"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

sábado, outubro 27, 2012

A proteção à infância e às famílias pobres no Brasil e na Argentina

resistir info – 26 out 2012

– Alguns elementos acerca da mitologia propagandeada pelos sociais-democratas do PSDB e do PT

por Henrique Júdice Magalhães [*]

A narrativa corrente no Brasil é de que com a estabilização monetária de 1994 teve início uma contínua elevação do nível de vida dos brasileiros mais pobres, viabilizada pelo fim da corrosão inflacionária e reforçada por dois mecanismos principais. O primeiro deles é a política de aumento real do salário mínimo iniciada em 1995, com FHC, e intensificada a partir de 2003, ano da posse de Lula. O segundo é constituído pelos programas de transferência monetária focalizados nas famílias que tenham crianças em sua composição e estejam abaixo da linha de pobreza – especialmente o bolsa-família, criado pelo mesmo Lula e que abrange, hoje, todos os demais. A focalização dessas ações teria permitido ao país tirar aproximadamente 40 milhões de pessoas da pobreza. A sustentabilidade dessas políticas teria sido assegurada pela boa gestão econômica, baseada no equilíbrio fiscal e no respeito aos contratos do Estado com instituições financeiras internacionais e concessionárias de serviços públicos.
A Argentina, ao contrário, diz a narrativa corrente, desviou-se desse caminho. Lá, a última década teve como nota a expansão desenfreada do gasto público, complementada por uma sucessão de desvarios estatizantes. Isso teria conduzido o Estado platino ao isolamento internacional e, como resultado, sua economia está se dissolvendo em meio à alta inflação e à escassez de dólares. A população afunda na pobreza, faltam produtos básicos e o país está à beira da quebra. Enquanto isso, o governo manipula índices e a presidenta delira.
Isso repete, diuturnamente, a imprensa oligárquica e/ou mercantil daqui e de lá. Como dizem os argentinos, allá ellos. Em outros tempos, veículos comoGlobo, Folha e Veja precisariam ser refutados. Hoje, após cavarem a sepultura de sua própria credibilidade, nem isso merecem. O problema é que, com variações na ênfase conferida ao papel dos governos FHC e Lula/Dilma, este é também o relato hegemônico entre intelectuais ligados ao PT e ao PSDB. Até mesmo personalidades vinculadas à esquerda mais radical (PSTU, PSoL, PCB) engolem a peta da redução da pobreza e da desigualdade operada pelo Plano Real e pelo bolsa-família. No máximo, agregam a esse reconhecimento algumas lamúrias pelo desvanecimento do ímpeto revolucionário das classes supostamente favorecidas por essas políticas. Os dois parágrafos anteriores já fazem parte do senso comum da classe média brasileira
[1] – ou ao menos de sua fatia civilizada, já que a outra tem crenças distintas que serão tratadas na segunda parte deste artigo.
Há, entretanto, um problema insolúvel com essa narrativa: ela é inteiramente falsa. Inúmeros indicadores seriam capazes de demonstrá-lo. As taxas de crescimento da economia, por exemplo: desde 2003, quando assumem Kirchner e Lula, o PIB argentino – mesmo quando medido pelos critérios de agências opositoras
[2] – cresce muito mais que o brasileiro em todos os anos.
Mas já nos disse a senhora Roussef que “uma grande nação deve ser medida por aquilo que faz para suas crianças e para seus adolescentes. Não é o Produto Interno Bruto, é a capacidade do país, do governo e da sociedade de proteger o que é o seu presente e o seu futuro”
[3] . Vejamos, então, como se sai o Brasil neste tema após o octênio tucano e o decênio petista, tomando como termo de comparação a supostamente falida e caótica Argentina e cotejando os valores e condições de acesso dos programas de Seguridade Social destinados, lá e aqui, a famílias com crianças e/ou adolescentes.
Trabalhadores empregados na economia formal: salário-família x asignación por hijo
Comecemos pela economia formal e pelos trabalhadores empregados. A prestação de Seguridade Social brasileira relativa à infância e destinada a esse público é o salário-família. Já seu correlato na Argentina chama-se asignación por hijo. Ambas são custeadas pelas contribuições previdenciárias e administradas pelas respectivas autarquias do setor (INSS e Anses).
No Brasil, o salário-família é de 22 reais por filho, pagos a quem tenha remuneração mensal bruta até R$ 915,05; há, em tese, uma faixa na qual o valor seria de 31 reais, mas como seu teto (R$ 608,80) é menor que o salário mínimo (R$ 622), sua existência é mesmo apenas teórica. Na Argentina, a asignación por hijo vai de $ 340 (R$ 162
[4] ) a $ 733 (R$ 349 [5] ) por filho quando a remuneração bruta dos pais, somada, for de até $ 3,2 mil (R$ 1.523); $ 250 (R$ 119) a $ 662 (R$ 315) se estiver entre isso e $ 4,4 mil (R$ 2.095); $ 160 (R$ 76) a $ 635 (R$ 302) caso supere esse teto sem passar de $ 6 mil (R$ 2.857); e $ 90 a $ 357 (R$ 43 a R$ 170) para o último estrato, no qual situam-se os pais com ganhos decorrentes do trabalho que, somados, sejam superiores a esse limite e não maiores que $ 14.000 (R$ 6,7 mil). Nessa última faixa, o benefício só é devido se esse parâmetro não superar $ 7 mil (3,3 mil) para nenhum deles.
Mesmo considerando que no Brasil podem ser pagos dois salários-família (ao pai e à mãe) pela mesma criança e na Argentina não, a diferença é chocante, mais ainda considerando que esse comparativo refere-se a crianças com boa saúde. Se o filho tiver alguma deficiência, a Seguridade Social argentina paga ao pai ou à mãe um valor mensal entre $ 1.200 (R$ 575) e $ 2.400 (R$ 1.150) na primeira faixa de remuneração; $ 900 (R$ 430) e $ 2.400 (R$ 1.150) na segunda; e $ 600 (R$ 286) a $ 2.400 (R$ 1.150) se a remuneração bruta dos genitores superar $ 4,4 mil (R$ 2,1 mil), sem o teto aplicável ordinariamente.
O problema começa nesses números, mas não termina neles. O salário-família brasileiro só pode ser pago entre o nascimento e o dia em que a criança completa 14 anos de idade; o argentino, da concepção
[6] até o aniversário de 18 anos (nos dois casos, o limite etário não se aplica aos filhos deficientes). No Brasil, apenas os empregados não-domésticos com carteira assinada, trabalhadores avulsos [7] e aposentados o recebem – mas, no último caso, apenas se a aposentadoria tiver ocorrido na condição de empregado ou avulso e se tiverem mais de 65 (homens) ou 60 anos (mulheres) ou tiverem se aposentado por idade ou invalidez. Sua negativa a quem tenha se aposentado em outra categoria que não as de empregado e autônomo, diga-se de passagem, decorre de um dispositivo ilegal, o art. 82, IV, do Decreto 3.048, que infringe o art. 65, § único da Lei 8.213. Já na Argentina, não há idade mínima para a asignación por hijo aos aposentados nem às pensionistas – que, assim como os beneficiários do seguro-desemprego, lá têm acesso a ela e aqui não.

Critérios de concessão e<br />								pagamento:<br />								salário-família x asignación por hijo e asignación por hijo com discapacidad

Até aqui, a comparação foi possível por existirem, nos dois países, institutos equivalentes. Mas a Seguridade Social argentina abrange, ainda, prestações inexistentes no Brasil, como o benefício de parcela única pago quando do parto, no valor de $ 600 (R$ 286). Dizer que aqui não há algo assim não é igual, neste caso a dizer que a legislação brasileira não prevê nada do tipo: a LOAS obriga os municípios a pagar um benefício-natalidade e o INSS a fazê-lo enquanto isso não ocorrer. Porém, essa prestação – que valeria, hoje, R$ 85 pelos critérios de reajuste adotados desde então pela Previdência – foi extinta por um decreto ilegal de FHC nos últimos dias de 1995 [8] . O que não existe no Brasil nem mesmo em tese é a ajuda escolar de $ 170 (R$ 81) a $ 680 (R$ 324), paga anualmente, ou o benefício por adoção de $ 3,6 mil (R$ 1.714) em cota única.
É ainda digno de nota que, em 2006, o Congresso aprovou a Lei 11.324, cujo art. 3º estendia o salário-família às empregadas domésticas. Ao sancioná-la, Lula, alegando falta de recursos, vetou-o. Na justificativa do veto – acatado pelo Legislativo – , a despesa que essa extensão acarretaria ao INSS era estimada em R$ 318 milhões por ano. Considerando que isso equivale a 0,1% do gasto anual do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), fica claro que a preocupação era outra: proteger sonegadores contra uma avalanche de processos, dado que 70% dessa categoria trabalha sem carteira assinada
[9] e o acesso ao salário-família depende da formalização do vínculo de emprego.
População de menores rendimentos: bolsa-família x asignación universal por hijo para protección social
O que se alardeia como grande feito do decênio petista, no entanto, não é o salário-família, mas o programa bolsa-família (PBF), de transferências monetárias a famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. Os valores monetários que delimitam esses quadros foram estabelecidos por decreto e são, hoje, R$ 140 ($ 294) e R$ 70 ($ 147) per capita ao mês, respectivamente.
O governo argentino, que tem fama de manipular indicadores, não chegou a tanto. O questionado Indec fixa a linha de pobreza em $ 1.555 (R$ 740) para uma família de quatro pessoas, o que dá $ 389, ou R$ 190, per capita . A observação empírica demonstra
[10] que os preços de supermercado na capital argentina são menores, na média, que os das cidades brasileiras que lhe seriam comparáveis: São Paulo (maior centro industrial e financeiro), Brasília (capital) e Rio de Janeiro (principal destino turístico e polo cultural). Mas as tarifas públicas na Argentina são muito menores que no Brasil. Os valores do transporte coletivo em Buenos Aires, por exemplo, são de $ 2 (R$ 0,95) para os ônibus, $ 2,50 (R$ 1,19) para o metrô e $ 1,50 (R$ 0,71) para os trens. Em São Paulo, o custo é de R$ 3 ($ 6,30) para qualquer dessas opções. No Rio – única dessas cidades com um sistema de transporte comparável ao da capital argentina em abrangência territorial e horária – , os ônibus custam R$ 2,75 ($5,77), os trens R$ 2,90 ($ 6,09) e o metrô R$ 3,20 ($ 6,72). No DF, a passagem de ônibus sai a R$ 4 ($ 8,40) e a de metrô a R$ 3 ($ 6,20). Essa (des)proporção de preços se repete nas tarifas de água, luz, gás e telefone. Do preço da moradia – para aluguel ou compra – , é melhor nem falar.
Os valores transferidos pelo PBF são R$ 32 ($ 67) mensais por gestante, criança de até 15 anos ou nutriz, sendo que o total de benefícios ao conjunto dessas pessoas não pode passar de cinco; e R$ 38 ($ 80) por adolescente de 16 ou 17 anos, até o limite de dois. Para as famílias situadas abaixo da linha de extrema pobreza do decreto, há, ainda, um pagamento mensal fixo (independente do número de filhos) de R$ 70. Recentemente, criou-se outro, cujo valor corresponde à diferença entre o rendimento per capita familiar (em cujo cálculo incluem-se os benefícios anteriores) e a linha de pobreza extrema.
Essa última prestação – paga a famílias com crianças de até 6 anos chama-se “benefício para superação da extrema pobreza na primeira infância” e constitui um verdadeiro prodígio. Através dela, o governo da senhora Roussef pretende erradicar, por decreto, a miséria. Mas só a miséria do decreto.
A conta é simples: divide-se o valor total auferido pela família pelo número de integrantes e verifica-se quanto falta para atingir um rendimento per capita de R$ 70,01, valor a partir do qual considera-se cruzada a linha da pobreza extrema. Uma família com dez membros e ganho monetário por pessoa de R$ 69,99, por exemplo, receberia R$ 0,20 (vinte centavos), arredondados – suprema generosidade! – para o número inteiro par imediatamente superior, ou seja, R$ 2 (dois reais) por mês
[11] . Pena que o efeito da mágica termina no dia em que a última criança da família completa 7 anos; afinal, os recursos são escassos, o país tem compromissos a honrar (diferentemente dos perdulários argentinos, que quitaram sua dívida com o FMI e o Banco Mundial por 25% do valor de face) e, nessa idade, convém que os brasileiros já estejam preparados para enfrentar as agruras da vida (os filhos das famílias abastadas, dedutíveis do Imposto de Renda dos pais até os 25 anos, são assunto para a segunda parte deste artigo).
Essa é a metodologia que embasa o anúncio de que 8,7 milhões de brasileiros saíram da indigência entre maio e setembro, feito por Dilma em 03/10
[12] . O governo brasileiro não apenas manipula indicadores como leva muito a sério os indicadores que manipula.
Disso, pelo menos, não se pode acusar Cristina Fernández. Nada na Seguridade Social argentina é condicionado pela linha de pobreza do Indec e, em regra, os salários e proventos aumentam em percentuais muito mais próximos à inflação medida pelas consultorias privadas que aos índices oficiais
[13] . Isso vale tanto para os fixados pelo governo (salário mínimo, aposentadorias) quanto para os definidos por negociação sindical. Vale também para aasignación universal por hijo para protección social (AUH), cujo valor por filho é o mesmo da asignación por hijo da menor faixa de ganhos vinculados ao trabalho, sem os acréscimos regionais. A AUH teve um aumento de 26% em setembro último, passando de $ 270 (R$ 129) para $ 340 (R$ 162) por criança ou adolescente. Para filhos com deficiência, o valor é $ 1.200 (R$ 575) por cada um e não há limite de idade.
Para receber a AUH, o que se exige é que nenhum dos genitores tenha direito à asignación por hijo do tópico anterior nem ganhe mais que o salário mínimo – atualmente, $ 2.670
[14] (R$ 1.271), mais que o dobro do vigente no Brasil [15] . Recebem a asignación universal donas de casa, trabalhadoras informais, desempregadas que não estejam recebendo seguro-desemprego, trabalhadoras sazonais na entressafra, microempreendedoras e trabalhadoras domésticas (com ou sem vínculo de emprego), entre outras. Há um limite de cinco benefícios por mãe, o que perfaz um teto de $ 1.700 (R$ 810). No caso de filhos com deficiência, esse teto fica em $ 6.000 (R$ 2.857), na situação extrema de um núcleo famíliar com cinco ou mais filhos nessa condição.
Mães de 7 ou mais filhos têm direito, ainda, a uma pensão assistencial vitalícia (inacumulável com a AUH) de $ 1.880 (R$ 895), valor ao qual se acresce, em algumas localidades, um complemento por zona desfavorável de 40%, passando a $ 2.632 (R$ 1.253). Essa pensão é condicionada aos requisitos de não estar amparada pelas garantias da relação de emprego, não ser titular de aposentadoria ou pensão por viuvez nem ter qualquer outro ganho monetário maior que o próprio valor da prestação assistencial em questão. Para recebê-la, não é necessário que os filhos sejam menores, solteiros, nem que estejam vivos ou morem com a mãe.

Critérios de concessão e<br />								pagamento:<br />								programa bolsa-família (PBF) e asignación universal por hijo para protección social (AUH)

No que se refere aos filhos com deficiência, convém ainda assinalar que o benefício de prestação continuada (BPC) [17] da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), equivalente ao salário mínimo, não pode ser considerado um sucedâneo da AUH, já que a Argentina também tem uma pensão assistencial (não-contributiva) por deficiência. Essa pensão é cumulável com a asignación universal por hijo con discapacidad, dado que o titular de uma é a própria pessoa com deficiência e o da outra é a o parente sobre quem recaia o dever legal de proporcionar-lhe amparo econômico. Equivale a 70% da aposentadoria mínima e está, hoje, em $ 1.326 (R$ 627), valor que se acresce em 40% nas zonas desfavoráveis, passando a $ 1856 (R$ 884). Os requisitos de acesso a ela são uma incapacidade laboral de 76% e ganho monetário pessoal não maior que seu próprio valor.
Há ainda, uma diferença entre a AUH e o PBF que não se traduz em números nem cabe em tabela nenhuma: a primeira é um direito público subjetivo e um dever do Estado para com quem reúna os requisitos de acesso a ela; o segundo não. A lei que o institui prevê – contrariando a própria Constituição brasileira, em cujos termos a Assistência Social “será prestada a quem dela necessitar” (art. 203) – que “o Poder Executivo deverá compatibilizar a quantidade de beneficiários do Programa Bolsa Família com as dotações orçamentárias existentes” (art. 6º § único). Para receber o bolsa-família não basta, portanto, sequer o rendimento familiar per capita inferior a R$ 140, e nem mesmo a R$ 70: é preciso contar com a boa vontade do governo, do Congresso e rezar para que sobre dinheiro suficiente depois que o Estado termine de remunerar seus rentistas.
Conclusão
Embora não seja – como deve estar claro a essa altura – o que diz a imprensa monopolista daqui e de lá, a Argentina tampouco é um Estado de Bem-Estar escandinavo. É, sim, um país onde o capitalismo dependente encontra-se em reestruturação depois de quatro catástrofes consecutivas que ele mesmo provocou: o banho de sangue de 1974-83, a hiperinflação de meados dos anos 80, o esfacelamento social dos 90 e o colapso de 2001. Ainda assim, deve haver algum motivo além do idioma para que seja Buenos Aires, e não o Rio ou São Paulo, o destino preferencial dos trabalhadores que emigram de países como Bolívia, Paraguai ou Peru em busca de uma vida melhor.
Esta não é uma hagiografia de Néstor Kirchner e Cristina Fernández. O fato de o salário mínimo argentino ser o mais alto da América Latina não invalida os motivos das organizações argentinas de trabalhadores para não estarem felizes com seu último aumento. O valor e abrangência das asignaciones por hijonão elidem o fato de que muitas famílias tiveram perdas quando o enquadramento por faixa remuneratória passou a dar-se pela soma dos ganhos dos pais, e não pelo salário do que ganha menos. O recente projeto de reforma da lei de acidentes de trabalho é melhor que a legislação atual, mas fica aquém das decisões da Corte Suprema sobre o assunto e não rompe com a concepção privatista herdada dos anos 90 – diferentemente do que ocorreu no caso dos fundos privados de aposentadorias e pensões, encampados por Cristina em 2008.
Tudo somado, a Argentina é um país com um copo meio cheio e meio vazio. Cumprindo seu papel, organizações políticas de esquerda e movimentos populares de lá apontam para a metade vazia. Aqui no Brasil, por outro lado, algumas gotas já são suficientes para que quem mais devia manter o senso crítico (intelectuais e sindicalistas, por exemplo) festeje. O lance mais recente dessa mistura de oficialismo e alienação é um manifesto em que alguns economistas da Universidade de Campinas (Unicamp) só faltam oferecer ajuda humanitária à Europa
[18] .
Reconhecer as fraquezas e contradições do Estado argentino e de seus governantes, por outro lado, só deixa ainda mais patente a indigência dos mecanismos de proteção existentes no Brasil às famílias trabalhadoras e a seus filhos. Afinal, não se esta comparando capitalismo com socialismo nem capitalismo central com capitalismo periférico. A questão, aqui, é tão-só entre capitalismos dependentes com e sem aquilo que, em bom espanhol, se costuma chamar de huevos.

Notas
[1] A de verdade, não essa com rendimento familiar per capita entre R$ 291 e R$ 1.019 inventada por Ricardo Paes de Barros e Marcelo Neri – agraciados pela presidenta por essa impostura com uma assessoria ministerial de alto nível e com a presidência do IPEA, respectivamente.
[2] Por exemplo,
http://mansueto.wordpress.com/2012/05/02/argentina-eles-modificam-tambem-o-pib/ . Que o governo argentino infle o PIB e os índices de crescimento, não é impossível. Mas Mansueto de Almeida (coordenador de Política Monetária e Financeira do Ministério da Fazenda na época do dólar a R$ 1) e outros papagaios da direita econômica operante no Brasil desconfiam que até a CIA (http://www.indexmundi.com/g/g.aspx?c=ar&v=66&l=pt e http://www.indexmundi.com/g/g.aspx?v=66&c=br&l=pt ) seja manipulada pelo governo de Cristina Fernández.
[3]
www1.folha.uol.com.br/...
[4] Como anteparo à cantilena sobre a inflação argentina e seus índices oficiais, Dispensou-se a conversão pela paridade de poder de compra (PPC). Optou-se pela conversão na base de R$1=$2,10, que corresponde a uma taxa de câmbio estável ao longo dos dois ou três últimos anos. Caso se utilizassem os dados PPC do FMI para 2011 ( pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal_per_capita ept.wikipedia.org/wiki/... ), o resultado da comparação seria ainda mais favorável à Argentina. Os dados do FMI, como os da CIA, são manipulados por Guillermo Moreno...
[5] A variação de valor dá-se conforme a região do país. Em localidades subpovoadas, com baixo nível de atividade econômica ou muito frias, o valor é maior; a diferença, contudo, não se aplica aos beneficiários do seguro-desemprego.
[6] Entre a concepção e o parto, o benefício chama-se asignación prenatal ; seus valores e critérios de concepção, porém, são os mesmos da asignación por hijo.
[7] Trabalhadores avulsos, conforme a lei brasileira, são aqueles que prestam serviços a vários patrões durante um mesmo mês, semana ou dia, tendo sua escala de serviço determinada pelo sindicato ou por um órgão gestor – caso dos estivadores por exemplo.
[8] Ver
/jus.com.br/revista/texto/20880/... . Deveriam estar em vigor, desde 2008, os benefícios natalidade e funeral estabelecidos na Resolução 212 de 2006 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), mas, segundo levantamento realizado pelo MDS em 2009, menos de 30% dos municípios brasileiros a cumpriam.
[9] O veto ao art. 3º da Lei 11.324 pode ser lido em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Msg/Vep/VEP-577-06.htm . A despesa anualizada do RGPS (02/2011 a 01/2012), emg1.globo.com/economia/noticia/2012/03/... . O percentual de trabalho sem carteira entre as trabalhadoras domésticas está em www.ebc.com.br/2012/09/... .
[10] Quem quiser colocar à prova esse dado não precisa fazer mais que viajar a Buenos Aires. Aproveitem: está barato.
[11] Critério estabelecido no art. 19 § 3º do Decreto 5.209/04, na redação dada pelo Decreto 7.758/12:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Decreto/D5209.htm . Ali encontram-se também todos os valores aqui mencionados relativos ao bolsa-família.
[12]
blog.planalto.gov.br/
[13] Sem desconhecer a truculência da intervenção no Indec, a diferença entre as reações da imprensa monopolista, das agências privadas e do FMI à manipulação de números na Argentina e no Brasil deve-se ao fato de que, lá, parte da remuneração do capital monopolista está atrelada à inflação oficial. Em www.lanacion.com.ar/ , pode-se ler que, de 2007 à metade de 2009, a mudança na metodologia de cálculo do índice de preços ao consumidor possibilitou ao governo argentino a economia de US$ 15,6 bilhões no pagamento de títulos da dívida pública. Não há outro motivo para Clarín e La Nación, sócios dos governos que mais deprimiram o padrão de vida dos trabalhadores argentinos, exigirem de Cristina Fernández o que nunca exigiram de ninguém: que a inflação oficial reflita a alta dos preços no supermercado – o que, de resto, não ocorre em parte alguma (ou a inflação medida pelo IBGE acaso é igual ao ICV do Dieese?). Surreal é que os jornais em questão tenham conseguido fazer isso ao mesmo tempo em que apoiavam uma sublevação de formadores de preços de alimentos ocorrida em 2008 contra a tentativa governamental de limitar a margem de lucro das exportações e evitar, assim, a alta dos preços internos.
[14] Na Argentina, o salário mínimo geral não é aplicável aos empregados rurais e às empregadas domésticas. Essas categorias têm, em regra, pisos salariais maiores. Os valores atuais desses pisos foram definidos em novembro de 2011, quando o salário mínimo era $ 2,3 mil (R$ 1.095) e serão reajustados em novembro deste ano. Para os trabalhadores do campo, eles vão, hoje, de $ 2.763, ou R$ 1.316 (peões sem especialização) a $ 3.236, ou R$ 1.541 (mecânicos tratoristas). Para as trabalhadoras domésticas, variam entre $ 2.072, ou R$ 987 (trabalhadoras sem especialização que não dormem no emprego) a $ 2.839, ou R$ 1.352 (governantas, damas de companhia, enfermeiras, institutrizes e mordomos que moram no local de trabalho), com exceção da província de Córdoba, onde vigoram pisos de $ 2.291 (R$ 1.091) para quem trabalhe em turno integral sem dormir no emprego a $ 2.526 (R$ 1.203) para trabalhadoras que desempenhem as tarefas mencionadas anteriormente. Essas informações podem ser conferidas em
http://www.trabajo.gov.ar/downloads/agrario/res_cnta_071-2011.pdf , http://www.trabajo.gov.ar/downloads/domestico/res_1350-2011.pdf e http://www.trabajo.gba.gov.ar/Resoluci%C3%B3n%20MTESS%201351-11.pdf .
[15] O reajuste deu-se em agosto de 2012, durante a elaboração deste artigo; até então, o valor era 2,3 mil pesos, (R$ 1.095). Poucos dias depois, no Brasil, o governo remeteu ao congresso proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2013 prevendo o reajuste do salário mínimo para R$ 670 ($ 1.407) a partir de janeiro; em fevereiro de 2013, porém, o menor salário argentino será reajustado para $ 2.875 (R$ 1.369).
[16] Entre a concepção e o parto, o nome é asignación universal por embarazo para protección social.
[17] O BPC é um dos bons frutos da Constituição de 1988. Sendo um direito exigível, sua concepção é oposta à do PBF e, das décadas de 90 e 2000, tem apenas as distorções que o impedem de ser melhor do que seu congênere argentino. A maior delas é o condicionamento de sua concessão a um teto de rendimento familiar per capita igual ao quarto do salário mínimo brasileiro (622:4 = R$ 155, ou $ 326) – , menos de 1/8 do vigente no país vizinho. Embora deva-se reconhecer a Lula e especialmente Dilma algum esforço de humanização dos parâmetros de acesso a ele – que, pelo regulamento de FHC (Decreto 1.744/95), era negado a quem conseguisse andar, vestir-se ou higienizar-se – , dez anos de governo não foram suficientes para que o PT se decidisse a eliminar esse teto.
[18]
http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=P2012N30206 . Não que países como Espanha e Grécia estejam muito longe de precisar dela, mas a emergência social que começa a existir lá é a condição naturalizada da sociedade brasileira há 500 anos.
[*] Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) com atuação junto ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Ex-professor dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) e Santa Catarina (IFSC). Ex-funcionário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Atuou como consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Cursa atualmente doutorado em Direito na Universidad de Buenos Aires (UBA). As posições aqui expressas são estritamente pessoais e não correspondem ao juízo oficial do PNUD ou de qualquer outra instituição.

Os juros dos empréstimos bancários: que justificação têm e porque não deveríamos pagá-los?

resistir info – 24 out 2012

por Juan Torres López [*]

Qualquer pessoa que tenha precisado de devolver um empréstimo sabe o que significam os juros na hora de pagá-lo. Um empréstimo recebido, por exemplo, a 7% ao ano suporia ter de devolver quase o dobro do capital recebido ao fim de dez anos.
Tanto é o peso dos juros acarretados pelos empréstimos que durante muito tempo considerou-se que cobrá-los acima de determinados níveis mais ou menos razoáveis era considerado não só um delito de usara como também uma acção imoral, ou inclusive um pecado grave que condenaria para sempre quem o cometesse.
Hoje em dia, contudo, quase todos os governos eliminaram essa figura delitiva e parece a toda gente natural que se cobrem juros legais de até 30% (isto é o que cobram neste momento os bancos espanhóis aos clientes que ultrapassam a sua linha de crédito) ou que haja países afundados na miséria não exactamente pelo que devem e sim pelo montante dos juros que hão de pagar.
Os países da União Europeia renunciaram a ter um banco central que os financiassem quando precisassem dinheiro e portanto têm que recorrer à banca privada. Em consequência, ao invés de financiarem-se a 0%, ou a um juro mínimo que simplesmente cobrisse os gastos da administração da política monetária, têm de fazê-lo e 4, 5, 6 ou inclusive a 15% em certas ocasiões. E isso faz com que a cada ano os bancos privados recebam entre 300 mil milhões e 400 mil milhões de euros em forma de juros (tenho, então, de explicar quem esteve e porque por trás da decisão de que o Banco Central Europeu não financiasse os governos?),
Os economistas franceses Jacques Holbecq e Philippe Derudder demonstraram que a França teve de pagar 1,1 mil milhões de euros em juros desde 1980 (quando o banco central deixou de financiar o governo) até 2006 para fazer frente à dívida de 229 mil milhões existente nesse primeiro ano (Jacques Holbecq e Philippe Derudder, La dette publique, une affaire rentable: A qui profite le système?, Ed. Yves Michel, París, 2009). Ou seja, se a França houvesse sido financiada por um banco central sem pagar juros teria poupado 914 mil milhões de euros e a sua dívida pública seria hoje insignificante.
Na Espanha verificou-se o mesmo. Nós já pagámos, por conta dos juros (227 mil milhões no total desde então), três vezes a dívida que tínhamos em 2000 e apesar disso ainda continuamos a dever o dobro do que devíamos nesse anos (Yves Julien e Jérôme Duval, España:
Quantas vezes teremos de pagar uma dívida que não é nossa? ). Eduardo Garzón calculou que se um baco central houvesse financiado os défices da Espanha desde 1989 até 2011 a 1%, a dívida agora seria também insignificante, de 14% do PIB e não de quase 90% (Situação do cofres públicos se o estado espanhol não pagasse juros de dívida pública) .
E o curioso é que este juros que os bancos cobram às pessoas, às empresas ou aos governos e que lastram continuamente a sua capacidade de criar riqueza não têm justificação alguma.
Poder-se-ia entender que alguém cobrasse um determinado juro quando concedesse um empréstimo a outro sujeito se, ao fazê-lo, renunciasse a algo. Se eu empresto a Pepe 300 euros e isso me impede, por exemplo, de passar um fim de semana de férias com a minha família poderia talvez justificar-se que eu lhe cobrasse um juro pela renúncia que faço das minhas férias. Mas não é isso o que acontece quando um banco empresta.
O que a maioria das pessoas não sabe, porque os banqueiros encarregam-se de dissimular e de que não se fale disso, é que quando os bancos emprestam não estão a renunciar algo porque, como dizia o Prémio Nobel da Economia Maurice Allais, o dinheiro que emprestam não existe previamente e, na verdade, é criado ex nihilo, ou seja, do nada.
O procedimento é muito simples e o explicamos, Vicenç Navarro e eu, no nosso livro
Los amos del mundo. las armas del terrorismo financiero (p. 57 e seguintes):

Capa de 'Los amos del mundo'.

"Suponhamos que Pedro se deixa convencer por um banqueiro e deposita os 100 euros de que dispõe num banco, em troca do recebimento de um juro de 4% ao ano. Nesse momento, o banco faz duas anotações no seu balanço, que é o livro onde regista suas contas:
- Por um lado, anota que tem 100 euros como um activo (os activos são os bens ou direitos sobre outros possuídos por alguém) e, mais concretamente, em dinheiro metálico entregue por Pedro.
- Por outro, anota que tem um passivo (os passivos são as obrigações de alguém) de 100 euros, uma vez que esse dinheiro é na realidade do Pedro e terá que ser devolvido no momento em que ele o reclame.
Ao ser feito este depósito tão pouco mudou a quantidade de dinheiro na economia. Continua a haver 100 euros, ainda que agora estejam fisicamente em outro lugar, na caixa do banco.
Agora suponhamos que outra pessoa, Rebeca, precisa de 20 euros e vejamos o que acontece na economia se Pedro lhe empresta essa quantia ou se for o banco que o faz.
Se Pedro tem 100 euros e dá 20 em empréstimo a Rebeca a quantidade dinheiro existente na economia continua a ser a mesma: 100 euros, só que agora 20 estão no bolso da Rebeca e 80 continuam no de Pedro. O empréstimo entre particulares não alterou a quantidade dinheiro total ainda que produza um efeito importante: Pedro renunciou a poder gastar uma parte do seu dinheiro, os 20 euros que emprestou a Rebeca.
Mas o que acontece se não for Pedro quem dá um empréstimo de 20 euros à Rebeca e sim o banco?
Rebeca irá certamente atemorizada à agência bancária a perguntar-se se o senhor banqueiro lhe fará o favor de concedê-lo. Mas o banqueiro não tem dúvida: desde que recebeu o depósito de Pedro está a pensar que este, com toda a segurança, não vai retirar de repente a quantidade depositada, de modo que se deixar uma parte desses 100 euros depositado para atender aos seus reembolsos e encontrar outra pessoa que deseje um crédito pode fazer um bom negócio desde que lhe cobre mais do que os 4%.
Quando Rebeca chega ao seu banco, o banqueiro esfrega as mãos e, ainda que certamente disfarce para dissimular quem faz o favor a quem, conceder-lhe-á a seguir o empréstimo desejado de 20 euros a uma taxa certamente superior a 4%, digamos que a 7%.
Suponhamos que lhe põe essa quantia à sua disposição num depósito em seu nome e que lhe entrega alguns cheques ou um cartão com os quais pode utilizá-lo.
Quanto dinheiro há na economia no momento em que se concedeu o referido crédito?
Como a imensa maioria das pessoas pensa que o dinheiro é simplesmente o dinheiro legal, responderá que continua a haver 100 euros. Mas se entendemos que o dinheiro é o que é, ou seja, meios de pagamento, veremos claramente que há mais: Pedro pode fazer pagamentos com o seu livro de cheques no valor de 100 euros e Rebeca pode gastar os 20 euros que lhe deram de empréstimo. Portanto, desde o próprio momento em que se tornou efectivo o empréstimo, na economia há 120 euros em meios de pagamento. Não foram criadas nem moedas nem papel-moeda (continua a existir no valor de 100 euros) mas sim meios de pagamentos a que chamamos dinheiro bancário no valor desses 20 euros".

É assim que os bancos criam dinheiro a partir do nada quando dão um empréstimo. O banco cria dinheiro na medida em que cria dívida, mas o certo é que esta também se cria a partir do nada: simplesmente anotando o banco no activo do seu balanço que os 100 euros que Pedro havia depositado convertem-se agora em 80 mantidos na caixa e 20 num empréstimo concedido a Rebeca e que esta se obriga a devolver. Se não fosse assim, se o dinheiro que os bancos criam não nascesse do nada, a quantidade de dinheiro não poderia aumentar, uma vez que um bilhete ou uma moeda não se podem reproduzir a partir de si mesmos.
E se soubermos estas coisas tão simples já poderemos responder à pergunta do título: como se justifica que os bancos cobrem juros quando concedem empréstimos e por que não deveríamos pagá-los?
A resposta é clara: não há nenhuma justificação e não deveríamos pagá-los porque procedem de dinheiro criado do nada. Se os pagamos é só porque os banqueiros têm um privilégio exorbitante que nos impõem graças ao seu enorme poder.
Uma agência pública poderia criar esses meios de pagamento sem ânimo de lucro e sem nenhum custo, simplesmente controlando para que se mantenha a proporção adequada entre actividade económica e meios de pagamento.
Mas quando a criação de dinheiro é convertida no negócio da banca, é lógico que esta o cria sem cessar, promovendo a maior geração de dívida possível. A banca privada tende assim a aumentar a circulação monetária sem necessidade, artificialmente, e sem que ao mesmo esteja a aumentar a circulação de activos reais (porque isto obviamente não está ao seu alcance).
Está é a razão para que aumente tanto a dívida e não a de vivermos acima das nossas possibilidade ou de se gastar muito em educação ou saúde, como nos dizem sempre.
Já sabemos portanto o que é preciso fazer para que a economia funcione muito melhor: acabar com o privilégio da banca e impedir que possa criar dinheiro a partir do nada aumentando a dívida.
Outro dia explicarei a forma alternativa como poderia funcionar perfeitamente o sistema bancário sem que os banqueiros desfrutem deste privilégio que nos arruína constantemente.

23/Outubro/2012

[*] Professor catedrático do Departamento de Teoria Económica na Universidade de Sevilha.
O original encontra-se em
http://juantorreslopez.com/

PARANÓIA ESCOLAR

aijesus.blogspot – 26 out 2012

Nas escolas

[e não me perguntem o que é isso]
reina a ideia de que, quanto mais papelada se preencher e mais reuniões houver, de mais qualidade será o ensino. É preciso planificar
[a longo, a médio e a curto prazo]
e avaliar tudo
[diagnosticamente, continuadamente, sumativamente].

E os inspetores tratam de controlar essas planificações e avaliações. E avaliar em conformidade.
Não há empresa
[para além da escolar]
que tenha tamanha ilusão. Nem poderia...
escrito por
ai.valhamedeus

Canadá veta participação de países que praticam homofobia

Enviado por luisnassif, sab, 27/10/2012 - 18:15

Por Gunter Zibell - SP

http://www.umoutroolhar.com.br/2012/10/canada-veta-participantes-ugandenses.html#more

Canadá veta participantes ugandenses, por homofobia, em conferência

Dirigindo-se aos delegados da 127ª Conferência da União Interparlamentar, em Quebec, dia 23/10, a porta-voz do Parlamento de Uganda, Rebecca Alitwala Kadaga, informou que autoridades canadenses recusaram visto de entrada para a maioria dos parlamentares ugandenses, que iriam participar do evento, por estes terem aprovado uma lei criminalizando o casamento LGBT em seu país. Acrescentou que mesmo os dois deles que obtiveram o visto foram impedidos de fazer apresentações em plenária pelos organizadores da conferência.

Seguindo a orientação anti-homofóbica, as autoridades canadenses também negaram vistos de entrada para delegados de Mali e da Síria. No início da semana, o Ministro das Relações Exteriores, John Baird, já havia criticado a posição sobre direitos humanos tanto de Uganda quanto do Irã, sendo acusado por representantes dos dois países de arrogantemente querer interferir em seus assuntos internos.

Baird citou o histórico de violência homofóbica de Uganda e, em particular, o assassinato do ativista David Kato em 2011. Um mês antes, o Ministro da Justiça canadense Jason Kenney igualmente já havia dito que seu país estava determinado a promover os direitos LGBT em nível internacional. Como em outros aspectos, altamente civilizado, o Canadá deixa claro que a violência cometida contra grupos sociais não pode ser considerada mera questão de diferenças culturais e que deve ser combatida por todos os países democráticos do planeta até seu desaparecimento.

 

É incrível como passado mais de 500 anos da tentativa de domínio de uma visão eurocêntrica no mundo, ainda surgem medidas como essa que são uma verdadeira ingerência na cultura e política interna de outros paises. Queria ver se o Canadá faria o mesmo como os delegados da China (que também é homofóbica).

É o tipo de medida com puro objetivo de propaganda, sem uma real tentativa de mudanças. Ao apoiar tropas americanas em invasões ao Oriente Médio, o Canadá demonstra exatamente o contrário do que discursa em relação à democracia.

Mauricio Dias: O mensalão tucano está ligado ao processo eleitoral nacional e à reeleição de FHC

viomundo - publicado em 27 de outubro de 2012 às 16:03

por Mauricio Dias, em CartaCapital

Em breve, como se espera, o Supremo Tribunal Federal, após o julgamento do chamado “mensalão petista”, se encarregará do Inquérito 3.530, conhecido, mas ainda não popularizado, como mensalão tucano, igualmente originado em Minas Gerais e até agora ainda sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa, que assumirá a presidência do STF em novembro, pelo princípio do rodízio. Não se sabe se abrirá mão da tarefa. Provavelmente, sim.

O mensalão tucano, e não mineiro, como às vezes se diz e se escreve, ora por descuido e, principalmente, por má-fé, montado a partir de Belo Horizonte, em 1998, para a reeleição do então governador mineiro Eduardo Azeredo, está intimamente ligado ao processo eleitoral nacional e, por consequência, à reeleição de Fernando Henrique Cardoso.

Marcos Valério, o publicitário, ou operador financeiro, como é caracterizado, passou a ser o fio condutor de todo esse moderno processo de formação de caixa 2 que ainda norteou, em 2002, a primeira eleição de Aécio Neves para o governo de Minas Gerais (na revista ilustração da lista de Furnas). O dinheiro gerado em Minas se espalhava pelo País.

Nada pode ser entendido e for descartado, por exemplo, o livro “O Voo do Tucano”, do deputado petista Durval Ângelo, publicado em 1999. Praticamente circunscrito ao fechado mundo mineiro, onde tudo acontece e nada transpira, a obra ganhou alguma notoriedade na CPI dos Correios (2005), após as denúncias de Roberto Jefferson.

Valério era somente consultor financeiro quando se envolveu no processo de salvação da empresa de publicidade SMP&B. Por intermédio dele, o hoje senador Clésio Andrade aportou recursos na agência. Integrante, como vice, da chapa de Aécio Neves, ele repassou as ações para Valério numa operação cuja legalidade é discutida.

A sequência dessa história, que passa pela famosa Lista de Furnas, que a mídia tentou desqualificar, é conhecida e comprovada pelo advogado Dino Miraglia Filho, uma voz sem repercussão em Belo Horizonte.

Miraglia se ofereceu como assistente do Ministério Público na ação do mensalão tucano. Ele articula a esse processo a figura controvertida de Nilton Antônio Monteiro e a complexa história do assassinato de uma modelo que transitava com desenvoltura pelos caminhos abertos pela elite política e empresarial de Belo Horizonte.

Miraglia é uma acusador implacável e que não usa meias palavras quando trata do que chama de “crimes de corrupção praticados pelos ocupantes do governo de Minas desde 1987 e que perduram até hoje”. Ele não sonega nomes: Eduardo Azeredo, hoje deputado, ex-governador de Minas, e Dimas Toledo, ex-presidente de Furnas, ambos envolvidos na construção de caixa 2 na campanha de Aécio Neves.

“Diante da robustez das provas e após perícias que comprovaram serem autênticos os documentos apresentados por Monteiro, o grupo criminoso montou um riquíssimo esquema jurídico e midiático para desacreditá-lo perante a opinião pública”, argumenta.

Miraglia tem em seu poder “muitos originais” aguardando a intimação do STF para depositar no cofre da secretaria, especialmente o documento aqui reproduzido parcialmente. Os tucanos, na ausência de barba, devem botar o bico de molho.

 

Veremos agora algumas “verdades”. Saberemos se Joaquim Barbosa era o “carrasco” do PT, ou se seguia sua consciência, e o mesmo podemos dizer de Lewandowski, será que ele vai inocentar os réus do mensalão tucano?

Espero que como Dirceu (que nada fez pelo país), os tucanos envolvidos sejam expurgados da vida política do país.

Fatima Souza: Sobre os ataques a policiais em São Paulo

viomundo - publicado em 27 de outubro de 2012 às 13:17

EXECUÇÕES DE POLICIAIS: TEMA VIROU ROTINA

por Fatima Souza, repórter policial

A execução foi no meio da rua, com tanta violência que as imagens causam medo e lágrimas. Os dois homens estavam de tocaia e quando o sargento Marcelo Fukuhara saiu para passear com seu cachorro, na calçada de um bairro em São Vicente, Litoral Sul de São Paulo, foi assassinado com tiros de fuzil e metralhadora. Uma imagem chocante, de verdadeiro terror.

A morte dele foi uma de uma série de ataque do PCC — Primeiro Comando da Capital — contra Policiais (em especial militares). Ataques que há dois anos estamos denunciando aqui no SPAGORA e que desde o início de janeiro de 2012 se intensificaram de uma forma covarde e sem medo. Os bandidos sequer se preocupam em colocar capuz: atacam de “cara limpa” mesmo, como se tivessem certeza da impunidade.

Nós, pasmos e assustados, assistimos a ataques e mais ataques…

Todos os dias tem um. Seja na cidade de São Paulo, Baixada Santista, ABCD ou Interior do Estado.

O PCC fez até uma lista de policiais marcados para morrer. É claro que além dos nomes listados pela facção,a ordem é também matar qualquer policial que estiver “dando sopa”, seja quando ele sai ou vai para o trabalho ou para casa.

Nos jornais impressos, nos sites da internet ou nas emissoras de TV o assunto já nem está na primeira página. É como se fosse “comum” policiais serem abatidos diariamente, tocaiados pelos bandidos que parecem nada temer.

Samuel Claudio da Silva é um tenente que trabalha na Casa Militar e encarregado da escolta do Governador Geraldo Alckmin. Já viajou, inclusive, para o Exterior, em viagens do representante do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.

Por isso, certamente foi um dos alvos. O tenente chegava a sua casa quando foi surpreendido pelo matador que atirou sem nada dizer. O tenente levou um tiro de raspão no rosto e revidou, acertando mortalmente o inimigo. Mas o saldo de mortes ainda é muito favorável aos bandidos.

O estatuto do PCC, em seu artigo 18, é claro: a ordem é matar policiais. O estatuto original foi até alterado para que os bandidos incluíssem nele a missão a seus integrantes.

Contabilidade da Morte

Do início do ano até 18 de Outubro de 2012, 81 policiais militares foram executados, morrendo nas mãos do PCC. Também morreram 16 agentes penitenciários e 4 policiais civis.

Policial Militar e Deputado Estadual, o Major Olimpio contabilizou também que 105 outros policiais militares foram atingidos pelos ataques e balas do PCC, e, felizmente, apesar de feridos, sobreviveram. E tem ainda dezenas de ataques contra bases policiais e viaturas.

Como resposta o Governo de Geraldo Alckmin nega que a facção PCC tenha qualquer relação com os bárbaros atentados. 101 trabalhadores da Segurança Pública estão mortos e ele tem a coragem (ou covardia?) de fazer política, dizendo que a culpa é do Governo Federal (a Dilma, portanto) que não cuida das “fronteiras” do Brasil por onde entram armas e drogas.

Em 1995 fui a primeira repórter a denunciar a existência desta perigosa facção, porém o Estado negou, me taxando de mentirosa. E pelo que eu saiba foi São Paulo que “abriu as fronteiras”, “exportado” o PCC para vários outros Estados brasileiros, quando o próprio Geraldo Alckmin, mandou vários chefes do PCC para cadeias de outros estados, ajudando a espalhar a facção e suas ideias e ideais.

De São Paulo o Primeiro Comando da Capital não foi só para a quase totalidade dos estados brasileiros, mas também cruzou as fronteiras do Uruguai, Paraguai, Argentina, Colômbia e também rumo ao México.

Não ouvi, em nenhum momento, o Geraldo lamentar as mortes e consolar as famílias destes que tombaram pelas balas do PCC. O que vi foi a lamentável notícia de que o estado se recusa a pagar o seguro de vida destes profissionais alegando que eles “morreram fora do horário de serviço”!

Senhor Governador eles morreram porque são policiais e o PCC está caçando policiais, de dia e de noite, e vencendo esta guerra.

Também sem cerimônias o Secretário da Segurança Pública de São Paulo, Ferreira Pinto, disse em coletiva a jornalistas, para quem quisesse ouvir que as execuções não são obra da facção criminosa.

“A imprensa é que exalta esta facção… na realidade nós temos informações seguras… e eu posso dizer pelo nosso Serviço de Inteligência que não tem nenhuma vinculação ai com esta facção, que, alias, se fosse tão competente não estaria dentro de presídios”, disse o Senhor Secretário da Segurança…

E o que eu posso dizer é que esta facção domina totalmente as cadeias paulista a que o Secretário se refere…

Posso dizer que então, o “serviço de inteligência” dele é burro e que ou o Secretário está mentindo ou está sendo enganado por seus informantes.

Rasgo meu diploma de jornalista e queimo o livro que escrevi sobre a facção se os ataques não estiverem sendo liderados, ordenados e executados pelo PCC, Facção se que criou nas cadeias paulistas e foi “engordada” pela total anemia e falta de ação do Governo de São Paulo nos últimos 19 anos, que é o tempo que a facção existe.

Como disse o Major Olimpio, em protesto que reuniu 300 policiais na Praça da Sé no dia 16 de Outubro passado: “assistimos aos policiais serem dizimados e não adianta dizer que não existe, que é uma lenda, que não acontece. O PCC está matando policiais”.

Nesta mesma cerimônia, cruzes negras foram colocadas no chão em frente a Catedral da Sé, numa referência aos policiais assassinados, executados, mortos pelo PCC neste ano.

Eu pergunto: quantas cruzes negras serão necessárias ainda para que o Estado admita a verdade?

sexta-feira, outubro 26, 2012

Antônio Luís von Hoonholtz – Parte I

 
Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 25 de outubro de 2012.

Continuando nossas pesquisas sobre as Comissões de Limites Brasil-peruvianas chegamos à magnífica biografia do Barão de Tefé escrita por sua nora, casada com seu filho Álvaro de Tefé. Tetrá de Tefé dedicou ao famoso parente uma rica obra intitulada “Biografia do Almirante Antônio Luís von Hoonholtz” editada pelo Centro de Documentação da Marinha em 1977. Reportaremos o primeiro de dois de seus capítulos que abordam interessantes passagens de Tefé quando este era Chefe da Comissão de Limites Brasileiro-peruviana de 1874.

Capítulo XVII

A Questão dos Limites Entre o Brasil e o Peru

Terminada sua missão no Paraguai, após 4 anos de heroísmos e sacrifícios quase acima do possível, tendo estado exposto 22 vezes em linha de fogo, Onóltz parte de Humaitá rumo à pátria, a 30 de agosto de 1868. Nunca mais aquele viandante das águas tornaria a ver os Rios onde tantas vezes estivera a um passo da morte e tantas vitórias lhe aureolaram a fronte.

Chegado à Corte, de retorno da segunda etapa da campanha, igual em importância no desfecho do Passo do Tebicuari à primeira, reassume incontinenti seu lugar de Chefe da Comissão Hidrográfica no empenho de prosseguir os trabalhos de levantamento de toda a Costa do Império, objetivo intensamente visado por ele havia já 6 anos, desde sua prolongada permanência em Santa Catarina antes da guerra.

Seria, no entanto, em outro plano de combatividade — embora hidrográfico e astronômico — que iria continuar a servir seu País. Plano, aliás, tão altamente dignificador pelas abnegações que iria dele exigir, como a do próprio conflito armado no Sul do continente. Este seria bem ao Norte do Brasil, na longínqua Amazônia, para a demarcação dos limites entre o Brasil e o Peru. Uma Comissão Científica se dá idéia de que para solucioná-la as únicas armas a empunhar serão a pena, o lápis, sextantes, telescópios, cronômetros, balizas etc., torna-se penosíssima quando — ao penetrar em regiões incultas, sertões indevassados e habitados por selvagens ferozes e de clima inóspito — se vê em luta contra todos os elementos sem meios de defesa adequados, principalmente contra as doenças tropicais.

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Antes, porém, de estar assente a nova e ingente Comissão, deu-se um episódio digno de nota: certa manhã achava-se Onóltz à cabeceira de sua jovem esposa (Didila) então adoentada, quando foi avisado que seu amigo Dr. André Rebouças o esperava no vestíbulo para uma comunicação urgente.

Com o ar estabanado que lhe era peculiar (contava Tefé), Rebouças foi logo exclamando ao vê-lo:

—    O Conde d’Eu anuncia sua nomeação para General-em-Chefe do Exército em operações no Paraguai e o desejo que tem de levá-lo em seu Estado-Maior.

Pela primeira vez Onóltz fraqueja, na santa fraqueza do amor e da espera do 1° filho que em breve nasceria. Deve ter-se dado em seu espírito uma substituição de valores, ao contemplar com os olhos da alma uma paisagem interior tão bela que lhe entibiou a vontade. Como se fosse uma decisão libertadora, respondeu meio amuado:

—    Oh! Rebouças, pois não sabes, como o Conde também, que deixei minha mulher 34 dias depois de casado e parti pela segunda vez para o Teatro da Guerra? Agora que acabo de chegar, hei de entrouxar de novo minhas roupas, partir pela terceira vez, servir fora de meu elemento e representar o papel de oficial de cavalaria? Se fosse para novamente entrar em combate, partiria incontinenti. Mas esta é apenas uma honraria e uma distinção...

Um tanto desapontado, Rebouças não o contradisse:

—    É pena — concluiu — Grande pena. A Comissão seria muito promocional. Mas... estou com o tílburi à porta. Volto já ao Palácio Isabel e transmitirei ao Príncipe as tuas razões. Certamente, ele não pensou senão em ter a seu lado um oficial da tua envergadura...

Tílburi: carro de duas rodas e dois assentos (tilbureiro e passageiro), sem boléia, com capota, e tracionado por um só animal. Foi inventado por Gregor Tilbury, na Inglaterra, em 1818, e trazido para o Rio de Janeiro em 1830. (Nota do Autor)

Quando no dia seguinte, Onóltz foi agradecer ao Conde a subida honra do convite, este lhe cortou a palavra:

—    É a mim que compete pedir desculpas. Compreendo sua situação; mas, como desejo ao meu lado um Oficial de Marinha capaz de assessorar-me no que for concernente à Esquadra, peço-lhe que me indique quem pode substituí-lo.

Depois de um instante de reflexão, Onóltz respondeu:

—    Se V. A. levar o Salgado não se arrependerá.

Eis como no lugar que lhe fora reservado, figura o eminente Comandante João Mendes Salgado a cavalo junto do Príncipe General-em-chefe em um quadro a óleo do fim da guerra do Paraguai.

Aliás, mantendo sua promessa, Didila não dissera palavra, nem usou do ardil de lágrimas silenciosas. Deixou o marido em completa liberdade de escolha. A prioridade dada ao amor fez Onóltz ganhar uma partida, que no fundo foi uma perda. (Muito mais tarde, quando Tefé se referia a esse quadro, no qual não figura, repontava em sua voz certo laivo de arrependimento). Por que terá ele agido assim na hora exata da recompensa a tantas lutas? É que em toda existência humana atua repentinamente o impessoal, ou antes o mais forte do que o pessoal, o cósmico, que obedece exclusivamente ao impulso momentâneo, O como? e o por quê? serão sempre um impenetrável arcano.

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Preparava-se Onóltz com empenho para levar a efeito por fim em larga escala os trabalhos hidrográficos da costa brasileira, quando foi inesperadamente nomeado pelo Ministro de Estrangeiros de então, que era ao mesmo tempo Presidente do Conselho — o Visconde de São Vicente — para Chefe da Comissão de Limites entre o Brasil e o Peru.

Tolhia-lhe um pouco a liberdade de ação o fato de que outro Oficial da Armada tivesse iniciado essa mesma incumbência. Daí certa relutância às instâncias de São Vicente e aos contínuos chamados ao Palácio de São Cristóvão. Não queria dar corpo àquela hesitação mais semelhante a uma premonição de que iria pisar num campo minado. Mas às suas justas ponderações que a Comissão era antes da competência de um engenheiro do que de um Oficial da Armada, respondeu-lhe o Imperador, numa das audiências:

—    Lá, nesse sertão, preciso de um homem de guerra que não se deixe massacrar pelos bárbaros selvagens, e preciso, ao mesmo tempo, de um hidrógrafo para levantar as Cartas dos Rios e de um astrônomo que saiba determinar as coordenadas dos Marcos. A Comissão é sua.

Platão não admite o ego como centro de uma esfera de atividades transcendentes. Já para Kant esta concepção é uma necessidade interior. Por cético que se seja há, geralmente, na vida, um ponto onde a análise emudece e a fé começa. O destino de Onóltz estava traçado. Não era uma autodeterminação; era uma predestinação. Em seu horizonte projetara-se a Amazônia.

Assim, depois dos riscos de uma prolongada guerra, inerentes ao seu “métier”, apontava-lhe o Monarca uma entrada bandeirantista em impenetradas regiões amazônicas de há um século passado! Aliás, com uma frase-luz Cassiano Ricardo dogmatizou:

—    Quando entra no mato a primeira Bandeira, termina a História de Portugal e começa a do Brasil.

    O fragor do bandeirantismo reboa através dos séculos XVI, XVII e XVIII, durante os quais os homens de coragem vivem em função da busca de terras interioranas e das minas de ouro, prata, brilhantes e esmeraldas que — diziam as lendas — elas contêm. Fanatizados pelo mito, lá se iam os bravos mata a dentro, não sem antes fazerem suas invocações:

—    Peço ao Anjo Gabriel e ao Santo de meu nome e ao Anjo de minha guarda que me queiram acompanhar.

Assim, fundindo mitos e crenças no mesmo fascínio, partiam devorados pela fome do ouro, para muitas vezes morrerem de fome. Mas os que resistiam aos perigos, seguiam em frente sua trilha construtiva, desbastando florestas virgens e criando à sua passagem Aldeias e Vilas que seriam as placentas comunicadoras entre aquele presente e as grandes cidades do futuro. À mensagem de Portugal: “Tropa de gente de São Paulo, que vos achais às margens do Tocantins, eu, o Príncipe, (D. Sebastião), vos envio muito saudar”, respondem desafiantes e orgulhosos: “Iremos a pé de São Paulo ao Peru; e isto não é uma fábula”. Realmente, a marcha prosseguiu incontida até as regiões andinas, barragem intransponível que os obriga a estacar.

Mas, o bandeirantismo — perspectiva em profundidade na audaciosa paisagem brasileira —, com seu conteúdo dinâmico para o sentido histórico, já que a distância no Tempo é uma forma de energia, por mostrar-nos de quanto foi capaz o homem em suas realizações, o que impulsiona as novas gerações, o bandeirantismo não morre ali ao sopé dos Andes, durante a centúria de XVIII. Apenas muda de estilo. No século seguinte, o de Onóltz, no país em plena evolução sócio-geográfica, chega a vez de os cientistas serem os bandeirantes das demarcações dos limites ao Norte do Império numa luta com o meio ambiente, tão encarniçada quanto a dos desbravadores primitivos.

Foi com o Peru que o Brasil teve as maiores dificuldades em demarcar seus limites divisórios, máxime (especialmente) em face da histórica questão do domínio lusitano e espanhol no Novo Mundo. Muitas preocupações, atritos diplomáticos e perdas de vidas preciosas já haviam causado a ambos os países os delineamentos das fronteiras sem que nenhum trecho ficasse solidamente demarcado.

Isso porque, até quase quatro séculos após a descoberta do Brasil, nenhum homem civilizado ousara penetrar na região superior do misterioso Rio Javari na Amazônia, o verdadeiro Rio limítrofe com o Peru.

Em 1866, querendo os dois países pôr termo à secular questão, decidiram enviar uma Comissão Mista, chefiada por cientistas de grande valor: Soares Pinto pelo Brasil, D. Manuel Rouaud y Paz Soldan pelo Peru, que deveriam explorar o Rio Javari, por cujo álveo corria a fronteira, até sua principal nascente. Malgrado (a despeito de) cuidadosamente organizada essa Expedição, não puderam, entretanto, os mal-aventurados demarcadores subir o Rio em canoas por mais de oito dias. Subitamente atacados por ambas as margens pelos índios bravios, Mangeronas e Cataquinos, que dominavam toda essa imensa região, a devastação foi tremenda.

Da encarniçada luta, somente um terço dos expedicionários logrou fugir, salvando-se o chefe peruano Paz Soldan, gravemente ferido por 5 flechadas (4 ou 5?), enquanto caíam massacrados o Chefe brasileiro e toda sua escolta, bem como as tripulações indígenas mansas que os seguiam nas canoas, das quais os silvícolas se apoderaram e levaram tudo que continham: armas, roupas, instrumentos científicos e todos os víveres. Por não estarem ervadas as flechas que feriram Paz Soldan, este pode salvar-se amputando uma perna em condições dramáticas.

Algum tempo depois desta Expedição, partiu para o Norte o Comandante José da Costa Azevedo que — diz Lery Santos:

durante cerca de cinco anos exerceu o cargo de demarcador do qual fora exonerado sem nunca ter conseguido estabelecer definitivamente uma só das linhas da fronteira.

Costa Azevedo alcançou apenas o Rio Japurá e lá — segundo seus cálculos — fincou um marco divisório. Como, entretanto, o Peru não se tinha feito representar, não o considerou válido. Daí ter o Imperador insistido em formar outra Comissão chefiada por Onóltz, já então uma sumidade em Hidrografia e Astronomia.

Pelas vias diplomáticas, encarregou-se o Governo do Peru de formar ao mesmo tempo a sua Comissão, que seria chefiada ainda desta vez por quem já estivera na Amazônia: o renomado astrônomo D. Manuel Rouaud y Paz Soldan que, com seus assistentes, viria ter ao Rio para da Corte partirem juntas ambas as Comissões.

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Costa Azevedo, muito envolvido em questões políticas no Partido Liberal, desde que se elegera Deputado quando de sua permanência na Amazônia, mesmo estando no Rio não procurou Onóltz. Por seu lado, este não considerou de bom tom visitá-lo, visto ser notório que o Governo perdera nele a confiança desde que escolhera substituto para a mesma finalidade. Deu-se assim o caso estranhável de partir um Oficial para prosseguir trabalhos encetados por um camarada que nem de vista conhecia, e do qual nenhum apontamento recebera.

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Munido apenas do Mapa Geográfico da região do Solimões, que compreendia a Linha Geodésica da fronteira Setentrional entre Tabatinga e Apaporis, traçado em grande escala por Costa Azevedo, sem a presença dos demarcadores peruanos, e na qual se lia, em letras garrafais, de um lado: Império do Brasil, e do outro: República do Peru, persuadiu-se Onóltz de que nesse trecho nada mais teria o chefe peruano a fazer senão verificar a exatidão do marco extremo, plantado em frente à Boca do Apaporis. Isto posto, restar-lhes-ia forçar a selvagem barreira humana que desde a passagem de Orellana pela Boca do Javari tapava esse Rio temível, de forma a que nenhum explorador ou flibusteiro conseguira navegar em canoa por mais de três dias sem ser massacrado. Confiante em seu dinamismo e na bravura dos imperiais marinheiros e da marinhagem (pessoal de bordo do navio) que o acompanhavam desde as batalhas do Paraguai, e se porfiavam em obter ordem de partida sob seu comando, não computou Onóltz em mais de um ano sua ausência.

A realidade foi outra: os trabalhos das Expedições Demarcadoras dividiram-se, pela fatalidade, em duas etapas, o que de muito prolongou a estada de Onóltz nas brenhas amazônicas. Foi um contratempo dramático: houve uma primeira etapa 1871-1872 em que a Comissão peruana foi presidida por Paz Soldan, enviado por seu Governo, não apenas por ser uma sumidade em astronomia, como, e principalmente, por já ter estado na Amazônia, em 1866, com a missão Soares Pinto, a qual se malogrou em tão trágico desfecho. E quase três anos depois, em 1874, teve início a segunda etapa, ainda mais penosa e arriscada que a primeira, assumindo a Chefia da Comissão peruana o Capitão-de-Fragata D. Guilherme Black.

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Em 1871, partiram juntas da Corte as Comissões Brasil-peruvianas, no rudimentar e moroso navio Marcílio Dias na rota do longínquo Pará, já que a Flotilha do Amazonas passara a ficar sob o comando de Onóltz. Esperava-o em Belém uma grande surpresa: Juca, o tão querido Juca (o antigo líder da família), que fixara residência em Manaus, lá constituíra seu lar e se fizera eleger Deputado Provincial, foi o primeiro a receber os viajantes.

Ora, tendo sido Carlos nomeado agrimensor da Comissão, iam ver-se os três irmãos reunidos depois de cerca de quinze anos de separação. O encontro foi de grande emoção e juntos escreveram uma carta cheia de amor à D. Joana Cristina (matriarca).

Mesmo sob a égide de um Deputado experiente, as dificuldades para os aprestos indispensáveis ao desempenho da missão de tanto vulto, e as delongas inexplicáveis de Paz Soldan, excessivamente minucioso, sempre à procura de maior segurança, obrigaram-nos a ficar aí muito mais tempo do que supuseram.

A concentração das duas Expedições fora convencionada por motivos técnicos fluviais, para dar-se na desprovida cidade de Tefé, às margens do Rio do mesmo nome.

Necessário é ter-se diante dos olhos o mapa brasileiro para conseguir-se a visão panorâmica das distâncias formidáveis percorridas pelas Comissões até o ponto do ancoradouro. Esses percursos eram, no entanto, apenas a primeira página da saga empolgante que eles iam viver. Embora na azáfama dos preparativos para a partida, Paz Soldan insistia amistosamente, através de cartas, em que adotassem a Linha do Madeira ao Javari, mesmo deslocada para 9°30’ de Latitude Sul. Onóltz, que nunca soube maneirar, e era mesmo o antípoda do maneirista, delicada mas energicamente, repeliu a proposta, a ponto que Paz Soldan não voltou mais ao assunto.

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A 12 de janeiro de 1872, escrevia Paz Soldan:

—    He recibido el oficio de 28 diciembre en el cual tiene U. a probar en pocas palabras las justas razones que tiene el Gobierno Imperial para ordenar-le en el capitulo 5° de instrucciones de colocar el marco de Limites en el Río Javary...

A 17 de abril, voltava à carga:

—    ... al paso que al que suscríbale le ordena el Gobierno colocarlo en la semidistancia del Madeira en los 7°40’ ó sea 2°40” mas al Norte suponiendo que el Río llegue a una Latitud más Austral, pues solo bajo este hipótesis puede haber discusión, porque del contrario la naturaleza cortaba toda disputa. Esta divergencia tiene que aumentar cuando haga (palavra ilegível) solamente del Madeira porque necesita la salida natural de los Departamentos Orientales bañados por los afluentes del Madre de Dios.

    Junto con este oficio tengo el honor de remitir a U. un mapa formado especialmente para estudiar esta cuestión y la memoria científica que manifieste como ha sido formado dicho mapa especificando las autoridades en que me fundo.

    En cuanto a mi puede U. estar seguro que no pondré embargo para llevar a buen termino la demarcación, pues era ello están internados nuestros países y nuestro propio deber.

    No será este pues un obstáculo para surcar el Javary y para presentar medios conciliatorios dejando en último caso que nuestros Gobiernos resuelvan dificultades para cuya no estuviéramos atorgados.

    Reitero a U. la seguridad de mi más alta consideración y aprecio.

    Ass. Manuel Rouaud y Paz Soldan.

(Desses debates, publicados no “Jornal do Commercio” da época, escreveu Euclides da Cunha, em 1907, ao Barão de Tefé:

Acompanhei todo o debate entre V. Exª e o Sr. Manuel Rouaud Y Paz Soldan. A minha veneração por V. Exª baseia-se, portanto, em elementos positivos e eloquentíssimos. O meu juízo no tocante à nobilíssima atitude do Comissário brasileiro 1871-1874 tem este valor: é a primeira voz da justiça incorruptível.

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Afinal, após terem vencido dificuldades de toda ordem, cada Comissão em seus pequenos navios, rumaram ambas para a primeira meta: o Japurá. A Comissão Brasileira já ia desfalcada do imediato, com quem o trato não era ameno, e quanto aos trabalhos astronômicos de que estava incumbido deixaram muito a desejar. Na Foz do afluente Apaporis instalaram os observatórios (Onóltz na margem esquerda; Paz Soldan, na direita), ficando entendido que a média das observações referidas ao meio do Rio, indicaria o ponto Extremo Setentrional da fronteira comum. Ora, como essas coordenadas já haviam sido calculadas pelo seu antecessor Costa Azevedo, o Marco do Rio Japurá tinha de ser procurado entre o mato que cobria a margem direita do Rio, para ser validado pela parte contrária. A verificação era necessária, para que Paz Soldan apusesse sua assinatura na Ata lavrada antes pela Comissão exclusivamente brasileira. Esta circunstância fazia rir o Chefe peruano, que dizia, irônico, ao instalar seus instrumentos:

—    Ahora, colega, prepare-se usted a cambiar el marco algunas millas mas abajo. El Señor Azevedo que lo planto sin la fiscalización de nosotros, ciertamente robo al Perú una facha de territorio, que tendré el gusto de reivindicar.

Iniciadas as observações, e antes de decorridas 24 horas, calculadas as alturas do Sol à tarde e das estrelas durante a noite, achou Onóltz na manhã seguinte tal diferença na carta litografada pelo Governo Imperial, que se absteve de tocar no assunto, para não mostrar-se precipitado. Nos dias seguintes — pelo Sol, Lua, e estrelas — resultados idênticos: grande diferença com as coordenadas fixadas por Costa Azevedo. Coisa inesperada, porém: a posição de seu marco prejudicava o Brasil e não o Peru!

Nessa noite, executados e revistos seus cálculos, foi no escaler “Parazinho” visitar o colega a bordo do peruano “Napo”. Paz Soldan começou monotonamente a falar sobre a próxima exploração dos Rios Içá e Putumaio; sobre as tribos dos Curetus, cujo tuchaua lhes fora oferecer bananas e carás; sobre o calor tórrido, os mosquitos que os devoravam e os impediam de dormir... Qual! O peruano fugia de referir-se às observações astronômicas. Finda a visita, ao despedir-se dele e em presença de seus ajudantes, disse Onóltz a rir-se, parodiando-lhe a frase:

—    ¿Entonces colega, está usted preparado para acompañar el marco algunas millas por el Japurá arriba hasta su posición exacta?

Paz Soldan respondeu que ainda não executara os cálculos e que só depois de mais 8 dias de observações minuciosas, pedir-lhe-ia uma conferência para a confrontação dos trabalhos. Findo o prazo, as divergências entre as médias dos dois Chefes eram insignificantes. Paz Soldan, porém, exigiu mais outros oito dias. E eram longos dias de Sol torturante, de mosquitos venenosos, doenças e lutas contra os agravos da Natureza primitiva.

Durante essa semana, Onóltz corrigiu o levantamento hidrográfico de outra grande extensão do Rio Japurá, feito por Costa Azevedo. Reunida novamente a conferência das duas Comissões, teve Paz Soldan que submeter-se à lógica dos algarismos e concordar, declarando em tom formal:

—    Señor Comisario, si yo hubiera previsto en mi país lo que está sucediendo en este momento, le aseguro que Usted no me tendría aquí a su lado. Jamás he creído en un tal error por parte del Sr. Azevedo.

Com toda a solenidade foi destruído o marco existente e plantado o novo em seu verdadeiro lugar, reivindicando Hoonholtz para o Brasil uma área fertilíssima de centenas e centenas de km2 (405.000 km2, no dizer de Carlos da Silveira Carneiro). Lavraram de tudo o competente Auto em português e espanhol, assinado por ambas as Comissões, mas sem aparência de festa, pois os brasileiros não desejavam melindrar seus colegas peruanos, com quem haviam estreitado laços de amizade e camaradagem.

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É claro — disse Tefé mais tarde em carta — que tendo sido sempre a Astronomia e a Hidrografia as minhas especializações, eu não poderia ficar de braços cruzados na Boca do Apaporis enquanto o Delegado do Peru procedesse à verificação das coordenadas do marco plantado tempos antes por Costa Azevedo. Lancei, pois, mão dos meus instrumentos, e pasmado fiquei ao encontrar o erro, e tão considerável, contra o Brasil. Como agir? Calar-me, tornando-me conivente no crime de lesa-pátria, somente para não melindrar um imperito demarcador? Impossível! Seria trair a confiança em meu saber depositado pelo próprio Imperador.

Fiz o que me cumpria fazer. Dediquei-me de corpo e alma à minha Comissão e ao finalizá-la pude dizer de cabeça erguida: o Comissário cumpriu seu dever.

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Após 18 dias de permanência só nesse ponto, decidiram descer o Japurá. Foram, porém, obrigados a fundear logo ao escurecer para evitarem encalhe ou choque nas madeiras flutuantes que coalhavam o Rio. À noite — consigna Onóltz — refrescara e da mata virgem vinham umas lufadas de vento que espalhavam no ar, impregnando a embarcação, um cheiro delicioso de fava de cumaru misturado a vagens de baunilha.

Assim acalentados os homens da equipagem, em breve, ferraram no sono. Pela madrugada, uma triste surpresa os aguardava. Quase toda a tripulação estava impossibilitada de saltar das macas! Prostrados e ardendo em febre, os homens gemiam, e mesmo gritavam, de dores nos artelhos, aumentadas quando se esforçavam para pôr-se em pé. Indene (ileso), Onóltz foi acordar o médico Dr. Carneiro da Rocha, que a todos ministrou café quente com quinino em pó. A horrível beberagem não aliviou os atacados, nem obstou que outros fossem caindo com o mesmo mal.

Por volta do meio dia aproximou-se o escaler do Napo, trazendo o Secretário Froilan Morales aflito a pedir o médico para atender ao chefe Paz Soldan, que sofria de dores atrozes em sua única perna. A maior parte da guarnição peruana, inclusive a gente da máquina, achava-se também atacada. Uma semana durou a dramática crise. Das 52 pessoas que formavam a guarnição do “Parazinho”, só 3 praças se conservaram imunes: o Prático (caboclo de Manaus), um curumin, seu filho e o cozinheiro negro da Flotilha do Amazonas. Foi o que valeu a ambas as expedições, pois a todos atendiam.

Enfraquecidos e minados pela estranha febre, partiram, por fim, desse Rio pestífero em direção a Tefé, onde fundearam dois dias depois. O Napo trazia ainda muita gente em estado grave, inclusive o Chefe Paz Soldan. Até então ainda não tinha havido perdas de vidas. O primeiro cuidado de Onóltz foi conseguir um grande armazém para sua guarnição, enquanto se procedia a desinfecção do navio. A Comissão Peruana estava melhor acomodada, porque Paz Soldan, antes da subida ao Japurá, alugara a casa de uma família abastada, em vilegiatura (temporada) no Pará. Ao tomar posse da chave, o Chefe peruano notara que a alcova da sala de visita, onde pretendia dormir, achava-se solidamente trancada. Interpelado, declarou o Procurador do proprietário que nessa peça depositara o dono um objeto sagrado, que não devia ser profanado por olhares curiosos. Paz Soldan não insistiu; no entanto, como no trato era jovial, dizia sempre:

—    Tengo ganas de hacer en estillas esa puerta, para mirar tal objeto tan sagrado... (Tenho vontade de partir em lascas essa porta, para ver um objeto tão sagrado...)

Mas, dormia tranquilo no quarto ao lado. Quando regressou doente, teve de desembarcar carregado em maca de bordo. Ao deitarem-no em sua cama, exclamou consolado:

—    Como me siento bien ahora en esta casa y en mi lecho!

Pelo fato de não haver médico em Tefé, o Dr. Carneiro da Rocha empenhava-se em salvar o doente, e o enfermeiro Paixão, igualmente brasileiro, em prodigalizar-lhe os maiores cuidados, bem como as famílias da localidade esmeravam-se em proporcionar-lhe uma dieta compatível com seu estado melindroso. A febre, no entanto, tomara mau-caráter; e no 3° dia começara o enfermo a delirar, perdendo gradativamente as forças. Subitamente, murmurou uma canção de ninar e tamborilou de mansinho com os dedos na porta da alcova fechada. Foi sua última demarcação de limites. Tocara a linha mortal da existência humana, que os muçulmanos chamam de “agel”. Pela madrugada expirou.

Imediatamente, Hoonholtz declarou ao Secretário Froilan Morales que tomava a si todas as responsabilidades do enterro do insigne peruano. Prevendo grandes dificuldades, dada a penúria do lugar, chamou o Procurador do proprietário da casa alugada por Paz Soldan, para pedir-lhe que se incumbisse de encomendar um caixão de primeira classe, condigno com o grande cientista extinto.

—    Que caso singular! respondeu-lhe o Procurador. Encostado naquela porta fechada, do outro lado, está guardado um rico caixão de defunto, que a esposa do seringalista Pacheco mandou vir de Belém, quando o marido voltou muito mal do Juruá. Mas a família mudou-se para o Pará. Posso, portanto, ceder o caixão em veludo negro recoberto de galões dourados, para que o chefe peruano seja nele enterrado.

Assim, o astrônomo peruano foi sepultado por Hoonholtz no cemitério de Tefé, com todas as honras que lhe eram devidas. Se dei especial enfoque a essa agonia e a esse morto é que, ao ler o relato, senti quanto é mesquinho o conteúdo da vida humana a oscilar entre o ímpeto de sobrevivência e a inexorabilidade da morte. Naquele instante, todo o anelo de domar a Natureza e toda a força de resistência do vencedor de tantas lutas, rolaram pelas nuvens e entraram no horizonte inflexível e eterno.

Admiro a fibra desse homem que, já mutilado, volta às paragens inóspitas e agressivas, para servir sua pátria. Mas que sobreleva ao seu patriotismo o absoluto senso de imparcialidade, revelado nas espinhosas questões do Japurá e do Madeira. Honra ao bravo peruano!

A morte do íntegro Paz Soldan foi um impacto para ambas as Comissões. Além do sentimento pesaroso por tão grande perda, pairou no ar a idéia da suspensão dos trabalhos de demarcação. Por quanto tempo? O Secretário Froilan Morales e o Ajudante Rincon não titubearam: partiram para Iquitos. Ficou, assim, terminada tragicamente a primeira etapa da missão: Hoonholtz-Soldan.

Não havendo ainda telégrafo no Brasil (só inaugurado em 1874), apressou-se Onóltz em remeter pelo correio marítimo um ofício minucioso ao Ministério do Exterior narrando a desastrosa ocorrência e a suspensão dos trabalhos. Pedia, portanto, permissão para recolher-se à Corte, enquanto esperava a formação da nova Comissão Peruana. Aproveitou para comunicar o excelente resultado de seus cálculos e observações e consequente reivindicação para o Brasil da imensa área que na Carta Costa Azevedo era atribuída ao Peru.

Terminou o ofício com a remessa ao Governo de todos os seus trabalhos científicos e solicitando que, apesar de já aceitos pela parte contrária, como se verificava nas Atas das conferências de ambos e no Ato solene do assentamento do marco definitivo, os submetesse à Comissão de lentes de astronomia e cálculo presidida pelo Diretor do Observatório do Castelo, para dar parecer.

Recebido, enfim, no Rio o ofício de Onóltz, foi chamado para determinar sobre seus cálculos e estudos, o respeitável e eminente matemático Dr. Vila Nova Machado. Este mestre, por forma tão lisonjeira se expressou, após minucioso estudo da matéria, que o Gabinete Rio Branco fez ver à Sua Majestade a vantagem da continuidade de Hoonholtz na Amazônia, à testa da Comissão de Limites.

Como seria, porém, justo um incentivo à tão árdua permanência no Norte, mandou o Governo oferecer-lhe a Presidência da Província do Grão-Pará, sem prejuízo de seus vencimentos, enquanto durasse a espera da nova Comissão Peruana.

Essa proposta, chegada 4 meses depois, deixou Onóltz perplexo. Pesou prós e contras, mediu a problemática em que se engolfava a Província, para cuja solução demandava longo prazo; e seu cérebro hiper-dimensionado tomou logo a resolução adequada:

—    Sou um militar; não, um político. Prefiro esperar a nova Comissão na Corte junto de minha família. (A jovem e querida esposa Didila e os filhos que deixara, um com dois anos e o outro com dois meses de nascido).

Outros longos meses de espera decorreram. Chegou então o Decreto que lhe concedia o título de Barão de Tefé, assinado pelo Imperador, referendado por João Alfredo, Ministro do Império do Gabinete do Visconde do Rio Branco, e remetido juntamente com uma carta do Marquês de São Vicente, datada de 11 de junho de 1873 (data da Batalha do Riachuelo), carta da qual extraí os seguintes trechos:

Nunca se conferiu o título de Barão a um Capitão-de-Fragata; e Sua Majestade espera que o brioso herói de Riachuelo não deixe de completar sua obra tão bem começada. Espere, pois aí com paciência, meu amigo, não arrede pé; é mais um sacrifício que faz, mas a pátria lhe agradecerá, como este seu velho amigo e apreciador — Marquês de São Vicente.

Tinha Onóltz então 36 anos de idade.

Muitas vezes indaguei de mim mesma por que o título se referia a Tefé, se a meta precípua era o Javari? Preocupação? Receio de cantar vitória antes do tempo? Mesmo que o feito do Japurá fosse muitíssimo suficiente para o prêmio, seria mais natural o nome desse Rio. Pesquisei o caso. Lancei mão, entre outros livros, da enciclopédia sobre os Municípios brasileiros do Mestre Jurandir Pires Ferreira. O Município de Tefé que, antes de desmembrado, teve mais de 500.000 km2 de extensão territorial, deita raízes muito profundas em nossa História. No século XVII, o jesuíta Samuel Fritz, na defesa de territórios que a Espanha considerava seus, fundou às margens do Solimões, várias aldeias, entre as quais a principal chamou-se Tefé, que é corruptela de Tapibás.

Aliás, todas as tribos dos arredores pertenciam à família linguística dos Aruaques. Na 1° década do século XVIII reivindicaram os portugueses para si as aldeias e mudaram o nome de Tefé para Ega. Por várias vezes espanhóis e lusitanos disputaram essas terras até que estes venceram definitivamente.

Em 1855, voltou a denominação de Tefé, que passou a ser conhecida como a cidade dos demarcadores, pois além de teatro de tantas rivalidades de donos, lá havia passado 9 anos D. Francisco Requeña, na incumbência de situar as terras nos domínios espanhóis. Em vão. Afinal a região acabara por não ser mais nem de um nem de outro lado dos contendores. Era e é bem brasileira, louvado Deus. Refleti melhor: “Cidade dos Demarcadores”. Dei razão ao Imperador, que escolhera pessoalmente o nome. Na verdade, é o título no Brasil que mais estreitamente vincula o feito ao agraciado.

E Onóltz, agora Tefé, permaneceu no Norte do Império, enquanto não mais meses, mas anos se sucederam. Especializado em Astronomia e Hidrografia, continua seu esquema: cálculos e observações. Percorre o Rio Amazonas até além do Pongo de Manseriche no Peru; o Hualaga até os contrafortes da Cordilheira dos Andes; o Rio Negro e o Japurá até as cataratas. Ainda o Apaporis, o Madeira, o Purus, o Jutaí, o Içá e parte do Juruá. Repito: só com os olhos em um mapa, pode-se avaliar a imensidão de tal roteiro. Seus trabalhos de demarcação das fronteiras com o Peru, propriamente ditos se estenderam desde o marco do Japurá (na confluência do Apaporis) à nascente principal do Jaquirana, linha sinuosa passando através de selvas virgens até o Putumaio; daí a Tabatinga; volta a Tefé; e então numa abertura de 2.000 km até a nascente do Javari, que teria início assim estivesse formada a nova Comissão Peruana.

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Entre uma exploração e outra, havia sempre um interregno de repouso, aproveitado por Onóltz e Carlos para passá-los com o Juca Manaus. Foi num desses intervalos de amizade e ternura, que o Juca leu o manuscrito do romance “A Corveta Diana” de autoria do caçula, escrito 10 anos antes em Desterro. Ficou entusiasmado. Considerou a obra de real valor e resolveu fazer uma surpresa ao autor mandando os originais para a tipografia. E exultou com o sucesso imediato que obteve a publicação, pois vários jornais ocuparam-se do livro pondo-o em destaque. O Diário de Pernambuco disse textualmente:

Encetamos hoje a publicação do romance marítimo — “A Corveta Diana” — original brasileiro do distinto Capitão-de-Fragata Antônio Luiz Von Hoonholtz e ultimamente impresso na Província do Amazonas, onde ele se acha na importante Comissão de fixar os Limites entre o Brasil e o Peru.

Esse trabalho literário é a reminiscência de um passado que, se ainda não vai longe, nem por isso deixa de merecer para os amigos as honras de uma memória. Recomendamos a leitura desse romance aos nossos leitores, que ficarão de certo satisfeitos não só pela elegante forma que o Autor lhe deu e pelos conhecimentos que mostrou desse ramo de literatura.

“O Diário” da Bahia, o “Pedro II” do Ceará, o “Despertador” de Santa Catarina, (em Desterro o livro foi teatralizado) e outros jornais emitiram juízo sempre lisonjeiro ao autor, mas dentre eles transcreverei apenas parte das notícias dadas pelo “Jornal do Commercio” do Amazonas e a “Reforma da Corte”. Diz o primeiro:

Uma das feições características da sociedade atual é a indiferença pela literatura; sentimos por isso verdadeiro prazer sempre que o aparecimento de um livro vem despertar-nos e mostrar que, à vertigem do progresso puramente material, escaparam alguns moços que às letras pátrias pagam o devido tributo. E essa agradável impressão produziu em nós a leitura de “A Corveta Diana”, romance marítimo da autoria do Capitão-de-Fragata Antônio Luiz von Hoonholtz. A ansiedade com que se devoram as folhas desse livro até o desfecho imprevisto, prova o interesse que sua leitura inspira; a originalidade e o gosto com que as cenas são descritas, a naturalidade com que elas se sucedem, deleitam e levam a reler-se o livro. Não nos propomos a fazer juízo crítico; o Sr. Hoonholtz tem conceito firmado, e se já era distinto por tantos trabalhos sobre as ciências exatas e suas aplicações, manifesta mais uma face do seu talento. Nosso fim é recomendar aos nossos leitores o romance, que não foi editado para ser vendido; eles que consigam obtê-lo de algum amigo do autor e aplaudirão o bom gosto, e como foi ele apurado na construção e ornamento da sua “Corveta Diana”.

Também se manifesta a “Reforma da Corte” de 7 de junho de 1873 (4 dias antes, portanto de haver sido conferido o baronato a Onóltz):

“A Corveta Diana” é o título de um lindo romance, devido à pena do Sr. Capitão-de-Fragata Antônio Luiz von Hoonholtz, distinto oficial da nossa Armada. É um romance marítimo e o autor faz-nos apreciar lindos e variados quadros da natureza brasileira.

E termina, depois de minuciosas apreciações:

Os episódios são narrados com verdade e os caracteres dos personagens bem delineados. O livro é escrito com elegância e amenidade.

Na realidade, Tefé sempre surpreende com a totalidade de dons que possuía. Seu cérebro pertence a um crisol de categorias conceptivas, na desenvoltura que, em quaisquer circunstâncias, aciona seu pensamento. E esse ecletismo foi o que sempre fez o privilégio de sua singular personalidade. Assim, “A Corveta Diana” representou um “intermezo” de prazer intelectual vivido pelos três irmãos, que sem o imaginar se reuniam, os três juntos, pela vez derradeira.

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Chegou por fim a hora da segunda etapa, que seria ainda mais cruciante do que a primeira. A nova Comissão Peruana chegou a Tefé em fins de 1873, chefiada pelo Capitão-de-Fragata D. Guilherme Black. Comentavam que esse oficial vinha cheio de prevenções contra o Império; no entanto, também ele cedeu à evidência dos algarismos, e no Rio Içá concordou em mudar o marco 6 léguas para cima, contra o Peru, visto achar-se convencido de que erradamente fora ali colocado na demarcação provisória. Com a convivência tornou-se grande amigo de Tefé, comprovando mais tarde sua amizade.

Juntos subiram alguns dos Rios já mencionados, sempre numa troca de cálculos e observações, porém muito preocupados com o preparo para a excursão ao Javari. Afinal, terminadas as prontificações para a grande jornada — armas, víveres, medicamentos, roupas e instrumentos científicos — a 17 de janeiro de 1874, peruanos e brasileiros, ao todo 82 pessoas, acomodaram-se, ou melhor: apinharam-se em 8 chalanas de fundo chato, com tolda corrida, guarnição de arame grosso e malhas finas, tática idealizada por Tefé, para preservá-los das flechadas. Assim partiram além do Paralelo Sul.

Desde o início defrontaram provações e privações. As chuvas eram torrenciais. A água penetrava nas chalanas e deteriorava os mantimentos. Derreteu-se o sal. A carne seca, base da alimentação, ficava cada dia mais aguada e insossa. Os biscoitos rançaram. Bananas e carás apodreciam, o café escasseava e o feijão ficou bichado.

Incansavelmente, mantendo-se acima de tão miseráveis condições de vida, Tefé consignava em seu mapa todas as observações astronômicas e meteorológicas: sondagens, velocidade de corrente, os redemoinhos mais perigosos, os bancos de areia, o aspecto das margens e os obstáculos encontrados na subida, isto é: as 176 árvores-pontes derrubadas pelos selvagens, para obstarem a passagem das embarcações, e que eles tinham que cortar com trabalho hercúleo, debaixo de chuva e de repetidos ataques das tribos das margens cada dia mais enfurecidas por verem suas selvas, até então impenetráveis ao homem branco, irem, a pouco e pouco, sendo devassadas.

Cada madrugada o toque de reunir dos índios acordava os expedicionários: era o soar da trocana e da capopemba. A primeira repercute como um tambor monstruoso; e a segunda produz o som longínquo do canhão numa salva prolongada. Mas, na data de 17 de março de 1874 (dois meses depois da partida), o trombeteio começou antes da aurora.

Ouviam-se alternativamente os tambores num fragor ensurdecedor, a cada momento mais próximo, já que repercutem pelo som como meio de comunicação. A primeira maloca que capta o aviso, transmite-o para a vizinha, e assim por diante até chegar a paragens longínquas, com prodigiosa rapidez. Cada som, em código, representa determinada palavra (mensagem) que os tamboreiros interpretam.

Os expedicionários entrevêem ao longe a trocana suspensa por um cipó timbó-titica, assentada sobre duas forquilhas e o fervilhar dos silvícolas ao redor do tambor. Tefé não recua. Por volta das seis horas ordena a partida e designa a chalana Mário, para navegar à frente. Pouco adiante a Mário dá sinal de selvagens à beira do Rio.

Pela primeira vez, em magotes compactos, eles atravessam o Rio, de margem a margem, sobre troncos de árvores e com o maior alarido, para o ataque bifronte. Dispondo a equipagem em posições estratégicas, mas sem perder tempo nem calma, invulnerável ao que se passa ao redor de si, Tefé continua seus trabalhos científicos metro a metro do Rio.

As escaramuças duram até o dia 5 de abril (19 dias) quando uma batalha feroz é travada entre flechas e balas. Em meio a mais renhida peleja, subitamente os índios fogem, abandonando um morto. Era um homem alto e musculoso, mas de pernas finas. Não trazia no corpo nenhuma cicatriz, nem marcas de mordeduras de répteis ou dos malditos mosquitos, que tanto desesperavam os brancos, cujos rostos e mãos viviam inchados e disformes pelas picadas. Para saber se o cadáver pertencia à tribo dos Mangeronas, que havia dizimado a Expedição de 1866, o corpo foi examinado pelos índios mansos Ticunas e Jávaros, que acompanhavam a Expedição como remadores e intérpretes. Nem pela pintura, nem pelas armas encontradas nos terrenos circundantes (15 flechas com pontas de osso e 4 com taquara), puderam fazer a identificação. Aquele trecho, portanto, era dominado por uma tribo, completamente desconhecida. Bem sabiam os expedicionários que muitos outros combates semelhantes os aguardavam, como de fato aconteceu. A cada refrega, os fuzis dominaram as flechas; mas, sempre com a perda de oficiais e muitos homens da equipagem.

Então, depois de mais de 3 meses de navegação lenta, penosa, eivada de perigos, pelo braço principal do Javari, eis que o tenebroso Rio começou paulatinamente a perder o ímpeto; a diminuir devagarzinho de volume, principalmente abaixo do confluente Paissandu. Latitudes e Longitudes eram anotadas. Dilui-se ainda mais o Rio após a bifurcação de outro afluente desconhecido nos mapas, o qual Tefé batizou Rio da Esperança, por que daí em diante, sendo muito menor o volume de água, era mais firme a esperança de atingirem, enfim, a nascente.

A um dia de viagem desse afluente surgiu outro à margem esquerda (peruana), ao qual Black deu o nome de Rio da La Fortuna. Já as águas do tronco, estão quase desaparecidas; assim, despido da pujança de seu volume de água, mostra-se o temível Rio numa miserável nudez, reduzido a um insignificante Igarapé — como os índios chamam os regatos navegáveis só para pirogas empurradas a braços —, Igarapé que mau grado as chuvas incessantes daquele mês, tinha 0,50 cm de profundidade e 15 m de largura. Diminuiu ainda mais acima de outro inesperado afluente da margem brasileira: por suas águas negras, silenciosas, literalmente cobertas pelas árvores das duas margens, chamou-lhe Tefé − Rio Triste.

Durante a noite, os dois chefes fizeram observações para a Latitude. Carlos von Hoonholtz, irmão de Tefé que o acompanhou em todas as incursões, e agrimensor da Expedição, ficou encarregado de redigir e gravar a inscrição para o monumento da delimitação. Tefé e Black puseram-se em marcha com seus ajudantes e uma escolta de 8 imperiais marinheiros à procura da verdadeira fonte. Levantaram o plano do Igarapé, indicando as direções magnéticas por meio de uma bússola portátil; com o micrômetro de Lugeol mediram a distância de uma curva para outra.

Ao cabo de 8 milhas de caminhada sobre o lodo, com curtos ziguezagues, o Igarapé perdeu-se num Igapó, terreno pantanoso a Leste e a Oeste. A famosa nascente, a matriz do poderoso Javari ali estava em sua insignificância; um pequeno lodaçal escorregadio, cuja água fugia sob os pés dos expedicionários. Tantas lutas, fome, peste, sacrifícios de vidas, para atingirem aquele fio de água antediluviano da lenda dos Cataquinos!

Nesse momento deve Tefé ter ficado com os sentidos bloqueados por uma meditação sem palavras, que é o estado máximo da concentração espiritual. O pensamento relampagueou em seu cérebro. Apagou-se.

Eram 4 horas da tarde. Os exploradores apressaram o passo, para atingir as chalanas antes da noite. Traiçoeiramente, uma flecha zune no ar, raspa o ombro de um marinheiro e se fixa na manga de sua camisa. No mesmo momento, um grupo de índios, que se confundiam com as árvores, expedem uma saraivada de flechas. Em retorno, uma descarga de fuzis. Os selvagens fogem em disparada.

Don Guilherme Black revelara-se digno sucessor de Paz Soldam: bravura e sabedoria aliados ao mais alto grau de senso de imparcialidade e justiça. De comum acordo, as Comissões deliberaram o seguinte:

1°    O Peru nenhum direito possuía à margem direita do Madeira.

2°    A República do Peru no Tratado solene que celebrava com o Império do Brasil estabelecia como limite entre ambos os Países todo o curso do Javari, considerando, portanto, nulo o Artigo 9° do Tratado de Santo Ildefonso, que fixava o Extremo Sul da fronteira do Javari ponto cortado pela Linha Leste-Oeste, tirada a meia distância do Madeira, que é o mesmo paralelo dos 7°4’ dos comissários de 1781. Na Ata da fixação do marco definitivo, à margem direita do Javari (7°6’55”) indicando a nascente do Rio, assinam por parte do Peru, todos os membros da Comissão: Capitão-de-Fragata Guilherme Black, 4 oficiais de Marinha e 1 do Exército. Por parte do Brasil só a assinou Tefé, por haverem morrido os outros membros graduados da Comissão.

Quando a Expedição (que iniciou com 82 elementos) regressou dessa exploração, perigosa mas fecunda, estava reduzida a 55 (27 sobreviventes e 55 mortos) figuras esquálidas, de barbas e cabelos crescidos e roupas esfarrapadas. Com os que já tinham falecido em outros pontos do Amazonas, ao todo, Tefé perdera 50 homens da equipagem, além de 3 ajudantes, o Secretário Dr. Ribeiro da Silva e seu adorado irmão Carlos Guilherme von Hoonholtz, o primogênito da família (55 no total), que após vencida a renhida luta ao regressar do Javari, dois dias apenas antes da chegada, lhe expirara nos braços, morto sem diagnóstico preciso, vitimado talvez pelo beribéri.

Como sabemos, nascera Carlos no navio “Eólo” sobre as águas da Barra do Rio Grande, em 1826, quando seu pai, o Capitão Frederico Guilherme von Hoonholtz ia arriscar a vida em defesa do Brasil, e sua corajosa mãe o seguiu de abarracamento em abarracamento, de campo militarizado em campo militarizado, durante a Guerra da Cisplatina.

Competira-lhe agora a vez de dar sua vida a serviço do Brasil. Voltava seu corpo às águas, as do Javari, que ficaram sendo sua sepultura. Ainda uma vez se afirmava o conceito de Chesterton: “O imprevisto é a única lei da História”.

Gilbert Keith Chesterton: escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, teólogo, filósofo, desenhista e conferencista mais conhecido como G. K. Chesterton, nasceu em Londres, no dia 29 de maio de 1874, e faleceu em Beaconsfield, a 14 de junho de 1936. (Nota do Autor)

Após cerca de três intermináveis anos no Alto Amazonas, por entre perigos, pestes, imundícies, inimigos ferozes e mortes, Tefé reivindicara para o Brasil uma extensíssima região não só de terras férteis como de sub-solo prenhe de riquezas. Traçara uma abertura pelo Rio Javari de 2 000 km. de travessia ao forçar a barreira humana formada pelas mais indomáveis tribos selvagens, embrenhadas nas margens desse Rio. Seu feito é uma epopéia. Epopéia seguida com ansiedade pelo Império todo através dos seus diários publicados no “Jornal do Commercio”, embora com o atraso normal em face da distância.

No entanto que amarguras lhe traria dentro em pouco esse nobre feito, do qual voltaria com a saúde abalada, mal podendo andar, mas de consciência tranquila por haver tão bem cumprido a grande missão da qual pessoalmente o revestira o Imperador. Pensando certamente nesse triste regresso a Manaus e na dolorosa surpresa que aí o aguardava, escreverá Tefé um dia muito mais tarde:

—    O que me atemoriza não é na vida ao ar livre (há certa originalidade na colocação das palavras), a fúria do mar proceloso, o bramido das vagas, as águas de um Rio coalhado de sangue, nem o rugir das feras nas selvas. O que me atemoriza é a calmaria que antecede o bote dos invejosos: a calúnia.

-    Livro do Autor

O livro “Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Associação dos Amigos do Casarão da Várzea (AACV) – Colégio Militar de Porto Alegre.

Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:


Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB - RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
Blog: http://www.desafiandooriomar.blogspot.com