"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sexta-feira, novembro 30, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 30/11/07

‘Se o Brasil tiver de escolher entre ambientalismo e desenvolvimento, escolherá desenvolvimento’

O ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Roberto Mangabeira Unger, defendeu ontem que se encontre “um modelo de desenvolvimento na Amazônia que nos permita crescer sem depredar a natureza”. Mas avisou que, “se o Brasil tiver de escolher entre ambientalismo e desenvolvimento, escolherá desenvolvimento, e qualquer País faria essa escolha”. O ministro classificou a Amazônia como “um grande e privilegiado laboratório para esse experimento nacional”. A reportagem é do jornal O Estado de S. Paulo, 30-11-2007.

Mangabeira falou sobre sua idéia de futuro da Amazônia no programa semanal de rádio Bom Dia, Ministro. “Há duas idéias inaceitáveis a respeito do futuro da Amazônia que predominam no País hoje: uma delas é que a Amazônia deve virar um parque para benefício e deleite da humanidade, e outra que deve ser aberta às forças inexoráveis de uma produção predatória e ser desmatada para dar lugar à soja e à pecuária”, disse.

“Precisamos de um grande projeto de zoneamento econômico e ecológico que tenha como pressuposto a construção de estratégias econômicas distintas para diferentes partes da Amazônia”, declarou o ministro, afirmando que é preciso “ter uma estratégia para a Amazônia já desmatada e outra para a que não foi desmatada”. Para o ministro, é preciso “organizar o manejo controlável e sustentável que assegure que a floresta em pé vale (sic) mais do que a floresta derrubada”.

Depois de lembrar que a Amazônia representa um terço do território brasileiro, ele disse que “há um descompasso perigoso entre o fervor do ambientalismo e o relativo centrismo das idéias econômicas”. Foi a primeira participação do ministro no programa, onde foi entrevistado por jornalistas de todo o País.

Instituto Humanitas Unisinos - 30/11/07

O neonazismo na sociedade contemporânea. Entrevista especial com Adriana Abreu Magalhães Dias

Há cerca de três anos, Adriana Abreu Magalhães Dias fazia uma matéria sobre a identidade judaica e descobriu uma série de grupos neonazistas atuando através da internet. A partir disso, ela começou a mapear os sites reducionistas. Primeiramente, encontrou 8 mil sites com sinais neonazistas, proferindo um discurso preconceituoso. A intenção era, neste momento, convencer mulheres e jovens de que existia uma raça superior, denominada pela natureza como aquela que deveria dominar o mundo: a ariana. “Hoje, são mais de 12 600 sites” que trazem neonazistas, contou Adriana na entrevista que segue, concedida com exclusividade, por telefone, à IHU On-Line.

Adriana fala sobre o tema da sua dissertação, intitulada “Os anacronautas do teutonismo virtual: uma etnografia do neonazismo na Internet”. Assim, nos conta sobre a forma com que esses grupos vêm atuando, atualmente, na internet e como propaga seus discursos. Ela exemplifica alguns dos símbolos utilizados nesses espaços como forma de subliminar as mensagens racistas. Ao final da entrevista, Adriana reflete sobre que tipo de políticas públicas poderiam ser feitas para combater a disseminação das idéias neonazistas.

Adriana Abreu Magalhães Dias graduou-se em Ciências Sociais, pela Unicamp, onde também realizou seu mestrado, na área de Antropologia Social. Atualmente, trabalho no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma, atualmente, os grupos neonazistas vêm atuando na internet?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Em 2002, quando eu comecei a pesquisa, eu fazia uma matéria a respeito da identidade judaica na Unicamp. Então, nós entramos em contato com movimentos do reducionismo histórico, que tenta negar a validade histórica do Holocausto, dos números de vítimas dos campos de extermínio. Pesquisando isso, eu descobri que na internet esse movimento se associa intimamente ao racismo e ao neonazismo. A partir daí, comecei o mapeamento dos sites. Eu localizei, num primeiro momento, 8 mil sites. Hoje, são mais de 12 600 sites. Desses primeiros, eu selecionei 500, que são os maiores, e dentre eles selecionei 40 que mais disponibilizam material multimídia, desde revistas para colorir com a história da raça ariana até filmes, com downloads, livros e apostilas de como se tornar neonazista. Eram os mais acessados, os que tinham mais links para outros sites, que, por sua vez, recebiam ainda mais links de outros sites. Esses 40 que eu etnografei são os grandes líderes do movimento neonazista na rede.

IHU On-Line – Que tipo de discurso é utilizado por esses grupos?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Eles utilizam um discurso marcado por uma essencialidade, bastante classificatório. Eles partem do pressuposto de que haveria raças humanas, não raça humana. Eles constroem um discurso, uma classificação racial. Auto-determinam-se puros e determinam os outros como mestiços, negros e judeus. Esses dois últimos são os inimigos. Nessa construção discursiva, estabelecem uma relação hierárquica, como se fossem os escolhidos pela natureza para dominar o mundo, para civilizar as raças, contê-las, dominá-las e organizá-las. Além disso, se consideram escolhidos para desenvolver um processo civilizatório que implicaria na dominação do branco sobre o negro e o judeu e do homem sobre a mulher. Por isso, o discurso é profundamente marcado também por um androcentrismo. Para eles, o sangue alemão faz do homem um herói e da mulher uma mãe ariana. Trata-se de um discurso muito violento, demarcado por muito ódio. Na maneira polissêmica como eles constroem as identidades, percebemos um emocional que tenta justificar racionalmente um preconceito, mas que não dá conta dessa justificativa.

IHU On-Line – Quais são os sinais peculiares que identificam esses sites?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Eu acho que é importante salientar que os sites se utilizam basicamente de mitos, de símbolos e de siglas. Isso aproxima muito a linguagem deles à linguagem nazista. Viktor Klemperer (1), que é um pesquisador lingüístico, escreveu o LTI, que é um livro que fala da linguagem totalitário do III Reich. Pode-se perceber muito a presença dessas siglas nos sites. Então, eles utilizam War, que significa White Aryan Resistence, ou seja, a resistência ariana branca. Ao mesmo tempo, utilizam certos símbolos de forma muito freqüente: a suástica, o mito de Tor, símbolos vikings (2). Esses elementos ajudam a identificar a presença neonazista. Eles mostram, ao mesmo tempo, também siglas. Por exemplo: 1488. 88 se refere à duplicidade da letra H, que é a oitava letra do alfabeto e é uma forma de dizer "Hi Hitler" em número; e o 14 é uma forma de referendar um texto, para eles, bastante sagrado, que é “Nós devemos assegurar a existência de nosso povo e o futuro das crianças brancas”. Então, é bom identificar esses elementos na internet. Se seu filho está acessando algum material que tem o 1488, é bom ficar alerta. São sinais e pistas para identificar de onde o discurso está vindo.

IHU On-Line – Como é a participação, além dessa etnografia nazista, de grupos religiosos?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Veja, o movimento neonazista, em geral, está vinculado a três grupos neopagãos, segundo os pesquisadores de Estocolmo: os odinistas, os wotenistas e os asatrú. Percebi que, dentro do movimento neonazista estadunidense, há uma presença muito forte do protestantismo e do que chamam de Igreja Ariana Unida do Cristo ariana. Então, na verdade, eu diria que o discurso é mais religioso. Trata-se de um discurso de vinculação com a natureza quase como uma missão. Agora, eu não poderia afirmar que todos eles pertencem a uma mesma religião, porque no próprio discurso do site eles dizem: “Nós somos cristãos, pagãos, ateus, odinistas, mas somos arianos”. O que une essas pessoas não é um discurso religioso, mas sim um discurso racial.

IHU On-Line – Você constatou que o Rio Grande do Sul e Santa Catarina são os estados em que os neonazistas mais se apresentam no Brasil. Como eles atuam nesses estados?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Eu imagino, pelas estatísticas das sociedades que pesquisam os crimes raciais, que haja cerca de 150 mil neonazistas no Brasil. Desses 150 mil, há o estado de Santa Catarina com cerca 45 mil simpatizantes, seguido de perto pelo Rio Grande do Sul e por São Paulo. Há grupos isolados de neonazistas em Brasília, no Rio de Janeiro, no Espírito Santo, em Minas Gerais, no Nordeste e no Paraná. No Brasil, é preciso deixar claro, o ativismo é organizado por células. Ele se dá em pequenos grupos, de dez a 15 pessoas, que lêem literatura em comum, dividem os episódios de raiva pública, fazem panfletagem em escolas, em pontos de comunicação e biblioteca. E, quando esses grupos são surpreendidos pelas autoridades, desconhecem vínculo com outros. Então, o ativismo por células no Brasil dificulta bastante a localização dos mesmos.

IHU On-Line – Quais são as principais diferenças na atuação em relação aos outros estados brasileiros?

Adriana Abreu Magalhães Dias – O que se pode perceber é que os neonazistas do Sul do país normalmente são vinculados ao movimento separatista. É muito comum o discurso do antigo Valhalla88 (3), que foi retirado do ar e de outros sites, como o nazisulinos, os nacionais sulinos.

IHU On-Line – Você denunciou vários dos sites que descobriu serem neonazistas e proferirem discursos preconceituosos. Você teme ou sofreu algum tipo de represália por essa atitude?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Algumas vezes, em listas de discussões onde eu me apresentava, não nos sites. Nos sites eu nunca me identifiquei. Mas, nas listas de discussões em que alguém me perguntava alguma coisa, eu, algumas vezes, fui vista como uma pessoa ingênua, que estava sendo enganada pelos judeus. E já recebi algumas ameaças por e-mail e por telefone, mas são detalhes que realmente não têm grande importância. Como eu pesquiso o crime, claro, é sempre bom tomar cuidado. Por conta disso, deve-se tomar o cuidado de preservar algumas coisas.

IHU On-Line – Para você, quais são as melhores políticas para combater a disseminação das idéias neonazistas?

Adriana Abreu Magalhães Dias – Eu acho que precisa haver política pública para a internet. Não de repressão, porque eu acredito que a internet é um espaço de comunicação muito interessante. No entanto, precisamos maximizar os potenciais da internet e minimizar os riscos. Mas é preciso um espaço de educação na internet, um espaço de esclarecimento. Eu acho muito importante também que os pais fiquem atentos ao tipo de conteúdo a que seus filhos estão expostos. É preciso lembrar que o Orkut (4) e o Google (5) não são para menores de idade. Então, o pai ou a mãe que permitem que o filho adolescente tenha uma conta no Orkut está permitindo que ele tenha acesso a um material com o qual ele não teria condição de lidar. Acredito que seja preciso fazer uma parceria muito forte com a sociedade civil e com a mídia para tentar discutir as questões que esses sites levantam. Apostamos que se possa reafirmar a existência de uma só raça humana e de uma dignidade que se refira a todos. Trata-se, sem dúvida, de uma luta dos direitos civis, que nos acompanha há alguns séculos e que deveríamos fazer todo o possível para, ao menos, manter no ar.

Notas:
(1) Viktor Klemperer nasceu na Alemanha. Foi professor universitário de filologia românica na Universidade de Dresden até que foi demitido de suas funções em 1935, dois anos depois da chegada ao poder de Hitler. Foi um dos poucos habitantes de Dresden de origem judaica que sobreviveram ao Holocausto sem terem fugido para a Palestina ou para os Estados Unidos. Klemperer tornou-se famoso pelo diário que ele manteve relatando a sua vida em Dresden nos anos do nazismo, um período crítico da história da Alemanha. Trata-se de um documento histórico de grande valor, no qual podemos hoje ler detalhadamente as chicanas, os insultos, as cuspidelas na cara, as proibições, a prisão, o roubo da sua propriedade e outras humilhações que as autoridades nazis e a grande massa dos seus compatriotas "arianos" lhe infligiram pessoalmente todos os dias. Victor Klemperer nem sequer era judeu; era protestante. Mas seus pais eram judeus, desde logo o suficiente para que tivesse que usar a estrela de David ao peito. Em 1945, quando Dresden é bombardeada, Klemperer aproveita-se do caos nas ruas e desfaz-se da sua estrela de David, fazendo-se passar por "ariano". Foi a sua salvação.

(2) Os vikings eram guerreiros-marinheiros da Escandinávia que, entre o final do século VIII e o século XI, pilharam, invadiram e colonizaram as costas da Escandinávia, Europa e ilhas Britânicas. Embora sejam conhecidos principalmente como um povo de terror e destruição, eles também fundaram povoados e fizeram comércio pacificamente.

(3) Grupo nazista que atua através da internet desde 2001. É considerado o maior site nazista da América Latina.

(4) O Orkut é uma rede social filiada ao Google, criada em 19 de Janeiro de 2004 com o objetivo de ajudar seus membros a criar novas amizades e manter relacionamentos. Seu nome é originado no projetista chefe, Orkut Büyükkokten.

(5) Google Inc. é o nome da empresa que criou e mantém o maior site de busca da internet, o Google Search. O serviço foi criado a partir de um projeto de doutorado dos então estudantes Larry Page e Sergey Brin da Universidade de Stanford em 1996. Este projeto, chamado de Backrub, surgiu devido à frustração dos seus criadores com os sites de busca da época e teve por objetivo construir um site de busca mais avançado, rápido e com maior qualidade de links.

quinta-feira, novembro 29, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 29/11/07

Economia feita até outubro para pagar juros da dívida já supera a meta anual

O resultado primário do governo central (Tesouro Nacional, Previdência e Banco Central) até outubro já superou a meta para todo o ano. A reportagem é de Juliana Rocha e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 29-11-2007.

De janeiro a outubro, a economia para pagar os juros da dívida foi de R$ 61,6 bilhões, equivalente a 3% do PIB (Produto Interno Bruto), sendo que a meta era de R$ 53 bilhões. Só no mês passado, o superávit primário foi de R$ 10 bilhões.

O governo federal não teve a mesma eficiência no cumprimento da meta de investimentos para este ano. Os gastos com o PPI (Projeto Piloto de Investimento), voltados principalmente para infra-estrutura em rodovias e ferrovias, por exemplo, somaram R$ 3,1 bilhões no ano.

O governo teria disponível para gastar R$ 11,3 bilhões com o PPI, valor que não tem impacto nas contas públicas.

O secretário do Tesouro, Arno Augustin, tentou justificar o baixo volume de investimentos feitos pelo PPI citando outra estatística. Ele apontou que os investimentos totais do governo no ano somam R$ 14,2 bilhões, 28% superiores ao volume investido de janeiro a outubro do ano passado, de R$ 11,1 bilhões. Esses valores já incluem o PPI. "Há uma aceleração dos investimentos, que se verifica desde o início do ano e é consistente", insistiu Augustin.

José Cezar Castanhar, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), diz que o governo passou quase uma década com alto superávit primário para pagar juros e sem realizar investimentos. Agora, o governo federal sofre com o que ele chama de déficit gerencial.

O superávit primário do governo em outubro, de R$ 10 bilhões, foi significativamente maior que o do mês anterior, de R$ 38,7 milhões.

Augustin lembrou que em setembro o governo federal pagou a primeira parcela do 13º salário deste ano aos aposentados e pensionistas, o que fez aumentar o déficit da Previdência Social e, em conseqüência, o resultado primário.

O governo central teve receita de R$ 54,6 bilhões no mês passado e de R$ 499,1 bilhões no ano, alta de 12,6% se comparada com a receita de janeiro a outubro de 2006.

Apesar do aumento de arrecadação no período, os gastos também aumentaram 12,4%. No acumulado do ano, as despesas do governo central somam R$ 352,9 bilhões. Só no mês passado, o governo central gastou R$ 36,5 bilhões.

Instituto Humanitas Unisinos - 29/11/07

Investimento estrangeiro bate recorde

Impulsionado pela onda de fusões e aquisições que se intensifica no mercado internacional, o volume de investimento estrangeiro direto recebido pelo Brasil neste ano é o maior já registrado pelas estatísticas do Banco Central, superando até os valores observados na década de 1990, período em que as privatizações puxavam esses números para cima. A reportagem é de Ney Hayashi da Cruz e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 29-11-2007. A notícia também é destaque no jornal O Estado de S. Paulo, 29-11-2007.

Até ontem, o fluxo de investimentos em 2007 estava em US$ 33,4 bilhões, o dobro do observado no mesmo período de 2006. Segundo o BC, os investimentos externos podem passar de US$ 35 bilhões até dezembro.

Até agora, o maior ingresso de investimentos estrangeiros no Brasil havia ocorrido em 2000, quando o país recebeu US$ 32,8 bilhões de empresas sediadas no exterior. Desse total, US$ 7 bilhões vieram de privatizações como a do Banespa, que rendeu cerca de US$ 3,7 bilhões para o governo.

Desta vez, o resultado é influenciado por fusões de grandes grupos empresariais que acontecem em outros países e afetam filiais instaladas no Brasil. Um dos exemplos é a união da européia Arcelor com a indiana Mittal Steel, que resultou na criação da maior siderúrgica do mundo, a ArcelorMittal. A nova companhia adquiriu todo o controle da filial brasileira da Arcelor, o que significou o ingresso de cerca de US$ 5 bilhões no país.

Mesmo considerando a influência que essas grandes operações têm nas estatísticas, o chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, afirma que a maior entrada de investimentos também reflete uma maior confiança das multinacionais na economia brasileira.

"Existe também uma série de operações de menor valor, e elas não estão concentradas em um setor específico, estão bastante disseminadas em vários segmentos."

As empresas de metalurgia, mineração e bancos foram as que mais receberam investimentos neste ano. O setor de serviços ficou com 45,6% dos recursos que entraram no país entre janeiro e outubro; a indústria recebeu 39,7%, e o restante foi para agropecuária e extrativismo mineral.

Mesmo com os bons resultados deste ano, há dúvidas sobre a continuidade desses ingressos bilionários de capital externo no longo prazo. Para o economista Fabio Kanczuk, professor da USP (Universidade de São Paulo), as empresas que investem no Brasil apostando num crescimento de 4% ou 5% da economia nos próximos anos podem se frustrar.

"Nada de bom aconteceu aqui para justificar todo esse otimismo", afirma.

Para ele, medidas como reduções de impostos são necessárias para sustentar a expansão da economia. Sem essas iniciativas, diz o economista, o crescimento de longo prazo não ficará muito acima dos 3% ao ano. "O lado fiscal está virando uma avacalhação. Cortes de gastos [públicos] e de carga tributária sumiram da agenda do governo."

Confiança

Já o economista Caio Megale, sócio da Mauá Investimentos, diz que a confiança das empresas estrangeiras deve manter elevados investimentos no país, ainda que o resultado recorde de 2007 não deva se repetir nos próximos anos.

"As pessoas estão mais seguras em investir no Brasil. Um crescimento menor da economia mundial pode frear um pouco esse movimento, mas, pensando num horizonte mais longo, acredito que [o investimento estrangeiro] possa se estabilizar numa faixa entre US$ 20 bilhões e US$ 35 bilhões [ao ano]", afirma.

Instituto Humanitas Unisinos - 28/11/07

85% da humanidade não pode pagar seus remédios

Um antibiótico, um remédio para combater parasitas ou um antifebril são um luxo para grande parte da população mundial. Num planeta onde dois bilhões de pessoas vivem com menos de 1,5 euros por dia, 85% dos habitantes da Terra não podem pagar os medicamentos que necessita.

A denúncia foi feita ontem pela ONG Intermón Oxfam, num texto que analisa alguns casos. A notícia é do jornal El País, 28-11-2007.

Mas mais que denunciar os laboratórios por não baixarem os preços, a organização mundial sublinha que estão perdendo uma possibilidade de negócios. Deixar 85% do mercado potencial fora pode ser pior economicamente do que vender caro aos 15% restantes.

O desinteresse dos laboratórios para com este mercado se manifesta igualmente na pesquisa em produtos para os países tropicais. De 163 moléculas aprovadas entre 1999 e 2004, somente três eram para as chamadas doenças tropicais.

Instituto Humanitas Unisinos - 28/11/07

Empregados da Nike no Vietnã fazem greve por melhores condições

Mais de 10 il trabalhadores de uma fábrica da multinacional americana Nike no sul do Vietnã entraram em greve para exigir melhores condições e maiores porções de comida, informou nesta quarta-feira uma fonte sindical. A notícia é do Jornal do Brasil, 28-11-2007.

Os empregados da fábrica TaeKwang Vina, 60 quilômetros ao sul de Cidade Ho Chi Minh (antiga Saigon), começaram a greve ontem ao meio-dia e continuam sem trabalhar, segundo Kieu Minh Sinh, porta-voz do sindicato.

- Estamos conversando com os trabalhadores e os chefes da empresa para buscar a causa real da greve e tentar encontrar uma solução - explicou Sinh.

Os grevistas apresentaram uma série de reivindicações, que incluem um período maior de dispensa por razões médicas, férias remuneradas e alimentos de maior qualidade na cantina, segundo o jornal 'Tuoi Tre'.

A fábrica foi criada em 1994 com um investimento inicial de US$ 38 milhões e emprega 14 mil pessoas, que produzem exclusivamente calçados esportivos para a Nike.

O setor é o terceira mais importante do país em volume de exportações, atrás do petróleo e da indústria têxtil. O Vietnã obteve, nos 10 primeiros meses de 2007, US$ 3,2 bilhões com exportações de calçados.

terça-feira, novembro 27, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 27/11/07

Um aerotrem ecológico japonês de alta velocidade

Um trem que se desloca a 10 centímetros do solo propulsado unicamente por energia renovável produzida na própria via ferroviária é a chamativa proposta de um grupo de cientistas japoneses para reduzir as emissões de CO2 no transporte de alta velocidade. O protótipo já existe e funciona. Tem o aspecto de um avião planador de 400 quilos que voa a 150 quilômetros por hora, até o momento sem passageiros. A reportagem é de Hugo Cerdá e está publicada no El País, 7-11-2007. A tradução é do Cepat.

Se as fontes renováveis de energia não ofereceram ainda uma alternativa forte aos combustíveis fósseis no transporte foi, entre outras coisas, por seu escasso rendimento. Mas e se se conseguisse reduzir a demanda energética necessária para levar um objeto de um lugar a outro? Essa é a pergunta que os pesquisadores do Instituto de Ciências de Fluidos da Universidade Tohoku, em Sendai, se fizeram.

"Se minimizarmos a resistência aerodinâmica total do veículo drasticamente, as energias naturais, como a solar ou a eólica, que atualmente se consideram impraticáveis por sua baixa densidade energética e sua natureza cambiante, poderiam passar a ser utilizáveis", explicou a El País Yasuaki Kohama, principal responsável do projeto. "Se pudéssemos suspender o veículo de algum modo, eliminaríamos a perda de energia por fricção com o solo". O Maglev, o trem magnético, já o consegue. Viaja suspenso no ar a mais de 580 quilômetros por hora, mas às custas de grandes quantidades de energia para criar campos magnéticos necessários.

"O que nós fizemos é manter elevado o trem por simples aerodinâmica, aproveitando o já conhecido efeito solo", assinalou Kohama. Trata-se do mesmo princípio que mantém pegados ao solo os bólidos da Fórmula 1, mas usado em sentido inverso, ou seja, para fazer flutuar um objeto. Consiste em criar uma zona de baixa pressão acima do veículo e outra de alta pressão por baixo dele. Quando o trem está perto do solo e em movimento para frente, parte do ar circula por baixo do veículo, criando uma pressão superior à do ar que circula por cima do veículo. Desta maneira se produz a sustentação requerida para manter o aerotrem separado do solo em todo momento. Uma vez que levita, o trem se move graças a ventiladores com a energia obtida de painéis fotovoltaicos e moinhos de vento instalados na própria via pela qual circula.

Para o catedrático de Engenharia Aeroespacial da Universidade Politécnica de Valência (UPV) Ricardo Martínez-Botas, a idéia é atrativa. "Independentemente de se a energia provém de instalações na própria via ou se é comprado no mercado de renováveis, o fato de propor um veículo que utiliza o efeito solo para eliminar a resistência por contato com o solo é muito interessante, pois supõe uma considerável economia de energia", explica.

Andrés Tiseira, engenheiro aeronáutico na UPV, assinala que o aerotrem poderia atingir altas velocidades no futuro. "existem experiências como o ekranoplano criado pelos soviéticos durante a guerra fria: uma grande aeronave de várias centenas de toneladas capaz de carregar tropas e tanques e transporta-los a uma velocidade de até 400 quilômetros por hora suspenso a um metro da água, minimizando o consumo de combustível", assinala.

Instituto Humanitas Unisinos - 27/11/07

A presença do negro no Rio Grande do Sul ontem e hoje. Entrevista especial com Mário Maestri

Na última semana, comemorou-se mais uma vez o Dia do Quilombo. No entanto, reflexões acerca da presença do negro nas lutas do País muitas vezes são ignoradas. Os negros tiveram uma importância significativa em batalhas e muitas vezes são esquecidos, como se não merecessem o título de honra que muitos brancos receberam. A IHU On-Line conversou com o professor Mário Maestri sobre as lutas que os homens negros tiveram principalmente no Rio Grande do Sul. “Desde antes da fundação oficial da capitania, a construção do Rio Grande luso-brasileiro apoiou-se no trabalhador africano e afrodescendente escravizado, permanentemente expropriado de sua liberdade civil e, apenas em maior ou menor grau, das riquezas que produzia”, contou-nos nesta entrevista, realizada por e-mail. Nela, Maestri também falou sobre as lutas dos "lanceiros negros" e sobre a atual situação dos negros no Estado.

Mário Maestri é historiador pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Nesta mesma universidade obteve mestrado e doutorado em Ciências Históricas e onde também obteve o título de pós-doutor. É professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Também é autor de diversos livros sobre a escravidão brasileira e rio-grandense, entre os quais destacamos O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e sociedade (3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância da presença do negro nas lutas do Rio Grande do Sul, como a Revolução Farroupilha, para a formação da identidade do gaúcho?

Mário Maestri - Desde antes da fundação oficial da capitania, a construção do Rio Grande luso-brasileiro apoiou-se no trabalhador africano e afrodescendente escravizado, permanentemente expropriado de sua liberdade civil e, apenas em maior ou menor grau, das riquezas que produzia. Não há hoje dúvidas de que o Rio Grande Sul constituiu formação social escravista, sociedade dominada, sobretudo por diversas formas de exploração do trabalho escravizado, até anos antes da Abolição.

Durante esse longo período, as classes proprietárias sulinas esforçaram-se permanentemente para submeter a população trabalhadora escravizada que, por sua vez, manteve, em condições extremamente adversas, ininterrupta oposição à escravização, expressas em conspirações, em fugas, em aquilombamento, em uma surda e onipresente oposição ao trabalho feitorizado, apresentada comumente como acomodação à escravidão pela historiografia apologética.

Não raro, os próprios cativos foram utilizados na submissão da população escravizada, como feitores, supervisores, capitães-do-mato etc. Também no Sul cativos foram libertos e armados para defender os interesses dos escravizadores, quando dos ataques castelhanos à Colônia do Sacramento, na perseguição de quilombolas, na Guerra Farroupilha, etc. Nesses casos, lutavam contra seus interesses históricos, em defesa da ordem escravista.

Os grandes proprietários sulinos do passado – alguns poucos deles negros – indignariam-se com a mera sugestão de que possuíssem algo em comum com seus trabalhadores escravizados, fosse uma nacionalidade ou uma identidade regional. Na época e por muito tempo, rio-grandense era designativo pátrio quase restrito ao homem livre rico, branco, pardo ou negro.

Uma mesma identidade gaúcha reunindo toda a população sulina é construção ideológico-apologético que procura negar as profundas diversidades e contradições sociais no passado e no presente, através da apresentação da história e dos valores dos exploradores sulinos como a história e os valores de todos os rio-grandenses.

IHU On-Line - O senhor pode contextualizar as lutas das quais participaram os “lanceiros negros”?

Mário Maestri - Suas batalhas, vitórias, derrotas... Primeiro, seria importante lembrar quem eram os “lanceiro negros”. Em geral, as tropas farroupilhas eram constituídas pelos peões dos grandes fazendeiros que voltavam comumente aos seus afazeres, após os combates, já que os rodeios deviam ser feitos para que os gados fossem marcados, apartados, vendidos. A República necessitava de tropas permanentes e, sobretudo, de lanceiros, isto é, de combatentes que lutavam a pé, armados com longas lanças, arma fundamental contras as cargas da cavalaria, utilizada comumente pelos imperiais. O rio-grandense pobre, o gaúcho e o índio negavam-se a lutar a pé. Os destacamentos de lanceiros farrapos foram constituídos necessariamente por cativos alforriados.

Em um sentido histórico, os lanceiros negros lutaram sempre contra seus interesses, ao defenderem uma república escravista. Não tiveram, portanto, jamais uma só vitória. Pateticamente, lutaram também contra seus interesses pessoais, já que os que não morreram combatendo foram desarmados, para serem massacrados, por seu chefe supremo, quando da traição do Serro dos Porongos, na madrugada de 14 de novembro de 1844, e, a seguir, entregues aos imperiais para seguirem para a Corte, onde jamais conheceram a liberdade prometida.

Mais certos estiveram os milhares de cativos que, seguindo o princípio das classes subalternizadas de que “Deus é grande, mas o mato é maior”, aproveitaram o entrevero dos proprietários para escafederem-se, aquilombando-se no Rio Grande do Sul e fugindo para o Uruguai e a Argentina. Ao contrário dos cativos que se mantiveram sem desertar nas tropas farroupilhas, eles conheceram a liberdade e melhores condições de existência, legando-as aos seus eventuais descendentes.

IHU On-Line - Por que a historiografia não faz referências, especificamente, a quilombos no Rio Grande do Sul?

Mário Maestri - A construção das identidades é batalha político-ideológico permanente entre o mundo do capital, dominante, e o mundo do trabalho, dominado. Como assinalado, as classes proprietárias sulinas de origem luso-brasileira apresentaram tradicionalmente sua história como se fosse a de toda a população sulina. Para tal, inicialmente, promoveram verdadeira limpeza étnico-social do passado, negando a importância do trabalho escravizado no Sul, em geral, e na produção pastoril, em especial. Apresentada abusivamente como a luta de todo o povo rio-grandense contra o despotismo imperial, a Guerra Farroupilha é pedra angular dessa narrativa ideológica.

Reconhecer a violência que dominou o passado rio-grandense, registrada nos castigos bestiais, nas condições de existência, nas fugas, justiçamentos, autocídios, quilombos, revoltas e oposição do cativo ao trabalho escravizado, significava reconhecer que, também no Sul, a sociedade vivera embalada por violenta opressão de classes, ao igual do que ocorrera em outras regiões do Brasil.

Quando foi impossível manter o mito da inexistência ou quase da escravidão sulina, aplicou-se o programa já consolidado no centro do País, de matriz, sobretudo estadunidense, que substituiu a negação da escravidão por sua reabilitação, processo analisado por Jacob Gorender no germinal trabalho A escravidão reabilitada [São Paulo: Ática, 1990]. Sob o pretexto da “crise dos paradigmas” dos “grandes relatos” produzidos por “modelos explicativos” materialistas que “coisificariam” o cativo, e sob a proposta de transformá-lo em “protagonista ativo de sua vida”, deslocou-se o eixo explicativo da história da escravidão do trabalho-resistência para a negociação-acomodação, transformando-a em instituição contratual e consensual.

Nos fatos, essa historiografia, hoje hegemônica, modernizou e atualizou as justificativas e narrativas dos escravizadores sobre a instituição. Uma reabilitação da escravidão que se processa através da proposta da existência de famílias escravas estáveis, de amplas e substanciais concessões dos escravizadores aos cativos obtidas através de negociações, da reconstituição de histórias de famílias negras de sucesso, de uma escravidão onde o cativo vivia vida vivível se não muito boa etc. Atualmente, alguns historiadores já propõem que cativos defendiam a manutenção da escravidão, devido às vantagens que lhes outorgava.

É nesse contexto geral que se insere o processo de soldadura da fratura sofrida pela proposta de identidade farroupilha própria a todo rio-grandense, causada pela definição do caráter escravista dos farroupilhas, no que se refere não apenas à população rio-grandense com alguma afro-ascendência. Processo de recuperação ideológica da proposta de identidade social integrativa que se dá através da literal invenção da tradição, ou seja, da criação de um protagonismo glorioso para os “lanceiros negros” na Guerra Farroupilha, e do encobrimento do papel objetivo do cativo como trabalhador e de sua resistência.

IHU On-Line – E, hoje, qual é a sua opinião sobre a atual situação dos negros no Estado?

Mário Maestri - Hoje em dia, a importante população sulina com afro-ascendência significativa, ou seja, identificada pela população como negra, subdivide-se segundo as divisões sociais normais da sociedade nacional, com peso relativo fortemente determinado pelo handicap negativo deixado pela escravidão – laços familiares fracos; quase nula educação formal; ínfima acumulação de bens etc. Simplificando, aqui no Estado, temos uma muito pequena burguesia negra, uma já não desprezível, mas ainda frágil classe média negra e, finalmente, uma importante classe trabalhadora negra urbana e rural. Registre-se que a pesadíssima herança negativa deixada pela exploração escravista à população negra nega igualmente as construções historiográficas sobre escravidão feliz, com famílias escravizadas estáveis, ampla acumulação de bens pelos cativos etc.

Ainda que o Rio Grande do Sul seja uma das regiões proporcionalmente menos racistas do Brasil, todos esses setores sociais, sem exceção, são objetos do racismo anti-negro, logicamente em relação direta com sua afro-ascendência e subalternização social. Exemplificando: se um homem negro rico não escapa da possibilidade de ser eventualmente destratado por um policial, é muito difícil que um jovem trabalhador negro jamais tenha sido objeto de agressão racista por parte de um policial branco ou mesmo negro.

Nos últimos anos, sobretudo a classe média negra, no Brasil e no Rio Grande, tem se organizado e mobilizado, avançando com algum sucesso suas reivindicações setoriais, sem que os trabalhadores negros tenham conseguido impor igualmente suas reivindicações específicas, já que constituem fração muito frágil de classes trabalhadoras nacionais, nas últimas décadas, política, social e ideologicamente crescentemente debilitadas e igualmente incapazes de impor suas reivindicações gerais de classe.

IHU On-Line - Quem foi Bento Gonçalves, o grande chefe Farroupilha?

Mário Maestri - O desenvolvimento da economia charqueadora sulina, desde 1780, levou os grandes criadores rio-grandenses a estabelecerem fazendas pastoris no norte do rio Negro, no atual Uruguai, exploradas como no Rio Grande do Su, em boa parte com cativos, devido à carência e altos salários exigidos pelos trabalhadores livres, sobretudo gaúchos. A participação dos criadores sulinos nas guerras cisplatinas norteara-se pela vontade de controlar essas ricas regiões criatórias.

Sobretudo a derrota sofrida pelos criadores sulinos com a independência do Uruguai, em 1828; as tensões ensejadas pelo unitarismo monárquico-autoritário bragantino; as escassas concessões federativas regências levaram os criadores sulinos a sonharem com república pastoril, formada pelo Uruguai, Rio Grande do Sul e as províncias argentinas de Corrientes e Misiones.

Bento Gonçalves da Silva nasceu em Triunfo, em 1788, filho de família luso-descendente proprietária de muitas terras, gados e cativos. Desde jovem, participou com destaque nas intervenções luso-brasileiras no Prata e brasileira, sendo nomeado por seus destacados serviços ao Império por Pedro I comandante da fronteira meridional rio-grandense.

Devido à riqueza sua e de sua família e ao seu prestígio militar e político, foi o principal intérprete do projeto político de constituição de república pastoril no sul das Américas, implementado através da Guerra Farroupilha, que se desenvolveu de setembro de 1835, quando da ocupação de Porto Alegre, até a acolhida pelos republicanos da anistia oferecida pela Monarquia, em março de 1845.

Interpretando, sobretudo, os interesses dos grandes dos proprietários de terras e de cativos do meridião rio-grandense, o movimento farroupilha jamais prometeu a distribuição de terras ao gaúcho e peão pobres e a liberdade ao trabalhador escravizado, como fizera Artigas, derrotado na luta pela libertação do Uruguai. A República Rio-Grandense manteve sempre um caráter elitista, latifundiário e escravista, não se diferindo, nesse relativo, em nada do Império, como lembra o historiador Spencer Leitaman, em Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX [Rio de Janeiro: Graal, 1979]

O arrolamento de gaúchos, peões, nativos e libertos nas tropas farroupilhas deveu-se ao caráter demograficamente pouco significativo da população livre dos territórios sobretudo rurais controlados pelos republicanos e à pouca disposição do homem livre de lutar e morrer pela República. Libertar cativos e arrolá-los nos exércitos quando a necessidade exigia era velha tradição colonial, implementada quando da chamada Invasão Holandesa [1624-1654], através do Terço dos Henriques, que combateu igualmente a confederação dos Quilombos de Palmares.

O historiador Moacyr Flores, principal estudioso da Guerra Farroupilha, autor de Negros na Revolução Farroupilha: traição em Porongos e farsa em Ponche Verde [Porto Alegre: EST, 2004], é claro: "Os chefes de polícia dos distritos desabafavam que não podiam mais efetuar recrutamento, porque os homens livres fugiam para o lado legal; então Bento Gonçalves da Silva convidou os republicanos para subscreverem maior número de seus escravos no exército [...]".

Bento morreu em 1847, aos 58 anos, em Pedras Brancas [Guaíba], amargurado pela derrota sofrida, como grande proprietário de terras, gados e trabalhadores escravizados. Em seu inventário, estão arrolados mais de meia centena de trabalhadores escravizados, legados aos seus herdeiros, que jamais sonhou em alforriar, como empedernido escravista que sempre foi.*

segunda-feira, novembro 26, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 26/11/07

Urânio do Ceará deve começar a ser explorado

Escondida sob a vegetação seca e os mandacarus da caatinga do sertão do Ceará, a jazida de Itataia, maior reserva de urânio do país, está perto de começar a ser explorada, 31 anos depois de sua descoberta.
O que hoje é sós uma montanha cheia de pedras avermelhadas irá se transformar em combustível para produzir energia nuclear na futura usina de Angra 3, com construção prevista no PAC, e em outras usinas que venham a ser construídas. A reportagem é de Kamila Fernandes e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 26-11-2007.

A demora para iniciar sua exploração se deu porque o urânio de Itataia -localizado em um distrito distante da sede de Santa Quitéria (212 km de Fortaleza), uma área com grande índice de desertificação e miséria- está associado a outro minério, o fosfato, que não é objeto de interesse da estatal INB (Indústrias Nucleares do Brasil), detentora do monopólio de exploração do urânio no país.

Para ser viável, a extração do urânio só poderia ser feita se houvesse uma empresa privada que explorasse o fosfato (os dois produtos estão unidos).

Após anos de espera, o governo federal está viabilizando um sistema de parceria e, em dezembro, começa a negociar com três empresas - entre elas a Vale do Rio Doce - que demonstraram interesse em ficar com o fosfato, matéria-prima de ração animal ou adubo.

São 80 mil toneladas de urânio e 8 milhões de toneladas de fosfato na jazida. Outra grande reserva de urânio do país fica na Bahia e abastece as usinas Angra 1 e 2, no Rio.

Hoje, nada é explorado em Itataia. Na jazida, uma montanha com 296 perfurações e três galerias abandonadas, trabalham três homens, apenas para cuidar do lugar. Elias Dias Gomes, 46, está lá há 26 anos. Morador de uma comunidade próxima, Lagoa do Mato, ele mostra, ao longe, num chão de terra seca e abandonada, onde ficarão as duas plantas industriais que deverão ser instaladas, uma para o beneficiamento do urânio e a outra, do fosfato.

Mais além, segundo ele, passará uma ferrovia. Hoje, o acesso é por estrada de terra.

Segundo a INB, a exploração inicial deverá ser de 120 mil toneladas de fosfato e 800 toneladas de urânio ao ano, bem abaixo da capacidade do lugar. Mas, apenas com isso, já haverá ganhos de, pelo menos, US$ 180 milhões, com a tonelada de urânio avaliada em US$ 150 mil e a de ácido fosfórico, em US$ 500.

Para o prefeito de Santa Quitéria, Tomás Figueiredo (PSDB), outro fator que propicia, agora, a exploração da jazida de Itataia é que a energia nuclear deixou de ser o alvo principal dos ambientalistas. "Essa discussão foi suplantada pela do aquecimento global. E já está provado que, com todos os controles necessários, essa é a energia mais limpa do mundo."

Responsável pela descoberta da jazida, em 1976, o geólogo Givaldo Lessa Castro, não vai estar mais na INB quando a extração começar. Sua aposentadoria está marcada para 3 de dezembro. "Só espero poder ver a exploração começar logo."

Instituto Humanitas Unisinos - 26/11/07

A crise da indústria calçadista do Vale do Rio dos Sinos acabou? Entrevista especial com Ênio Klein

Com o dólar em constante desvalorização, o mercado exportador de calçados do Vale do Rio dos Sinos continua em crise. Além disso, concorrer com a produção massificada de calçados chineses agravou ainda mais a situação. No entanto, as empresas que também focavam no mercado interno cresceram, aumentaram sua produtividade, seus lucros e investimentos, incluindo aí a contratação de mão-de-obra especializada. O Rio Grande do Sul é conhecido pela qualidade e criatividade e por agregar o valor moda aos seus calçados, mas isso não assegurou que as indústrias calçadistas se desenvolvessem aqui. Muitas seguiram para o Nordeste do País, a fim de encontrarem mão-de-obra diferenciada, massificando também a produção. “Quanto mais a indústria do calçado puder levar a fábrica para o interior, melhor”, conta Ênio Klein, diretor da Abicalçados, na entrevista à IHU On-Line, realizada pessoalmente.

Ênio Erni Klein, atualmente, é diretor executivo e consultor de inteligência comercial da Abicalçados, órgão que tem como objetivo a defesa das políticas do setor calçadista nacional. Com larga experiência no setor calçadista nacional, é membro do “Leather Panel” da UNIDO - Organização das Nações Unidas para Desenvolvimento Industrial, com participação em reuniões técnicas em países como Áustria, Egito, Hungria, Itália e México. É autor de obras como Mercado Internacional para Calçados (Brasília: AEB, 1972) e Competitividad en la Industria de Calzados (Santiago: CEPAL, 1991).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o panorama atual da indústria de calçados brasileira?

Ênio Klein – A indústria brasileira e os fundamentos da nossa indústria de calçados são muitos bons. Tanto é verdade que nós temos mais de mil profissionais do Vale do Rio dos Sinos trabalhando na China. Então, nós temos os fundamentos, a base. A escola de curtimento que existe em Estância Velha é do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e tem quase 50 anos. A escola do calçado, em Novo Hamburgo, já tem 60 anos. Essas escolas vêm sendo aprimoradas e passaram a agregar o fator design e moda à técnica. Eu estive, recentemente, na China, em Beijing. Fui visitar uma escola do calçado, e os trabalhadores queriam saber o que nós fazíamos na nossa escola, como nós ensinávamos moda aos nossos alunos. Porque isso eles não têm; eles só produzem para grandes grifes estrangeiras. Então, esse é o nosso nicho para vender sapato.

IHU On-Line – A indústria do calçado voltou a crescer. A crise, causada pelo câmbio do dólar, acabou?

Ênio Klein – O problema com o câmbio afeta aquela empresa que apenas exporta. Se não fosse o câmbio, nós estaríamos com muito mais produção e exportação, sem dúvida alguma. A crise ainda não acabou porque ainda há algumas empresas em que a exportação representa de 40 a 60% da sua produção. A crise realmente existiu, é forte e ela continua naquelas empresas que ainda não fizeram uma reconversão. Porque o ideal, isso inclusive poderia ser dito não apenas em relação ao setor calçadista, é nunca se concentrar apenas em um só mercado. Teoricamente, em termos de comércio internacional, principalmente considerando o enorme potencial do mercado brasileiro, o ideal também seria que as fábricas não exportassem mais do que 25% da sua produção. Claro que isso não se define assim tão simplesmente. Afinal, cada fábrica tem o seu caso e pode aproveitar oportunidades. Por exemplo, o câmbio pode melhorar, e a fábrica ganha mais dinheiro na exportação. O que acontece é realmente a busca da rentabilidade. Se o câmbio está favorável e a fábrica recebe mais reais pelos dólares, ela vai se dedicar mais à exportação. Por que não? Cada um precisa buscar a sua rentabilidade. Então, o que nós estamos assistindo hoje é realmente uma dificuldade, porque não é tanto o real que se fortaleceu, mas sim se agravou a crise do dólar, como moeda internacional de troca. Esse dado está muito forte ainda nos jornais, ontem e hoje, com a crise internacional, em que até os países produtores de petróleo não desejam mais vender o petróleo em dólar, mas em outra moeda. Os bancos centrais do mundo, que têm as suas reservais em dólar, estão querendo transferir parte das suas reservas para outras moedas fortes. Então, na verdade, essa crise monetária afeta principalmente a empresa que exporta mais.

Nós temos empresas que apresentam dificuldade, mas compensam essa perda de rentabilidade, de ganho no mercado externo, com o mercado interno, que este ano está bom. O mercado brasileiro de calçados deve aumentar esse ano de 2007 em relação ao ano passado, ou seja, no momento em que o País aumenta sua renda. Nesse ano, o Brasil deve chegar a um PIB (Produto Interno Bruto) perto de 5%, aumentando também o consumo de calçados. Isso é também um fenômeno de que os economistas chamam de elasticidade, demanda renda, ou seja, a renda aumenta e com isso a venda de certos produtos também, e as pessoas passam a comprar mais. É claro que isso chega a um certo ponto em que não é pelo fato de a pessoa ganhar mais que ela irá comprar mais sapatos. Esse ponto se nivela mais ou menos em seis pares por habitante por ano, que é o nível dos países ricos. O Brasil está na faixa de três pares por habitante por ano.

À medida que aumentar a renda brasileira, nós temos chance de aumentar o consumo per capita de cada brasileiro. Isso é o que aconteceu nesse ano de 2007, em que possivelmente nós passemos a um consumo de 3,1%, somado pela população de 184 milhões de pessoas. Ou seja, isso representa um aumento na produção de pares. O mercado interno deve absorver aí uns 600 milhões de pares, o que é bom em termos mundiais. Esse consumo nacional é que fortalece a nossa indústria, dá força para inclusive vender sapatos no exterior. E as fábricas do Vale do Rio dos Sinos que estão melhor posicionadas são aquelas que têm uma boa distribuição, ou seja, vendem 70% no mercado brasileiro, 15% na América Latina e, pelo menos um pouquinho, nos países árabes. Essa ampliação de mercado foi muito importante nos últimos cinco anos. Quer dizer, nós estamos perdendo exportação nos Estados Unidos e distribuindo por todo o mundo, vendendo um produto com design, um look brasileiro, uma idéia, uma criação própria, aliada a uma marca. Então, trata-se de um produto aliado a uma nova distribuição em que se procura vender direto ao lojista, sem um intermediário, como era o modelo anterior de exportação feito só para os Estados Unidos.

IHU On-Line – Qual foi a diferença de investimento e de foco das empresas que cresceram neste ano e das empresas que realmente quebraram?

Ênio Klein – O investimento justamente é a parte mais difícil. Ele envolve a passagem relacionada ao crescimento no mundo hoje dos valores intangíveis, que é a moda, a marca. Desse modo, a partir de um certo momento, o sujeito precisa deixar de ser sapateiro para ser empresário; de empresário ele tem que passar a ser um homem de marketing, de mercado. Assim sendo, os investimentos são muito maiores naquilo que nós vemos pela rua, como os outdoors, do que propriamente numa máquina, ou seja, é preciso saber dosar. Quando tal característica aumenta, como a indústria de perfumes, que gasta até 15% dos seu faturamento com publicidade, ela, inevitavelmente, começa a atingir o setor calçadista. Cada vez mais, é destinado um valor para a distribuição, para atingir o consumidor, para atingir o mercado e criar aquilo que se chama o valor da marca, ou seja, o valor que ela apresenta no mercado e para a qual os calçadistas aqui da região, e do Brasil como um todo, têm conseguido dar atenção e fazer investimentos. É claro que se trata de um investimento muito difícil de se avaliar, porque nunca se sabe exatamente qual é a promoção que deu certo. Para isso, é vital expertise. É preciso também preparar o pessoal e, por isso, nós trabalhamos essa questão interdisciplinarmente. O sujeito agora entende de mercado, do consumidor, de psicologia. Todos esses elementos mostram uma complexidade do mundo contemporâneo que toma conta também do setor de calçados.

IHU On-Line – Como é relacionamento entre o fabricante e sua equipe de trabalho, no Rio Grande do Sul e em outros países?

Ênio Klein – A produção em massa, a tradicional conseqüência da Revolução Industrial, é aquela imagem que temos do final do século XVIII ao início do século XIX, que é a imagem da exploração do homem, de contratar as pessoas, assim como se compra matéria-prima, sem nenhum relacionamento. Cada vez mais, essa característica aumenta. Aqui no Vale do Rio dos Sinos, em geral, há um bom relacionamento entre o fabricante e a sua equipe de trabalho. Coisa que não acontece na China, onde simplesmente há uma contratação de milhares de operários para produzir em massa, não havendo uma identificação. O próprio dono da fábrica não tem identificação nem com o cliente, pois ele simplesmente produz para um terceiro: ele é um terceirizado, um empreiteiro de mão-de-obra. Como nós chegamos a ter na década de 1980, os estadunidenses vieram com tantos pedidos que a empresa simplesmente ia comprando mais máquinas, colocando na fábrica e empregando mais pessoas. E isso foi o que causou a primeira crise.

Esses mesmos estadunidenses que compravam aqui se transferiram para a China. Como a indústria de calçados é uma indústria de manufatura leve, acaba empregando muita mão-de-obra e as máquinas não são caras, pois há uma sucessão delas. Isso aconteceu ao longo dos anos, da Europa do Norte foi para a Europa do Sul, da Europa do Sul foi para a África do Norte, e, então, para a China. Nós aqui estamos nesse processo. Houve transferência de produção para o Nordeste. Se olharmos hoje, temos fábricas, marcas, empresas que deixaram de produzir no Estado e passaram a produzir no Nordeste, tanto que o Ceará é o segundo maior exportador brasileiro de calçados. O que, do ponto de vista social, talvez não seja ruim que tenha acontecido, porque nós teríamos tido um problema de urbanização muito grave.

No início dos anos 1990, por exemplo, houve um momento em que o prefeito de Novo Hamburgo chegou a ir à televisão e pediu para que não viessem mais trabalhadores da Serra Gaúcha para se estabelecer na periferia da cidade. Realmente, se a exportação tivesse continuado como foi nos anos 1970, 1980, nós teríamos uma crise com favelas, ocasionando um problema populacional urbano. Com a formação desses núcleos urbanos, Novo Hamburgo teria hoje não 250 mil habitantes, mas em torno de 600 mil, o que seria um grave problema. Então, até foi bom dar uma estancada nessa vinda de trabalhadores de fora.

IHU On-Line – Então, a saída é em busca por um outro tipo de mão-de-obra?

Ênio Klein – Eles foram em busca mesmo de mais mão-de-obra, sobretudo do interior, porque a fabricação de calçados é muito intensiva. Nesse sentido, é preciso muita mão-de-obra, porque existem certas operações que são impossíveis de mecanizar ou automatizar. É preciso cortar, costurar, juntar as partes. Então, nunca houve possibilidade de eliminar totalmente a mão-de-obra na produção de calçado, diferentemente do que acontece, por exemplo, com a indústria de automóvel. Então, sempre há essa busca de uma mão-de-obra laboriosa. A melhor para o calçado é daquele sujeito que deixou do cabo da enxada e foi trabalhar numa fábrica, porque, para ele, isso é uma grande promoção, assim como na China. As moças de lá que estão trabalhando nas fábricas estão muito satisfeitas, porque deixaram de ficar o dia todo com água até a cintura plantando arroz para ficarem trabalhando numa máquina de costura. Então, para elas, essa mudança representa uma promoção. Se nós olharmos a configuração do Brasil, nós vamos verificar que o antigo colono alemão foi o primeiro trabalhador na indústria do calçado. Lá em Franca, era o cara que colhia café e foi fazer calçado. Em Birigui, é o sujeito que deixa de plantar cana-de-açúcar e vai para dentro de uma fábrica de calçado. No Nordeste, é o sujeito que morava no interior plantando algodão.

Está é a melhor mão-de-obra para a indústria de calçados. Isso é universal, porque a indústria de calçados não oferece uma oportunidade de ascensão como profissional ao trabalhador urbano que tem mais ambição. Se a pessoa entra numa fábrica de calçados, ela será costureira. A tendência é que, ao longo de todo tempo que estiver lá, ela será sempre costureira, a não ser que seja contra-mestre da costura, recebendo uma promoção. A pessoa que trabalha na indústria de calçados não têm, dentro da fábrica, uma oportunidade de realização como ser humano. Então, ela precisa se realizar fora, na comunidade, na igreja, no grupo de bocha, no coral, no futebol, numa hortinha, criando galinhas. Outra característica também é que, na indústria de calçados, o trabalhador não pode perder muito tempo, porque tudo é intensivo. Nesse sentido, é preciso prestar muita atenção nos detalhes, e a concentração, conseqüentemente, precisa ser grande. Então, não pode pegar um ônibus que leva uma hora e meia para aí chegar para trabalhar. Por isso, esse profissional da indústria do calçado é aquele que vai a pé, de bicicleta. Desse modo, as fábricas se localizam em cidades, em núcleo no interior, onde o trabalhador vive muito perto delas. Ele não pode pegar um ônibus no bairro de Canudos e ir trabalhar no centro de Novo Hamburgo. Isso não existe. Por isso, a indústria do calçado se desloca para o interior, sempre em busca de grandes contingentes de mão-de- obra.

IHU On-Line – A Azaléia, que produz um produto mais popular, seguiu para o Nordeste e para a China, mas, ao mesmo tempo, temos empresas que continuaram aqui no Estado, como a Arezzo, West Coast, que são conhecidas por um produto de mais qualidade, mais moda...

Ênio Klein – Olha, eu acredito que deve ser mais ou menos igual. Mas os produtos que exigem moda são feitos aqui no Rio Grande do Sul. Os produtos mais standard, que não sofrem tanta variação, como o tênis, são feitos na Bahia, porque o modelo dura o ano todo, diferente de uma sandalinha feminina, que muda constantemente, conforme a estação. Eles adaptam, procuram adequar essa questão de produzir no Nordeste e produzir no Vale do Rio dos Sinos em função de moda e tipo de modelo. Toda a produção da Arezzo é feita aqui porque é sabido que nós temos a mão-de-obra mais refinada, que conhece melhor o produto. Seguramente, aqui os pagamentos feitos são melhores, nossas costureiras têm níveis de salário mais altos do que as de outros lugares. E o próprio conceito de produção e de inovação das linhas, da modelagem, tem mais qualidade aqui no Vale. A Alpargatas, que fez aqui na Scharlau (bairro da cidade de São Leopoldo) o seu centro de desenvolvimento, é um exemplo disso. Ela produz tudo lá na Paraíba, mas o desenvolvimento de produto e toda a inovação são feitos aqui no Vale do Rio dos Sinos.

IHU On-Line – Qual é o papel das universidades daqui da região nesse segmento de moda para o calçado?

Ênio Klein – Ele é muito importante. As universidades não têm algo específico para o calçado. Mas os cursos de Comércio Exterior, de Administração, de Publicidade e Propaganda e de Engenharia de Produção contribuem para o desenvolvimento da indústria. Já em São Paulo, no ano passado, em Jaú, pela primeira vez uma universidade pública criou um curso de Gestão de Produção de Calçados. E a área do design é outra muito importante. Está crescendo, aliás, a formação nessa área no Brasil. Sem dúvida, isso irá contribuir, pois sempre se precisa de novos talentos, porque a segunda geração precisa estar em condições como a primeira. E o calçado é um produto que exige paixão para ser produzido. Nesse sentido, todos - donos de fábrica ou modelistas - precisam gostar de criar algo.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a atuação dos sindicatos durante essa crise mais recente?

Ênio Klein – Foi muito positivo, principalmente a informação que eles têm sobre a China e a consciência de que não poderiam fazer uma reivindicação absurda, porque estariam provocando mais crise ainda. Então, tenho a impressão de que os aumentos salariais, os dissídios, têm sido feito dentro de um clima de cordialidade. Acredito que já houve momentos mais difíceis de relacionamento. Existe, portanto, no momento, a compreensão dos sindicatos de que não podem exigir um aumento exagerado acima da inflação, à medida que isso iria apenar agravar, a médio e a longo prazo, a situação do setor. É claro que os aumentos precisam ser propiciados pelo aumento da produtividade. O Vale do Rio dos Sinos, do ponto de vista de gestão de fábrica, na produção de calçados do Brasil, tem uma das melhores do mundo, sobretudo no que se refere à questão de produção.

IHU On-Line – As empresas que focavam na exportação, tiveram problemas e, com isso, demitiram pessoas, fizeram o desemprego, na região do Vale do Sinos, aumentar. Mas o mercado interno cresceu. Como está o desemprego na região hoje? Qual é a previsão de emprego no setor calçadista no ano que vem?

Ênio Klein – O mercado interno absorveu bastante. Os funcionários demitidos após a crise da Reichert foram reacomodados em outras empresas. Eu acredito que o próximo ano traga muitos empregos. É claro que aumentará, com isso, também o número de oportunidades na indústria de componentes e afins para o setor. Há uma oportunidade de ampliação no setor de empregos que são melhor remunerados. Isso tudo tem provocado uma estabilidade no Vale dos Sinos. Se houver uma reversão, outras regiões irão acompanhar e crescer mais do que aqui, porque o Vale não tem muito espaço, isto é, núcleos habitacionais para crescer. Um crescimento novo e forte, como tivemos nos anos 1980, precisaria ser acompanhado pelo poder público, no sentido de oferecer espaços de moradia mais compatíveis, a fim de que o pessoal que fosse trabalhar na indústria de calçados não ficasse mal alojado.

IHU On-Line – O Vale, então, não tem mais como crescer?

Ênio Klein – Crescer sempre precisa ser nosso objetivo. Mas o crescimento pode significar que se continue com a fábrica aqui no Vale, mas se aumente o número de filiais, ou seja, tentando manter o homem perto da sua moradia. Essa é a grande contribuição que a indústria do calçado pode dar ao desenvolvimento do País, pois ela evita que as pessoas saiam do interior, por exemplo, de Frederico Westphalen, e venham para Novo Hamburgo. Se fizer isso, ela perde contato com a sua comunidade, com a sua igreja, com seus amigos, com seus vizinhos e vem morar mal na cidade, em condições precárias. Em suma, a pessoa fica desenraizada. Portanto, quanto mais a indústria do calçado puder levar a fábrica para o interior, melhor.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/11/07

'Nada escapa hoje ao imperialismo teórico e ideológico do individualismo'. Artigo de Vidal-Beneyto


Esqueçamos o social e o coletivo, hoje a sociedade se orienta pelos indivíduos-sujeitos, para quem as obrigações se resumem a si mesmos. A reflexão sobre o crescente individualismo nas sociedades é do filósofo e sociólogo José Vidal-Beneyto. Em artigo para o El País, 24-11-2007, intitulado ‘A esquerda em debandada 3’, Vidal-Beneyto dá continuidade a outros artigos – sobre a derrocada da esquerda e de suas idéias-força na Europa. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Segundo as estimativas mais confiáveis – sondagens e entrevistas – entre 70% e 75% dos franceses criticam a greve de transportes que tornou a Paris numa Armsterdam pelo uso da bicicleta. Os franceses desejam que a greve termine imediatamente. Esta reação abrupta e de falta de solidariedade com a greve, uma das últimas trincheiras que restam ao mundo do trabalho frente à arbitrariedade e aos abusos dos poderes políticos e empresariais, produziu na minoria resistente uma indignada reação.

Mario B., filho de dirigente da FAI catalã durante a guerra civil, exilado na França, hoje especialista em ciência da cognição e velho amigo, se pergunta e me pergunta como foi possível se produzir tão lamentável claudicação. Contesto-o com a análise em que vejo a capitulação institucional francesa, o seu envelhecimento pessoal por muitos dos seus atores e a malversação simbólica do corpus ideológico do que chamamos pensamento único, e que social-liberalismo converteu-se na única via praticável da política convencional.

Corpus cujo eixo central é a consagração do indivíduo-sujeito, que exige o desaparecimento de todos os atores políticos coletivos, como o Estado, os sindicatos, etc, em benefício apenas da entidade comum concebível - a de uma sociedade de indivíduos livres e auto-suficientes sem mais obrigações do que consigo mesmo.

Crawford B. Macpherson elaborou na Teoria política do individualismo possessivo (1962), as bases doutrinas dessa opção que se converte na conceitualização mais consistente da democracia neoliberal. Para o filósofo canadense, os direitos e as obrigações políticas apenas podem fundar-se se derivam dos interesses dos indivíduos que formam parte de uma entidade que chamamos sociedade, não porque tenham uma natureza social, mas sim para proteger a sua condição de proprietários, pois a sociedade humana consiste e se esgota em suas relações de mercado.

Robert Castel, sem suas brilhantes conversações com Claudine Haroche, Propriété privée, propriété sociale, propriété de soi, Fayard 2001, retomando criticamente a problemática e o itinerário filosófico de Macpherson – sobretudo Hobes e de Locke do Segundo Tratado do Governo civil – busca romper o cerco desse individualismo negativo e recriar, baseando-se na categoria da responsabilidade, uma sociabilidade que enlace o indivíduo-ego com o indivíduo-outro formando um continuum, base do vinculo social. Esta convivência de alteridade e mesmidade do processo de individuação é o que faz possível, insiste Castel, o passar da responsabilidade individual à humana em virtude do qual, os seres humanos, enquanto humanos, devem dispor, desde o seu nascimento, de uma renda de subsistência básica e de um reconhecimento universal do direito de voto independente de sua condição nacional.

Ademais, o primado do individualismo, que para muitos autores é indissociável da modernidade, tem na desigualdade uma conseqüência que nas últimas décadas ampliou-se e aprofundou. Patrick Savidan em Repensar a igualdade de oportunidades, Grasset, 2007, entra de cheio no tema partindo da concepção anti-meritocrática da justiça social de John Rawls que é talvez a rejeição mais radical do individualismo possessivo. Para ele, o poder legitimador do mérito é frágil porque os indivíduos não são criadores de suas capacidade e talentos, mas apenas os seus depositários e usuários que exercem em função de determinações/valorações sociais que são as ultimas responsáveis do que chamamos mérito.

A proposta de Savidan, levando até as últimas conseqüências finais a proposição de Rawls, é de desubstancializar o mérito e desindividualizar/desubjetivar a seus detentores, passando de uma concepção ético-pessoal a uma proposição sócio-institucional - é o pagamento da dívida que cada ser humano contrai com a sua comunidade por fazê-lo nascer em seu seio, dívida que deve pagar e cuja quantia e qualidade devem corresponder às capacidades que recebeu.

Mas em um sentido ou noutro, nada escapa hoje ao imperialismo teórico e ideológico do individualismo. Ulrich Beck, um notório autor, em sua obra maior, A sociedade do risco (Suhrkamp 1986), dedica toda a segunda parte a apresentar a natureza da individualização e da desigualdade social sobre a base da lógica dos riscos a que estamos submetidos, não como membros de uma classe ou de um grupo, mas sim como indivíduos de uma sociedade industrial. Esqueçamos, pois o social e o coletivo. Apenas cabem indivíduos-sujeitos. O restante é irrelevante.

Instituto Humanitas Unisinos - 25/11/07

Consumo contemporâneo é fetichista e performático. Entrevista com Massimo Canevacci

O consumidor contemporâneo tornou-se performático. Ele vai a um shopping center não apenas para comprar, mas para consumir comunicação, para se mostrar, para encontrar as pessoas. Nesse sentido, o shopping center é a "fábrica da contemporaneidade".

A tese é do italiano Massimo Canevacci, professor de antropologia cultural da Universidade La Sapienza, de Roma, que esteve no Brasil neste mês para apresentar palestra sobre a fetichização visual das marcas, realizada pelo instituto Ipsos em parceria com a Aberje. A reportagem e a entrevista é de Isabelle Moreita Lima e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 25-11-2007.

O fetiche, diz ele, está presente em quase toda a publicidade, principalmente na das marcas de luxo. Esse é o tema do último livro de Canevacci, que será lançado no Brasil no começo do ano que vem, pela Ateliê Editorial, com o título provisório de "Estética da Comunicação Global".

Eis a entrevista.

O sr. defende que o consumo passou por modificações, fala em "consumo performático". O que isso significa?

Uma das diferenças fundamentais da transição da era industrial para os dias de hoje está justamente no consumo. Na época industrial, o consumo representava a etapa final da produção. Hoje, o consumo não existe somente no sentido clássico-modernista de coisas e mercadorias. Nos últimos 20 anos, o consumo virou produto de valores econômicos ou de estilo de vida.

O consumidor contemporâneo é protagonista do consumo. Uma pessoa não vai a um shopping center somente para comprar coisas, mas para consumir comunicação, para se mostrar, para encontrar outras pessoas. Daí surge a idéia de um consumo performático. E, nesse sentido, o shopping center assume o papel de fábrica da contemporaneidade.

Qual o papel do fetiche no consumo contemporâneo?

As empresas, nos últimos anos, constroem um tipo de comunicação baseada nisso. O logotipo está na espiritualização do fetiche. O "brand" se baseia em uma identidade fetichizada, que as marcas mais significativas desenvolvem de maneira múltipla.

Não é uma monomarca. É uma polimarca, um tipo de produto muito mais subjetivado. O desafio contemporâneo é justamente subjetivar o produto. A subjetivação é uma fetichização. O produto não é mais um produto, mas um ser.

De que maneira o fetiche transforma o produto?

O fetiche tem uma enorme potencialidade para cruzar o que era dividido, unir a dimensão orgânica à inorgânica. O fetichismo visual contemporâneo faz essa mistura. No momento em que eu compro uma coisa, essa não é uma coisa somente. É parte de um ser -eu a coloco na minha identidade e a minha identidade muda. A tendência contemporânea é ter uma "multiidentidade", o que chamo de multivíduo, isto é, vários "eus" em um só, o que é diferente de "nós".

O sr. vê uma ligação forte entre fetiche e consumo de luxo...

O consumo de luxo abriu essa mistura de códigos fetichizados, baseados na arte e no erotismo contemporâneo.

Quando tudo foi misturado, foi aberta, por fim, uma avenida na qual aparece também o produto aparentemente banal. É o caso da Parmalat, que colocou no seio de uma modelo sua logomarca, um tipo de fetichização mais simples, mas que ao mesmo tempo tem sedução erótica forte.

O fetiche é capaz de valorizar um produto?

Claramente aumenta o valor do produto porque a sensibilidade de uma coisa que também é parte constitutiva da minha corporalidade favorece uma atração forte do consumo contemporâneo. Aumenta o valor, não necessariamente o preço.

O sr. diz que o fetiche transforma as coisas em seres. Ele pode transformar também seres em coisas?

Sim, claramente. A distinção é dualista, no fetichismo contemporâneo e também no tradicional. Uma banal fotografia de um pedaço de mulher [cita anúncio da "Harper's Bazaar" japonesa no metrô de Tóquio que traz a barriga grávida de Britney Spears] vira um fetiche visual. Há uma força nesse tipo de fotografia.

O sr. acha que essa fetichização dentro do mercado acontece em todos os lugares, é um fenômeno mundial?

É um fenômeno muito global e também "glocal". Acho que é uma tendência fortíssima da contemporaneidade. É um indicador para entender o processo da comunicação contemporânea.

Instituto Humanitas Unisinos - 24/11/07

A democracia contemplativa. Artigo de Michel Wieviorka

Nicolas Sarkozy exerce o poder deixando muito menos responsabilidades aos seus ministros que seus predecessores”, diz o sociólogo francês Michel Wieviorka, analisando o caráter concentrador do mandatário. Por outro lado, diz, o presidente ameaça sufocar o resto de sindicalismo que ainda há e que ainda é capaz de oferecer resistências numa sociedade francesa que sofre com a atomização das forças sociais.

Sarkozy está recorrendo ao expediente das comissões e grupos de estudo como forma de estimular maior participação, mas o que tem a desvantagem de não seres estes espaços, fóruns de tomada de decisões. Segundo Wieviorka, essas comissões “não dão nenhum poder de decisão àqueles que deles participam. Quando muito, alimentam a reflexão do poder e o debate público”, lamenta.

Na gestão Sarkozy, “a tendência é bloquear as instâncias, organizações, instituições intermediárias entre o poder presidencial e a sociedade, em sua diversidade, e conceder um papel decisivo à mídia”, diz Wieviorka.

“Nós estamos numa fase em que o poder não leva ao exercício das liberdades fundamentais, mas nos empurra – e talvez a sociedade o permitisse – para uma espécie de passividade, de aceitação do fato do espetáculo político que coloca em cena, sem cessar. Ao mesmo tempo despreza os intermediários que possibilitam com que ordinariamente a democracia funcione. Este espetáculo necessita da mídia para ser possível”, resume o sociólogo. Isso caracteriza o que Wieviorka chama de “democracia contemplativa”, termo que toma do sociólogo russo Yuri Levada.

Segue na íntegra o artigo de Michel Wieviorka, diretor de estudos na EHESS (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) e presidente da Associação Internacional de Sociologia, publicado no Libération, 22-11-2007. A tradução é do Cepat.

A constatação é unânime: o nosso chefe de Estado é onipresente – hiper-ativo e agitado, dizem os mais críticos; preocupado em se envolver pessoalmente com as reformas necessárias para o nosso país para fazê-las avançar mais rápida e eficazmente, dizem seus partidários. Mas não nos contentemos com a observação, ainda superficial, que insiste na maneira como aparece constantemente na mídia. Examinemos antes como ele concilia seus projetos de mudança e a exigência democrática.

Por um lado, o nosso presidente, Nicolas Sarkozy, exerce o poder deixando muito menos responsabilidades aos seus ministros que seus predecessores. Isso não é para insultá-lo, mas para perceber que Elísios, hoje, define, orienta, pilota e, no caso de vitória, retifica sua ação. Neste contexto, os ministros não têm nenhuma autonomia, não constituem, ou ainda menos que ontem, um nível decisivo do sistema político. Da mesma maneira, os parlamentares da ala majoritária formam um conjunto sem grande capacidade de iniciativa, e que realça mais do modelo dos “godillots” [militares]. Eles também caminhavam certinhos, e engoliam, na ocasião, as lebres que lhes eram impostas a partir dos Elísios.

A esquerda tem culpa em seus próprios erros. Ela é responsável por sua crise intelectual, moral e de liderança. Mas Nicolas Sarkozy contribui para as suas dificuldades, e sua estratégia –, por exemplo, com a abertura às antigas personalidades socialistas – é, claramente, fazer com que ela continue a se afundar. A extrema direita também está fragilizada. O chefe de Estado a privou de sua principal bandeira que é a temática da imigração. Portanto, é preciso admitir que isso, por sua ação, reforça o déficit democrático, enfraquecendo seus atores que jogam classicamente um papel no funcionamento de nosso sistema político, quer estejam do seu lado ou na oposição, à sua esquerda, à sua direita ou às suas costas.

Por outro lado, nosso presidente, sem apelar ao braço de ferro, ameaça asfixiar o pouco de sindicalismo que temos na França, principalmente em relação aos funcionários e empresas públicas. Apoiando-se numa opinião pública que não aceita o apoio aos regimes especiais de aposentadoria defendidos pelos sindicatos, e que é talvez amplamente excedido pelas greves (especialmente no transporte), ele ataca efetivamente um dos raros atores coletivos que lhe resiste e que representa uma mediação entre a sociedade e o poder público. É porque os sindicatos não são tão frágeis, na opinião pública, quanto Nicolas Sarkozy podia esperar: mesmo quando suas reivindicações parecem excessivas, eles encarnam precisamente uma das últimas instituições suscetíveis de se levantar entre ele um povo atomizado.

Enfim, Nicolas Sarkozy, apoiado por alguns de seus ministros, dá real importância à realização de missões e de comissões (Balladur, Juppé, Attali, Colombani...) ou de encontros (do tipo: Grenelle do ambiente) realizados para preparar um estado da situação em campos precisos, e preparar a reflexão para projetar o nosso país no futuro. O característico dessas iniciativas é que elas dependem exclusivamente da boa vontade do poder, que nunca são destinadas a perdurar, e que elas não dão nenhum poder de decisão àqueles que deles participam. Quando muito, alimentam a reflexão do poder e o debate público.

Mas não há nada comparável, por exemplo, ao que era o Plano, esta “ardente obrigação” que institui e pereniza o relacionamento de diversos atores sociais, empresários e sindicatos especialmente, e que traçava as modalidades de um futuro possível para o nosso país. Também aí a lógica caminha no sentido inverso da criação, do respeito ou da manutenção das mediações entre o poder e a opinião pública, não é posta em prática nenhuma estrutura real, duradoura, da preparação do futuro.

A tendência atual é bloquear as instâncias, organizações, instituições intermediárias entre o poder presidencial e a sociedade, em sua diversidade, e conceder um papel decisivo à mídia – o que implica também em exercer sobre eles senão um controle direto, ao menos uma mistura de pressões e de convites para que acompanhem permanentemente as atividades do Presidente.

Tudo isso dá a imagem de uma grande novidade. Antes mesmo de sua eleição, Nicolas Sarkozy era objeto de comparações mais ou menos bajuladoras: com Margareth Thatcher, que saiu vitoriosa da luta que empreendeu contra o sindicalismo para impor uma política liberal, com Tony Blair, por suas orientações modernizadoras e reformistas, com Silvio Berlusconi, por sua relação com o dinheiro e a mídia, com Vladimir Putin, por suas tendências em concentrar o poder pessoal, sem falar de projeções históricas à família Bonaparte, quer se trate de Napoleão I ou de Napoleão III.

Ao mesmo tempo, nós evocamos muito, ao longo da campanha presidencial, a democracia participativa e a democracia deliberativa, para dar conta da maneira como a democracia representativa, mesmo considerando seus limites, poderia ser ao menos reforçada. Mas é preciso admitir que nenhuma das comparações propostas para Nicolas Sarkozy é plenamente satisfatória, e que a evolução da democracia atual não é redutível às categorias que acabam de ser evocadas.

Nós estamos numa fase em que o poder não leva ao exercício das liberdades fundamentais, mas nos empurra – e talvez a sociedade o permitisse – para uma espécie de passividade, de aceitação do fato do espetáculo político que coloca em cena, sem cessar. Ao mesmo tempo despreza os intermediários que possibilitam com que ordinariamente a democracia funcione. Este espetáculo necessita da mídia para ser possível e são de agora em diante a principal forma organizada que garante a ligação entre o Presidente e uma sociedade, que, cada vez mais, em matéria política, parece ter necessidade de uma representação forte, de instituições ativas, mas que não está muito engajada em vastos debates participativos ou nos processos massivos de real deliberação.

Uma fórmula de um grande sociólogo russo recentemente morto, Youri Levada, a propósito da Rússia de Putin, resume bem esta situação: nós entramos na era da democracia contemplativa. Que logo saiamos dela!