeitos não aparecem muito no estudo porque ele é mais forte no interior do país:

— O Bolsa Família é mais forte no interior, enquanto o salário mínimo é mais forte nas regiões metropolitanas.

Pochmann: ricos deveriam pagar mais imposto

O presidente do Ipea destacou ainda que a redução da desigualdade também pode ser vista na diferença entre os rendimentos dos trabalhadores.

Os 10% mais ricos em 2004 ganhavam 27,4 vezes mais que os 10% mais pobres. Essa relação caiu para 25,1 vezes em 2006 e 23,5 vezes em 2007.

No ano passado, os trabalhadores mais pobres das seis regiões metropolitanas ganhavam, em média, R$ 206,38. Os 10% mais ricos, R$ 4.853,03.

O estudo do Ipea aponta ainda que os 10% mais pobres tiveram um ganho de renda bem maior que os 10% mais ricos no período entre 2003 e 2007. Os trabalhadores com menores rendimentos tiveram ganhos de 22%. Já os com maiores ganhos tiveram aumento de 4,9% na mesma comparação.

Segundo Pochmann, o Brasil precisa continuar trabalhando por políticas de transferência de renda, pela elevação do salário mínimo e por um sistema tributário mais justo:

— Os impostos deveriam ser mais progressivos, para que os mais pobres pagassem menos e os mais ricos pagassem mais.

Ele lembrou que a renda assalariada ainda responde, proporcionalmente, por pouco da renda total do país: algo em torno de 39,8% do total. A renda vinda de ganhos com juros, lucros de empresas e ganhos com imóveis, por exemplo, cresce em proporção maior.

Pochmann evitou projeções sobre o impacto que o aumento da inflação terá sobre a renda dos assalariados, mas afirmou que a alta dos índices de preços e as medidas que o governo adotar para conter essa escalada podem acabar prejudicando o mercado de trabalho.

segunda-feira, junho 23, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 23/06/08

Xenofobia cresce na Alemanha

A fase dois de uma pesquisa iniciada há dois anos revela a tendência de a xenofobia se tornar cada vez maior na Alemanha, contrariando crença generalizada. A pequisa indica ainda que a maioria dos participantes só apóia a democracia na medida em que garante a prosperidade pessoal. A reportagem é do sítio Deutsche Welle, 22-06-2008.

"Sempre que a obturação do bem-estar se esfacela, tradições antidemocráticas voltam a se manifestar no vazio resultante." Assim o psicólogo Oliver Decker avaliou o resultado de uma pesquisa da Fundação Friedrich Ebert (ligada ao Partido Social-Democrata – SPD). Segundo esta, noções xenófobas são bem mais difundidas na Alemanha do que se acreditava.

O relatório apresentado em Berlim na última semana compõe a segunda parte de um estudo iniciado em 2006. Na primeira fase, 5 mil alemães acima dos 14 anos foram interrogados sobre suas opiniões a respeito do extremismo de direita. Concluiu-se que um entre cada quatro alemães defendia pontos de vista xenófobos.

Nesta segunda fase, os pesquisadores procuraram estabelecer as raízes dos preconceitos. Para tal, convidaram uma seleção de 150 dos participantes para discussões em grupo. "Queríamos examinar as opiniões dos entrevistados no contexto de suas vidas", explica Decker.

A conclusão foi surpreendente: a xenofobia está se tornando cada vez mais mainstream na Alemanha. Os participantes do debate expressaram rejeição em relação a estrangeiros "com uma trivialidade preocupante, inclusive pessoas que na primeira enquete não haviam chamado a atenção por atitudes de extrema direita", comentou o psicólogo.

No pós-guerra, em ambas as metades da Alemanha, a ideologia radical de direita foi apenas recalcada no centro da sociedade, prossegue Decker. Com o milagre econômico, a prosperidade se estabeleceu de forma relativamente veloz na Alemanha Ocidental, não deixando espaço para a reflexão ou para a vergonha.

Os alemães do Leste esperavam um desenvolvimento semelhante, após a queda do Muro. E reagiram com desencanto político e democrático à frustração dessa expectativa. "Foi assustadora para nós a facilidade com que os entrevistados estavam dispostos a trocar a democracia mais modesta em favor de estruturas autoritárias, nas quais supostamente reinassem ordem, tranqüilidade e igualdade de chances", comenta Oliver Decker.

Diversos jovens declararam desejar "algum tipo de líder". Para os participantes de meia idade, a política é, de qualquer modo, mentira e engano. E os mais velhos evocam os modelos de sua juventude: no Leste, as represálias da RDA; no Oeste, o regime nazista.

Outra revelação chocante é que o problema se encontra no próprio centro da sociedade alemã, contradizendo a teoria de que os celeiros do extremismo de direita se encontrariam nas partes do país afetadas pelo desemprego e a decadência social.

Segundo 37% da população, os imigrantes viriam para a Alemanha "para explorar o Estado de bem-estar"; 39% consideram o país "perigosamente superpovoado de estrangeiros". E 26% gostariam que houvesse "um único partido forte para representar a comunidade alemã".

Os principais alvos de preconceito são os turcos e os russos, considerados parasitas e gananciosos. Entretanto, os pesquisadores também identificaram a emergência do que denominaram "racismo cultural": preconceitos contra grupos marginais, tais como os desempregados e os socialmente desprivilegiados. Tal fato revelaria uma forte pressão para corresponder à norma social percebida, e a conseqüente condenação dos que fracassam neste processo.

Ficou ainda claro que a maioria dos participantes só apóia a democracia na medida em que garante a prosperidade pessoal. Caso contrário, passam imediatamente à intolerância. Uma atitude semelhante marcou também a década de 1950 na Alemanha, observaram os pesquisadores da Fundação Friedrich Ebert. Na época, o milagre econômico provou-se um obstáculo à reelaboração do passado nazista.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/06/08

Os imigrantes salvam o Estado de bem-estar social

Os imigrantes, segundo estudo do Escritório Econômico Moncloa, são 8,8% da população espanhola, mas absorvem apenas 5,4% do gasto público. Consomem 4,6% do gasto em saúde e 6,6% em educação. Mas sua contribuição é de 6,6% dos ingressos totais. No total, sua presença na Espanha representa um benefício líquido para o país de cerca de cinco bilhões de euros.

Segue a íntegra do artigo de Pablo Ximénez de Sandoval, publicado no El País, 16-06-2008. A tradução é do Cepat.

Na Espanha, um imigrante de um país pobre, em situação irregular, sem trabalho, vivendo na rua, tem acesso a serviços que não poderia ter em seu próprio país trabalhando normalmente. A saúde e a educação são universais e gratuitas. Se tem atestado de residência, pode, além disso, obter uma pensão, auxílio desemprego, moradias de proteção oficial... o que não o diferencia em nada de um espanhol, naquilo que se refere a ajudas.

Nos principais países de origem (Marrocos, Romênia ou Equador), a classe média sofre para alcançar um nível de atenção social que na Espanha é acessível inclusive aos indocumentados. É evidente que o sistema gasta nos imigrantes. Um estrato social de espanhóis percebe que os serviços públicos estão sendo tomados pelos recém-chegados. Alguns partidos políticos europeus já fazem campanha aos gritos de “Não cabem todos!”. Não cabem todos no Estado de bem-estar social? A resposta é sim.

Philippe Legrain, autor do livro Immigrants: your country needs them (Imigrantes: teu país necessita deles) realizou recentemente um estudo para o Conselho da Globalização, da Suécia. O Governo sueco se propõe, ao contrário de meia Europa, a estudar formas de atrair mais cidadãos extracomunitários. Legrain analisou o impacto da imigração no sistema sueco de proteção social, provavelmente o mais generoso do mundo, com este ponto de partida: a imigração livre é compatível com o Estado de bem-estar social europeu?

Dentro deste quadro geral, Legrain se pergunta se os benefícios proporcionados pelos países ricos não acabam sendo um ímã para imigrantes. Quer dizer, se se vive melhor dos benefícios nos países ricos do que trabalhando nos países pobres, acaba sendo uma boa razão para emigrar. E se muitos emigram, num dado momento esse Estado benfeitor será insustentável.

Para que isso aconteça, explica, teriam que se dar certas condições: os emigrantes devem estar tão desesperados que os supostos benefícios compensem o tremendo custo econômico e psicológico da migração; de todos os destinos possíveis, têm que escolher a Suécia; os ingressos pelos benefícios suecos devem ser maiores do que trabalhando em seus países; e, por último, devem se conformar com os benefícios, em vez de aspirar a maiores ingressos trabalhando na Suécia.

Os imigrantes são “uma minoria seleta” de seus países, explica Legrain. São os jovens com mais vontade de trabalhar e maior espírito empreendedor. Mas, se o que querem é viver dos benefícios, a Suécia seria o melhor país para isso. Segundo dados da OCDE de 2005, um imigrante sem permissão de trabalho recebe do sistema sueco 103.000 coronas (11.030 euros) ao ano. Se tem dois filhos, 18.000 euros. O dado é três vezes superior ao salário médio no Marrocos e quatro vezes ao do Paquistão.

A principal razão para que não haja “imigrantes de benefício” é que, inclusive se estão melhor com subsídios na Suécia do que trabalhando em seu país, estão ainda melhor trabalhando na Suécia. Devem pagar sua viagem, devem enviar dinheiro aos seus países e devem garantir um futuro.

Pode-se fazer esse debate na Espanha. A atenção pública e gratuita é uma atração? “Não existe nenhuma prova de que a Suécia, que provavelmente tem o sistema de benefícios mais generoso do mundo, atue como um ímã benéfico, assim que é extremamente pouco razoável que isso ocorra na Espanha, inclusive se elevasse seu nível de proteção social”, assegura Legrain por correio eletrônico.

Josep Oliver, professor de Economia Aplicada da Universidade Autônoma de Barcelona, acredita que as ajudas representam uma atração, mas não na Espanha. “No norte da Europa existe esse ímã”, disse Oliver. “Há uma parte do que chama seekers [buscadores], atraídos por esse Estado de bem-estar social muito generoso. No nosso caso, não vêm para buscar ajudas, que não existem como nos países nórdicos. Vêm buscando trabalho, o que tem”.

Oliver destaca que “até a aposentadoria dos imigrantes, toda a literatura econômica mundial aponta que, se entram indivíduos jovens, contribuem mais do que levam. O saldo é positivo. Sua contribuição excede os benefícios desse Estado de bem-estar. Cobrarão as pensões apenas quando se aposentarem”. Isso significa que, por enquanto, “os imigrantes pagam sua permanência”.

Na Espanha havia 2.357.000 estrangeiros legais no final de 2007. Desses, 1.316.000 estavam filiados ao regime de Seguridade Social. Só com sua contribuição se pagam 900.000 pensões. Os imigrantes contribuem com 7,4% das cotizações da Seguridade Social e recebem apenas 0,5% do gasto em pensões.

O Escritório Econômico de Moncloa elaborou um relatório em 2006 muito revelador sobre este ponto. Os imigrantes, segundo esse estudo, são 8,8% da população espanhola, mas absorvem apenas 5,4% do gasto público. Consomem 4,6% do gasto em saúde e 6,6% em educação. Mas sua contribuição é de 6,6% dos ingressos totais. No total, sua presença na Espanha representa um benefício líquido para o país de cerca de cinco bilhões de euros.

A situação é semelhante em todos os países, também com um baixo nível de proteção social. Nos Estados Unidos, um estudo da National Academy of Sciences concluiu que um imigrante recebe cerca de 3.000 dólares do Governo norte-americano em toda a sua vida. Seus filhos serão contribuintes do sistema na razão de aproximadamente 80.000 dólares cada um ao longo de sua vida.

“Nossos imigrantes têm entre vinte e quarenta anos”, explica Oliver. “Nos próximos 20 anos começaremos a ter que pagar uma parte do que nos adiantaram. Isto tendo em conta sua vida individual. Mas, é preciso ver também o que deixam atrás de si. Se deixam filhos com formação mais elevada, ganharão mais dinheiro que eles” e contribuirão mais para o sistema. Há muita probabilidade de que isso aconteça, já que “os filhos não têm que se adaptar, como fez o pai”.

Mas os estrangeiros também envelhecem. E ficam sem trabalho quando as coisas não vão bem. Nestes casos não contribuem para o sistema e começam a ser receptores de ajudas: pensões e subsídios para desempregados. O sistema de bem-estar social sofre? “Têm direito às ajudas, porque pagaram impostos e contribuíram para a economia e a sociedade quando as coisas iam bem”, opina Legrain. Atualmente, com o desemprego em alta, a taxa de atividade é 19% mais alta entre os estrangeiros.

Mas, afora o fato de ter direitos, “em geral, a literatura econômica sugere que mesmo considerando o pagamento de pensões, o saldo final é favorável para aquele país que recebe a imigração”, assegura Oliver, ainda que reconheça que “o debate sobre o que acontecerá quando se aposentarem é muito complexo”.

A suposta crise de pensões acontecerá em torno de 2025. “Num sistema em que os velhos vivem da poupança dos jovens, o que acontecerá quando houver mais velhos que jovens? A imigração é uma entrada de população jovem e trabalhadora. Em geral, a crise não será superada apenas com a imigração, ainda que contribua para atenuá-la”, opina Oliver.

Admitindo que os imigrantes não abandonam sua família e sua cultura e dão a vida em troca de um sanduíche da Cruz Vermelha e saúde gratuita, e que não são uma carga para o sistema, muito pelo contrário, cabe uma última pergunta: está justificada a percepção de que tomam todos os serviços sociais? Na Espanha, isto tem muito a ver com um tema tão atual quanto labirintístico para o grande público: o financiamento autônomo.

“A parte relativa aos serviços é parcialmente certa”, admite Oliver. “É um erro do sistema de financiamento que agora está se discutindo. Não se pode ter, como em Madri e na Catalunha, aumentos de população de 15% e manter os mesmos ingressos. O gasto público para a imigração está muito concentrado geograficamente, mas os ingressos que essa imigração gera vão para o Estado central. O Estado fica com as entradas e os outros com os gastos. Os benefícios são macroeconômicos e os problemas, microeconômicos”.

Carlos Clemente, vice-conselheiro de Imigração da Comunidade de Madri, apresenta os dados: “Na integração dos imigrantes nós investimos 1,5 bilhão de euros e o Estado 40 milhões. Os estrangeiros estão contribuindo com oito bilhões de euros para o Estado. Apenas 200 milhões vão para as comunidades, que somos os que damos educação, saúde, moradia etc.”.

Clemente esclarece que “os imigrantes não tomam os serviços públicos, são as camadas mais baixas que tomam os serviços públicos. Imigrantes e espanhóis”. Especialmente quando a imigração já não é um fenômeno novo. “Há 10 anos era mais assim, mas não agora. Alguns já estão empregados, por exemplo. Ao final, são como os que vêm a Madri de outras províncias”.

A coordenadora da Direção Geral de Assistência Sanitária da Junta de Andaluzia, Carmen Escalera, assegura que “com os dados de 2006, os atendimentos à população imigrante não regularizada são de 0,8% das consultas de atendimento primário” em Andaluzia. “É falso dizer que arruínam os serviços sociais. Representam 0,6% das visitas domiciliares e 2,5% das urgências. Representam 4,6% dos partos. Isso é até bom, porque é seiva nova”.

E quando vão envelhecendo? “Teremos que ir adaptando o sistema”, admite Escalera. Mas “estão acontecendo reagrupações familiares que assumem a vida daqui. A partir desse momento, não se distinguem em nada da população autóctone. Consomem os mesmos recursos e geram a mesma riqueza”.

O Conselho Econômico e Social se ocupa deste assunto em seu Memória 2007. O responsável pelo estudo, Jesús Cruz, disse que a Espanha deve incrementar seus serviços sociais para toda a população a fim de responder a “um imprevisível, rápido e intenso crescimento, e é composta por 10% de estrangeiros”.

Porque, como disse Josep Oliver, “para o nativo que vê seu bairro se degradar devido a um impacto migratório muito grande”, não se pode explicar que a imigração é boa para a economia. O professor dá toda razão às comunidades que reclamam maior financiamento: “A garantia para que a imigração se integre e permaneça, da qual necessitamos, é que se atendam os gastos onde são produzidos, para que o bem-estar dos nativos não seja afetado. O dinheiro da imigração deve ser para aquele que o ganha e para aquele que sofre esse impacto”.

Numa entrevista concedida a este jornal, o novo ministro do Trabalho e Imigração, Celestino Corbacho reconhecia que “um país em que existe um contingente importante de imigrantes não pode subsistir com um Estado de bem-estar social desenhado para outra realidade”.

Corbacho dizia que o desenvolvimento econômico “não é suficiente” para sustentar o sistema, “porque o desenvolvimento econômico necessita de amplos contingentes de imigração para se sustentar. Quando chega um amplo contingente de imigrantes a um país, o Estado de bem-estar social se debilita, a não ser que o Estado lhe injete mais economia. Caso contrário, pode correr o risco de que aquele que chega leve a parte do Estado de bem-estar porque sua situação é pior que a daquele que está aqui e cuja situação econômica não mudou, e este deixe de receber o que o Estado de bem-estar lhe estava dando. Disso ao conflito, são apenas alguns passos”. A solução, para Corbacho, é uma só: “Injetar mais dinheiro”.

Instituto Humanitas Unisinos - 23/06/08

'Estamos experimentando uma escassez de água sem precedentes'

“Mais de 1,2 bilhão de pessoas não tem acesso a água potável, e cerca de 2,4 bilhões sofrem doenças originadas da ingestão de água insalubre. Na próxima meia hora morrerão 180 crianças em países em desenvolvimento justamente por conta da água contaminada”, escreve Luis Miguel Ariza.

“O que estamos experimentando é uma escassez mundial sem precedentes”, afirma Stephen Carpenter, professor de Zoologia da Universidade de Wisconsin, em Madison, e presidente da Sociedade Ecológica da América. Portanto, nos encontramos numa situação dramática em termos de acesso à água potável no planeta.

Segue a íntegra do artigo de Luis Miguel Ariza, publicado no El País, 08-06-2008. A tradução é do Cepat.

Quatro milhões de crianças morrem anualmente porque o elemento que lhes dá a vida, a água, está contaminada. O ser humano é água. E a Terra é o planeta azul, mas cada vez menos azul. Às vésperas da abertura da Expo Zaragoza, líderes mundiais como Gorbachov, Susan George, Vandana Shiva e Jeremy Rifkin, nos dão as chaves de uma crise mundial.

A Faixa de Gaza é um dos lugares mais densamente povoados do mundo. Mais de um milhão e meio de palestinos convivem num corredor de terra árida que tem apenas 40 quilômetros de extensão e entre 6 e 12 de largura. A água vital de que dependem desde tempos bíblicos corre debaixo de seus pés graças a um aqüífero subterrâneo que se estende por cerca de 120 quilômetros ao longo da costa mediterrânea. Gaza é uma zona em permanente conflito, mas há talvez um aspecto mais desconhecido da vida dos palestinos.

“Em termos de contaminação da água, sua situação é provavelmente das piores do mundo”, explica Andy Vengosh, professor associado da Divisão de Ciências da Terra e do Oceano da Universidade de Duke, em Durham (Carolina do Norte, EUA). Vengosh diagnosticou a saúde das águas subterrâneas nessa faixa, e, com exceção de alguns poços contaminados por nitratos ou resíduos, chegou à conclusão de que a maioria expele água cada vez mais salgada. Os mais velhos do lugar lembram de tempos em que a água tinha um gosto muito mais doce. Num trabalho publicado na revista Ground Water, Vengosh conclui que menos de 10% das águas subterrâneas ingeridas em Gaza são aptas para a saúde para uma população em que mais da metade são menores de 15 anos.

Em Gaza, como em Israel e todo o Oriente Próximo, chove pouco; e mais população significa mais água. Com o tempo, os recursos subterrâneos se vêem condenados à superexploração. Os palestinos extraem anualmente 150 milhões de metros cúbicos destes poços insalubres, uma quantidade que é 10 vezes maior que a bombeada pelos israelenses da parte mais suloriental do aqüífero. O certo é que a hidrogeologia não favoreceu Gaza. A conclusão a que Vengosh chegou é que a salinidade dos poços não se deve às intrusões do Mediterrâneo, mas que é produzida devido a um fluxo de águas salgadas subterrâneas que fluem fundamentalmente de Israel até a costa. “A origem é natural”, assegura este especialista. “Não se deve à contaminação humana feita em Israel nem a nenhuma outra atividade. O que propusemos neste estudo foi a criação de uma linha de poços que bombeassem esta água salgada para enviá-la a uma estação dessalinizadora, de forma que se pudesse reverter este processo e fazer com que chegue mais purificada à Faixa de Gaza.

Uma estação dessas, funcionando na fronteira entre Israel e os territórios palestinos e administrada por ambos, poderia mudar totalmente a vida diária dos palestinos, que desfrutariam de uma água de qualidade sem precedentes. “Alguns acreditam que a água pode ser uma causa para os conflitos, já que, por ser escassa, se organizam guerras em torno de seus recursos”, disse Vengosh. “Outros pensamos que a água pode servir como um instrumento para estabelecer a cooperação”.

Os conflitos pela água não são nenhuma novidade, nos lembra Michael Coe, professor do Instituto Oceanográfico Woods Hole, em Massachusetts (EUA): basta lembrar a disputa entre a Turquia e seus vizinhos Iraque e Síria pela represa turca de Ataturk para controlar o fluxo do Eufrates, ou “as ameaças do Egito sobre os planos do Sudão de construir uma represa no Nilo para irrigação, o que reduziria de forma significativa o fluxo de água para o Egito”. Aí estão também as conversações pela paz que iniciaram no mês passado Israel e Síria, e que se centram sobre os altos do Golan e no acesso à água.

Gaza não é mais que um expoente – dramático – de uma crise mundial. Os dados dão pinceladas temíveis: mais de 1,2 bilhão de pessoas não tem acesso a água potável, e cerca de 2,4 bilhões sofrem doenças originadas da ingestão de água insalubre. Na próxima meia hora morrerão 180 crianças em países em desenvolvimento justamente por conta da água contaminada.

A alimentação e a água são outro assunto grave. 10% de todos os alimentos no mundo, a carne e os cereais, são produzidos graças à extração de águas subterrâneas de aqüíferos que estão se esgotando a um ritmo mais rápido do que podem ser recuperar. A irrigação na agricultura consome 75% da água no mundo e proporciona 40% dos alimentos, explica Coe. Mas no norte da China, Índia, no norte da África, Ásia central, na parte central dos Estados Unidos, no norte do México e da Austrália, os níveis freáticos baixam entre um e dois metros a cada ano. “Em certas partes da Índia central, os moradores podem ficar sem água subterrânea na próxima década ou na seguinte. É um caso crítico”, disse Coe.

Nas escolas se ensinava que a água de nosso planeta se renova, e alguns cálculos sugerem que cada ano os oceanos evaporam a inconcebível quantidade de 495.000 quilômetros cúbicos de água; mas praticamente nada se perde no espaço, e essa água retorna para se incorporar num circuito sem fim: o próximo copo de água que você beber pode, em teoria, conter moléculas de água que podem ter sido ingeridas por Napoleão.

Os mares cobrem duas terças partes da superfície do Planeta – 97% da água é salgada –, e o resto é água doce, que se encontra nas calotas polares, nas águas subterrâneas, nos rios e lagos. O problema é que temos acesso a menos de um 1% de toda a água doce existente. Segundo o Conselho Mundial da Água, no século passado, a população triplicou, mas o uso de águas renováveis se multiplicou por seis. Stephen Carpenter, professor de Zoologia da Universidade de Wisconsin, em Madison, e presidente da Sociedade Ecológica da América, explica-o dessa maneira: “Agora há muito mais pessoas do que nunca e, além disso, a média de consumo por indivíduo nunca foi tão alta”. Se acrescentarmos que agora não há mais água disponível como no passado, e que a contaminação está arruinando muitos recursos hídricos e reservas de água doce que antes estavam disponíveis, a conclusão é evidente: “O que estamos experimentando é uma escassez mundial sem precedentes”.

A tecnologia de tratamento de água nos países desenvolvidos permite paliar em parte o problema, tornando potáveis águas poluídas ou dessalgando a água do mar. Isso ocorre na Europa, nos Estados Unidos e nos países mais prósperos do Oriente Próximo, que podem destinar recursos financeiros derivados do petróleo para este fim. “O problema é mais inquietante nos países pobres, já que não dispõem desta tecnologia para produzir água potável. Há um bom número de organizações que trabalham nestes países para desenvolver procedimentos de potabilização de baixo custo, mas a situação é complicada”, assegura Kenneth Reckhow, professor de Recursos Hídricos da Universidade de Duke.

Na Espanha, o estresse hídrico afeta, sobretudo, o sul da Península, Levante e a costa catalã. Os números dizem que a Espanha é um país chuvoso em comparação com outros, o que resulta a priori chocante. “A média de chuvas na Espanha é das mais altas, cerca de 660 litros por metro quadrado”, disse Fermín Villarroya, professor de Hidrogeologia da Universidade Complutense de Madri. “Ocorre que é uma média enganosa resultante da divisão de muitos litros que caem na Cornija Cantábrica e os poucos que chegam ao sudeste”. Esta desigualdade pluviométrica poderia explicar o costume histórico do Estado espanhol de levar água de um lugar a outro. A radiografia hidrológica apresenta a Espanha como o terceiro país no mundo em número de represas (cerca de 1.300), um devorador anual em torno de 30.000 hectômetros cúbicos de água doce – não necessariamente potável – e cuja agricultura consome 85% dos recursos.

A grande questão a ser resolvida, assegura Villarroya, é a gestão das águas subterrâneas, que regam um terço dos cultivos espanhóis. Não há um controle suficiente sobre os poços; há casos evidentes de superexploração, como o do aqüífero 23 da Mancha, que colocou à beira do abismo o Parque Nacional das Tablas de Daimiel. Além disso, na Espanha a água continua sendo barata. “Atualmente, é mais rentável bombear um metro cúbico de água subterrânea do que comprar um metro cúbico numa estação dessalinizadora”.

A Diretiva Européia da Água, de 2000, estabelece que, a partir de 2010, os espanhóis terão que começar a pagar o preço real da água que usamos e bebemos – atualmente é de um euro por mil litros –, o que suporá provavelmente duplicá-lo ou triplicá-lo no futuro. Atualmente, o preço mínimo da água é subvencionado pela maioria dos ajuntamentos. Villarroya acredita que uma água mais cara, junto com medidas de reutilização e fomento da economia de água, nos levará a um uso sustentável.

E hoje esse caminho passa, como não poderia deixar de ser, por Zaragoza, que atrairá a atenção do mundo graças à Exposição Internacional Água e Desenvolvimento Sustentável, a partir do próximo dia 14 de junho. Durante 93 dias, suas organizações pretendem manter o que anunciam como “a maior festa da água do mundo”: uma reunião internacional de artistas, cientistas e intelectuais que debaterão em torno deste elemento e que irá acompanhada de 4.500 espetáculos, entre os quais, os visitantes poderão experimentar a força das águas extremas na simulação de um tsunami.

A exposição será um termômetro para comprovar qual é a sensibilidade real dos espanhóis em relação à água. O diretor da exposição, o mexicano Eduardo Mestre, é otimista. Assinala que estamos longe de gerir a água como na Finlândia ou no Canadá, países que têm mais recursos hídricos (os canadenses têm um sentido mais estrito da economia de água apesar de que dispõem de 60.000 metros cúbicos ao ano por habitante, vinte vezes mais que por cada espanhol). Entretanto, “o espanhol não é um esbanjador”, assegura este especialista, que participou de projetos de gestão de água no Nepal, Sri Lanka, Costa do Marfim e vários países da América do Sul. Inclusive não estamos mal se comparados com a Califórnia, berço do movimento conservacionista no mundo. “Um habitante de Madri emprega 125 litros diariamente; um californiano chega a 450”.

A água não é apenas o elemento essencial sobre o qual se assentou a vida em nosso planeta. Representa um fator emocional, significa comércio e também é cultura, originou conflitos e também alianças. Mestre prefere inclinar-se para o lado positivo. “A água une os povos”, assegura. A reflexão histórica está cheia de exemplos como este que Ángel Poveda, professor de História Econômica da Universidade de Alicante, nos mostra, acontecido há séculos: “Em Al Andalus, através do califado, a água foi um elemento vertebrador e de progresso tecnológico. Serviu pra converter a Espanha num jardim”.