"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, abril 28, 2008

Instituto Humanitas Unisinos - 28/04/08

Setor privado superou o poder público em investimentos na saúde

O SUS (Sistema Único de Saúde), orgulhosamente descrito pelo governo brasileiro como a maior rede pública de saúde do mundo, está ano a ano perdendo participação no total de dinheiro que se aplica em saúde no país. O setor privado, no qual estão os planos de saúde, já superou o poder público em volume de recursos. A reportagem é de Ricardo Westin e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-04-2008.

Em 1995, 61,6% dos gastos com saúde vinham do SUS e 38,4% eram oriundos do setor privado. No ano passado, a balança pendeu para o outro lado: o SUS respondeu por 49% e o setor privado, por 51%. A participação pública caiu 20,45%.

A constatação faz parte de uma pesquisa feita pelo médico Gilson Carvalho, secretário nacional de Atenção à Saúde no governo Itamar Franco e consultor do Conasems (entidade que reúne os secretários municipais de Saúde). Ele fez suas próprias contas usando dados do Ministério da Saúde, da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e da Organização Mundial da Saúde.

A Escola Nacional de Saúde Pública, ligada ao Ministério da Saúde, tem números parecidos. Essa menor participação do SUS confirma aquilo que especialistas dizem e repetem: a saúde pública vai mal porque simplesmente falta dinheiro.

"O que mostra que os recursos são insuficientes são, de um lado, a falta de ações e serviços e, de outro, a baixa qualidade de alguns deles. Insuficiência e ineficiência", diz Carvalho.

O SUS foi criado pela Constituição de 1988. Cada um dos mais de 180 milhões de brasileiros, ao menos na teoria, deve ser atendido por um médico quando estiver doente, obter os remédios e receber todos os tratamentos. Sem pagar nada.

Em número de beneficiados, a saúde privada é muito menor. Nela estão contabilizadas, por exemplo, a compra de remédios e a consulta com médicos particulares. Os planos médicos têm pouco mais de 39 milhões de clientes. Em 2000, tinham 30,7 milhões.

"Os planos de saúde crescem porque o SUS está cada vez pior. Um sistema público ruim é a melhor propaganda da medicina privada", diz o médico e deputado federal José Aristodemo Pinotti (DEM-SP).
Uma pesquisa nacional feita pelo Datafolha no mês passado mostrou que, para 29% dos brasileiros, o principal problema do país é a saúde, à frente do desemprego e da violência.

Inflação da saúde

Em 2007, segundo o estudo de Carvalho, o sistema público de saúde custou R$ 94,4 bilhões. Cerca de metade dos gastos veio do governo federal. A outra metade foi dividida entre Estados e prefeituras.
Em termos absolutos, as verbas têm aumentado. Comparando os anos de 1995 e 2004, o valor que o SUS gastou por brasileiro passou de 293 para 590 dólares internacionais (moeda de comparação entre países).

O problema é que o aumento foi insuficiente. A inflação da saúde cresce com mais velocidade que a inflação geral. Diariamente, surgem equipamentos e remédios mais avançados, que, em vez de substituir, passam a conviver com os antigos. O sistema fica mais caro.

O Brasil está se tornando um país de idosos, que demandam mais tratamentos. É outro peso para os cofres públicos. O setor privado acompanha melhor essa inflação.

A saúde convive ainda com freqüentes ameaças de perda de verbas, muitas delas concretizadas. Em dezembro, o Congresso Nacional extinguiu a CPMF, tributo que no ano passado respondeu por 35% das verbas do Ministério da Saúde.

Na semana passada, o presidente Lula assinou um decreto determinando cortes em todo o governo federal. O Ministério da Saúde perdeu R$ 2,59 bilhões de seu Orçamento.

Outro problema é a falta de regulamentação de um artigo da Constituição que fixa os valores mínimos que o governo federal, os Estados e as prefeituras devem aplicar em saúde. Muitos governantes ignoram o piso. Outros atingem o valor, mas valendo-se de subterfúgios como incluir restaurante popular, despoluição de águas e pagamento de aposentados nas contas da saúde. Por causa da brecha, a saúde deixou de receber R$ 9 bilhões em 2005.

Para o ex-ministro da Saúde Adib Jatene, as verbas insuficientes mostram que o governo só prioriza a saúde no discurso. "Na prática, a saúde não é prioridade. Prioridade é pagar o juro da dívida [pública]."

Instituto Humanitas Unisinos - 27/04/08

Agricultura Familiar e agronegócio. Qual é o modelo ideal?

Pela segurança alimentar do País, num momento de crise mundial de aumento de preços e escassez na oferta de alimentos, e pela garantia de excedentes de grãos para a exportação, o governo decidiu abandonar o discurso ideológico sobre a pequena e grande propriedade, da agricultura familiar ou empresarial. "O discurso ideológico perde completamente o sentido quando o interesse geral de todos é a segurança alimentar. Temos é de produzir alimentos para o consumo interno e aumentar a produção destinada à exportação", diz o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, de esquerda, defensor da agricultura familiar. A reportagem é de João Domingos e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 27-04-2008.

"Não faço distinção entre pequena, média e grande propriedade. O agronegócio é de todos. Na batalha pela segurança alimentar, técnicos nossos e do Desenvolvimento Agrário trabalham em conjunto para melhorar as condições de produção. Isso é o que interessa", complementa o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, de centro, que cuida dos interesses da agricultura empresarial e tem como responsabilidade o controle sanitário e o combate à febre aftosa e a outras doenças, medidas necessárias para a política de exportação do País.

De fato, se o próprio governo tem dois ministérios para cuidar da questão agrícola - o do Desenvolvimento Agrário para os 4,2 milhões de agricultores familiares, e o da Agricultura para todo o restante -, todo mundo está envolvido com o agronegócio. De acordo com dados fornecidos pelo ministro Guilherme Cassel, 40% do movimento do agronegócio brasileiro vem da agricultura familiar, onde a renda bruta não pode ultrapassar os R$ 110 mil anuais e ninguém pode ter mais do que dois empregados fixos. Quem se enquadra nessas condições tem direito a empréstimos subsidiados. Para 2007/2008, o governo destinou R$ 12 bilhões à agricultura familiar. Em 2003, a verba era de R$ 2,3 bilhões.

Para o ministro Reinhold Stephanes, o Brasil goza de uma situação privilegiada no mundo, no que se refere à produção de alimentos. À exceção do trigo, o País não apenas é auto-suficiente no que produz, como bate recorde em cima de recorde em termos de excedentes.

"Crescemos 16% todo o ano na produção de excedentes alimentares para exportação; o segundo lugar não chega a 10%", diz ele. "Temos solo, tecnologia, mão-de-obra e somos, reconhecidamente, o mais produtivo e eficiente país na produção de alimentos", afirma.

Guilherme Cassel diz que hoje a agricultura familiar é responsável por 70% de todo o alimento que o brasileiro consome. Arnoldo Campos, secretário de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, fornece os dados: feijão, 70%; mandioca, mais de 90%; leite, mais de 50%; aves e suínos, mais de 60%; trigo, mais de 50%; hortigranjeiros, mais de 90%. "A agricultura empresarial é responsável por quase 70% da produção de bovinos, arroz e soja; e 51% do milho, além de predominância quase total na cana-de-açúcar."

Campos, que é técnico e não é filiado a nenhum partido político, afirma que o Brasil deve ser pouco afetado pelo aumento de preços e pela crise mundial de alimentos. "Assim como aconteceu na crise do subprime (a recente crise que teve início nos Estados Unidos, por causa da supervalorização de imóveis), em que o Brasil praticamente não foi atingido porque tinha reservas monetárias muito altas, no caso dos alimentos o País está blindado."

Em parte, diz Campos, por causa da agricultura familiar, que consegue suprir toda a demanda interna por alimentos. "Se tivéssemos nos concentrado na produção para exportação, como fez a Argentina, provavelmente estaríamos passando pelos mesmos problemas do país vizinho. Felizmente, a produção interna criou uma barreira contra a crise alimentar. Temos condição de aumentar em muito a produção, tanto para o consumo crescente no País, quanto para a exportação, porque temos excedentes."

Campos cita o caso do leite como exemplo de como o País tem conseguido passar ao largo das crises. Enquanto no exterior o produto aumentou mais de 210%, no Brasil os preços subiram 18%. Hoje, ao contrário do que ocorria há cinco anos, quando o País importava leite em pó, o Brasil tem grande excedente para exportação, tendo passado dos 10 bilhões para 25 bilhões de litros de leite anuais.

"O desafio da política agrícola do governo, seja na agricultura familiar, seja na empresarial, é garantir o consumo interno e aumentar o excedente. Apesar da crise mundial, as condições são altamente favoráveis ao Brasil, visto que o mundo passa por desarranjos climáticos e enfrenta problemas com os biocombustíveis, como nos Estados Unidos, que passaram a utilizar parte do trigo para produzir etanol. Isso, de fato, tem impactado os preços", diz o secretário.

Instituto Humanitas Unisinos - 27/04/08

Desenvolvimento e produção destrutiva. Um falso dilema

"É possível preservar a floresta mantendo - a intocada, com utilização rudimentar de seu potencial, que pouco beneficia as comunidades tradicionais. Outro modo de mantê-la em pé é a abertura a novas oportunidades e interações, com o uso de artefatos que utilizem seu potencial sem destruí-la, encarando-a como fonte de afirmação da vida e distribuindo os lucros obtidos com a produção não predatória para muito mais gente". A opinião é de Bertha K. Becker, professora emérita de geografia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro da Academia Brasileira de Ciências, e Roberto Bartholo, coordenador do programa de engenharia de produção da Coppe-UFRJ (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia), no artigo "Uma via para a Amazônia", publicado no jornal Folha de S. Paulo, 27-04-2008.

Eis o artigo.

O debate sobre o aumento das taxas de desmatamento na Amazônia no final de 2007 foi ocasião propícia para um ataque inédito de alguns interesses do setor agroindustrial atuando no Brasil central e na Amazônia ao Inpe, uma das instituições-chave do sistema brasileiro de ciência e tecnologia e da capacidade de formulação de caminhos próprios de desenvolvimento.

Não é inocente nesse contexto um doloso desconhecimento: ignorar que a ciência (aqui e em toda parte) avança por meio de acertos e erros. Pretender fazer de diferenças metodológicas sobre como detectar desmatamento e degradação a partir do espaço o argumento para deslegitimar nossa ciência pode ser um ato mais que destrutivo ao futuro do Brasil.

O nó da questão é o falso dilema entre conservação e desenvolvimento. Falso porque trata a conservação como sinônimo de preservação intocável e identifica o desenvolvimento com produção destrutiva, respaldado num histórico de agropecuária causadora de gigantesco passivo ambiental na Amazônia. Falso pois não admite a existência de diversos modos de modernidade e caminhos alternativos de desenvolvimento e pretende fazer da verdade complexa dessa questão pouco mais que uma caricatura simplista.

É grande a diversidade de interesses e agentes sociais que desejam o desenvolvimento da Amazônia com base na produção: vorazes grileiros e desflorestadores - "tradings", grandes empresas e fazendeiros -, produtores familiares com diferentes graus de organização e empreendedorismo, produtores médios que produzem e mantêm suas famílias com boa qualidade de vida e alguns que já utilizam padrões mais avançados de produção.

É também grande a diversidade de interesses e agentes ambientalistas, desde os "amigos de Gaia", passando por ONGs bastante diferenciadas em seus propósitos e interesses e chegando aos grandes bancos do capital financeiro globalizado, interessados na preservação em razão de interesses associados ao mercado de carbono.

O desenvolvimento da Amazônia não pode ser reduzido à lógica maniqueísta. É forçoso reconhecer que há bandidos e mocinhos em cada um dos lados da falsa polarização. É urgente escapar à armadilha do falso dilema para conceber uma via para a Amazônia na modernidade contemporânea.

Manter a floresta em pé interessa a todos que tenham um mínimo de sensatez e sensibilidade. O que está em jogo são os modos, as finalidades e, de modo mais direto, quem se beneficia com os dividendos de sua manutenção. A preservação da floresta como argumento pode servir a um variado conjunto de propósitos, inclusive a uma composição entre elementos aparentemente díspares, como instituições ambientalistas internacionais, grandes instituições financeiras e veículos de comunicação nacionais.

É possível preservar a floresta mantendo - a intocada, com utilização rudimentar de seu potencial, que pouco beneficia as comunidades tradicionais. Outro modo de mantê-la em pé é a abertura a novas oportunidades e interações, com o uso de artefatos que utilizem seu potencial sem destruí-la, encarando-a como fonte de afirmação da vida e distribuindo os lucros obtidos com a produção não predatória para muito mais gente.

Essa utilização produtiva não predatória em ampla escala só pode ocorrer com base no conhecimento científico, em tecnologias avançadas e na inovação. Já há condições para isso. A comunidade científica brasileira tem a convicção de que a contenção do desmatamento e o desenvolvimento da Amazônia só se farão mediante um modelo de desenvolvimento inovador capaz de utilizar e conservar a floresta e os recursos aquáticos ao mesmo tempo. Essa via da sensatez não se resume à floresta. É possível modernizar a produção em áreas desmatadas produzindo até quatro vezes mais em metade da área que hoje se ocupa.

É muito significativo nesse contexto que a Academia Brasileira de Ciências esteja organizando um grupo de pesquisadores dedicados a fornecer as condições para transformar conhecimento em ação, apoiando um novo modelo de desenvolvimento para regiões tropicais florestadas.

Enfim, a Amazônia é a esfinge a ser decifrada pelas políticas de desenvolvimento no Brasil, num empenho em que a ação do Estado democrático de Direito não pode ser ambígua - deve se exercer em consonância com o projeto nacional.

Ps: Este documento foi endossado por 20 pesquisadores da Rede Temática de Pesquisa em Modelagem Ambiental da Amazônia - Geoma.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/08

Da fé no mercado à fé no Estado. Um artigo de Ulrich Beck

Até mesmo os neoliberais mais radicais suplicam agora o intervencionismo do Estado na economia e mendigam as doações dos contribuintes. Em outros tempos, quando havia lucros, consideravam isso diabólico. Ulrich Beck é sociólogo e professor da Universidade de Munique e da London School of Economics. El País, 15-04-2008. A tradução é do Cepat.

Primeiro ato do livro A sociedade do risco global: Chernobil. Segundo ato: a ameaça da catástrofe climática. Terceiro ato: o 11-S. E no quarto ato se abre o telão: os riscos financeiros globais. Entram na cena os neoliberais do núcleo duro, aqueles que, diante do perigo se converteram de repente na fé no mercado à fé no Estado. Agora rezam, mendigam e suplicam para ganharem a misericórdia daquelas intervenções do Estado e das bilionárias doações dos contribuintes que, enquanto os lucros brotavam, consideravam obra do diabo. Que fantástica não seria essa comédia dos neoconvertidos, hoje interpretada no cenário mundial, se não houvesse o amargo desgosto da realidade. Porque não são os trabalhadores, nem os social-democratas ou os comunistas, nem os pobres ou os beneficiados com as ajudas sociais que reclamam a intervenção do Estado para salvar a economia de si mesma: são os chefes de bancos e os diretores da economia mundial.

Para começar, John Lipsky, um dos dirigentes do Fundo Monetário Internacional e reconhecido fundamentalista do livre mercado, exorta em claro tom alarmista os governos dos Estados-membros a fazerem exatamente o contrário do que esta instituição havia pregado até aqui, isto é, evitar a derrubada da economia mundial com programas de gastos massivos. Como é sabido, o otimismo é inerente ao mundo dos negócios. Quando inclusive ele fala que os políticos teriam que “pensar o impensável” e preparar-se para isso, fica claro a gravidade da situação.

O fantasma do “impensável”, que agora é uma ameaça em todas as partes, deve evidentemente despertar a memória das crises mundiais dos séculos passados, e salvar os bancos do abismo. Entra em cena Josef Ackermann, chefe do Deutsche Bank, que também confessa não acreditar mais nas forças salvadoras do mercado. Ao mesmo tempo, se retrata de sua abjuração e afirma que não tem dúvidas sobre a estabilidade do sistema financeiro. Isso soa tranqüilizador. Ou não? Se o distinguido economista fosse sincero, teria que admitir duas coisas: que a história desta crise é uma história do fracasso do mercado, e que em todas as partes reina o desconcerto, ou melhor, a brilhante ignorância.

O mercado fracassou porque os riscos incalculáveis do crédito imobiliário e de outros empréstimos foram ocultados intencionalmente, com a esperança de que sua diversificação e ocultação acabaria se reduzindo. Contudo, agora se demonstra que esta estratégia de minimização se transformou no oposto: numa estratégia de maximização e extensão de riscos cujo alcance é incalculável. De repente, o vírus do risco se encontra em todos os lugares, ou pelo menos, sua expectativa. Como num banho ácido, o medo dissolve a confiança, o que potencializa os riscos e provoca, numa reação em cadeia, um autobloqueio do sistema financeiro. Ninguém tem melhores certezas. Mas, agora se sabe em todas as partes que já não funciona sem o Estado.

Na realidade, o que significa risco? Não se deve confundir risco com catástrofe. Risco significa a antecipação da catástrofe. Os riscos prefiguram uma situação global, o que (ainda) não se dá. Ao passo que catástrofe tem lugar num espaço, num tempo e numa sociedade determinados, a antecipação da catástrofe não conhece nenhuma delimitação desta índole. Mas, ao mesmo tempo, pode-se converter naquilo que desencadeia a catástrofe, sempre no caso dos riscos financeiros globais.

É certo que os riscos e as crises econômicas são tão antigos quanto os próprios mercados. E, pelo menos desde a crise econômica mundial de 1929, sabemos que os colapsos financeiros podem derrubar sistemas políticos, como a República de Weimar, na Alemanha. Mas o que é mais surpreendente é que as instituições de Bretton-Woods, fundadas depois da Segunda Guerra Mundial, que foram pensadas como resposta política aos riscos econômicos globais (e cujo funcionamento foi uma das claves para que o Estado de bem-estar social fosse implantado na Europa), tenham sido dissolvidas sistematicamente a partir dos anos 70 e substituídas por sucessivas soluções ad hoc. A partir de então estamos confrontados com a situação paradoxal de que os mercados estão mais liberalizados e globalizados que antes, mas as instituições globais, que controlam sua atuação, têm que aceitar drásticas perdas de poder.

Como foi demonstrado com a “crise asiática”, além da “crise russa” e da “crise argentina”, e agora também com os primeiros sintomas da “crise americana”, as maiores vítimas das catástrofes financeiras são as classes médias. Ondas de falências e de desemprego sacudiram estas regiões. Os investidores ocidentais e os comentaristas em geral observam as “crises financeiras” somente sob a perspectiva das possíveis ameaças para os mercados financeiros. Mas as crises globais não podem “se enquadrar” dentro do subsistema econômico, assim como as crises ecológicas globais, já que tendem antes a gerar convulsões sociais e a desencadear riscos ou colapsos políticos. Uma reação em cadeia destas características durante a “crise asiática” desestabilizou Estados inteiros, ao mesmo tempo em que provocou ações violentas contra minorais convertidas em cabeças de turco.

E o que até pouco tempo atrás ainda era impensável se perfila agora como uma possibilidade real: a lei de ferro da globalização do livre mercado ameaça desintegrar-se, e sua ideologia entrar em colapso. Em todo o mundo, não só na América do Sul, mas também no mundo árabe e cada vez mais na Europa e inclusive na América do Norte, os políticos dão passos contra a globalização. Redescobriu-se o protecionismo. Alguns reclamam novas instituições supranacionais para controlar os fluxos financeiros globais, ao passo que outros advogam por sistemas de seguro supranacionais ou por uma renovação das instituições e regimes internacionais. A conseqüência é que a era da ideologia do livre mercado é apenas uma lembrança longínqua e que o seu contrário se fez realidade: a politização da economia global de livre mercado.

Existem surpreendentes paralelismos entre a catástrofe nuclear de Chernobyl, a crise financeira asiática e a ameaça de colapso da economia financeira. Diante dos riscos globais, os métodos tradicionais de controle e contenção mostram-se ineficazes. E ao mesmo tempo, se põe de manifesto o potencial destrutivo nos âmbitos social e político dos riscos que o mercado global entranha. Milhões de desempregados e pobres não podem ser compensados financeiramente. Caem governos e há ameaças de guerra civil. Quando os riscos são percebidos, a questão da responsabilidade adquire relevância pública.

Muitos problemas, como, por exemplo, a regulação do mercado de divisas, assim como o enfrentamento dos riscos ecológicos, não podem ser resolvidos sem uma ação coletiva da qual participem muitos países e grupos. Nem a mais liberal de todas as economias funciona sem coordenadas macroeconômicas.

As elites econômicas nacionais e globais (os donos dos bancos, os ministros de finanças, os diretores das grandes empresas e as organizações econômicas mundiais) não deveriam se surpreender com o fato de que a opinião pública reaja com uma mistura de cólera, incompreensão e malícia. Mas o convencimento certeiro de que, numa crise, o Estado acabará por salvá-los, permite aos bancos e às empresas financeiras fazer negócios em tempos de bonança sem muita consciência dos riscos.

Não tem nada a ver com inveja social lembrar que os banqueiros bem-sucedidos ganham somas milionárias por ano, e os bem-sucedidos chefes de empresas de capital de risco e dos fundos especulativos ainda mais. Nos tempos atuais, os banqueiros atuam como os advogados defensores do livre comércio. Se o castelo de cartas da especulação ameaça cair, os bancos centrais e os contribuintes devem salvá-lo. Ao Estado só lhe resta fazer pelo interesse comum o que sempre lhe reprovaram aqueles que agora o reclamam: pôr fim ao fracasso do mercado mediante uma regulação supranacional.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/08

BNDES vai emprestar R$ 1,330 bilhão a Carlos Jereissati e Sérgio Andrade

A reestruturação acionária da Telemar Participações, controladora da Oi, será bilionária e quase toda financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), acionista da empresa. Ontem, o banco confirmou apoio de R$ 2,569 bilhões à operação.

Pouco mais da metade (R$ 1,330 bilhão) custeará o aumento de participação da Andrade Gutierrez e da La Fonte (Carlos Jereissati). O BNDES, por sua vez, reduzirá sua participação atual de 25% para 16,89%.

"A reestruturação societária será decisiva para a prevista consolidação de duas operadoras, a Oi e a Brasil Telecom, que resultará na criação de um grupo com escala eficiente, estratégia empresarial alinhada, com capacidade de crescimento e porte para competir internacionalmente no setor de telecomunicações", afirmou, em nota, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho.

"Ademais, cria-se uma nova competidora com rede nacionalmente integrada em telefonia celular e em transmissão de dados, aumentando a concorrência no mercado brasileiro, em benefício dos consumidores e usuários."

O BNDES destacou que está apoiando o processo "na condição de sócio" e ressaltou que a operação conduzida pela empresa de participações do banco (BNDESPar) é "típica do processo de gestão de participações acionárias" de sua carteira. "Por ser operação de renda variável, não usaremos recursos do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), nem outras fontes de recursos institucionais no processo de mudança societária da Telemar. Portanto, esse apoio não vai comprometer a capacidade de crédito do BNDES para novos projetos em infra-estrutura e indústria. O objetivo da BNDESPar é fortalecer empresas brasileiras, sua capacidade de crescer, inovar e melhorar sua governança", enfatizou Coutinho.

O acordo de acionistas da nova companhia prevê que, sem o voto da BNDESPar, a empresa não poderá realizar operações que ponham em risco a estabilidade do controle. O banco também manterá veto qualificado sobre matérias relevantes, como fusões, cisões e reestruturações societárias em geral.

Instituto Humanitas Unisinos - 26/04/08

'Política indigenista brasileira requer uma urgente a ampla revisão', defende Hélio Jaguaribe

“A política indigenista brasileira requer uma urgente a ampla revisão. Desde logo, independentemente da nova orientação que se lhe dê, é preciso estabelecer uma faixa que acompanhe as fronteiras do Brasil com outros países e dela excluir as reservas indígenas. Em termos mais amplos, importa questionar: que objetivos deve ter tal política, ademais da proteção do índio?” A opinião é de Hélio Jaguaribe, sociólogo, é decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (RJ), membro da Academia Brasileira de Letras, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 26-04-2008. Segundo ele, "a política de reservas vem sendo aplicada sem levar em conta os imperativos de defesa nacional, o que ocorre nos diversos casos em que elas se estendem até nossas fronteiras com países vizinhos. As autoridades militares têm alertado o governo, com toda a razão, sobre o perigo da prática".

Eis o artigo.

Todos os países americanos se confrontaram com a questão indígena. É indiscutível que em todos eles a relação entre europeus colonizadores e a população nativa foi originariamente conflituosa. Esse conflito conduziu ao extermínio das populações costeiras (Brasil), levando os nativos a se refugiarem no interior remoto de cada um desses países.

É a partir sobretudo do século XIX que se diferenciam a conduta dos europeus e a de seus descendentes nas Américas. Nos EUA, a opção da população branca foi o extermínio dos nativos: "a good indian is a dead indian".

O Brasil não teve política indigenista até o início do século XX. O índio foi romantizado por José de Alencar e outros. Mas a conduta real, por parte dos que se adentraram pelo Oeste, foi de espoliação das terras indígenas, com violenta expulsão dos nativos.

A política indigenista no Brasil não foi, originariamente, formulada pelo governo federal, e sim por esse grande pioneiro que foi o general Rondon.

Encarregada da extensão das linhas telegráficas até Cuiabá, a Missão Rondon, como foi designada, se defrontou com as populações indígenas do interior do país. A política adotada por Rondon foi a de total respeito aos índios, reconhecidos como legítimos proprietários das terras.

Meu saudoso pai, general Francisco Jaguaribe de Mattos, então jovem capitão, foi o geógrafo e cartógrafo da missão. Dele tenho narrativas diretas de como se procedia então. Seus membros, nos freqüentes encontros com os índios, os abordavam pacificamente, incorporando os que desejassem. O lema de Rondon era: "Morrer se necessário, matar, nunca".

A política indigenista de Rondon partia do suposto de que o índio era o brasileiro nativo, que devia ser tratado respeitosamente pelos civilizados e induzido, pacificamente, a se incorporar à cidadania, recebendo conveniente educação e assistência.

A República manteve a política indigenista de Rondon. De acordo com suas idéias (ele mesmo tendo ascendência indígena), estimava-se que, gradualmente, a total população indígena, ora da ordem de 700 mil entre 190 milhões de habitantes, seria incorporada à cidadania brasileira.

Em anos mais recentes, a política indigenista brasileira passou a ser orientada por etnólogos. Estes, diversamente de Rondon, não intentavam a pacífica incorporação do índio, mas a preservação das culturas indígenas. Para isso, adotou-se a prática da delimitação de amplas áreas nos sítios povoados por índios, como reservas.

A política de reservas vem sendo aplicada sem levar em conta os imperativos de defesa nacional, o que ocorre nos diversos casos em que elas se estendem até nossas fronteiras com países vizinhos. As autoridades militares têm alertado o governo, com toda a razão, sobre o perigo da prática.

Por essas e outras razões, a política indigenista brasileira requer uma urgente a ampla revisão. Desde logo, independentemente da nova orientação que se lhe dê, é preciso estabelecer uma faixa que acompanhe as fronteiras do Brasil com outros países e dela excluir as reservas indígenas. Em termos mais amplos, importa questionar: que objetivos deve ter tal política, ademais da proteção do índio?

Por outro lado, a perpetuação de culturas nativas, em que se fundamenta, no Brasil, a política de reservas, carece de sentido. Em termos antropológicos, pois é impossível sustar o processo civilizatório. As populações civilizadas do mundo são descendentes de populações tribais, que seguiram, em todos os países, o secular caminho que leva paleolíticos a se transformarem em neolíticos e estes, em civilizados.

Criar um "jardim antropológico", à semelhança de um jardim zoológico, é uma insensatez. Cabe ao governo federal zelar pela unidade do país, e não contribuir para autonomizar supostas nações indígenas que, no limite do caso, poderiam apelar para a ONU para lhes salvaguardar a independência e ser objeto de penetração estrangeira.

A nossa política indigenista não pode ter outro objetivo senão o da incorporação pacífica do índio à cidadania brasileira, para tal lhe dando toda a assistência requerida: sanitária, educacional e profissional.